Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul:
I. Relatório
S........ (Requerente ou Recorrente) instaurou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, contra a AIMA – Agência para a Integração, Migrações e Asilo (Entidade Requerida, Requerida ou Recorrida), a presente ação de impugnação urgente da decisão do Conselho Diretivo da AIMA, I.P., de 27.02.2024, que considerou infundado o pedido de proteção internacional, bem como a autorização de residência por proteção subsidiária, nos termos dos artigos 19.º n.º 1 alínea e) e 24.º n.º 4, ambos da Lei de Asilo, peticionando a sua substituição por outra que defira o pedido de proteção internacional por si formulado.
Por sentença proferida em 30 de junho de 2024, o referido Tribunal julgou a ação improcedente, mantendo na ordem jurídica o ato impugnado, e absolveu a Entidade requerida do pedido.
Inconformada, a Requerente interpôs recurso jurisdicional dessa decisão para este Tribunal Central Administrativo, concluindo nos seguintes termos:
“1 – A sentença viola os artigos 121º do Código de Procedimento Administrativo, cuja aplicação ao caso determinaria, a nosso ver, que o requerente, aquando da notificação a que se refere o n.º 2 do artigo 17º da Lei 27/2008, havendo lugar à mesma, ou em notificação avulsa, tivesse sido notificado do sentido provável da decisão a tomar pela requerida, o que não sucedeu no caso vertente, pelo que a sentença recorrida deveria ter anulado a decisão objecto de recurso por preterição de formalidade.
2 – A douta decisão recorrida viola ainda o princípio da não repulsão, previsto na 1ª. parte, do nº. 1, do artº. 33º. da Convenção de Genebra de 1951, ao desconsiderar os riscos para a vida da requerente no caso de regresso ao país de origem, devendo ao invés ter sido decretada proteção subsidiária à mesma, ou o apuramento dos factos alegados pela requerente.
Assim, revogando a douta decisão recorrida, e conferindo proteção subsidiaria, ou, assim, não se entendendo, notificando a requerente para se pronunciar sobre o sentido da decisão, se fará
Justiça!”
A AIMA, IP, notificada para o efeito, não apresentou contra-alegações.
O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo.
O Ministério Público junto deste TCA Sul, notificado nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Notificadas do aludido parecer, as partes nada disseram.
Com dispensa de vistos, atenta a natureza urgente do processo, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II. Delimitação do objeto do recurso
Considerando as conclusões do recurso, cumpre apreciar se a sentença recorrida padece de erro de julgamento.
III. Fundamentação de facto
III.1. Na decisão recorrida foi julgada provada a seguinte factualidade:
“1. Em 18.02.2024, S........, (A.), nacional de Angola e da República Democrática do Congo, indocumentada, apresentou um pedido de proteção internacional ao Estado Português, junto do posto de fronteira do Aeroporto de Lisboa, tendo preenchido o relatório preliminar, e sido emitida a declaração comprovativa do pedido registado sob o n.º de Processo n.º 799/24.
_____________________________________________________________________________
Cf. pedido de proteção internacional que consta do documento SITAF a fls. 46-118 dos autos em paginação eletrónica (PA).
2. Em 21.02.2024, a A. foi entrevistada por um Inspetor do Centro Nacional para Asilo e Refugiados da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (CNAR – AIMA), tendo sido preenchido o formulário designado por «Entrevista/Transcrição», do teor que parcialmente se passa a reproduzir:
(…)
6. Porque motivo está a solicitar a proteção internacional?
Estou casada.
Casei em 2015, mas antes de casar esta no RDC e não queria casar. Fiquei na minha família, mas a minha família não gostava do que estava a fazer, por não querer casar.
Na nossa terra as mulheres não podem ficar sem casar.
Fiquei na minha casa em RDC até a minha mãe a minha encontrar-me em casa com outra mulher na minha cama.
Minha mãe sentiu-se mal e desmaiou. Isso foi em 2014.
Depois desse episódio tive que sair de casa.
Um certo dia, voltei para ir buscar as minhas coisas em casa. Nesse dia estava lá um amigo que vive em Angola com o meu irmão mais velho, e ele queria me conquistar e eu neguei. Ele, entretanto, regressou a Angola, e disse que gosta de mim. Ele queria casar comigo.
Na minha família era chamada de filha vergonhosa. Estavam todos contra mim.
Acabei por casar e fui viver em Angola em 2015.
Ele não sabia que sou lésbica.
Em Angola fiz uma nova amizade com outra mulher e o meu marido começou a ouvir comentários que eu sou lésbica, mas eu sempre neguei. Contudo ele sempre me disse que se descobrisse que eu era lésbica ia fazer-me coisas que nunca ia esquecer.
Um certo dia, já em 2021, o meu marido viajou para Dubai em negócios, e não avisou em que dia ia regressar. Chamei a menina para vir em minha casa.
Ele regressou e surpreendeu-me com a outra mulher. Fui brutalmente agredida.
Fui levada ao hospital e ele foi detido e depois soltaram-lhe.
Quando sai do hospital fui para casa da minha amiga. Ele foi atrás de mim e começou-me a ameaçar-me e regressei para Congo.
A minha família avisou-lhe que estava lá e ele foi ao Congo buscar-me.
Regressamos à Angola.
Fiquei fechada em casa, não podia sair de casa, e o meu filho também não podia ir à escola. Um dia, pedi dinheiro para ir as compras para comprar comida para mim e meu filho.
Negou. Ele disse-me que eu era homem e que deveria trabalhar e sustentar a casa também. Fui ameaçada com uma arma de fogo.
Depois desse episódio fugi da casa dele, com o meu filho.
Fui para casa de uma amiga.
Ele descobriu e foi atrás de mim novamente, mas não me encontrou porque fiquei escondida. Comecei a planear minha fuga.
Qualquer sítio para a onde eu fugia ele ia atrás de mim.
A minha amiga, tem um namorado que arranjou um agente para me ajudar a fugir de Angola. Ele fez os nossos passaportes.
Deu-me os passaportes e os bilhetes de viagem.
Quando chegamos em Portugal, um agente tirou-me os passaportes (isso foi já dentro do aeroporto de Lisboa).
Categorização do motivo, com base na resposta: (assinalar apenas se sim)
(…)
6.6.3 Zangas na comunidade (vizinhos, com familiares, etc.) X
(…)
7. Tem receio de voltar ao seu país origem (RDC) ou a Angola? O que aconteceria se regressasse?
Tenho medo de regressar ao Congo porque a minha família não gosta de mim nem do meu filho. Eles chamam-me de Bruxa e ao meu filho, filho da bruxa. No Congo, não tinha possibilidade de mudar de sítio porque vão-me procurar. O pensamento deles é que sou a vergonha da família.
Tenho medo de regressar a Angola, O meu marido é conhecido, porque tem loja grande e tem muito poder. Se regressar o meu marido vai me matar e disse-me que depois ia enviar o meu filho para Nigéria.
(…)
14. Deseja acrescentar alguma outra informação, que seja relevante para a apreciação do seu pedido de proteção internacional?
Peço ajuda para ficar em Portugal.
O meu filho estava em casa sem estudar.
Quero trabalhar para poder sustentar o meu filho.
(…)
_____________________________________________________________________________
Cf. Entrevista/Transcrição no P. n.º 799/24, realizada a 21.02.2024 12:40, que consta do documento SITAF a fls. 46-118 dos autos em paginação eletrónica (PA).
3. Em 23.02.2024, o GAR elaborou o Relatório referente ao processo de proteção internacional n.º 799/2024, cujo enquadramento da situação - sentido provável da decisão, é do teor que se passa a reproduzir:
(…)
RELATÓRIO
A requerente e o filho menor, acima melhor identificados, apresentaram-se no posto de fronteira do aeroporto de Lisboa, aos 17/02/2024, provenientes de Luanda.
A requerente apresentou um passaporte ordinário angolano sem qualquer tipo de visto e a mesma não é portadora de nenhuma autorização de residência, conforme Relatório de Ocorrência com Ref. 001/2259/E/24, redigido pela Polícia de Segurança Pública do Posto de Fronteira;
O filho da requerente apresentou-se indocumentado, conforme Relatório de Ocorrência com Ref. 001/2258/E/24, redigido pela Polícia de Segurança Pública do Posto de Fronteira;
Face ao exposto, por ausência de visto válido e adequado às finalidades da viagem e por ausência de documento de viagem válido, aos 18/02/2024, foi recusada a entrada em território nacional, tendo os mesmos solicitado asilo, sendo instalados no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT)/ZI situado neste aeroporto;
Em cumprimento do (…), foi comunicado ao Conselho Português para os Refugiados a apresentação dos atuais pedidos de proteção internacional, não tendo se pronunciado;
Em 21/02/2024, em cumprimento do disposto no (…), foi o requerente ouvido quanto aos fundamentos do seu pedido de asilo, tendo prestado as declarações que constam em anexo.
FACTOS
Face à prova constante nos autos, em particular o relatório de ocorrência elaborado pela PSP em Posto de Fronteira, o inquérito preliminar subscrito pelo requerente acima identificado e as declarações prestadas pelo mesmo no cumprimento do disposto no (…), conclui-se que:
Os requerentes apresentaram-se no posto de fronteira, sendo que a requerente é portadora de um passaporte angolano válido, sem visto válido e adequado às finalidades da viagem e o filho da requerente apresentou-se indocumentado.
A requerente alegou que viajaram com passaportes falsos e que os mesmos lhes foram retirados já dentro do aeroporto de Lisboa (antes de passarem a fronteira), por um agente (alguém ligado a referida agência que os ajudou na fuga para Portugal, facultando passaportes e vistos falsos).
A requerente alega que é nacional da República Democrática do Congo e Angolana e que o filho é Angolano.
A requerente declara que fugiu de Angola, juntamente com o filho menor, por motivos de zangas familiares.
Relata que fugiu para salvar a sua vida e a vida do filho, que é vítima de violência doméstica por parte do marido, por ser "lésbica".
O relato da pessoa não revela a real existência de qualquer tratamento específico que possa ser considerado um ato de perseguição, nem em Angola nem na República Democrática do Congo.
A requerente relata que em Angola é perseguida pelo marido e que sofre violência doméstica. E que não pode regressar à República Democrática do Congo, porque a família não aceita o facto de ela ser homossexual.
DIREITO
Face ao exposto, considera-se o pedido de proteção internacional infundado nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, na sua atual redação, onde se prevê:
(…)
DA PROPOSTA
Deve o pedido de proteção internacional ser considerado infundado, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, na sua atual redação.
À consideração superior.
(…)
_____________________________________________________________________________
Cf. Relatório que consta do documento SITAF a fls. 46-118 dos autos em paginação eletrónica (PA).
4. Em 27.02.2024, o Conselho Diretivo da AIMA, I.P. proferiu decisão, do teor que se passa a reproduzir:
Concordo.
27/02/2024.
Cf. ‘Despacho’ que consta do documento SITAF a fls. 46-118 dos autos em paginação eletrónica (PA).
5. Em 27.02.2024, a decisão referida em (4) foi levada ao conhecimento da A.
_____________________________________________________________________________
Cf. ‘Notificação’ que consta do documento SITAF a fls. 46-118 dos autos em paginação eletrónica (PA).”
III.2. Mais se consignou na sentença recorrida quanto a factos não provados:
“1. Não se provou que a A. não pudesse regressar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual.”
III.3. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:
“Na determinação do elenco dos factos considerados provados, o Tribunal considerou a posição das partes assumida nos respetivos articulados, e a análise global dos documentos juntos com o respetivo PA.
Para melhor elucidação, ficou identificado, a propósito de cada facto elencado, o documento que, em concreto, alicerçou a convicção do Tribunal.
No que respeita à factualidade não provada, o Tribunal considerou a falta de alegação e prova de factos pela A. donde pudesse resultar a verificação de que a A. é perseguida, em consequência de ser membro de qualquer organização política, religiosa, militar, étnica ou social, no Estado da sua nacionalidade, como não exerce, nem exerceu qualquer atividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, do que possa resultar ameaça/lesão para a integridade física e a vida da A.”
IV. Fundamentação de direito
1. Da preterição de audiência prévia
A Recorrente imputa à sentença erro de julgamento sustentando, em suma, que, opostamente ao decidido, foi preterido o seu direito de audição prévia à decisão de rejeição do seu pedido de asilo e proteção subsidiária.
Entendeu-se na sentença recorrida não se verificar a preterição do direito de audiência prévia da Recorrente porquanto tendo esta apresentado o seu pedido de proteção internacional no posto de fronteira, não se mostra aplicável o disposto no artigo 17.º n.º s 1 e 2 da Lei do Asilo (Lei n.º 27/2008, de 30 junho), mas sim o procedimento especial regulado nos artigos 23.º, 24.º, 25.º e 26.º da mesma Lei. Considerando-se que a Recorrente exerceu o seu direito de audiência prévia em sede das declarações prestadas em 21.02.2024, nos termos do n.º 2 do artigo 24.º daquele diploma.
A audiência prévia assume-se como uma dimensão qualificada do princípio da participação, surgindo em observância e transposição do comando constitucional inserto no art.º 267.º, n.ºs. 1 e 5 da CRP.
Mostra-se prescrito nomeadamente nos arts.ºs 121.º e seguintes do CPA, mas também noutros diplomas, enquanto manifestação, em sede do ordenamento procedimental administrativo, do princípio do contraditório, mediante a consagração da possibilidade não só do confronto dos critérios da Administração com os dos administrados de modo a poderem ser obtidas plataformas de entendimento, mas, também, da possibilidade de estes apontarem razões e fundamentos, quer de facto quer de direito, que invalidem o caminho que a Administração intenta percorrer e levem a que outro seja o sentido decisório.
Como resulta do art.º 2.º, n.º 5 do CPA, as disposições deste diploma, incluindo as garantias nele reconhecidas aos particulares, são de aplicação subsidiária aos procedimentos administrativos especiais.
Daí que, como se escreveu no Ac. deste TCA Sul de 31.10.2024, proferido no processo 4479/23.4BELSB, “o regime geral da audiência prévia só será de aplicar aos procedimentos administrativos especiais se os mesmos não estiverem especificamente regulados nessa matéria”, pelo que, estando em causa um procedimento de concessão de proteção internacional, regulado pela Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, que estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária, “[e]ste diploma prevê e regula os termos do cumprimento da audiência prévia nos procedimentos de protecção internacional, o que afasta a aplicação das normas gerais sobre audiência prévia dos interessados previstas no CPA, nos termos do referido artigo 2.º, n.º 5, do CPA, sendo, antes, aplicável o regime especial previsto naquela lei.
Nos termos da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, a audiência prévia assume contornos diferentes em função do tipo de procedimento e da fase procedimental em causa, prevendo-se um regime regra no seu artigo 17.º e regimes especiais nos artigos 24.º (para os pedidos apresentados nos postos de fronteira), 33.º-A (para os pedidos apresentados na sequência de uma decisão de afastamento do território nacional) e 41.º (para os procedimentos de perda do direito de protecção internacional).”
Ora, nos presentes autos, estamos perante um pedido de proteção internacional apresentado em posto de fronteira regulado pelos artigos 23.º e ss. da Lei do Asilo, que não preveem qualquer notificação do interessado prévia à da decisão final.
Contudo, o artigo 24.º, n.º 2 da Lei do Asilo prevê, especificamente, que “[o] requerente é informado por escrito, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, dos seus direitos e obrigações e presta declarações que valem, para todos os efeitos, como audiência prévia do interessado” (sublinhado nosso).
Refira-se que o artigo 16.º da Lei do Asilo, para que remete o n.º 3 do artigo 24.º, dispõe quanto às declarações que,
“1 - Antes de proferida qualquer decisão sobre o pedido de proteção internacional, é assegurado ao requerente o direito de prestar declarações na língua da sua preferência ou noutro idioma que possa compreender e através do qual comunique claramente, em condições que garantam a devida confidencialidade e que lhe permitam expor as circunstâncias que fundamentam a respetiva pretensão.
2 - A prestação de declarações assume carácter individual, exceto se a presença dos membros da família for considerada necessária para uma apreciação adequada da situação.
3 - Para os efeitos dos números anteriores, logo que receba o pedido de proteção internacional, a AIMA, I. P., notifica de imediato o requerente para prestar declarações no prazo de dois a cinco dias.
4 - (Revogado.)
5 - A prestação de declarações só pode ser dispensada:
a) Se já existirem condições para decidir favoravelmente sobre o estatuto de refugiado com base nos elementos de prova disponíveis;
b) Se o requerente for considerado inapto ou incapaz para o efeito devido a circunstâncias duradouras, alheias à sua vontade;
c) (Revogada.)
6 - Quando não houver lugar à prestação de declarações nos termos do número anterior, a AIMA, I. P., providencia para que o requerente ou a pessoa a cargo comuniquem, por qualquer meio, outras informações.”
Ora, a respeito deste regime já se pronunciaram, entre outros, o Ac. do STA de 23.5.2019, proferido no processo 01434/18.0BELSB e os Acs. deste TCA Sul de 6.6.2020, proferido no processo 371/19.5BELSB, e de 10.9.2020, proferido no processo 1539/19.0BELSB.
Citando o Acórdão deste TCA Sul de 10.9.2020, que acompanha a posição da citada jurisprudência, e com aplicação à situação destes autos,
“[…] tendo o Recorrente apresentado o seu pedido de proteção internacional num posto de fronteira, concretamente, no aeroporto de Lisboa, […], é-lhe aplicável o regime especial descrito nos art.ºs 23.º, 24.º, 25.º e 26.º da Lei do Asilo.
Ora, sendo este regime especial, o recurso aos normativos atinentes ao procedimento comum- como é o caso do previsto no art.º 17.º- apenas é realizado na medida em que não haja disposição específica sobre a matéria no aludido regime especial vertido nos art.ºs 23.º, 24.º, 25.º e 26.º da Lei do Asilo.
Sucede, precisamente, que o art.º 24.º, n.º 2 determina que “o requerente é informado por escrito, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, dos seus direitos e obrigações e presta declarações que valem, para todos os efeitos, como audiência prévia do interessado”.
Sendo assim, tem plena aplicação ao caso versado o princípio jurídico segundo o qual a lei especial prevalece sobre a lei geral, uma vez que, quer o art.º 17.º, n.ºs 1 e 2, quer o art.º 24.º, n.º 2, in fine, visam regular a mesma matéria, isto é, o exercício do direito de audiência prévia no domínio do procedimento administrativo com vista à obtenção do estatuto de proteção internacional.
Acrescente-se que, estando expressamente previsto que as declarações prestadas pelo requerente de asilo valem como audiência prévia, não resta qualquer dúvida que o legislador consagrou tal direito mesmo no domínio do procedimento especial de proteção internacional em que o pedido é efetuado num posto de fronteira.
[…] o legislador constitucional não prescreve um “modelo” de tramitação do exercício do direito de audiência prévia, antes conferindo ao legislador ordinário o poder de determinar o modo como tal direito poderá ser efetivamente exercido. Assim, respeitado o núcleo essencial desta garantia- e que é a concessão da oportunidade ao interessado de apresentar as suas razões fácticas e/ou jurídicas-, deve entender-se que aquele ditame constitucional encontra-se, igualmente, observado.
Por conseguinte, e tomando em consideração a brevíssima alegação realizada pelo Recorrente neste contexto, não se descortina a existência de qualquer inconstitucionalidade no art.º 24.º, n.º 2 da Lei do Asilo.
Acrescente-se que, a questão colocada pelo Recorrente, respeitante à aplicabilidade do art.º 17.º, n.ºs 1 e 2 ao procedimento especial para os pedidos de proteção internacional apresentados nos postos de fronteira, encontra-se já solucionada de modo estável na Doutrina e na Jurisprudência.
Nesta senda, é de convocar para o caso concreto a visão de CATARINA JARMELA (Audiência prévia nos procedimentos de proteção internacional, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2019, 1.º semestre, Número 1, Centro de Estudos Judiciários, pp. 291 a 315), que, relativamente ao exercício da audiência prévia nos procedimentos atinentes aos pedidos de proteção internacional apresentados nos postos de fronteira, explica:
“(…)
O pedido de protecção internacional apresentado em posto de fronteira por estrangeiro que não preencha os requisitos legais necessários para a entrada em território nacional está sujeito, na fase de admissibilidade, a uma tramitação especialmente célere, pois no prazo máximo de sete dias tem de ser proferida decisão fundamentada sobre esse pedido (cfr. art. 24.º n.º 4, da Lei 27/2008), atendendo à circunstância de que o requerente, normalmente, permanece detido na zona internacional do porto ou do aeroporto (cfr. arts. 26.º n.º 1 e 35.º-A n.º 3, al. a), ambos da Lei 27/2008).
Antes de ser proferida decisão sobre o pedido de protecção internacional é assegurada ao requerente, de acordo com o estatuído no art. 24.º n.ºs 2 e 3, da Lei 27/2008, a prestação de declarações, as quais são reguladas pelo disposto no art. 16.º, dessa Lei 27/2008, remetendo-se, quanto ao modo como tais declarações se devem processar, para o supra referido a este propósito no ponto 2 deste artigo.
É referido de forma expressa no art. 24.º n.º 2, parte final, da Lei 27/2008, que tais declarações "valem, para todos os efeitos, como audiência prévia do interessado”, ou seja, que a audiência prévia se concentra integralmente no acto da prestação de declarações, De acordo com o prescrito no art. 23.º n,º 1, da Lei 27/2008, aos pedidos de protecção internacional apresentados nos postos de fronteira é aplicável o estatuídos nos arts. 10.º a 22.º, dessa Lei, com as modificações que constam dos arts. 24,º a 26.º, dessa mesma Lei.
Ora, o regime previsto no art. 17.º, da Lei 27/2008 - ao prever a notificação ao requerente do relatório elaborado após a prestação de declarações e que contém os elementos substantivos das declarações prestadas, a fim de o mesmo poder, no prazo de cinco dias, fazer observações, prestar esclarecimentos e/ou confirmar o seu conteúdo -, integra ainda a audiência prévia do interessado, mas é incompatível com a regra consagrada no art. 24.º n.º 2, parte final, desta Lei 27/2008, de que a audiência prévia se concentra integralmente no acto da prestação de declarações, o que implica o afastamento do regime previsto nesse art. 17.º relativamente aos pedidos de protecção internacional apresentados nos postos de fronteira.
Tal conclusão também é corroborada pelo elemento sistemático, pois o prazo de cinco dias concedido pelo n.º 2 desse art. 17.º para o requerente se pronunciar sobre o relatório é incompatível ou, pelo menos, de difícil compaginação com a exigência, prevista no art. 24,º n.º 4, da Lei 27/2008, de prolação de decisão fundamentada sobre os pedidos de protecção internacional apresentados nos postos de fronteira no prazo máximo de sete dias.
De todo o modo, haverá que respeitar as exigências previstas no art. 17.º n.ºs 1 e 3, da Directiva n.º 2013/32/UE, pelo que, no final da prestação de declarações, deve ser elaborado o respectivo relatório ou a transcrição de tais declarações e, nessa mesma ocasião, deve ser dada a oportunidade ao requerente de fazer observações e/ou prestar esclarecimentos relativamente a eventuais erros de tradução ou compreensão constantes do relatório ou da transcrição, bem como deve-lhe ser solicitado que confirme que o conteúdo do relatório ou da transcrição reflectem correctamente a entrevista.
(…).”
Quer isto dizer que, efetivamente, não cabe a aplicação do art.º 17.º da Lei do Asilo aos procedimentos de proteção internacional espoletados nos postos de fronteira. O que não quer dizer, de todo, que não se verifica o dever de ouvir o requerente de asilo. Pelo contrário.
É que, como é consabido, o direito de audiência prévia constitui, no direito europeu, um pilar basilar da atividade administrativa, incluindo, a desenvolvida pelos Estados-Membros no domínio do procedimento de proteção internacional. A propósito do exercício do direito de audiência no âmbito dos procedimentos atinentes ao asilo esclareceu o Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão prolatado em 05/11/2014, processo C-166/13, que:
“(…) Em contrapartida, esse direito [o direito de audiência prévia] é parte integrante do respeito dos direitos de defesa, princípio geral do direito da União.
O direito de ser ouvido garante que qualquer pessoa tenha a possibilidade de dar a conhecer o seu ponto de vista, de maneira útil e efetiva, no decurso do procedimento administrativo e antes da adoção de qualquer decisão suscetível de afetar desfavoravelmente os seus interesses (v., nomeadamente, acórdão M., EU:C:2012:744, n.° 87 e jurisprudência referida).
Nos termos da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a regra segundo a qual deve ser dada ao destinatário de uma decisão lesiva dos seus interesses a possibilidade de apresentar as suas observações antes de a mesma ser tomada destina-se a permitir que a autoridade competente tenha utilmente em conta todos os elementos pertinentes. A fim de assegurar uma proteção efetiva da pessoa em causa, essa regra tem, designadamente, por objetivo permitir que esta pessoa possa corrigir um erro ou invoque determinados elementos relativos à sua situação pessoal que militam no sentido de a decisão ser tomada, não ser tomada ou ter determinado conteúdo (v., neste sentido, acórdão Sopropé, EU:C:2008:746, n.° 49).
O referido direito implica igualmente que a Administração preste toda a atenção necessária às observações assim submetidas pelo interessado, examinando, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos pertinentes do caso concreto e fundamentando a sua decisão de forma circunstanciada (v. acórdãos Technische Universität München, C-269/90, EU:C:1991:438, n.° 14, e Sopropé, EU:C:2008:746, n.° 50), constituindo, assim, o dever de fundamentar uma decisão de forma suficientemente específica e concreta para permitir que o interessado possa compreender as razões da recusa oposta ao seu pedido o corolário do princípio do respeito dos direitos de defesa (acórdão M., EU:C:2012:744, n.° 88).
Em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o respeito do referido direito impõe-se mesmo quando a regulamentação aplicável não preveja expressamente essa formalidade (v. acórdãos Sopropé, EU:C:2008:746, n.° 38; M., EU:C:2012:744, n.° 86; e G. e R., EU:C:2013:533, n.° 32).
A obrigação de respeitar os direitos de defesa dos destinatários de decisões que afetam sensivelmente os seus interesses incumbe, assim, em princípio, às Administrações dos Estados-Membros, sempre que estas tomem medidas abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União (acórdão G. e R., EU:C:2013:533, n.° 35).”
Não resta dúvida, pois, quanto à fundamentalidade do direito de audiência prévia. Simplesmente, o exercício do direito de audiência prévia pode ser mais ou menos procedimentalizado, consoante as matérias que estejam em causa, a urgência do procedimento e os elementos substanciais relevantes.
Quer tanto dizer que, como explicita a mais Alta Instância Europeia, está cumprido o dever de audiência, se foi dada ao requerente de proteção internacional a possibilidade de apresentar as suas observações antes de a mesma ser tomada, bem como que permitir que a autoridade competente tenha utilmente em conta todos os elementos pertinentes. Assim, visa-se permitir que o requerente de proteção internacional possa corrigir um erro ou invoque determinados elementos relativos à sua situação pessoal que militam no sentido de a decisão ser tomada, não ser tomada ou ter determinado conteúdo. O referido direito implica igualmente que a Administração preste toda a atenção necessária às observações assim submetidas pelo interessado, examinando, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos pertinentes do caso concreto e fundamentando a sua decisão de forma circunstanciada.
Do que vem de expor-se resulta, pois, que o art.º 24.º, n.º 2, in fine, da Lei do Asilo, não afasta, nem dispensa, o direito de audiência prévia. Somente considera que, nestes procedimentos especiais, porque mais simplificados, é no momento da entrevista, em que o requerente é chamado a prestar declarações, que este tem a oportunidade de se pronunciar sobre os aspetos relevantes para a decisão. Neste contexto, o requerente deve ser confrontado na entrevista com as dúvidas que a Administração tenha quanto à viabilidade do seu pedido, bem como com as contradições e incoerências detetadas, mormente, entre o declarado e as informações fidedignas sobre o país de origem, a fim de que o requerente de asilo possa pronunciar-se sobre estes aspetos. Neste sentido milita também SOFIA PINTO OLIVEIRA (Lei do Asilo, Anotada e Comentada, A. Sofia Pinto Oliveira e Anabela Russo, Petrony Editora, dezembro de 2018, pp. 203 a 208; Direito de Asilo, in Tratado de Direito Administrativo Especial, Volume VII, coord. Paulo Otero e Pedro Gonçalves, Almedina, abril de 2017, pp. 96 a 101).
Em concomitância, releva salientar que a questão que agora se deslinda nestes autos foi já objeto de apreciação e decisão por este Tribunal de Apelação em mais do que uma ocasião, nomeadamente, no Acórdão proferido em 06/06/2020, no processo n.º 371/19.5BELSB, e do qual, para maior clareza, se transcreve a parte pertinente:
“(…)
Uma vez que o autor apresentou pedido de proteção internacional no Posto de Fronteira do Aeroporto de Lisboa, é-lhe aplicável o procedimento especial da secção II da Lei do Asilo, relativo aos pedidos apresentados nos postos de fronteira.
E no âmbito das regras que regem este procedimento, prevê o artigo 24.º, n.º 2, que “[o] requerente é informado por escrito, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, dos seus direitos e obrigações e presta declarações que valem, para todos os efeitos, como audiência prévia do interessado.”
Como tal, tratando-se de procedimento especial, de tramitação acelerada, não lhe é aplicável o disposto no artigo 17.º, n.º 2, que exige a notificação e defesa do projeto de decisão, bastando-se a audiência prévia do interessado com a sua tomada de declarações.
Vejam-se, decidindo neste sentido quanto a situações semelhantes, os acórdãos deste TCAS de 19/08/2016, tirado no processo n.º 13549/16, e de 05/07/2017, tirado no proc. n.º 13550/16, já citado na decisão recorrida (ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt/).
E muito recentemente veio o STA confirmar esta orientação em acórdão de 23/05/2019, tirado no processo n.º 01434/18.0BELSB (igualmente disponível em http://www.dgsi.pt/), onde se decidiu que:
“I. O artigo 24.º, n.º 2, da Lei do Asilo, Lei n.º 27/08 de 30.06, não prevê a participação do interessado mediante a exigência de notificação e defesa quanto a projeto de decisão.
II. O que não viola a Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013 nem os artigos 267º nº5 da CRP e 41.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.”
(…)”
Por seu turno, o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão proferido em 23/05/2019, no processo n.º 1434/18.0BELSB, tinha já firmado a interpretação do art.º 24.º, n.º 2, in fine, da Lei do Asilo, segundo a qual o art.º 17.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo diploma não era aplicável aos pedidos de proteção internacional formulados nos postos de fronteira, e o exercício da audiência prévia do requerente de proteção internacional deveria ser realizado em sede de prestação das declarações. Realmente, esta Instância Suprema consignou naquele Aresto que:
“(…)
Desde logo bem andou a decisão recorrida ao julgar inaplicável o art. 17º da Lei do Asilo (questão que a 1ª instância julgara prejudicada) e ao manter o enquadramento jurídico dos autos no artigo 24º da mesma Lei, embora depois se distancie da mesma ao entender que o mesmo foi cumprido.
A questão que nos ocupa é, pois, a de saber se as declarações prestadas no procedimento administrativo consubstanciam ou não uma verdadeira audiência prévia para efeitos do citado artigo 24º, e se, por isso, deve ou não proceder-se a uma nova tomada de declarações tendo em conta o projeto de decisão que resultou daquelas declarações.
(…)
O artigo 24º pressupõe que é no momento da entrevista em que o requerente é chamado a prestar declarações, que este tem a oportunidade de se pronunciar sobre os aspetos relevantes para a decisão.
Mas será que tal significa que o requerente tem de ser confrontado na entrevista com as dúvidas que a Administração tenha quanto à viabilidade do seu pedido, isto é, a Administração tem de informar no momento da prestação de declarações qual a intenção que para ela resulta das mesmas?
Uma coisa será, a nosso ver, revelar as contradições e incongruências que detete nas declarações prestadas no momento das mesmas, outra será depois de uma análise ouvir o interessado sobre o projeto de decisão.
É que, não podemos fazer resultar do preceito o que o mesmo não contempla. Isto é, que após a prestação de declarações é dada uma nova fase ao requerente da pronúncia, nem que a fase de prestação de declarações comporta uma audição sobre um projeto de decisão.
Não podemos fazer resultar da lei uma interpretação que a mesma não comporta de acordo com a regras gerais de interpretação da lei previstas no art. 9º do C.C.
(…)
Quanto à inaplicabilidade do art. 17º à situação dos autos há que ter presente que do cotejo dos artigos 23º e 24° da Lei do Asilo com o regime decorrente dos artigos 13° e 16° do mesmo diploma, resulta evidente que o legislador instituiu um regime especial para os pedidos de proteção internacional apresentados em postos de fronteira, com uma tramitação simplificada e célere, com vista a obter uma mais rápida definição da situação jurídica do interessado, estabelecendo que a prestação de declarações pelo interessado, a colher nos termos do artigo 16°, vale como audiência prévia.
O que exclui desde logo a aplicação geral das regras do CPA, nomeadamente os artigos 121º e seguintes que com ele contendam.
Por outro lado, quer da legislação nacional em matéria de asilo e proteção subsidiária, quer das respetivas fontes de direito comunitário, referentes a essa matéria, não consta, expressa ou tacitamente, que após as declarações efetuadas pelo requerente de proteção internacional no posto de fronteira, o SEF deva notificá-lo do sentido provável da decisão que vier a tomar.
Por um lado os parágrafos 1 e 3 do art.° 17° da Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013, dispõem que : (1)- “Os Estados-Membros devem assegurar a elaboração de um relatório exaustivo e factual do qual constem todos os elementos substantivos de cada entrevista pessoal ou a transcrição de cada entrevista pessoal”; (3)- “Os Estados-Membros devem assegurar que, antes de o órgão de decisão tomar uma decisão, o requerente tenha a entrevista pessoal ou dentro do prazo fixado. Para esse efeito, os Estados-Membros devem assegurar que o requerente seja plenamente informado do conteúdo do relatório ou dos elementos substantivos da transcrição, se necessário com a assistência de um intérprete. Os Estados-Membros solicitam ao requerente que confirme que o conteúdo do relatório ou a transcrição refletem corretamente a entrevista.”
E, não obsta ao referido entendimento o considerando 25.º da mesma Diretiva n.º 2013/32/UE [quanto aos procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional] refere que «para que seja possível identificar corretamente as pessoas que necessitam de proteção enquanto refugiados na aceção do artigo 1.º da Convenção de Genebra ou enquanto pessoas elegíveis para proteção subsidiária, os requerentes deverão ter acesso efetivo aos procedimentos, a possibilidade de cooperarem e comunicarem devidamente com as autoridades competentes de forma a exporem os factos relevantes da sua situação e garantias processuais suficientes para defenderem o seu pedido em todas as fases do procedimento», a que «[a]cresce que o procedimento de apreciação de um pedido de proteção internacional deverá normalmente proporcionar ao requerente, pelo menos, o direito de permanecer no território na pendência da decisão do órgão de decisão, o acesso aos serviços de um intérprete para apresentação do caso se for convocado para uma entrevista pelas autoridades, a oportunidade de contactar um representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e organizações que prestem aconselhamento aos requerentes de proteção internacional, o direito a uma notificação adequada da decisão, a fundamentação dessa decisão em matéria de facto e de direito, a oportunidade de recorrer aos serviços de um advogado ou outro consultor e o direito de ser informado da sua situação jurídica nos momentos decisivos do procedimento, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, bem como, no caso de uma decisão de indeferimento, o direito a um recurso efetivo perante um órgão jurisdicional».
Não podemos dizer que os referidos artigos 16º e 24º da Lei do Asilo não estejam em sintonia com estes preceitos da Diretiva.
Não resulta, pois, das Diretivas comunitárias um dever para os Estados de antes de proferir a decisão sobre os pedidos de proteção internacional em postos de fronteira dar a conhecer ao requerente o sentido provável da decisão.
Nem tal resulta, a nosso ver, da jurisprudência do TJUE nesta matéria.
Pelo que, foram cumpridos na situação dos autos, os referidos preceitos da Lei do Asilo, arts 16º e 24º, na interpretação supra referida, já que a requerente expôs todos os factos que considerou pertinentes expor para fundamentar o seu pedido de proteção, competindo à entidade administrativa ouvir, transcrever e dar a conhecer à requerente de proteção internacional apenas e estritamente o que foi por si declarado/relatado, e caso haja alguma observação ou correção a fazer é lhe dada essa possibilidade, o que efetivamente aconteceu.
(…)
Ora, é inequívoco que o regime legal aplicável é claro ao estabelecer que no âmbito da apreciação do pedido e decisão o requerente da proteção internacional, dentro do prazo de 48 horas, é informado dos seus direitos e obrigações e presta declarações que valem, para todos os efeitos, como audiência prévia do interessado (art. 24.º, n.º 2).
Aliás, dificilmente se poderia conciliar a necessidade de realização de audiência prévia em momento procedimental posterior com o prazo de sete dias exigido pelo art. 24.º para que o Diretor Nacional do SEF profira decisão.
(…)
A falta de previsão no art. 24º nº2 da Lei do Asilo da participação do interessado mediante a exigência de notificação e defesa quanto a projeto de decisão não viola, pois, os referidos preceitos. (…)”
Em face do exposto, acompanhando-se a citada jurisprudência haverá que considerar que, por estarmos no âmbito do procedimento especial de pedido de proteção internacional num posto de fronteira, ao qual é aplicável o regime consagrado nos artigos 23.º e ss. da Lei do Asilo, daí decorre que é no momento da entrevista que o requerente é chamado a prestar declarações, que este tem a oportunidade de se pronunciar sobre os aspetos relevantes para a decisão.
Analisado o probatório constata-se que a Recorrente prestou declarações em 21.2.2024 nas quais teve oportunidade de relatar as circunstâncias que subjacentes à sua vinda para território nacional e ao pedido de proteção internacional, tendo-lhe sido solicitadas todas as informações que fossem relevantes para a apreciação do seu pedido. Adiante-se que as referidas declarações foram objeto de transcrição, tendo a Recorrente assinado a referida transcrição, tomando conhecimento da mesma.
Face ao exposto, considerando os termos em que no âmbito deste procedimento especial se exerce o direito de audiência prévia, entendemos que o mesmo foi garantido em consonância com o regime que deriva do art.º 24.º, n.º 2 da Lei do Asilo, havendo, pois, que a este respeito confirmar a sentença recorrida.
2. Da violação do princípio da não repulsão
A Recorrente insurge-se contra a sentença por considerar, em suma, que tendo invocado factos de que emerge o risco de vida em caso de regresso ao seu país de origem, a decisão que determina o seu regresso ao país de origem a coloca em perigo e, consequentemente, consubstancia violação do princípio da não repulsão, previsto na 1ª. parte, do nº. 1, do art.º 33º. da Convenção de Genebra de 1951, pelo que lhe deveria ter sido concedida proteção subsidiária ou apurados os factos por si alegados.
Refira-se que no que respeita à apreciação dos pedidos de proteção internacional, da conjugação dos artigos 18.º, 19.º e 19.º-A, resulta que só no caso de o pedido de proteção internacional não ter sido, desde logo, considerado infundado (ao abrigo do disposto no artigo 19º.) ou inadmissível (ao abrigo do disposto no artigo 19º.-A), é que a apreciação do mesmo obedecerá ao disposto no artigo 18.º.
Ora, o artigo 19.º estabelece a tramitação acelerada da “análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional”, considerando-se o pedido infundado, quando, com relevo aos autos, se verifique que “[a]o apresentar o pedido e ao expor os factos, o requerente invoca apenas questões não pertinentes ou de relevância mínima para analisar o cumprimento das condições para ser considerado refugiado ou pessoa elegível para proteção subsidiária” [n.º 1 al. e)].
Pelo que, em tal hipótese, “a apreciação do pedido de proteção internacional não é submetida a instrução nem à apreciação do pedido de acordo com os critérios do artigo 18.º, devendo ser sujeito a tramitação acelerada por o pedido ser considerado infundado” (Ac. deste TCA Sul de 26.1.2023, proferido no processo 1599/22.6BELSB).
Em face do exposto, o que haverá que apreciar é se, opostamente, ao que resulta da sentença recorrida, não se verificava o pressuposto para que a Entidade Requerida julgasse infundado o pedido de proteção internacional apresentado pela Recorrente, antes preenchendo esta os requisitos de que dependia a concessão do pedido de proteção subsidiária(1), sendo-lhe esta concedida ou prosseguindo-se a tramitação para apuramento dos factos por si alegados nos termos do artigo 18.º da Lei do Asilo, em que compete aos serviços da AIMA, I.P. analisar todos os elementos pertinentes, designadamente as declarações do requerente, proferidas nos termos dos artigos anteriores, e toda a informação disponível.
Vejamos.
Prevê-se no art.º 3.º da Lei n.º 27/2008 que,
“1 - É garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência de atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.
2 - Têm ainda direito à concessão de asilo os estrangeiros e os apátridas que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possam ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual.
(…)
4 - Para efeitos do n.º 2, é irrelevante que o requerente possua efetivamente a característica associada à raça, religião, nacionalidade, grupo social ou político que induz a perseguição, desde que tal característica lhe seja atribuída pelo agente da perseguição.”
O art.º 5 deste diploma, epigrafado “Atos de perseguição”, estipula que,
“1 - Para efeitos do artigo 3.º, os atos de perseguição suscetíveis de fundamentar o direito de asilo devem constituir, pela sua natureza ou reiteração, grave violação de direitos fundamentais, ou traduzir-se num conjunto de medidas que, pelo seu cúmulo, natureza ou repetição, afetem o estrangeiro ou apátrida de forma semelhante à que resulta de uma grave violação de direitos fundamentais.
2 - Os atos de perseguição referidos no número anterior podem, nomeadamente, assumir as seguintes formas:
a) Atos de violência física ou mental, inclusive de natureza sexual;
b) Medidas legais, administrativas, policiais ou judiciais, quando forem discriminatórias ou aplicadas de forma discriminatória;
c) Ações judiciais ou sanções desproporcionadas ou discriminatórias;
d) Recusa de acesso a recurso judicial que se traduza em sanção desproporcionada ou discriminatória;
e) Ações judiciais ou sanções por recusa de cumprir o serviço militar numa situação de conflito na qual o cumprimento do serviço militar implicasse a prática de crime ou ato suscetível de provocar a exclusão do estatuto de refugiado, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º;
f) Atos cometidos especificamente em razão do género ou contra menores.
3 – (…)
4 - Para efeitos do reconhecimento do direito de asilo tem de existir um nexo entre os motivos da perseguição e os atos de perseguição referidos no n.º 1 ou a falta de proteção em relação a tais atos.”
Nos termos da al. n) do art.º 2, n.º 1 deste diploma, os “motivos da perseguição” que fundamentam o receio fundado de o requerente ser perseguido “devem ser apreciados tendo em conta as noções de raça, religião, nacionalidade e grupo que resultam das alíneas i) a v) do normativo, considerando-se agentes de perseguição, conforme o n.º 1 do art.º 6.º, o Estado [al. a)], os partidos ou organizações que controlem o Estado ou uma parcela significativa do respetivo território [al. b)] e “os agentes não estatais, se ficar provado que os agentes mencionados nas alíneas a) e b) são incapazes ou não querem proporcionar proteção contra a perseguição” [al. c)], considerando-se “que existe proteção sempre que os agentes mencionados nas alíneas a) e b) do número anterior adotem medidas adequadas para impedir, de forma efetiva e não temporária, a prática de atos de perseguição por via, nomeadamente, da introdução de um sistema jurídico eficaz para detetar, proceder judicialmente e punir esses atos, desde que o requerente tenha acesso a proteção efetiva” (art.º 6.º, n.º 2 ).
Por seu turno o art.º 7.º prevê a proteção subsidiária, nos seguintes termos,
“1 - É concedida autorização de residência por proteção subsidiária aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3.º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave.
2 - Para efeitos do número anterior, considera-se ofensa grave, nomeadamente:
a) A pena de morte ou execução;
b) A tortura ou pena ou tratamento desumano ou degradante do requerente no seu País de origem; ou
c) A ameaça grave contra a vida ou a integridade física do requerente, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno ou de violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo anterior.”
O princípio do non refoulement consagrado no artigo 33.º da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados e concretizado nos artigos 7.º e 47.º da Lei n.º 27/2008, refere-se à proibição de expulsar ou repelir qualquer pessoa que fuja de um cenário de violência, perseguição e de ameaça à sua vida ou à sua liberdade, quando o país de origem não é capaz de a proteger.
Refira-se que o artigo 7.º da Lei do Asilo deve ser interpretado tendo em conta o disposto no artigo 8.º da Diretiva n.º 2011/95/UE, do Conselho, de 13 de dezembro, que dispõe que,
«1 – Ao apreciarem o pedido de proteção internacional, os Estados-Membros podem determinar que um requerente não necessita de protecção internacional se, numa parte do país de origem, o requerente:
a) Não tiver receio fundado de ser perseguido ou não se encontrar perante um risco real de ofensa grave; ou
b) Tiver acesso a protecção contra a perseguição ou ofensa grave, tal como definida no artigo 7.º, E puder viajar e ser admitido de forma regular e com segurança nessa parte do país, e tiver expectativas razoáveis de nela poder instalar-se.»
Assim, no caso de o requerente da proteção internacional poder se deslocar para outra parte do território do país de origem, de forma regular e com segurança, e tiver expetativas razoáveis de nela poder instalar-se, verifica-se a falta de necessidade de proteção internacional, por não haver receio fundado de ser perseguido ou se encontrar perante um risco real de ofensa grave, ou tiver acesso a proteção contra a perseguição ou a ofensa grave.
Recaindo sobre o requerente do pedido de asilo ou de proteção subsidiária o ónus da prova dos factos que alega, cabendo-lhe “dizer a verdade, esforçar-se para sustentar as suas declarações com todas as evidências disponíveis e dar uma explicação satisfatória em relação a qualquer falta de elementos de prova”. Por outro lado, “cabe a quem examina o pedido, designadamente, apreciar a credibilidade do requerente e avaliar os elementos de prova (se necessário, dando ao requerente o benefício da dúvida) a fim de estabelecer os elementos objetivos e subjetivos do caso” (Ac. deste TCA Sul de 26.1.2023, proferido no processo 1599/22.6BELSB).
Ora, na sentença recorrida, entendemos que com acerto, considerou-se que “não existem elementos/informações capazes de relacionar as (pretensas) ameaças a qualquer atividade da requerente/A., o que afasta a ideia de risco de sofrer ofensa grave.
Das declarações prestadas pela Requerente/Recorrente não se pode retirar que a mesma tenha sido ameaçada ou receie ser perseguida, para efeitos de concessão de autorização de residência por razões humanitárias, ao abrigo do artigo 7.º da Lei de Asilo.
Depois, e (ainda) que se possa admitir uma satisfação mitigada do ónus da prova, as declarações da requerente/A., como vimos, não permitem que a sua situação seja abrangida ou subsumida ao princípio do benefício da dúvida, pelo menos quanto às circunstâncias que determinaram a vinda para Portugal, que deve ser concedido quando exista manifesta dificuldade de prova dos factos invocados e documentos apresentados pelo requerente de asilo/autorização de residência por proteção subsidiária, desde que as declarações prestadas pareçam credíveis, o que, como vimos, não se verifica.”
De facto, das declarações prestadas pela Recorrente decorre que esta terá fugido de Angola, juntamente com o filho menor, referindo episódios de violência doméstica por parte do marido fruto da sua homossexualidade, não podendo regressar ao Congo por a sua orientação sexual não ser aceite pela família. Referiu receio de regressar ao Congo por a família não a aceitar e ao filho e a Angola em decorrência de ameaças do marido.
Ora, como é patente nenhuma destas circunstâncias corresponde, de forma coerente, credível e suficientemente justificador do sentimento de impossibilidade de regressar ao país de origem, à alegação de sistemática violação dos direitos humanos em Angola ou na República Democrática do Congo, nem tão pouco a possibilidade de ocorrência de risco de ofensa, em termos que reflitam de forma suficientemente densificada a gravidade exigida pelo normativo.
Na génese dos alegados receios estão razões de contornos estritamente particulares/familiares, relacionados, no seu país de nacionalidade (Congo) com a família e, no país da residência (Angola) com o marido, ficando neste caso por demonstrar, face ao teor das alegações da própria recorrente, que as autoridades desse país sejam incapazes ou não queiram proporcionar-lhe a proteção que se mostre adequada e eficaz em face dos alegados receios.
Com efeito, no que respeita à alegada impossibilidade de regresso ao Congo estamos perante um mero receio de não ser aceite pela família, sem que daí emirja sequer uma ameaça à sua integridade física ou do seu filho. E quanto às circunstâncias vividas em Angola, foi a própria Recorrente a assumir que, perante a ocorrência de uma agressão, as autoridades policiais de Angola atuaram, ou seja, a Recorrente tem, naquele país, acesso a proteção contra as ofensas de que alega ser vítima.
Entendemos, pois, que os factos expostos pela Recorrente não se mostram pertinentes, nem dotados de um grau mínimo de relevância mínima aptos a determinar a análise do cumprimento das condições para ser considerada pessoa elegível para proteção subsidiária, entendendo-se por preenchido o pressuposto da al. e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei do Asilo e que conduz à consideração do pedido como infundado, obstando, pois, a que a apreciação do pedido seguisse a tramitação do artigo 18.º do mesmo diploma.
Este entendimento não contende, opostamente, ao alegado com o princípio do non refoulement enquanto proibição de expulsar ou de repelir o estrangeiro para um lugar onde a sua vida ou liberdade estejam ameaçadas.
Com efeito, no presente caso, cuja factualidade foi descrita, não existe o mínimo sinal de que a Recorrente regressará para um lugar onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas, nem tão pouco que aí a Recorrente será submetida a torturas ou a tratamentos cruéis ou degradantes.
Assim, não se verificando os fundamentos alegados, o recurso não pode proceder.
3. Da condenação em custas
Sem custas, por ser gratuito o processo, nos termos do artigo 84.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho.
V. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul, em,
a. Negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida;
b. Sem custas.
Mara de Magalhães Silveira
Marcelo da Silva Mendonça
Ana Cristina Lameira
*
(1)Refira-se que, pese embora em sede de petição inicial a Recorrente sustentasse o direito de asilo, referindo-se a fls. 4 das alegações de recurso a “proteção internacional”, o certo é que seja dessa alegação, seja da conclusão 2 do recurso, resulta limitar a sua discordância ao entendimento quanto ao não preenchimento dos pressupostos para proteção subsidiária. |