Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:876/19.8BEBJA
Secção:CT
Data do Acordão:07/08/2021
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:ENTREGA DO IMÓVEL
ARROMBAMENTO
DIREITO À HABITAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
HABITAÇÃO PRÓPRIA E PERMANENTE
Sumário:I - Nos termos do artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, na redacção da Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim”.

II - A Constituição protege o direito de propriedade, o que abrange o direito do proprietário a ser investido na posse efectiva dos bens que adquira por efeito de negócio translativo do direito de propriedade.

III - O impedimento à realização da venda de imóvel afecto a habitação própria e permanente não é absoluto, já que, para além do caso especial previsto no nº 3 do artigo 244º do CPPT, o mesmo pode não ter lugar por vontade do executado.

IV – No caso presente, ainda que de uma forma não explícita, foi o que aconteceu. Concatenado todo o específico circunstancialismo, o mesmo traduz uma não oposição ao impedimento de venda, a que alude o já transcrito nº 6 do artigo 244º do CPPT, pois, não apenas o executado não se insurgiu contra a venda efectuada (pedindo a sua nulidade), como perante a sua consumação e conhecimento acordou na entrega do imóvel, embora solicitando a concessão de um prazo mais dilatado para o fazer, o que foi aceite pelos serviços.

V- O executado é livre de fazer cessar o impedimento da venda ou não se opor à mesma (num momento posterior à venda), isto é, de não arguir a sua nulidade.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

A Fazenda Pública interpõe o presente recurso jurisdicional contra a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Beja que indeferiu o pedido de emissão de mandado judicial que legitime o recurso às autoridades policiais, com arrombamento e substituição da fechadura, para efectivação da entrega do imóvel adquirido em venda no PEF n° 0302200801... e apensos, instaurado no Serviço de Finanças de Odemira, contra a R..., C... Unipessoal Lda., processo este revertido contra V....
Nas alegações de recurso formulam-se as conclusões seguintes:
A
No integral respeito pelo princípio constitucional do direito à habitação, consignado no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa, entendeu o legislador ordinário introduzir no nosso ordenamento jurídico tributário, normas de salvaguarda desse direito.
B
Para tanto fez constar do artigo 244.º do CPPT, mais concretamente do seu n.º 2, norma impeditiva da venda de imóveis destinados exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar;
C
No entanto, e da Constituição da República Portuguesa resultam igualmente protegidos outros direitos, nomeadamente o direito à propriedade privada e também o acesso à Justiça.
D
No que concerne ao direito à habitação e tendo em vista assegurar ao executado a salvaguarda desse direito, procedeu o OEF à sua notificação, para, no prazo concedido, informar se o imóvel se destinava a sua habitação própria e permanente e/ou do seu agregado familiar, silenciando o executado e nada dizendo;
E
Ademais, e após a venda, foi o executado contatado pelo OEF no sentido de proceder à entrega das chaves do imóvel, pelo que também aí poderia ter utilizado os meios que a lei lhe assegura para fazer valer o seu direito à habitação, nomeadamente, através de petição de anulação de venda, tendo sido omisso,
F
Sendo que também aqui, lhe é assegurado e constitucionalmente protegido, o direito de acesso à justiça, nomeadamente através de patrocínio judiciário, e também aqui foi relapso.
G
De outra parte, sempre o OEF se pautou pelo integral cumprimento das normas legais, quer possibilitou ao executado vir ao processo declarar se o imóvel cuja venda se projectava, se destinava a sua habitação própria e permanente e do seu agregado familiar,
H
Quer ainda quando deu cumprimento ao determinado no n.º 6 do artigo 861.º do Código de Processo Civil (CPC);
I
Acrescendo, como se observa dos fatos dados como assentes em “9” da douta sentença, consideração já mencionada em “VI” das alegações que antecedem, “…o imóvel aparentava estar desabitado”, não resultando sequer cabalmente demonstrado que o imóvel era efectivamente a habitação própria e permanente do executado e do seu agregado familiar;
J
Mas mesmo que assim fosse, sempre o direito à habitação consignado na Constituição da Republica Portuguesa teria que ser compaginado com aquele outro direito, igualmente merecedor de consagração constitucional, que é o direito à propriedade privada,
L
Não cabendo impor a garantia de habitação condigna aos particulares, mas sim ao Estado, nem sequer assentando a douta decisão agora sob recurso em qualquer normativo legal, porquanto, salvo o devido respeito por outra interpretação, não se mostram reunidos sequer os pressupostos da suspensão da entrega do imóvel, constantes do n.º 3 do artigo 863.º do CPC.
M
Diremos mesmo, não nos coibindo de reafirmar o muito respeito pelo Tribunal “a quo”, não subscrever sequer a remissão constante da douta decisão para o Acórdão deste Venerando Tribunal proferido no processo com o n.º 09582/16, de 19/05/2016, por evidente inexistência de correspondência das situações em julgamento.


N
Aliás, em situações em que existe correspondência, tem sido totalmente diversa a posição sufragada por V. Exªas, permitindo-nos, com o devido respeito, remeter para o douto Acórdão desse Venerando Tribunal, proferido em 07 de Junho de 2018, no processo nº 2555/15.6BESNT, cujo arrimo preconizamos ao presente recurso,
O
Errou assim o douto Tribunal na interpretação que efectuou do disposto nos artigos 861º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mais concretamente na sua aplicação aos fatos em apreço, porquanto, a melhor interpretação da norma é aquela que o OEF dela retirou, no sentido da determinação da prévia comunicação à autarquia e aos serviços de Segurança Social, com vista ao realojamento do executado, o que integralmente cumpriu,
P
Porquanto, não deve o intérprete atribuir à norma os efeitos que o legislador não lhe pretendeu dar, pois certamente, se o efeito pretendido fosse a suspensão da entrega do imóvel até ao realojamento do seu ocupante, o legislador tê-lo ia feito constar da mesma
Q
Como igualmente errou ao considerar aplicável à situação “sub-judice” qualquer das disposições constantes do artigo 863º do CPC, determinantes da suspensão da entrega do imóvel vendido,
R
Ademais, apesar de regularmente notificado, contatado pessoalmente e através de telefone, em momento algum o executado veio ao processo, no sentido de fazer valer os direitos que a lei lhe consagra, nomeadamente os previstos no artigo 244º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, errando também o douto Tribunal ao pretender fazer valer um direito que o detentor, em momento algum pretendeu usufruir, premiando assim a negligência e desinteresse deste, em detrimento do direito do adquirente, ao bem que adquiriu.
Termos em que peticionamos seja feita a costumeira JUSTIÇA, com a procedência do presente recurso, e consequente revogação da decisão recorrida, sendo em sua substituição, proferido o despacho peticionado.
*
O Recorrido não apresentou contra-alegações.
*
O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal teve vista nos autos, pronunciando-se pelo não provimento do recurso.
*
Colhidos os vistos, vem o processo à conferência para decisão.
*

II - FUNDAMENTAÇÃO
- DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que se extrai do julgamento efectuado em 1ª instância:

“Face ao que resulta dos autos, por aplicação das regras da experiência comum, dão-se como assentes os seguintes factos:

1) Pelo Serviço de Finanças de Odemira foi instaurado o processo de execução fiscal com o nº 0302200801... contra a sociedade comercial “R..., C..., Unipessoal Ldª”, NIPC 5..., a que foram apensos os processos n.ºs 03022009010…, 03022009010… e 030220100100…, aí igualmente instaurados, globalizando o montante total em cobrança de 43.763,02 €;

2) Na falta de pagamento da dívida exequenda e da insuficiência de bens apurada quanto à sociedade executada originária foi determinada a reversão contra o responsável subsidiário V..., NIPS 1...;

3) Em 13/01/2014 foi efetuada penhora de imóvel propriedade do executado por reversão consistente no prédio urbano sito na U..., em Vila Nova de Milfontes, descrito como casa de habitação com logradouro de rés-de-chão e primeiro andar, o qual se encontra inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 4... e descrito na Conservatória sob a ficha nº 1.../19950417;

4) O domicílio fiscal do executado situa-se em l..., Vila Nova de Milfontes;

5) Através de carta registada com aviso de recepção foi remetido, em 12/09/2017, ao executado por reversão com referência ao seu domicílio fiscal ofício destinado a instá-lo a informar o Serviço de Finanças de Odemira se o imóvel objeto de penhora se destinava exclusivamente à sua habitação ou do seu agregado familiar;

6) A carta foi devolvida ao remetente;

7) Em 24/10/2017 foi expedido com o mesmo destinatário ofício com o mesmo teor;

8) Este ofício foi recebido e assinado o aviso de recepção respetivo em 26/10/2017;
9) Em 14/11/2017 foi prestada na execução fiscal informação de acordo com a qual o silêncio do executado na sequência do conhecimento do ofício em 26/10/2017 e uma vez que o imóvel aparentava esta desabitado nada obstava a que o OEF procedesse à venda do mesmo;

10) Seguidamente foi proferido despacho determinativo da venda judicial do imóvel penhorado e antes descrito, através de leilão electrónico, no dia 14/12/2017, pelas 11 horas;

11) Quanto a este despacho foram remetidos ofícios para o seu domicílio fiscal com vista a dar conhecimento do mesmo ao executado em 21/11/2017 e 07/12/2017;

12) Tais ofícios não foram recepcionados pelo executado por reversão tendo sido devolvidos ao remetente;

13) Na data designada para a venda foi o bem imóvel descrito adjudicado a J..., NIPS 2...;

14) Em 21/12/2017 pelo adjudicatário foi depositado o preço da aquisição do imóvel correspondente a 112.414,00 €;

15) Em 05/01/2018, o adjudicatário J..., mediante requerimento dirigido ao órgão de execução fiscal, solicitou a entrega das chaves do imóvel adquirido;

16) Nessa mesma data, por carta registada com aviso de receção, foi expedido ofício para o executado e fiel depositário V..., para, no prazo de 20 dias proceder à entrega da chave do imóvel no órgão de execução fiscal, com a advertência de que a não entrega do imóvel fá-lo-ia incorrer em responsabilidade criminal, nomeadamente nos crimes de desobediência, abuso de confiança e/ou descaminho;

17) Esta carta não foi recebida pelo executado;

18) Em 23/01/2018 foi efetuada nova tentativa com remessa de novo ofício;

19) Igualmente não foi recepcionado pelo executado;

20) Em 30/04/2018, após concretização do registo de propriedade do imóvel a seu favor, o adjudicatário requereu ao órgão de execução fiscal a entrega do bem adquirido;

21) O órgão de execução fiscal estabeleceu contato com o executado V..., na sequência do qual este esteve presente no Serviço de Finanças de Odemira, em 09/05/2018, comprometendo-se a efectuar a entrega das chaves do imóvel vendido até ao dia 20 desse mesmo mês;

22) Em 21 de maio, perante a não concretização da entrega das chaves do imóvel foi este contatado telefonicamente por funcionário do órgão de execução fiscal persistindo na não entrega das chaves do imóvel, solicitando mais prazo para tal;

23) Em 05/06/2018, foi encetado novo contato com o executado e fiel depositário, concluindo-se pela persistência da já reiterada recusa na entrega do imóvel;

24) O órgão de execução fiscal oficiou à Câmara Municipal e aos Serviços da Segurança Social de Odemira, no sentido de obtenção de habitação social para o executado;

25) Estas Entidades responderam, em 19/06/2018 e 03/07/2018, esclarecendo não dispor de capacidade de resposta ao solicitado;

26) Em 15/03/2019 foi proposto o presente processo;

27) O executado reside no imóvel em causa nos autos desde há 18 anos com o seu agregado familiar.
Tal factualidade decorre dos documentos constantes dos autos.
*
- ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Nos presentes autos, vem sindicada a sentença proferida pelo TAF de Beja que indeferiu o pedido de emissão de despacho judicial que legitime o recurso às autoridades policiais, com arrombamento de portas do imóvel e substituição da fechadura, para efectivação da entrega do imóvel objecto de venda no PEF n° 0302200801... e apensos, instaurado no Serviço de Finanças de Odemira, contra a sociedade R..., C... Unipessoal Lda., processo este revertido contra V....
Para indeferir o requerido, a sentença estruturou a argumentação que, em parte, se transcreve:
“(…)
O OEF procedeu no âmbito da citada execução à penhora do prédio urbano sito na freguesia de Vila Nova de Milfontes, concelho de Odemira, o qual se encontra inscrito na matriz sob o art. 4..., atenta a circunstância de o executado por reversão não ter igualmente procedido ao pagamento do valor em cobrança.
Tal penhora foi registada em 13/01/2014.
Situava-se o imóvel penhorado no ... em Vila Nova de Milfontes. Ora sucede que tal morada corresponde ao domicílio fiscal do executado por reversão conforme resulta do probatório.
Perante tal circunstancialismo o OEF atentou no disposto no art. 244º, nºs 2 e 3 do CPPT que dispõe no sentido de impedir a venda de imóvel que esteja afecto à habitação própria e permanente do executado e respetivo agregado familiar. Tal norma entrou em vigor em 24/05/2016, ou seja na data subsequente à da publicação do diploma que procedeu a tal alteração legislativa, a Lei nº 13/2016, de 23/05, cujo art. 1º dispõe que “A presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado.”
Na sequência de tal modificação legislativa o OEF ficou compelido a respeitar os pressupostos legislativos aí previstos por forma a não concretizar vendas proibidas pela referida norma legal.
Nesses termos, a proibição da venda do imóvel depende do preenchimento dos seguintes pressupostos: - o imóvel deve ter sido afecto exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar (nº 2 do art. 244º do CPPT); - o valor tributário do imóvel não se encontre, no momento da penhora, enquadrado na taxa máxima prevista para a aquisição de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, em sede de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (nº 3 do referido artigo). No caso dos autos não se suscitam dúvidas ao Tribunal de que se não encontra preenchido o segundo requisito.
Já quanto ao primeiro requisito manifesto se mostra ao Tribunal que se verifica a aludida restrição porquanto do probatório resulta – aliás por iniciativa do Tribunal em demandar averiguação pela autoridade policial da área, diligência esta que o OEF podia e devia ter levado a cabo – que o executado reside no imóvel penhorado e vendido com o seu agregado familiar de forma permanente há 18 anos.
Pese embora tal conclusão entendeu o OEF reunidas as condições para prosseguir com a venda pois que o executado silenciou na sequência de ofício que o instava a esclarecer se o imóvel penhorado era sua habitação própria permanente. Note-se que tal ofício não continha qualquer advertência ou cominação ou sequer indicação da norma legal ao abrigo do qual se encontrava a ser concretizado. Conclui-se pela insuficiência, clara, da averiguação levada a cabo pelo OEF.
Todavia, concretizada a venda, depositado o preço pelo adjudicatário e registada a propriedade do imóvel em seu benefício veio este instar o OEF à entrega do bem.
Perante esta situação o OEF deparou-se com dificuldades que consignou no processo de execução fiscal, quer com ofícios de notificação para entrega que resultaram malogrados porque não recebidos quer por contactos pessoais que não redundaram na pretendida entrega do imóvel, ou seja, nas chaves do mesmo.
Resulta ainda assente que o OEF, reconhecendo a efetiva habitação do executado no imóvel, efetuou contactos via ofício com a Câmara Municipal de Odemira e a Segurança Social com vista a obter realojamento do mesmo. Porém resulta igualmente assente que tais Entidades não apresentaram resolução da questão invocando indisponibilidade de realojamento para o efeito.
Efetivamente ao abrigo dos artigos 861 e 863º do CPC, aqui aplicáveis na falta de lei especial que regule em particular tal matéria no CPPT e à luz da alínea e) do art. 2º, impunha-se – nesta fase à posteriori porque não assegurada à priori, como se impunha sublinhe-se – ao OEF não consumar a entrega do bem vendido se não assegurados os direitos fundamentais do habitante do imóvel sendo este o executado, designadamente o seu direito constitucional à habitação.
E, aqui chegados, tais direitos fundamentais do executado e respetivo agregado familiar, crê-se, não se mostram de todo acautelados porquanto não se vislumbra solução imediata para o realojamento de tal agregado o que, só por si, impõe que seja sobrestada a execução até ser apurada forma e local para que tal mudança se opere.
Em situação semelhante foi preconizada decisão idêntica através do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no processo n.º 09582/16, de 19/05/2016.
Face ao exposto afigura-se a este Tribunal não justificável, por ora, a tomada efectiva da posse do imóvel pelo OEF mediante arrombamento da porta”.
A Recorrente censura a sentença recorrida, nos termos apontados nas conclusões que ficaram transcritas. No essencial, defende a Fazenda Pública que, a par da norma impeditiva da venda de imóveis destinados exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, prevista no 244º, nº2 do CPPT, resulta também constitucionalmente protegido o direito à propriedade privada e também o acesso à Justiça.
No caso concreto, a Fazenda evidencia que procedeu “o OEF à sua (leia-se, do revertido, ora Recorrido) notificação, para, no prazo concedido, informar se o imóvel se destinava a sua habitação própria e permanente e/ou do seu agregado familiar, silenciando o executado e nada dizendo”. Para mais, “após a venda, foi o executado contatado pelo OEF no sentido de proceder à entrega das chaves do imóvel, pelo que também aí poderia ter utilizado os meios que a lei lhe assegura para fazer valer o seu direito à habitação, nomeadamente, através de petição de anulação de venda, tendo sido omisso”. Para a Fazenda Pública, o Serviço de Finanças pautou-se “pelo integral cumprimento das normas legais”, possibilitando ao executado vir ao processo declarar se o imóvel cuja venda se projectava, se destinava à sua habitação própria e permanente e do seu agregado familiar, dando cumprimento ao determinado no n.º 6 do artigo 861.º do Código de Processo Civil (CPC). Acresce que, para a Fazenda Pública, não resulta “cabalmente demonstrado que o imóvel era efectivamente a habitação própria e permanente do executado e do seu agregado familiar”. Defende a Recorrente que, no caso, “não se mostram reunidos sequer os pressupostos da suspensão da entrega do imóvel, constantes do n.º 3 do artigo 863.º do CPC”.
Em síntese, e para a Recorrente, o Tribunal recorrido errou ao pretender “fazer valer um direito que o detentor, em momento algum pretendeu usufruir, premiando assim a negligência e desinteresse deste, em detrimento do direito do adquirente, ao bem que adquiriu”.
Vejamos o que dizer sobre o que nos vem colocado.
Desde logo, comecemos pela matéria de facto que – incipientemente – parece questionada pela Recorrente, na asserção contida na conclusão I, naquilo que pressuporá, porventura, o entendimento sobre a contradição entre o ponto 9 e o que consta do ponto 27 dos factos provados. Porém, só aparentemente se pode aceitar tal questionamento, já que o ponto 27 é categórico e, nos termos da sentença, resulta das averiguações ordenadas pelo Tribunal junto da autoridade policial da área, o que não terá sido feito pelo órgão da Execução Fiscal (OEF) que se ficou pelas fotografias da casa vendida e da afirmação de aparência desabitada.
Assim, e quanto à matéria de facto e a este aspecto em particular (único questionado), nada há a acrescentar ao parágrafo antecedente, sendo certo que a discordância com o decidido é de tal ordem frágil que dificilmente se pode reputar de impugnação da matéria de facto, nos termos legalmente exigidos.
Isto dito, avancemos.
Como bem se percebe, a solução encontrada pelo TAF de Beja assenta, no essencial, na consideração do direito à habitação, traduzida na convocação da Lei nº 13/2016, de 23 de Maio, e, consequentemente, do artigo 244º do CPPT.
Como se lê no acórdão desta secção, de 17/10/19, processo nº 1281/16.3BESNT, “o direito à habitação constitui um direito fundamental (cfr. artigo 65.º da CRP), a sua violação gera a nulidade dos actos administrativos que o lesem (cfr. artigo 161.º, n.º 2, al. d), do CPA), impunha-se ao Senhor juiz a quo verificar dessa violação, porque o juiz, no contencioso tributário, é o garante da legalidade (em sentido amplo) da actuação da autoridade fiscal.
Nos termos do artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, na redacção da Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim”.
Tal como aqui acontece, também no caso do acórdão citado, o imóvel havia já sido vendido, o que, nas palavras de tal aresto, não deixa de impor o dever ao juiz tributário de “assumir-se como garante dos direitos dos contribuintes”, pelo que “não podia o Senhor juiz a quo deferir sem mais a pretensão da recorrente, tanto mais que a protecção da morada de família é um desiderato constitucional (cfr. artigo 65.º da CRP), decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP).
Mas, não lhe competindo, obviamente, determinar a nulidade da venda, porque tal questão não lhe foi submetida, ainda assim deveria ter ponderado também o direito da adquirente, que igualmente tem tutela constitucional (cfr. artigo 62.º, n.º 1, da CRP). De facto, a Constituição protege o direito de propriedade, o que abrange o direito do proprietário a ser investido na posse efectiva dos bens que adquira por efeito de negócio translativo do direito de propriedade.
Da colisão destes dois direitos não há dúvida que a lei determina a prevalência do direito à habitação no caso dos imóveis penhorados em execução fiscal, mas apenas se estiverem verificados os requisitos acima aludidos”.
Isto dito, porém, não nos devemos afastar das especificidades do caso concreto, nem deixar de convocar novamente o teor do artigo 244º do CPPT, na parte que para aqui releva.
Lê-se em tal preceito legal, além do mais, o seguinte:
“(…)
2 - Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.
(…)
6 - O impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente previsto no n.º 2 pode cessar a qualquer momento, a requerimento do executado.”
Temos, pois, que o impedimento à realização da venda de imóvel afecto a habitação própria e permanente não é absoluto, já que, para além do caso especial previsto no nº 3 do artigo 244º do CPPT (que aqui não importa considerar), o mesmo pode não ter lugar por vontade do executado.
Ora, no caso em particular, ainda que de uma forma não explícita ou imediata, foi o que aconteceu.
Vejamos, as razões para assim entendermos, dando especial enfoque – insiste-se – às concretas circunstâncias do caso perante o qual estamos colocados.
Desde logo, como resulta dos pontos 5) a 8) do probatório, o executado foi questionado sobre o destino e utilização dada ao imóvel em causa, ou seja, se o mesmo era afecto exclusivamente à sua habitação própria e permanente (ou do seu agregado familiar), quedando-se ao silêncio no prazo (de 10 dias) que lhe foi concedido para responder. A este propósito, diz a Mma. Juíza que “tal ofício não continha qualquer advertência ou cominação ou sequer indicação da norma legal ao abrigo do qual se encontrava a ser concretizado”, razão pela qual concluiu pela “insuficiência, clara, da averiguação levada a cabo pelo OEF”. Salvo o devido respeito, esta afirmação peca por defeito, pois lido o ofício endereçado ao ora Recorrido daí consta expressamente que a notificação em causa e o pedido de informação é feito ao abrigo do artigo 244º do CPPT, preceito este que se reporta à realização da venda.
Perante o silêncio sobre o destino do imóvel, apesar da notificação efectuada ao abrigo do 244º do CPPT, e perante a aparência não habitada do imóvel, o SF avançou para a venda, tendo remetido ao Recorrido dois ofícios informando dos termos determinados para a venda, os quais foram devolvidos ao remetente. O mesmo aconteceu com a tentativa de comunicação do pedido de entrega das chaves ao Recorrido, fiel depositário.
Decisivo é, porém, quanto a nós, o que consta do ponto 21 dos factos provados, ou seja, que “O órgão de execução fiscal estabeleceu contato com o executado V..., na sequência do qual este esteve presente no Serviço de Finanças de Odemira, em 09/05/2018, comprometendo-se a efectuar a entrega das chaves do imóvel vendido até ao dia 20 desse mesmo mês”. E, na verdade, assim é, pois consta do processo instrutor uma declaração assinada pelo V..., datada de 09/05/18, nos termos da qual o mesmo “declarou vir fazer a entrega das chaves do prédio urbano artigo 4... da freguesia de Vila Nova de Milfontes, até ao dia 20 de Maio de 2018”. Acresce que em 21/05/18, não tendo entregue as chaves, pediu “uns dias até arranjar solução”, como consta do documento a que se reporta o ponto 22 da matéria de facto.
Temos, assim, na ponderação que fazemos, concatenado todo este circunstancialismo e a interpretação crítica que dele se pode fazer, que tal traduz precisamente uma não oposição ao impedimento de venda, a que alude o já transcrito nº 6 do artigo 244º do CPPT, pois, não apenas o executado não se insurgiu contra a venda efectuada (pedindo a sua nulidade), como perante a sua consumação e conhecimento acordou na entrega do imóvel, embora solicitando a concessão de um prazo mais dilatado para o fazer, o que foi aceite pelos serviços.
Ora, o executado é livre de fazer cessar o impedimento da venda ou não se opor à mesma (num momento posterior à venda),isto é, de não arguir a sua nulidade. Foi o que aqui, perante o circunstancialismo relatado, aconteceu.
E desta actuação, clara e assumida, não podem deixar de se retirar as consequências devidas, na ponderação dos dois direitos, constitucionalmente protegidos: por um lado, o direito à habitação; por outro, o direito de propriedade do adquirente do bem.
Daí que, a interpretação que fazemos do quadro legal aplicável, quando aplicado aos factos concretos, nos leva reconhecer que a razão está com a Fazenda Pública, impondo-se a procedência das conclusões da alegação do recurso e, consequentemente, a revogação da decisão. Com efeito, ao julgar em sentido diferente do referido, a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, pelo que não se pode manter, devendo ser substituída por decisão que defira o requerido pela Fazenda Púbica, com vista à entrega do imóvel.
Nesta conformidade, contrariamente ao decidido, defere-se a requerida diligência com vista à entrega do bem imóvel vendido
*

III – DECISÃO

Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TCA Sul, em:
- conceder provimento ao recurso;
- revogar a sentença recorrida;
- deferir o pedido de efectivação da entrega do imóvel ao adquirente, com auxílio das autoridades policiais, nos termos peticionados.
Custas pelo Recorrido em ambas as instâncias.
Lisboa, 08/07/21
Registe e notifique

[A Relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão as restantes Desembargadoras integrantes da formação de julgamento, as Senhoras Desembargadoras Hélia Gameiro e Ana Cristina Carvalho]
Catarina Almeida e Sousa