Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:137/21.2BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:08/31/2021
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:PEDIDO DE ASILO;
PROTECÇÃO INTERNACIONAL;
TRANSFERÊNCIA
Sumário:i. Perante a verificação da existência de um pedido de asilo anterior formulado noutro Estado-membro, há que dar início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, no qual, no caso concreto, se apurou ser Itália.

ii. Tendo a Itália aceite tal responsabilidade, cabe proferir decisão da respectiva transferência do requerente de protecção internacional, nada vindo invocado que justificasse, nos termos do disposto no artigo 3º nº 2 daquele Regulamento (UE) 604/2013, que fosse outro o Estado-Membro, e designadamente o Estado Português, o responsável por tal análise e decisão.

iii. O Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, como já sucedia com o Regulamento (CE) n.º 343/2003, que estabelece os critérios e os mecanismos de determinação da responsabilidade da análise dos pedidos de protecção internacional apresentados nos Estados Membros, prossegue dois objectivos essenciais: por um lado, visa garantir um acesso efectivo aos procedimentos de determinação do estatuto de refugiado, sem comprometer a celeridade no tratamento dos pedidos de asilo e assegurando a certeza e segurança jurídicas ao nível da EU; e, por outro lado, visa impedir a utilização abusiva dos procedimentos de asilo, sob a forma de pedidos múltiplos apresentados pelo mesmo requerente em diversos Estados Membros, com o objectivo de neles prolongar a sua estadia, realidade comummente designada como asylum shopping.

iv. Também de acordo com a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de protecção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente, ou que constituam factos notórios, para demonstrar a existência do risco de um tratamento desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afectem certos grupos de pessoas.

v. Ainda assim, de acordo com a mesma Jurisprudência, tais deficiências só são contrárias à proibição de tratamento desumano ou degradante se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa; o que no caso não sucede minimamente, não evidenciado os autos que enquanto residiu em Itália, o requerente de asilo tenha sido sequer sujeito a tratamento desumano ou degradante, nem que o venha a ser.

Votação:VOTO DE VENCIDO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório


L..., cidadão nacional da Guiné Bissau, intentou o presente processo urgente contra o Ministério da Administração Interna – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), peticionando a anulação da decisão de 4.12.2020 do Diretor Nacional Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional formulado pelo Autor e ordenou a transferência do mesmo para a Itália, o Estado-Membro responsável pela sua retoma a cargo.

O TAC de Lisboa, por sentença de 30.04.2021, julgou a acção improcedente.

Com o decidido não se conformando, veio interpor recurso para este TCA, contendo o requerimento de recurso as seguintes conclusões:

1. Havia sido impugnado o despacho da executada, que julgava inadmissível o pedido de proteção internacional apresentado pelo exequente, de acordo com o artigo 37º n.º 2, e alínea a) n.º 1 do artigo 19-A da Lei 26/2014 de 05 de Maio, com o fundamento que o Estado responsável para a respetiva análise seria o Estado italiano e não o português.

2. O SEF não podia ignorar a situação económica e social em que se encontrava ao tempo o Estado italiano, designadamente quanto as deficiências sistémicas nas medidas de acolhimento dos requerentes de asilo ou de protecção internacional, sendo que o contexto de pressão migratória, como aquele com que desde 2015, os estados membros se confrontavam, não pode resultar numa diminuição das garantias previstas nos vários normativos que vinculam os estados membros da união europeia, o que acontecia ao tempo com os requerentes de asilo e de protecção internacional em Itália.

3. No caso, o Estado italiano não tinha capacidade sistémica, organizacional, social e económica para receber tantos requerimentos de apoio internacional, o que levanta a questão do destino dos requerentes, que nunca poderá ser o de voltar ao pais de origem, porquanto tal decisão consubstanciaria uma violação do principio de não expulsão, previsto no artigo 33º n.º 1 1ª parte da Convenção de Genebra de 1951.

4. Ora, no caso vertente, acompanhando a fundamentação de decisão do processo 1353/18.0BELSB, em tudo similar ao presente, “ incumbia à Entidade Demandada, previamente à decisão, instruir o procedimento com informação fidedigna, actualizada, sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e as condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado Membro, recorrendo a fontes credíveis e consolidadas como o ACNUR e a Amnistia Internacional, de molde a verificar-se, no caso concreto, se verificam ou não os motivos determinantes da impossibilidade da transferência, referidos no segundo paragrafo do n.º 2 do artigo 3º do Regulamento (EU) 604/2013” Daí que, nada tendo a Ré referido na sua decisão ou fundamentação sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e das condições de acolhimento dos requerentes de protecção internacional, a decisão impugnada incorre em deficit de instrução.

5. Daí que se tenha pugnado pela nulidade da decisão recorrida por deficiência na instrução, ou insuficiência da respectiva matéria de facto, o que o Tribunal a quo, a nosso ver erradamente, desatendeu.

O Recorrido não apresentou contra-alegações.



Neste Tribunal Central Administrativo, o Ministério Público, notificado nos termos do disposto nos artigos 146.º e 147.º do CPTA, não emitiu pronúncia.


Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo (em turno) para decisão.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar:

- Se o tribunal a quo errou ao ter concluído pela manutenção do despacho impugnado, apesar do défice de instrução alegado, o qual determinou também a notificação do requerente de protecção internacional para efeitos da sua transferência para a Itália, por ser este o Estado Membro responsável.



II. Fundamentação

II.1. De facto

É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a qual se reproduz ipsis verbis:

A) O Requerente é nacional da Guiné Bissau, onde nasceu em 19/04/1990 (cfr. PA apenso a fls. 1 que ora se da por integralmente reproduzido);

B) Em 23/10/2020, o Requerente apresentou um pedido de protecção internacional, junto do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (cfr. PA apenso a fls. 10 que ora se da por integralmente reproduzido);

C) Por consulta na base de dados do Eurodac, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras verificou a existência de um pedido de protecção internacional, formulado pelo Requerente em 27/08/2015, em Perugia, Itália (cfr. PA apenso, a fls. 3, que ora se da por integralmente reproduzido);

D) Em 23/10/2020, o Requerente prestou declarações perante o SEF, quanto aos fundamentos do seu pedido de asilo, do qual se extrai, nomeadamente, o seguinte:


«Imagem no original»

E) Em 12/12/2020 o Requerente exerceu o seu direito de audiência prévia quanto ao sentido provável de decisão, nos seguintes termos:

«Imagem no original»

F) Em 13/11/2020, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras efectuou um pedido de retoma a cargo do requerente às autoridades italianas (cfr. processo administrativo, apenso aos autos a fls. 37, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

G) As autoridades italianas aceitaram o pedido de retoma a cargo do Requerente, ao abrigo do art.º 18º n.º 1, al. b) do Regulamento de Dublim III (cfr. processo administrativo apenso aos autos, a fls. 42, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

H) Em 04/12/2020 o Director Nacional Adjunto do SEF, proferiu decisão com o seguinte teor:


«Imagem no original»

(cfr. processo administrativo apenso aos autos, a fls. 57, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

I) Na informação 2437/GAR/2020 referida na alínea anterior, consta nomeadamente, o seguinte:


«Imagem no original»


«Imagem no original»

(cfr. processo administrativo apenso aos autos, a fls. 46 a 54, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

J) Sobre a Informação referida na alínea anterior recaiu Proposta datada de 04/12/2020, com o seguinte teor:

“PROPOSTA

Com base na presente informação, propõe-se à consideração superior que, de acordo com o disposto na alínea a) do n.s 1, do artigo 199-A, da Lei n.9 27/08, de 30 de junho, alterada pela Lei n9 26/2014 de 05 de maio, o pedido de proteção seja considerado inadmissível e se proceda à transferência para a ITÁLIA do (a) cidadão (ã) acima identificado (a), nos termos do artigo 25 n9 2 do Regulamento (CE) N.9 604/2013 do Conselho, de 26 de Junho”.

(cfr. idem);

K) Em 16/12/2020, o Gabinete de Asilo e Refugiados - SEF notificou o Requerente da decisão que determinou que a Itália é o Estado responsável pela sua tomada a cargo (cfr. fls. 59, do processo administrativo, apenso aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

L) O Requerente faltou à consulta médica marcada para o dia 16/11/2020 (cfr. confissão).



II.2. De direito

O ora Recorrente pretende a anulação da decisão que indeferiu, por inadmissível, o pedido de asilo formulado e que determinou a sua transferência para a Itália, entendendo existir erro de julgamento pelo tribunal a quo ao não ter concluído pela existência de deficit instrutório no procedimento.

Alegou que o SEF não instruiu devidamente o seu processo de asilo e que se lhe impunha averiguar das condições de acolhimento em Itália, tanto mais que tem problemas de saúde que impõem o seu tratamento atempado.

Vejamos então.

No TAC de Lisboa a acção foi julgada improcedente com a seguinte fundamentação, a qual se transcreve na sua parte aqui pertinente:

“(…) nos presentes autos, verificada a existência de um pedido de asilo formulado em Itália e perante a aceitação do pedido, cabia ao Director Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras proferir, no prazo de 5 dias, decisão de transferência da responsabilidade, atento o disposto no artigo 37º, nº2 da Lei nº27/2008, de 30 de Junho, decisão impugnada nos presentes autos.

Assim, atento o disposto no art.º 37º n.º 2 da Lei nº27/2008, de 30 de Junho, conclui-se que a decisão de transferência da responsabilidade é um acto estritamente vinculado, cujos pressupostos de facto são os seguintes: existência de um pedido de asilo noutro Estado-Membro e aceitação por este Estado da responsabilidade pela retoma a cargo do requerente de asilo, sendo certo que verificados estes pressupostos deve ser proferida a decisão de transferência, sem que tenham ou devam ser apreciados os fundamentos do pedido de asilo apresentados pelo requerente.

Só não seria assim se, tal como resulta do 2º § do nº 2 do artigo 3º do Regulamento nº 604/2013, existissem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes no Estado-Membro, inicialmente designado responsável, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Neste desiderato vem, de resto, sendo entendido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), “no caso de um Estado-Membro ter aceitado a tomada a cargo de um requerente de asilo, (…) este só pode pôr em causa a escolha desse critério se invocar a existência de deficiências sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo nesse Estado-Membro que constituam razões sérias e verosímeis de que o referido requerente corre um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia” (sublinhado nosso) – neste sentido, vide, inter alia, o Acórdão Abdullahi, prolatado em 10.12.2013, no âmbito do processo C-394/12.

Com efeito, pese embora resulte do probatório que o pedido de protecção internacional formulado pelo Requerente foi recusado pelo Estado Italiano, nada se logrou provar acerca do desfecho do recurso pelo mesmo interposto, pelo que neste conspecto, não há lugar à aplicação do disposto no art.º 18.º, n.º 1, al. d), do Regulamento de Dublin, uma vez que se desconhece se a decisão de recusa foi confirmada ou revogada.

No caso em apreço, como resulta da factualidade apurada, o Requerente não invocou procedimentalmente a existência de qualquer dificuldade durante o tempo em que permaneceu em Itália, em termos de condições de acolhimento e de procedimento de asilo.

Com efeito, o Requerente nada consubstanciou ou expendeu, em termos concretos, quanto ao risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, nem, tão pouco, invocou que o foi aquando da sua permanência em solo italiano que pudessem obstar à sua transferência para Itália.

Ao invés, resulta das suas declarações que, em solo italiano, onde permaneceu por cinco anos e quatro meses, lhe foi concedido alojamento, alimentação, dinheiro, tendo ainda direito à educação, bem como, a um cartão de saúde.

O Requerente invocou ainda a sua especial vulnerabilidade, aduzindo, para o efeito, que em Itália não lhe deram os tratamentos necessários ao seu dedo.

Sucede porém, que, quando indagado sobre se estava de boa saúde o Requerente respondeu afirmativamente, mais afirmando que por vezes tem sensações estranhas no seu corpo e lhe dói quando urina, não fazendo, no entanto, qualquer alusão aos problemas relacionados com o seu dedo, o que só efectuou em sede de audiência prévia (cfr. als. D) e E) da factualidade assente).

Pelo que, quanto ao alegado estado de saúde, não se afigura que o mesmo constitua um óbice à decisão sindicada, na medida em que é um facto notório, não carecido de alegação, o adiamento de milhares de consultas e tratamentos médicos, a fim de fazer face à situação de emergência sanitária global provocada pelo vírus SARSCoV2, particularmente em Itália, um dos países europeus mais afectados pela actual pandemia.

Sendo certo que o Requerente não diligenciou para tratar do alegado problema de saúde em França e em Espanha, por onde passou até chegar a Portugal, vislumbrando-se que o seu objectivo foi chegar a Portugal, país que traçou como sendo o de destino para efeitos migratórios.

E, uma vez chegado a Portugal, o Requerente confessou que faltou à consulta médica marcada para o p.p. dia 16/11/2020, não colhendo o argumento de que tal sucedeu devido a carência económica, que ademais, o mesmo não logrou provar, como era seu ónus (cfr. art.º 342º do Código Civil).

Com efeito, por força do Despacho n.º 3863-B/2020, pontos 1 a 3, conjugado com o artigo 52.º da LPI, o requerente de proteção internacional tem direito a cuidados médicos [o Despacho n.º 10944/2020 determinou a manutenção em vigor do Despacho n.º 3863-B/2020].

Assim, mostra-se que a alegação conexa com motivos de saúde não é susceptível de obstar ao acto ora em crise.

Donde, nada alegando em concreto, que permita concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo adoptado pelas autoridades italianas e que constituem razões sérias e verosímeis de que o Requerente corre um risco real de ser sujeito a tratamentos desumanos ou degradantes, nem tão pouco, se vislumbrando que o mesmo padece de uma situação de especial vulnerabilidade, não resulta provado que, em caso de transferência para Itália, as condições de acolhimento nesse Estado-membro impliquem para o Requerente o risco de tratamento desumano ou degradante.

A este respeito já se prenunciou o TJUE, no Comunicado de Imprensa n.º 33/2019, de 19/03/2019, no âmbito dos Acórdãos proferidos nos processos C-163/17 JAWO e nos processos apensos C-297/17, C-318/17 Ibrahim, C-319/17 Sharqawi e C-438/17 Magamadov, cujo excerto ora se transcreve por adesão à sua proficiente fundamentação:

“Com os seus acórdãos de hoje, o Tribunal de Justiça recorda que, no quadro do sistema europeu comum de asilo que repousa no princípio da confiança mútua entre os Estados-Membros, deve presumir-se que o tratamento dado por um Estado-Membro aos requerentes de proteção internacional e às pessoas a quem foi concedida proteção subsidiária está em conformidade com as exigências da Carta, da Convenção de Genebra, bem como da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Contudo, não se pode excluir que este sistema se depare, na prática, com grandes dificuldades de funcionamento num determinado Estado-Membro, de modo que existe um sério risco de os requerentes de proteção internacional serem tratados, nesse Estado, de modo incompatível com os seus direitos fundamentais e, nomeadamente, com a proibição absoluta de tratos desumanos ou degradantes 3 . Assim, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de proteção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afetem certos grupos de pessoas. Todavia, tais deficiências só são contrárias à proibição de tratos desumanos ou degradantes se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa. Esse nível seria alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado-Membro tivesse como consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontrasse, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema que não lhe permitisse fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar-se, lavar-se e alojar-se, e que pusesse em risco a sua saúde física ou mental ou a colocasse num estado de degradação incompatível com a dignidade humana. Uma grande precariedade ou uma forte degradação das condições de vida não alcançam esse nível quando não impliquem uma privação material extrema que coloque essa pessoa numa situação de tal gravidade que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante.

Acresce que a circunstância de os beneficiários de proteção subsidiária não receberem, no Estado-Membro que concedeu tal proteção ao requerente, nenhuma prestação de subsistência, ou de as prestações que recebem serem significativamente inferiores às prestações concedidas por outros Estados-Membros, sem, contudo, serem tratados de maneira diferente dos nacionais do referido Estado-Membro, só pode levar a concluir que o requerente ficaria exposto nesse Estado-Membro a um risco real de sofrer um trato desumano ou degradante se tiver como consequência que este se encontraria, devido à sua particular vulnerabilidade, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema. Em qualquer caso, o simples facto de a proteção social e/ou as condições de vida serem mais favoráveis no Estado-Membro em que foi apresentado o novo pedido de proteção internacional do que no Estado-Membro normalmente responsável ou que já concedeu proteção subsidiária não é suscetível de confortar a conclusão segundo a qual a pessoa em causa ficaria exposta, em caso de transferência para este último Estado-Membro, a um risco real de sofrer um trato desumano ou degradante. O Tribunal de Justiça conclui que o direito da União não se opõe a que um requerente de proteção internacional seja transferido para o Estado-Membro responsável ou a que um pedido de concessão do estatuto de refugiado seja declarado não admissível pelo facto de já ter sido concedida ao requerente proteção subsidiária noutro Estado-Membro, a menos que se demonstre que o requerente que se encontraria, nesse outro Estado-Membro, numa situação de privação material extrema, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais. Nos processos Ibrahim e o., o Tribunal de Justiça acrescenta que o facto de o Estado-Membro que concedeu proteção subsidiária a um requerente de proteção internacional recusar sistematicamente, sem exame real, conceder o estatuto de refugiado, não impede os outros Estados-Membros de declararem não admissível um novo pedido que lhes é apresentado pelo interessado. Nesse caso, cabe ao Estado-Membro que concedeu proteção subsidiária retomar o processo que visa a obtenção do estatuto de refugiado. Com efeito, só se, na sequência de uma avaliação individual, se concluir que um requerente de proteção internacional não preenche as condições para que lhe seja concedido o estatuto de refugiado é que lhe pode, sendo caso disso, ser concedida proteção subsidiária.”

Falece assim, a aduzida violação do princípio da não repulsão, previsto na 1ª parte, do n.º 1 do art.º 33º da Convenção de Genebra de 1951.

Mais aduz o Requerente que o acto sindicado padece de défice instrutório.

No entanto, neste conspecto o Requerente nada consubstanciou concretamente ou logrou provar, que a sua transferência para Itália se traduza um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes ou que tenha sido alvo dos mesmos.

A este respeito o Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou em vários outros casos idênticos ao dos presentes autos, em que também se questionava a necessidade de uma específica actividade instrutória do SEF, antes da determinação de transferência, tendente ao apuramento da verificação, ou não, de falhas sistémicas em Itália nos procedimentos de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional implicando um risco de tratamento desumano ou degradante, tendo-se pronunciado, de forma unânime, pela desnecessidade – ou, mesmo, inconveniência – de uma tal actividade instrutória por parte do SEF Com efeito, em acórdão, de 16.1.2020, proferido no processo nº 2240/18.7BELSB, o STA considerou que as notícias sobre a situação de acolhimento de estrangeiros em Itália, «não são, atento todo o circunstancialismo em que surgem, de forma a impor a condenação [do SEF a instruir o pedido com informação atualizada sobre as condições de acolhimento dos refugiados e requerentes de proteção internacional em Itália]. Não poderemos escamotear o facto delas se referirem a um Estado-membro da «União Europeia», tal como o Estado Português, responsável desde logo pelo cumprimento da respetiva Carta dos Direitos Fundamentais, bem como noticiarem ocorrências relativas a uma situação inusitada: a do fluxo anormal de imigração ilegal de cidadãos de países africanos para a Europa, via Itália. / Esta «imigração ilegal», que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de atividade exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social [ver artigo 2º, alínea ac), da Lei nº27/2018, de 30.06, redação dada pela Lei nº 26/2014, de 05.05]. /Foi esta avalancha de imigração ilegal, constituída por um universo de imigrantes onde se integrarão potenciais refugiados mas não só, que provocou um deficit nas condições do seu acolhimento por parte de Itália, e terá provocado uma reação política hostil na mira de suscitar a participação solidária dos demais Estados-membros na resolução do problema. / Assim, os epifenómenos traduzidos nas notícias oficiosamente respigadas pelo tribunal, refletem toda essa inusitada situação vivida, nomeadamente, em Itália, mas não são aptos a implicar o risco de tratamento desumano ou degradante, mormente tortura, dos requerentes de proteção internacional por parte do Estado Italiano» - apud Acórdão do TCA Sul, de 30/01/2020, proferido no proc. 1662/19.8 BELSB, cujo excerto ora se transcreve por adesão à sua proficiente fundamentação:

“Ora, no caso em apreço, em que o requerente e recorrente cinge as razões do recurso apenas e somente em notícias, dados estatísticos, falhas sistémicas de conhecimento geral e público, acolhendo os ensinamentos do STA, obviamente, a respetiva alegação não evidencia um risco real de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento do requerente de proteção internacional no Estado italiano. De tal modo que, nas circunstâncias do caso concreto, não resulta deficit instrutório no procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo do requerente e recorrente. O que significa que não incumbia ao SEF, primeiro, diligenciar por informação atualizada sobre as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália para, de seguida, aferir da existência ou não de deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes em Itália e, por fim, decidir se procede ou não à transferência do recorrente para a Itália. Pois, nos termos do art 3º, nº 2, §2 do Regulamento, quando se verifiquem deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e estas sejam de tal modo evidentes que os Estados-membros não possam ignorá-las, os Estados não podem proceder a transferências Dublin para esses Estados com sistemas em colapso ou com dificuldades. Como cita a sentença recorrida, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que as falhas sistémicas «devem ter um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa». Porém, a verdade é que mesmo as alegadas notícias sobre o acolhimento de migrantes no Estado Italiano não demonstram o risco de tratamento desumano ou degradante dos requerentes de proteção internacional por parte desse Estado, suscetíveis de integrar, no caso concreto, a previsão legal do art 3º, nº 2, §2 do Regulamento. Por conseguinte, nas circunstâncias da situação concreta deste requerente e de acordo com as normas aplicáveis ao procedimento, o SEF não carecia de analisar e decidir sobre a ocorrência de deficiências no acolhimento dos refugiados em Itália. Apenas lhe competia, como fez, proferir decisão de transferência do recorrente para Itália.”

No mesmo sentido, vejam-se os Acórdãos daquele Venerando Supremo Tribunal Administrativo de de 4/6/2020 (proc. 1322/19); de 2/7/2020 (proc. 01088/19); de 2/7/2020 (proc. 1786/19); de 9/7/2020 (proc. 01419/19); e de 10.09.2020 (03421/19).

Nestes termos, tendo o Requerente formulado pedido de asilo tendo Itália aceite o pedido de retomada a cargo efectuado pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, conclui-se que o acto impugnado não padece de qualquer vício que o inquine, mostrando-se, assim, legal.

(…).”

O decidido é de manter integralmente.

Importa, em primeiro lugar, realçar que o Recorrente não questiona a decisão sobre a matéria de facto, com a qual se conformou, pois não impugna qualquer ponto da matéria de facto dada como provada.

Quanto à questão de fundo, importa deixar estabelecido o quadro normativo de referência.

Resulta expressamente da norma contida no art. 37.º da Lei nº 27/08:


Artigo 37.º
Pedido de protecção internacional apresentado em Portugal

1 - Quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de protecção internacional pertence a outro Estado membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, o SEF solicita às respetivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo.

2 - Aceite a responsabilidade pelo Estado requerido, o director nacional do SEF profere, no prazo de cinco dias, decisão nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A e do artigo 20.º, que é notificada ao requerente, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, e é comunicada ao representante do ACNUR e ao CPR enquanto organização não governamental que actue em seu nome, mediante pedido apresentado, acompanhado do consentimento do requerente.

3 - A notificação prevista no número anterior é acompanhada da entrega ao requerente de um salvo-conduto, a emitir pelo SEF segundo modelo a aprovar por portaria do membro do Governo responsável pela área da administração interna.

(…)

De igual modo o Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, que estabelece os critérios e mecanismos para a determinação do Estado-Membro responsável pela análise dos pedidos de protecção internacional apresentados num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida («Estado-Membro responsável») dispõe:


Artigo 3.º
Acesso ao procedimento de análise de um pedido de proteção internacional

1. Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável.

2. Caso o Estado-Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de proteção internacional o primeiro Estado-Membro em que o pedido tenha sido apresentado.

Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.

Caso não possa efetuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado-Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável.

3. Os Estados-Membros mantêm a faculdade de enviar um requerente para um país terceiro seguro, sem prejuízo das regras e garantias previstas na Diretiva 2013/32/UE.


Por sua vez os critérios de determinação do Estado-Membro responsável encontram-se previstos no capítulo III daquele Regulamento (UE) n.º 604/2013, que estabelece a hierarquia dos critérios no artigo 7.º, onde se prevê:

1. Os critérios de determinação do Estado-Membro responsável aplicam-se pela ordem em que são enunciados no presente capítulo.

A determinação do Estado-Membro responsável em aplicação dos critérios enunciados no presente capítulo é efetuada com base na situação existente no momento em que o requerente tiver apresentado pela primeira vez o seu pedido de proteção internacional junto de um Estado-Membro.

2. Para a aplicação dos critérios referidos nos artigos 8.º 10.º, e 16.º, os Estados-Membros devem ter em consideração todos os elementos de prova disponíveis que digam respeito à presença, no território de um Estado-Membro, de membros da família, de familiares ou de outros parentes do requerente, na condição de tais elementos de prova serem apresentados antes de outro Estado-Membro ter aceitado o pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa, nos termos dos artigos 22.º e 25.º, respetivamente, e de os anteriores pedidos de protecção internacional do requerente não terem sido ainda objecto de uma primeira decisão quanto ao mérito.

E prevê ainda o artigo 12.º daquele Regulamento (UE) n.º 604/2013, o seguinte:

1. Se o requerente for titular de um título de residência válido, o Estado- Membro que o tiver emitido é responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

2. Se o requerente for titular de um visto válido, o Estado-Membro que o tiver emitido é responsável pela análise do pedido de proteção internacional, salvo se o visto tiver sido emitido em nome de outro Estado-Membro ao abrigo de um acordo de representação conforme previsto no artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 810/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece o Código Comunitário de Vistos (1). Nesse caso, é o Estado-Membro representado o responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

3. Se o requerente for titular de vários títulos de residência ou de vários vistos válidos, emitidos por diferentes Estados-Membros, o Estado-Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional é, pela seguinte ordem:

a) O Estado-Membro que tiver emitido o título de residência que confira o direito de residência mais longo ou, caso os títulos tenham períodos de validade idênticos, o Estado-Membro que tiver emitido o título de residência cuja validade cesse mais tarde;

b) O Estado-Membro que tiver emitido o visto cuja validade cesse mais tarde, quando os vistos forem da mesma natureza;

c) Em caso de vistos de natureza diferente, o Estado-Membro que tiver emitido o visto com um período de validade mais longo ou, caso os períodos de validade sejam idênticos, o Estado-Membro que tiver emitido o visto cuja validade cesse mais tarde.

4. Se o requerente apenas for titular de um ou mais títulos de residência caducados há menos de dois anos, ou de um ou mais vistos caducados há menos de seis meses, que lhe tenham efetivamente permitido a entrada no território de um Estado- Membro, são aplicáveis os n.ºs 1, 2 e 3 enquanto o requerente não abandonar o território dos Estados-Membros.

Se o requerente for titular de um ou mais títulos de residência caducados há mais de dois anos, ou de um ou mais vistos caducados há mais de seis meses, que lhe tenham efetivamente permitido a entrada no território de um Estado-Membro, e se não tiver abandonado o território dos Estados-Membros, é responsável o Estado-Membro em que o pedido de proteção internacional for apresentado.

5. A circunstância de o título de residência ou o visto ter sido emitido com base numa identidade fictícia ou usurpada ou mediante a apresentação de documentos falsos, falsificados ou não válidos, não obsta à atribuição da responsabilidade ao Estado-Membro que o tiver emitido. Todavia, o Estado-Membro que tiver emitido o título de residência ou o visto não é responsável, se puder provar que a fraude ocorreu posteriormente a essa emissão.

Por sua vez, o art. 17.º do Regulamento de Dublin consagra que:


Cláusulas discricionárias

1. Em derrogação do artigo 3.º, n.º 1, cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.

O Estado-Membro que tenha decidido analisar um pedido de proteção internacional nos termos do presente número torna-se o Estado-Membro responsável e assume as obrigações inerentes a essa responsabilidade. Se for caso disso, informa, por intermédio da rede de comunicação eletrónica «DubliNet», criada pelo artigo 18.o do Regulamento (CE) n.o 1560/2003, o Estado-Membro anteriormente responsável, aquele que conduz o processo de determinação do Estado-Membro responsável ou aquele que foi requerido para efeitos de tomada ou retomada a cargo.

O Estado-Membro responsável por força do presente número deve indicar também imediatamente esse facto no Eurodac em conformidade com o Regulamento (UE) n.o 603/2013 acrescentando a data em que foi tomada a decisão de analisar o pedido.

2. O Estado-Membro em que é apresentado um pedido de proteção internacional e que está encarregado do processo de determinação do Estado-Membro responsável, ou o Estado-Membro responsável, podem solicitar a qualquer momento, antes de ser tomada uma decisão quanto ao mérito, que outro Estado-Membro tome a seu cargo um requerente a fim de reunir outros parentes, por razões humanitárias, baseadas nomeadamente em motivos familiares ou culturais, mesmo nos casos em que esse outro Estado-Membro não seja responsável por força dos critérios definidos nos artigos 8.o a 11.o e 16.o. As pessoas interessadas devem dar o seu consentimento por escrito.

O pedido para efeitos de tomada a cargo deve comportar todos os elementos de que o Estado-Membro requerente dispõe, a fim de permitir ao Estado-Membro requerido apreciar a situação.

O Estado-Membro requerido procede às verificações necessárias para examinar as razões humanitárias apresentadas e responde ao Estado-Membro requerente no prazo de dois meses a contar da data da receção do pedido por intermédio da rede de comunicação eletrónica «DubliNet», criada pelo artigo 18.o do Regulamento (CE) n.o 1560/2003. As respostas de recusa do pedido devem indicar os motivos em que a recusa se baseia.

Se o Estado-Membro requerido aceitar o pedido, a responsabilidade pela análise do pedido é transferida para ele.

Perante este quadro legal e tendo presente a factualidade consignada na sentença recorrida, resulta necessariamente a improcedência do recurso. Na verdade, e face ao que vem provado, o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 19.º-A e os nºs 1 e 2 do artigo 37.º da Lei nº 27/08, não permite sustentar outro entendimento que não o expendido no acto impugnado.

É incontornável ser o Estado Italiano o responsável nos termos do art. 18.º, nº 1, do Regulamento (EU) 604/2013 do Parlamento e do Conselho, pelo que o “novo” pedido por aquele formulado não tem sequer que ser analisado de acordo com o regime supra identificado, devendo as autoridades portuguesas informar Itália da transferência do requerente de asilo. Sendo que o art. 17.º do Regulamento comporta uma faculdade conferida aos Estados Membros de aceitarem a competência para a análise do pedido de protecção internacional, em derrogação do regime geral, quando existam situações excepcionais que o imponham – e só nesses situações verdadeiramente excepcionais, designadamente quando estejam em causa situações de força maior do foro clínico ou por razões humanitárias e por imperativo de não sujeitar o requerente da protecção internacional a tratamento desumano ou degradante (cfr. neste sentido os acórdãos deste TCAS de 10.12.2019, proc. nº 1383/19.4BELSB, de 12.11.2020, proc. n.º 1117/20.0BELSB, ou de 18.02.2021, proc. n.º 1813/20.2BELSB, por nós relatado). Ou seja, o processo de transferência deve ser interrompido para averiguar, em regra de excepção, se esta pode significar a sujeição do requerente a tratamento cruel, degradante ou desumano num Estado-membro.

E não há dúvida que nos termos das disposições conjugadas dos artigos 3º nº 1 e 12º nº 2 daquele do Regulamento (UE) 604/2013, os pedidos de protecção internacional devem ser analisados e decididos por um único Estado-Membro (que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável) competindo a análise do pedido de protecção internacional, caso o requerente seja titular de um visto válido, ao Estado-Membro que o tiver emitido.

Importa salientar, não perdendo de vista o caso concreto, que não se encontra minimamente demonstrado, desde logo, importa dizê-lo, pelo incumprimento do respectivo ónus alegatório, que se verificassem circunstâncias que justificassem, nos termos do disposto no artigo 3º nº 2 daquele Regulamento (UE) 604/2013, que fosse outro o Estado-Membro, e designadamente o Estado Português, o responsável por tal análise e decisão (cfr., em casos idênticos, também, os acórdãos deste TCAS de 19.05.2016, proc. nº 13154/16, e de 14.06.2018, proc. nº 229/18.5BELSB, por nós relatados). Com efeito na p.i. o ora Recorrente nada avança de concreto quanto a circunstâncias/motivos que impedissem a sua transferência para a Itália. E no recurso interposto reitera o erro de julgamento em matéria de direito: a questão do deficit instrutório procedimental.

Tal como repetidamente temos afirmado, como se concluiu nos Acórdãos no processo C-163/17 Jawo e nos processos apensos C-297/17, C-318/17 Ibrahim, C-319/17 Sharqawi e o. e C-438/17 Magamadov:

Um requerente de asilo pode ser transferido para o Estado-Membro normalmente responsável pelo tratamento do seu pedido ou que já lhe tenha concedido protecção subsidiária a menos que as condições de vida previsíveis dos beneficiários de proteção internacional o pudessem expor a uma situação de privação material extrema, contrária à proibição de tratos desumanos ou degradantes”.

No quadro do sistema europeu comum de asilo que repousa no princípio da confiança mútua entre os Estados-Membros, deve presumir-se que o tratamento dado por um Estado-Membro aos requerentes de protecção internacional e às pessoas a quem foi concedida protecção subsidiária está em conformidade com as exigências da Carta, da Convenção de Genebra, bem como da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. E essa máxima cairá nos casos em que este sistema se depare, na prática, com grandes dificuldades de funcionamento num determinado Estado-Membro, de modo que existe um sério risco de os requerentes de protecção internacional serem tratados, nesse Estado, de modo incompatível com os seus direitos fundamentais e, nomeadamente, com a proibição absoluta de tratamento desumano ou degradantes (v. o Acórdão do Tribunal de Justiça de 21 de Dezembro de 2011, N. S. e o. - C-411/10 e C-493/10).

De acordo com a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia citada, resulta que quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de protecção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afectem certos grupos de pessoas. Adianta ainda o Tribunal que tais deficiências só são contrárias à proibição de tratamento desumano ou degradante se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa.

Entendimento vincado pelo TJUE no Acórdão de 19.03.2019, proferido nos apensos C-297/17, C-318/17, C-319/17 e C-438/17 (desenvolvidamente, v. O Direito de asilo; uma perspectiva judicial, in CJA, n.º 24, p. 3 e s., da autoria do ora relator).

Ora, no caso concreto, não só não foram apresentados elementos pelo requerente de protecção internacional para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, como nem problemas de saúde que impusessem a sua permanência em Portugal como acertadamente demonstrado pelo tribunal a quo. Não basta a alegação genérica que vem feita, procurando a sedimentação factual na suposta existência de factos notórios; que não o são.

A posição que subscrevemos é, também, a acolhida, entre tantos outros, no acórdão do STA de 16.01.2020, proc. n.º 2240/18.7BELSB, em que estava em questão, também, a retoma a cargo pelo Estado Italiano. Neste acórdão concluiu-se:

I - Apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em existam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e que tais falhas implicam o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação actualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamentos;

II - A imigração ilegal, que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de actividade exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social”.

Jurisprudência uniforme e ainda muito recentemente reiterada no ac. de 22.04.2021, proc. n.º 1039/19.8BELSB, estando em causa, também aí, o Estado Italiano, em que se concluiu:

I - Não resultando dos autos que existam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro e que tais falhas, a existirem “impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante” a que alude o art. 3º nº 2, 2º parágrafo do Regulamento UE nº 604/2013, de 26/6 na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, não se impõe ao SEF qualquer tipo de averiguação.

II - Não existindo qualquer prova da veracidade dos fundamentos de qualquer situação degradante em centros de acolhimento em Itália não tem suporte fático a referência à existência de pareceres emitidos pelos Conselhos para os Refugiados dinamarquês, suíço e português.

Ou seja, a premissa de base que parte o Recorrente, de que a decisão de transferência do requerente de protecção internacional para o primeiro Estado responsável tem como pressuposto a análise prévia, oficiosa e injuntiva, de que nesse Estado não existem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado, não tem acolhimento na lei (neste sentido, i.a., os ac.s deste TCAS de 13.02.2020, proc. n.º 1708/19.2BELSB, de 12.11.2020, proc. n.º º 1117/20.0BELSB, e de 14.06.2018, proc. n.º 229/18.5BELSB, por nós relatados, para além da referenciada jurisprudência do STA: ac.s de 16.01.2020, proc. n.º 2240/18.7BELSB, de 4.06.2020, proc. n.º 1322/19.2BELSB, de 2.07.2020, proc.s n.ºs 1786/19.4BELSB e 1088/19.6BELSB, de 9.07.2020, proc. n.º 1419/19.9BELSB, de 10.09.2020, proc.s n.ºs 1705/19.8BELSB e 3421/19.1BEPRT, de 5.11.2020, proc.s n.ºs 1108/19.4BELSB, 1932/19.8BELSB e 2364/18.0BELSB, de 19.11.2020, proc. n.º 1301/19.0BELSB, e de 22.04.2021, proc. n.º 1039/19.8BELSB.).

No caso concreto dos autos, face ao que vem evidenciado, nada mais se impunha ao SEF.

Terá, assim, que negar-se provimento ao recurso, e confirmar-se a sentença recorrida.

O presente processo está isento de custas (artigo 84.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 26/2014, de 5 de Maio).



III. Conclusões

Sumariando:

i. Perante a verificação da existência de um pedido de asilo anterior formulado noutro Estado-membro, há que dar início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, no qual, no caso concreto, se apurou ser Itália.

ii. Tendo a Itália aceite tal responsabilidade, cabe proferir decisão da respectiva transferência do requerente de protecção internacional, nada vindo invocado que justificasse, nos termos do disposto no artigo 3º nº 2 daquele Regulamento (UE) 604/2013, que fosse outro o Estado-Membro, e designadamente o Estado Português, o responsável por tal análise e decisão.

iii. O Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, como já sucedia com o Regulamento (CE) n.º 343/2003, que estabelece os critérios e os mecanismos de determinação da responsabilidade da análise dos pedidos de protecção internacional apresentados nos Estados Membros, prossegue dois objectivos essenciais: por um lado, visa garantir um acesso efectivo aos procedimentos de determinação do estatuto de refugiado, sem comprometer a celeridade no tratamento dos pedidos de asilo e assegurando a certeza e segurança jurídicas ao nível da EU; e, por outro lado, visa impedir a utilização abusiva dos procedimentos de asilo, sob a forma de pedidos múltiplos apresentados pelo mesmo requerente em diversos Estados Membros, com o objectivo de neles prolongar a sua estadia, realidade comummente designada como asylum shopping.

iv. Também de acordo com a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de protecção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente, ou que constituam factos notórios, para demonstrar a existência do risco de um tratamento desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afectem certos grupos de pessoas.

v. Ainda assim, de acordo com a mesma Jurisprudência, tais deficiências só são contrárias à proibição de tratamento desumano ou degradante se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa; o que no caso não sucede minimamente, não evidenciado os autos que enquanto residiu em Itália, o requerente de asilo tenha sido sequer sujeito a tratamento desumano ou degradante, nem que o venha a ser.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Sem custas, por isenção legal (artigo 84.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 26/2014, de 5 de Maio).

Notifique.

Lisboa, 31 de Agosto de 2021 (em turno)

Pedro Marchão Marques (relator).
Carlos Araújo (com voto de vencido)
Vital Lopes

O relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, o primeiro adjunto votou vencido (declaração infra) e o 2.º adjunto tem voto de conformidade com o presente Acórdão.

Declaração de voto: Vencido por considerar que o SEF não pode desconhecer a situação italiana e deveria ter apurado junto das suas congéneres italianas as concretas condições de acolhimento que irão ser oferecidas ao recorrente, aquando do seu retorno a Itália, não podendo alhear-se da sua sorte.

Carlos Araújo