Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:836/19.9BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/10/2019
Relator:ALDA NUNES
Descritores:INCOMPETÊNCIA MATERIAL
IPSS
ENTIDADE ADJUDICANTE
Sumário:I – As IPSS, dotadas de personalidade jurídica, criadas para satisfazer necessidades gerais e sujeitas ao poder de controlo de gestão por parte do Estado (cfr art 34º do DL nº 119/83, de 25.2, na redação conferida pelo DL nº 172-A/2014, de 14.11), são entidades adjudicantes, nos termos e para efeitos do disposto no art 2º, nº 2, al a), ii) do CCP.

II – De acordo com o art 4º, nº 1, al e) do ETAF, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à validade do procedimento para seleção de fornecedor de bonecos e respetivos sacos para a Campanha do P...........
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:



Relatório

M.........., SA, requereu providência cautelar, com pedido de decretamento provisório, contra F.......... e P.........., Lda, pedindo que seja:

a) a campanha do P.......... de 2019, com início agendado para o próximo dia 17 de maio, suspensa até que seja anulado o ajuste direto realizado pela F.......... e criado procedimento concursal conforme é de Lei e Regulamento do Concurso para Seleção de Fornecedor do Boneco e Respetivos Sacos.

Em alternativa

b) Ponderados os interesses públicos e privados, seja, provisoriamente, também decretada/ adotada outra providência que assegure o direito da aqui requerente.


O TAC de Lisboa julgou a jurisdição administrativa incompetente, em razão da matéria, para conhecer da causa.

Inconformada, a requerente interpôs o presente recurso e nas alegações que apresentou formulou as conclusões seguintes:

"Texto integral no original; imagem"
"Texto integral no original; imagem"
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A recorrida F.......... contra-alegou o recurso, concluindo do modo seguinte:

«1. A sentença objeto do presente recurso, revela-se acertada e justa, em face da matéria factual apurada no decurso do julgamento e documentação constante dos autos;

2. Sendo certo que os factos foram corretamente apreciados e decididos;

3. Ora a Recorrida, de acordo com os seus estatutos, publicados no DR III série, de 14/3/2000, integra o conteúdo descrito no ponto i), já não integrando, no entanto, o conteúdo do ponto ii) da alínea a) do nº 2 do artigo 2º do CCP.

4. A Recorrida F.......... também não cabe nesta cumulação de indicadores, previstos no ponto ii) do artigo 2º do n.º 2, alínea a), denominados pela Recorrente de “dependência da entidade em relação ao Estado, às autarquias locais ou regionais ou a outros organismos de direito público”:

5. De facto, a Recorrida F.......... não é maioritariamente financiada - referindo-se, este financiamento a transferências orçamentais propriamente ditas e não ao pagamento de serviços, como é o caso da cooperação, conforme pretende invocar a Recorrente - pelas entidades referidas no nº 1 do artigo 2º do Código dos Contratos Públicos, nem tem qualquer órgão na sua Administração, designado por qualquer dessas entidades, conforme decorre dos seus estatutos.

6. A F.......... é financiada, no exercício da sua atividade, pelas quotizações das suas associadas (C.....), por donativos de particulares e empresas e pelo resultado da Campanha anual do “P..........”, conforme resulta do documento n.º 3, junto por esta Recorrida, constante dos autos.

7. Apesar de receber alguns subsídios estatais, não é maioritariamente financiada pelo Estado.

8. Com efeito, conforme resulta do supracitado Doc.3 junto pela Recorrida F.........., recebeu do Estado, em 2018, oriundo do Instituto Nacional de Reabilitação, o montante de 39.557,33€, integrado num total de proveitos de 1.012.178,60€, representando 0,4% dos seus proveitos.

9. Sendo que, em 2017 a Recorrida recebeu do mesmo organismo, o montante de 34.263,60€, integrado num total de proveitos de 1.161.397,86€, correspondente a 0,3% dos seus proveitos, nos termos do documento n.º 4 anexo pela Recorrida.

10. Para além disso, a Recorrida F.......... não se encontra sujeita a nenhum controlo material de gestão, figura própria da relação de tutela administrativa, que não é a relação entre as IPSS e o Estado: na verdade, os órgãos do Estado não possuem competência para interferir na orientação da gestão das Instituições, cujos corpos gerentes são autónomos, não sendo nomeados nem podendo ser demitidos por ato da Administração Pública, nem têm representação do Estado ou de entes públicos menores nos seus órgãos.

11. Nem se diga como faz a Recorrente que, apesar de não ser maioritariamente financiada pelas suprarreferidas entidades, a Recorrida seria sempre financiada por força de alegados acordos de cooperação, sem que contudo, tenha identificado tais.

12. De facto, tal como referido anteriormente, tal financiamento deve ser interpretado como transferência orçamental direta, da entidade pública para a entidade privada, isto é, como abrangendo apenas as situações em que o próprio orçamento da entidade pública é integral ou maioritariamente objeto de financiamento direto pela entidade pública. Sendo que, tal não sucede com a F.......... por não ter acordos de cooperação com entidades públicas. Ainda que, mais de metade das suas receitas anuais proviessem de processamentos de entidades públicas ao abrigo de acordos de cooperação – o que não acontece conforme supra alegado e considerado provado nos autos - as receitas provenientes desses acordos de cooperação têm natureza contratual, na medida em que, tais acordos constituem contratos bilaterais, livres e autonomamente celebrados.

13. Isto é, as receitas provenientes dos acordos de cooperação decorrem de deveres contratuais assumidos pela Segurança Social, subordinados à subsistência dos acordos, não constituindo uma transferência orçamental, um financiamento direto, independente da natureza do ato que lhe dá causa: o contrato. Ao aceitar o raciocínio de que é a natureza pública da parte contratante que confere características de publicidade às verbas que constituem contrapartida contratual por si devida, seríamos levados a concluir pelo absurdo de que, por exemplo, qualquer empresa privada que receba do Estado ou outras entidades públicas mais de metade das suas receitas, como contrapartida, por exemplo, da adjudicação de empreitadas de obras públicas, deveria ser um entidade equiparada a pessoa coletiva pública, devendo obedecer ao regime do CCP, mesmo na celebração daqueles contratos em que não é o Estado a contraparte.

14. Assim, não preenchendo a requerida F.......... o requisito imposto pelo ponto ii) da alínea a) do nº 2 do artigo 2º do CCP, não pode aquela ser considerada entidade adjudicante para efeitos deste Código.

15. Acresce que, entende a Recorrente que, mesmo sendo afastado o requisito de financiamento maioritário pelo Estado, haveria sempre lugar à aplicação do artigo 275º do CCP à situação dos presentes autos.

16. Com o devido respeito, a aplicabilidade do artigo 275º do Código dos Contratos Públicos invocada pela Recorrente mostra-se desprovida de sentido.

17. Na verdade, conforme supra alegado, face à percentagem que representa o subsídio do Estado, no orçamento da F.........., esta nunca poderia ser considerada como financiada diretamente em mais de 50% por qualquer das entidades adjudicantes referidas no artigo 2.º do Código dos contratos Público.

18. Para além disso, a circunstância de o contrato em apreço poder ser qualificado como um contrato de aquisição de serviços como alegado pela Recorrente, a verdade é que, este não é complementar, dependente ou se encontra, por qualquer forma, relacionados com o objeto de um contrato de empreitada, cuja formação é aplicável o Código dos Contratos Públicos. Ora, não se vislumbra como é que se subsume a atuação do peticionado pela Recorrente àquela norma.

19. Assim, a Federação F.........., como qualquer pessoa privada, tem plena liberdade contratual, nos termos do nº 1 do artigo 405º do Código Civil, pelo que tem liberdade contratual para escolher a forma de contratar para a adjudicação do fornecimento do conjunto de bonecos destinados à sua campanha anual, em 2019.

20. Estabelece o artigo 4º, nº 1, al. e), do ETAF, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto a validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.

21. Não sendo a F.......... uma entidade adjudicante nos termos do CCP e sendo o contrato privado, dúvidas não restam que tribunal administrativo de círculo de Lisboa ser considerado incompetente para decidir o presente processo.

22. Mais, através dos presentes autos, pretende a Recorrente a "suspensão do início da Campanha do P.......... de 2019, de 17 de maio a 9 de junho de 2019",

23. Assentando a causa de pedir do presente procedimento cautelar comum em atos, por parte do Recorrente tendentes à suspensão da Campanha do pirilampo deste ano, tendo já sido finalizada a respetiva campanha, deixou a tutela cautelar de ser idónea à obtenção do efeito pretendido pela Recorrente.

24. O desaparecimento do objeto do litígio cautelar, por força da conclusão da campanha, torna inútil a apreciação das pretensões deduzidas, o que conduz à extinção da instância cautelar, por inutilidade superveniente da lide.

25. Nesta conformidade, a douta sentença em apreço deverá ser integralmente mantida, e, em consequência, deverá o tribunal ser considerado absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer do presente processo, com as legais consequências.

26. Nestes termos e nos mais de direito deve ser negado provimento ao recurso e, em consequência, mantida a sentença recorrida, com todas as legais consequências».

Também a recorrida P.......... contra-alegou o recurso e concluiu:

«1ª - O interposto recurso carece de total fundamento, quer de facto, quer de direito, mostrando-se outrossim doutamente elaborada a douta sentença proferida pelo MMO Tribunal a quo;

2ª.- Na douta sentença proferida pelo MMO TRIBUNAL a quo decidiu verificada a exceção da incompetência absoluta, em razão da matéria, por entender não ser a F.......... uma entidade adjudicante nos termos do Código dos Contratos Públicos (doravante designado por CCP) e tratar-se o contrato em questão um contrato privado;

3ª.- O recurso da recorrente, sob resposta, carece de total fundamento;

4ª.- A recorrente assenta a sua tese de recurso, em súmula, nos seguintes argumentos:

- Insurge-se quanto a procedência de “exceção de incompetência territorial” (segundo as próprias palavras da recorrente);

- Por entender (em fase posterior do articulado sob a epígrafe de exceção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria) ser a F.......... entidade adjudicante ou, mesmo entendendo não ser, pela alegada via do art. 275º do CCP;

5ª.- A recorrente confunde conceitos totalmente distintos: incompetência em razão do território e incompetência absoluta em razão da matéria, sendo que, ao contrário do que faz constar sob a epígrafe de “Ponto Prévio”, o MMO Tribunal a quo não considerou verificada qualquer exceção de incompetência territorial;

6ª.- O presente recurso segue na sequência de despacho do Mmo Tribunal a quo, na sequência de “Providência cautelar antecipatória de Suspensão do início da Campanha do P.......... de 2019, de 17 de maio a 09 de junho de 2019” instaurada pela recorrente, a qual além de dever sempre ser considerada improcedente por não se verificarem preenchidos os pressupostos legais, designadamente o do art. 120, n.º 2 do CPTA, sempre se verificaria totalmente inútil;

7ª.- A providência instaurada pela recorrente e, bem assim, o presente recurso, encontram-se eivadas das mais profunda e consciente má-fé, orientadas com fito e objetivo claramente ilegal, no caso, crê-se constituir “instrumento de negociação” para obviar às consequências advenientes para a recorrente, então fornecedora, do manifesto incumprimento contratual ocorrido no ano de 2018;

8ª.- A F.......... não se enquadra nas entidades identificadas no art. 2 n.º 1 do CCP;

9ª.- E também se pode considerar como entidade adjudicante pela via do n.º 2 do art. 2 do CCP;

10ª.- Mesmo que se entenda que a F.......... preencha os dois sub-requisitos previstos na al. a) do n.º 2 do art. 2 (“satisfação de necessidades de interesse geral” e “sem caráter industrial e comercial”), não preenche nenhum dos demais;

11ª.- Conforme decorre da prova documental já junta aos autos (em particular, Estatutos, Balanço e Relatório de Contas), a F..........:

- Não é maioritariamente financiada por entidades adjudicantes nos termos do n.º 1 do art. 2º do CCP;

- Não está sujeita ao controlo de gestão de entidades referidas no n.º 1 do art. 2º do CCP; e

- Nem a maioria dos titulares dos órgãos sociais foi designada por entidades referidas no n.º 1 do art. 2º do CCP;

12ª.- Por outro lado, a F.......... também não se enquadra nem no previsto no art. 7º do CCP (pois não exerce qualquer tipo de atividade nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais, nas condições previstas no artigo), nem no previsto no art. 275º do CCP (desde logo, por o contrato em questão não ser financiado em montante igual ou superior a 50% por entidade prevista no n.º 1 do art. 2 do CCP);

13ª.- Do exposto, resulta improceder toda a argumentação alegada pela recorrente».

Neste Tribunal Central Administrativo, o Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do art 146º nº 1 do CPTA, nada disse.

Fundamentação de facto:

Para decisão do presente recurso importa dar como provados, por documentos insertos nos autos e por acordo das partes, os factos seguintes:

A) A requerida F.......... é uma pessoa coletiva de utilidade pública, que representa as Cooperativas de Solidariedade Social que têm por objeto a educação e reabilitação de crianças inadaptadas– cfr estatutos publicados no DR, III série, de 14.3.2000 e doc nº 2 juntos com a oposição da F...........

B) Foi equiparada a instituição particular de solidariedade social, com efeitos a partir de 21.9.2000 – cfr doc nº 1 junto com a oposição da F...........

C) É financiada, no exercício da sua atividade, pelas quotizações das suas associadas (C.....), por donativos de particulares e empresas e pelo resultado da Campanha anual do «P..........» - cfr doc nº 3 junto com a oposição da F...........

D) Recebe também subsídios do Estado.

No ano de 2017, a F.......... recebeu do Instituto Nacional de Reabilitação o montante de €: 34.263,60, integrado num total de proveitos de €: 1.161.397,86 – cfr doc nº 4 junto com a oposição da F...........

No ano de 2018, a F.......... recebeu do Instituto Nacional de Reabilitação o montante de €: 39.557,33, integrado num total de proveitos de 1.012.178,60 – cfr doc nº 4 junto com a oposição da F...........

E) A campanha do P.......... de 2018 foi adjudicada à requerente e ora recorrente, pelo valor de €: 408.000,00 – cfr docs dos autos e por acordo.

F) A F.......... encomendou diretamente à P.......... o fornecimento do boneco para a campanha do P.......... de 2019 – por acordo.

G) A campanha do P.......... realiza-se anualmente, no decorrer do mês de maio – cfr docs juntos aos autos.

H) A 13.5.2019 a M.......... requereu o decretamento de providência cautelar contra os requeridos e recorridos, formulando os pedidos seguintes:

a) «Ser a campanha do P.......... de 2019, com inicio agendado para o dia 17.5, suspensa até que seja anulado o ajuste direto realizado pela F.......... e criado procedimento concursal conforme é de Lei e Regulamento do Concurso para seleção de fornecedor do boneco e respetivos sacos;

Em alternativa,

b) Ponderados os interesses públicos e privados, seja, provisoriamente, também decretada/ adotada outra providência que assegure o direito da requerente».

O Direito.
Objeto do recurso:

A questão suscitada pela recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, traduz-se em saber se a jurisdição administrativa é competente para conhecer da pretensão formulada, ou seja, do pedido cautelar de suspensão do início da campanha do P.......... de 2019, até que seja anulado o ajuste direto realizado pela F.......... e criado procedimento concursal conforme é de Lei e Regulamento do Concurso para Seleção de Fornecedor do Boneco e respetivos sacos.

As recorridas, em sede de contra-alegações, invocaram o desaparecimento do objeto do litígio cautelar, por força da conclusão da campanha para o ano de 2019. Não documentaram o facto, nem ele resulta provado dos documentos juntos aos autos. Acresce que as recorridas terminam o recurso pedindo, apenas, a respetiva improcedência e a manutenção da sentença recorrida. Também o requerente cautelar formulou pedidos alternativos e não apenas o de suspensão do início da campanha do P.......... de 2019. O que, tudo ponderado, significa que a questão da utilidade da lide terá de ser analisada e decidida pelo tribunal que for julgado materialmente competente para conhecer da lide.

A decisão recorrida considerou ser a jurisdição administrativa materialmente incompetente para conhecer da pretensão formulada por dois motivos. Por um lado, porque a F.......... não pode ser considerada entidade adjudicante para efeitos do Código dos Contratos Público, uma vez que não preenche o requisito imposto pelo art 2º, nº 2, al a), ii) do CCP, ou seja, não é financiada maioritariamente pelo Estado. Por outro lado, a F.......... tem liberdade contratual, nos termos do art 405º, nº 1 do Código Civil, para escolher a forma de contratar para a adjudicação do fornecimento do conjunto de bonecos destinados à campanha do P.......... de 2019.

Analisemos.

O Código dos Contratos Públicos aplica-se a entidades adjudicantes, independentemente de pertencerem ou não à Administração Pública (cfr art 1º, nº 2 do CCP).

Nos termos do art 2º, nº 2, al a) do Código dos Contratos Públicos, são também entidades adjudicantes (além das pessoas coletivas de direito público «clássicas» do nº 1) quaisquer pessoas coletivas que, independentemente da sua natureza pública ou privada:

i) Tenham sido criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial, entendendo-se como tais aquelas cuja atividade económica se não submeta à lógica concorrencial de mercado, designadamente por não terem fins lucrativos ou por não assumirem os prejuízos resultantes da sua atividade; e

ii) Sejam maioritariamente financiadas por entidades referidas no número anterior ou por outros organismos de direito público, ou a sua gestão esteja sujeita a controlo por parte dessas entidades, ou tenham órgãos de administração, direção ou fiscalização cujos membros tenham, em mais de metade do seu número, sido designados por essas entidades;

São assim pressupostos, cumulativos, da qualificação como entidades adjudicantes, independentemente da sua natureza pública ou privada, nos termos do art 2º, nº 2, al a) do CCP (i) a personalidade jurídica, (ii) terem sido criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial e (iii) que estejam sujeitas à influência determinante de alguma das entidades adjudicantes identificadas no nº 1 daquele artigo 2º.

Relativamente ao 3º pressuposto - dependência da IPSS de uma entidade do art 2º, nº 1 do CCP – o mesmo pode ser aferido, alternativamente, (a) em função do financiamento maioritário, (b) do controlo de gestão ou (c) ainda porque qualquer dos seus órgãos, de administração, de direção ou de fiscalização, integra uma maioria de titulares direta ou indiretamente designada por aquelas entidades (cfr Pedro C. Gonçalves, Regime da Contratação Pública no Código dos Contratos Públicos, 2016, pág. 94 a 96).

No caso, a recorrida F.......... foi equiparada a uma instituição particular de solidariedade social e tem natureza de pessoa coletiva de utilidade pública (art 8º DL nº 119/83, de 25.2, na redação dada pelo DL nº 172-A/2014, de 14.11), regendo-se pelas disposições do Código Cooperativo, pelo regime jurídico das Cooperativas de Solidariedade Social (aprovado pelo DL nº 7/98 de 15.1) e pelo Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social (DL nº 119/83, de 25.2, na redação dada pelo DL nº 172-A/2014, de 14.11).

A F.........., pertence ao ramo do setor cooperativo de solidariedade social e prossegue os objetivos enunciados nos arts 1º, nº 1 e 1º - A do Estatuto das IPSS.

O financiamento da atividade social que desenvolve, como resulta dos factos provados, também é feito com subsídios estatais. Razão pela qual a F.......... está, nos termos do artigo 34º do DL nº 119/83, de 25.2, na redação conferida pelo DL nº 172-A/2014, de 14.11, sujeita ao poder de inspeção, auditoria e fiscalização, por parte do Estado, que pode, para o efeito, ordenar a realização de inquéritos, sindicâncias e inspeções.

Diz o art 34º do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social o seguinte:

1 — O Estado, através dos seus órgãos e serviços competentes, nos termos da lei geral, exerce os poderes de inspeção, auditoria e fiscalização sobre as instituições incluídas no âmbito de aplicação do presente Estatuto, podendo para o efeito ordenar a realização de inquéritos, sindicâncias e inspeções.

2 — Os poderes de fiscalização são exercidos pelos serviços competentes do ministério responsável pela área da segurança social, nos exatos termos definidos nos respetivos estatutos, por forma a garantir o efetivo cumprimento dos seus objetivos no respeito pela lei.

3 — Para além da notificação em sede de audiência prévia, nos termos do Código do Procedimento Administrativo, os serviços competentes devem comunicar ao órgão de administração da instituição os resultados das ações de fiscalização e de inspeção desenvolvidas, incluindo as recomendações adequadas à supressão das irregularidades e deficiências verificadas.

4 — Os mecanismos adequados à articulação entre o ministério responsável pela área da segurança social e os outros Ministérios são definidos por portaria dos respetivos membros do Governo, com competência para o efeito.

Cumpre, no entanto, saber se os poderes estatais concedidos ao abrigo do art 34º do DL nº 119/83, de inspeção e fiscalização por forma a garantir o efetivo cumprimento dos seus objetivos no respeito pela lei, são meros poderes de fiscalização da legalidade ou se integram o controlo de gestão a que alude o art 2º, nº 2, al a), ii) do CCP.

Pelo acórdão de 27.3.2003, processo C-373/00, caso Adolf Truley, concluiu o TJUE:

«Um simples controlo a posteriori não preenche o critério do controlo da gestão pelo Estado, pelas autarquias ou por outros organismos de direito público referidos no artigo 1º, alínea b), segundo parágrafo, terceiro travessão, da Diretiva 93/36 relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de fornecimento, uma vez que, por definição, um controlo deste tipo não permite aos poderes públicos influenciarem as decisões do organismo em causa em matéria de contratos públicos.

Em contrapartida, corresponde a esse critério a situação em que, por um lado, os poderes públicos controlam não apenas as contas anuais do organismo em causa mas também a sua gestão corrente na perspetiva da exatidão dos números referidos, da regularidade, da procura de economias, da rentabilidade e da racionalidade e, por outro, os mesmos poderes públicos estão autorizados a visitar os locais de exploração e as instalações do referido organismo e a transmitir os resultados desses controlos a uma autarquia que, por intermédio de outra sociedade, detém o capital do organismo em questão».

Na jurisprudência portuguesa, o controlo de gestão pelo Estado foi reconhecido às instituições particulares de solidariedade social, quer à luz do Estatuto das IPSS aprovado pelo DL nº 119/83, de 25.2 (cfr arts 32º, nº 1, 33º, 34º, 23º, nº 1), quer já à luz do Estatuto das IPSS na redação que lhe foi conferida pelo DL nº 172-A/2014, de 14.11 (cfr arts 34º, 23º).

Com efeito, o STA, em acórdão de 8.10.2002, proferido no processo nº 1308/02, e o TCA Norte, em acórdão proferido em 31.8.2015, no processo nº 357/15, decidiram «na vigência do Estatuto das IPSS com redação anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 172-A/2014, de 14 de Novembro, as IPSS estão sujeitas à tutela do Estado, os seus orçamentos e contas carecem de vistos pelos serviços competentes (artigo 33º), que poderão ordenar a realização de inquéritos, sindicâncias e inspeções a estas instituições e seus estabelecimentos (artigo 34º). As empreitadas de obras de construção ou grande reparação deverão ser feitas em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente (artigo 23º, nº 1).

Já na vigência do Estatuto das IPSS com as alterações introduzidas pelo DL nº 172-A/2014, de 14.11, o TCA Sul proferiu acórdão em 5.4.2018, no processo nº 584/16, em que considerou as IPSS entidades adjudicantes por estarem «dotadas de personalidade jurídica, sendo criadas com o fito de satisfazer necessidades gerais e sujeitas ao poder de controlo de gestão por parte do Estado». E em decorrência o tribunal decidiu pela competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal para apreciar os litígios que tenham por objeto questões relativas à validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.

Na verdade, a tutela exercida pelo Estado sobre as instituições de solidariedade social, por força do respetivo Estatuto, designadamente, a imposição de que as empreitadas de obras de construção ou grande restauro seja feita em concurso público (art 23º) e a fiscalização a que estão sujeitas, podendo os serviços competentes (do ministério responsável pela área da segurança social) ordenar a realização de inquéritos, sindicâncias e inspeções às instituições e seus estabelecimentos (art 34º), permite concluir que, para o efeito do disposto no art 2º do CCP, a gestão das instituições privadas da solidariedade social está sujeita ao controlo do Estado, com vista a regrar as atividades das instituições.

E assim sendo, estas instituições, em que se insere a recorrida F.........., porque dotadas de personalidade jurídica, criadas para satisfazer necessidades gerais, ou seja, de interesse público, e sujeitas ao poder de controlo de gestão por parte do Estado são de considerar entidades adjudicantes, nos termos e para efeitos do disposto no art 2º, nº 2, al a), ii) do CCP.

Mas, salienta o Prof Pedro Gonçalves, em Direito dos Contratos Públicos, 2016, pág. 98, «o facto da entidade se qualificar como entidade adjudicante não responde logo à questão de saber em que termos precisos se lhe aplica a Parte II do Código dos Contratos Públicos. (…). Em relação às entidades do art 2º, nº 2 (organismos de direito público [terminologia usada pelas diretivas europeias], a Parte II do CCP aplica-se apenas quando estiver em causa a celebração de contratos com prestações típicas dos contratos de empreitada de obras públicas, de aquisição de serviços, de fornecimento de produtos, de concessão de obras públicas e de concessão de serviços públicos (art 6º, nº 2)».

No caso, a tutela cautelar vem pedida a propósito do procedimento levado a cabo pela F.......... para fornecimento do boneco para a campanha do P.......... de 2019. Tal campanha é anual e no ano de 2018 o fornecimento do boneco foi adjudicado à ora recorrente, pelo preço de €: 408.000,00.

Assim,

tendo-se concluído que a F.......... é uma entidade adjudicante e que, com a presente ação, o ora recorrente pretende a suspensão da campanha até «que seja anulado o ajuste direto realizado pela F.......... e criado procedimento concursal conforme é de Lei e Regulamento do Concurso para seleção de fornecedor do boneco e respetivos sacos».

A jurisdição administrativa será materialmente competente, ao contrário do decidido pelo TAC de Lisboa, para apreciar o presente litígio, nos termos que resultam do disposto no art 4º, nº 1, al e) do ETAF, de acordo com o qual: 1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso.

Decisão

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul, em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando a baixa dos autos para que prossigam os seus ulteriores termos, designadamente para serem ordenadas as diligencias de prova que sejam consideradas necessárias e, após, ser proferida decisão, se a tal nada mais obstar.

Custas pelos recorridos, em ambas as instâncias, sem prejuízo da isenção subjetiva de que goza a recorrida F.......... (art 4º, nº 1, al f) do RCP).

Registe e notifique.
*
Lisboa, 2019-10-10,

(Alda Nunes),

(Carlos Araújo),

(Ana Celeste Carvalho).