Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 2750/14.5BELRS |
Secção: | CT |
Data do Acordão: | 11/07/2024 |
Relator: | ÂNGELA CERDEIRA |
Descritores: | DISPENSA DA INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS INCIDÊNCIA SUBJECTIVA DO IUC LOCAÇÃO FINANCEIRA/OPERACIONAL |
Sumário: | I – A decisão do juiz de dispensar a produção da prova pode ser sindicada em sede de recurso da sentença; II - Não constituindo a mera posse um elemento integrador ou de exclusão do âmbito da incidência subjectiva do IUC, a dispensa da inquirição de testemunhas não se traduziu em qualquer erro de julgamento da matéria de facto; III – Se no momento da exigibilidade do Imposto Único de Circulação, o veículo já não se encontrar em regime de locação financeira, o sujeito passivo da obrigação tributária é o proprietário. |
Votação: | UNANIMIDADE |
Indicações Eventuais: | Subsecção Tibutária Comum |
Aditamento: |
1 |
Decisão Texto Integral: | I – RELATÓRIO
B........, S.A., doravante Recorrente, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, em 10/11/2021 (retificada por despacho de 24/09/2024), que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial e, em consequência, anulou “os atos de liquidação de IUC do ano de 2014 que incide sobre os veículos com matrículas melhor identificadas no ponto 6 da matéria de facto provada, com exceção dos veículos com matrículas (11) 57........; (19) 64........; (42) 56........; (43) 65.........; (44) 94.........; (45) 32.........; (46) 32.........; (47) 32........., determinando-se a anulação de cada ato de liquidação de IUC do ano de 2014 que incide sobre cada um dos referidos veículos, ordenando-se a restituição à Impugnante do imposto por si indevidamente pago e improcedendo no mais.”
Com o requerimento de interposição do recurso, a Recorrente apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes CONCLUSÕES: i) «Todos e cada um dos veículos automóveis a que se reporta o Imposto de Circulação objecto da Impugnação onde foi proferida a sentença recorrida foram e são objecto de Contratos de Locação operacional com contratos autónomos de promessas de compra e venda firme; JUSTIÇA»
Notificada da admissão do recurso, a Fazenda Pública não apresentou contra-alegações. *** O DIGNO MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. *** Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR As questões a apreciar consistem em saber se a douta sentença recorrida efectuou errado julgamento da matéria de facto, por errónea fixação dos factos provados pertinentes para a decisão e se incorreu em erro de julgamento de direito por violação do disposto no n.º 2 do artigo 3.º do Código do IUC e do artigo 5.º do Código de Registo Automóvel.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto: «1) A AT emitiu os atos de liquidação de IUC do mês de abril de 2014 relativamente a 74 (setenta e quatro) veículos com as matrículas indicadas a fls. 145 e 146 do PAT/RG apenso, tudo no valor global de € 6.755,94 aqui se dando o respetivo teor por integralmente reproduzido; 2) Os veículos referidos em (1) foram objeto dos contratos de locação operacional e contratos de promessa de compra e venda que constam do PAT/RG apenso (não numerado), aqui se dando o respetivo teor por integralmente reproduzido – Cf. fls do PAT/RG apenso; 3) O Impugnante procedeu ao pagamento das liquidações de IUC do ano de 2014 sobre os 74 veículos, que totalizou o valor de €6.755,94 - Cf. fls. 91, 93, 95, 96, 98, 100, 102, 104, 106, 108, 110, 112, 114, 116, 118 do PAT, apenso; 4) A 26/06/2014, das liquidações referidas em (1) foi apresentada reclamação graciosa pelo Impugnante – Cf. fls. 2 e seguintes do PTA/RG apenso; 5) No âmbito da apreciação da reclamação graciosa a AT, em 31/10/2014, foi proferido despacho de deferimento parcial e, anuladas as liquidações relativamente aos 26 veículos automóveis identificados com as matrículas 42.........; 89.........; 81.........; 55.........; 22….; 57….; 92…..; 10…….; 32…….; 18……; 09……; 20…..; 77…..; 99…..; 09…….; 38…..; 60…..; 57…..; 32…..; 65.…..; 53…….; 83……; 54……; 06…….; 71…… e 35……, no valor total de € 1.665,43, com o fundamento que consta da Informação a fls. 51 a 55 da RG, aqui se dando o respetivo teor por integralmente reproduzido (CF. fls. 51 a 55 da RG e informação de fls 147 do PAT); 6) Considerando o teor dos contratos de locação operacional referidos em (2), a data de início e de termo dos referidos contratos é a que a seguir se indica: “(texto integral no original; imagem)”
Cf. fls 2 e ss do PAT/RG apenso; 7) A data de início e a data de termo dos contratos de locação operacional referidos em (2) não foi objeto de registo na Conservatória do Registo Automóvel – Facto não controvertido, Cf. fls. 120 a 143, frente/verso, do PTA apenso; 8) A propriedade dos veículos melhor identificados em (6), em abril de 2014, encontrava-se registada na Conservatória do Registo Automóvel em nome da Impugnante – Facto não controvertido, Cf. fls. 120 a 143, frente/verso, do PAT; 9) A impugnação deu entrada em 14/11/2014 (Cf. de fls 1, do SITAF).
Mais consta da fundamentação de facto da sentença, o seguinte:
Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afetar a decisão de mérito, segundo as várias soluções plausíveis de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados. * Fundamentação da matéria de facto: A decisão da matéria de facto efetuou-se com base no exame crítico dos documentos que constam dos autos e do processo administrativo apenso, não impugnados, especificados nos vários pontos da matéria de facto provada e na posição das partes não controvertida.»
IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO O Recorrente insurge-se contra a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, na parte em que manteve as liquidações de IUC sobre os veículos com a matrículas 57........; 64........; 56........; 65.........; 94.........; 32.........; 32.........; 32........., com referência ao período de tributação que teve em início em Abril de 2014, considerando, em síntese, aquele Tribunal, que não se provou que os contratos de locação financeira se encontrassem em vigor na data do vencimento do imposto. Argumenta, desde logo, a Recorrente que “uma vez que o Tribunal de 1ª instância – vide despacho de 16/05/2020 - entendeu dispensar a inquirição das testemunhas arroladas pela ora recorrente, ao invés do que decido foi, terá também de se considerar como provado que todos os veículos dos autos se encontravam em poder dos respectivos locatários em Abril de 2014, ao abrigo dos contratos de Locação Operacional e dos Contratos Autónomos de Promessa de Compra e Venda Firme celebrados com o ora recorrente, conforme expressamente articulado na petição inicial nos respectivos artigos 16º e 17º”. Vejamos. Relativamente à dispensa da inquirição das testemunhas arroladas pelas partes na acção, constitui jurisprudência consolidada que o juízo feito pelo tribunal de 1ª instância sobre a necessidade ou não de produção de prova pode ser sindicado em sede do recurso interposto da sentença: “[a]í, não só o impugnante ou a Fazenda Pública podem sustentar a insuficiência da matéria de facto e/ou o erro no seu julgamento, como o próprio tribunal ad quem pode e deve, se considerar que a sentença não contém os factos pertinentes à decisão da causa e que os autos não fornecem os elementos probatórios necessários à reapreciação da matéria de facto, anular a sentença oficiosamente (cfr. art. 712.º, n.º 4, do CPC, por força dos arts. 792.º e 749.º, do mesmo Código, e 2.º, alínea e), do CPPT)” – acórdão do TCA-Sul de 07.03.2006, processo 01186/03, disponível em www.dgsi.pt. Com efeito, no processo tributário de impugnação são admitidos os meios gerais de prova (artigo 114º nº 1 do CPPT), incluindo a prova testemunhal, cabendo, no entanto, ao juiz um papel decisivo na aceitação e rejeição de meios de prova requeridos, só devendo admitir as provas que considere necessárias e convenientes para o apuramento dos factos relevantes para a decisão da causa. Assim, antes de mais, importa averiguar se a factualidade em causa era, efectivamente, relevante para aferir da legalidade das liquidações sindicadas no presente recurso. Para o efeito, importa convocar o regime jurídico em vigor à data dos factos. O Imposto Único de Circulação (IUC) “é de periodicidade anual, sendo devido por inteiro em cada ano a que respeita”, pelo que o “período de tributação corresponde ao ano que se inicia na data da matrícula ou em cada um dos seus aniversários, relativamente aos veículos das categorias A, B, C, D e E”, e deve ser liquidado “até ao termo do mês em que se torna exigível” (cfr. art.º 4.º e 17.º, n.º 2 do Código do Imposto Único de Circulação - CIUC). De acordo com o disposto no artigo 3.º do CIUC, na redação em vigor à data dos factos:
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação».
Assim, se no momento da exigibilidade do imposto, o veículo se encontrar em regime de locação financeira ou outro tipo de contrato de locação, desde que, por força do mesmo, o locatário tenha o direito de opção de compra do veículo, o sujeito passivo da obrigação tributária é o locatário e não o proprietário. No caso de o contrato de locação já se encontrar extinto no momento da exigibilidade do imposto, nomeadamente, por caducidade decorrente do prazo de vigência do contrato, o responsável tributário é, de acordo com a regra geral, o proprietário do veículo. Deste modo, não constituindo a mera posse um elemento integrador ou de exclusão do âmbito da incidência subjectiva do imposto aqui em causa, a factualidade que o Recorrente pretendia demonstrar com recurso à prova testemunhal mostra-se destituída de relevância para a decisão da causa. Neste contexto, a dispensa da inquirição de testemunhas não se traduziu em qualquer erro de julgamento da matéria de facto, improcedendo o recurso nesta parte. Invoca, ainda, a Recorrente erro de julgamento de direito, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 3.º do Código do IUC e do artigo 5.º do Código de Registo Automóvel. Apreciemos. Decorre da matéria de facto assente que os veículos com as matrículas 57........; 64........; 56........; 65.........; 94.........; 32.........; 32.........; 32......... foram objecto de contratos de locação financeira que terminaram, todos eles, antes da data a que se reporta o imposto aqui em análise. Pelo que, relativamente a tais viaturas, concluiu o tribunal a quo ser de manter as liquidações ora impugnadas. Podemos afirmar, desde já, que o assim decidido não merece qualquer censura, remetendo para a fundamentação do acórdão proferido por este Tribunal em 16.05.2024, no processo 2066/13.4BELRS, disponível em www.dgsi.pt: “Como já afirmámos acima, o artigo 3º, n.º 1, do Código do IUC estabelecia, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, e aplicável aos autos, são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados. O n.º 2 do referido artigo 3º estipulava que são equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação. Por outro lado, por força do disposto no artigo 1º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, o registo de veículos automóveis tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico. Já o artigo 5º, n.º 1, alíneas a), d), e e), do Decreto-Lei n.º 54/75 consagra que estão sujeitos a registo, o direito de propriedade e de usufruto, a locação financeira e a transmissão dos direitos dela emergentes, e o aluguer por prazo superior a um ano, quando do respectivo contrato resulte a existência de uma expectativa de transmissão da propriedade. Acresce que nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial, ex vi artigo 29.º do Decreto-lei n.º 54/75, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo define. Daqui retira-se que muito embora o registo não tenha eficácia constitutiva e funcione como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é o proprietário do veículo, a verdade é que esse titular do registo tem de efectuar a prova de molde a afastar a presunção. Por outro lado, o nº 2 do art. 3º do CIUC dispõe que são equiparados a proprietários os locatários financeiros, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação. Ora, no que respeita aos veículos identificados na alínea A) do probatório, os contratos já haviam terminado há muito, sendo certo que em Abril de 2013 já não estavam em vigor, o que significa que os anteriores locatários não podem ser equiparados a proprietários ao abrigo desta norma, pura e simplesmente porque não existe contrato, nem ficou provado ou sequer foi alegado que tais contratos tenham sido objecto de renovação ou prorrogação. Assim, à data em que se verificou a exigibilidade do imposto, aqueles que anteriormente eram locatários já não detinham essa condição nem, tão pouco, eram titulares de opção de compra do veículo objecto do respectivo contrato de locação, pelo que apenas se pode concluir que os respectivos veículos automóveis já não eram objecto de locação válida e vigente, não existindo, também, qualquer opção de compra do veículo objecto do respetivo contrato. A mera posse de má-fé dos veículos por parte dos anteriores locatários, não é suscetível de, por si só, os fazer figurar na qualidade de sujeito passivo de IUC, conforme resulta do citado artigo 3.º do CIUC, uma vez que tal circunstância não se encontra aí prevista para efeitos da incidência subjectiva do imposto.”
Em face do exposto improcedem todas as conclusões do recurso, sendo de manter a sentença recorrida.
Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, formulam-se as CONCLUSÕES:
I – A decisão do juiz de dispensar a produção da prova pode ser sindicada em sede de recurso da sentença; II - Não constituindo a mera posse um elemento integrador ou de exclusão do âmbito da incidência subjectiva do IUC, a dispensa da inquirição de testemunhas não se traduziu em qualquer erro de julgamento da matéria de facto; III – Se no momento da exigibilidade do Imposto Único de Circulação, o veículo já não se encontrar em regime de locação financeira, o sujeito passivo da obrigação tributária é o proprietário.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 7 de novembro de 2024 (Ângela Cerdeira)
(Isabel Silva)
(Rui A. S. Ferreira) |