Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:146/21.1BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:01/06/2022
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO; PRESUNÇÃO DE VERACIDADE
PRINCÍPIOS DA CULPA, PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E IN DUBIO PRO REO
VIOLAÇÃO DE DEVERES
Sumário:I. A presunção de veracidade dos elementos reportados pela equipa de arbitragem e delegados da Liga prevista no artigo 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar das competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP), não contende com os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, posto que se permite ao arguido a contraprova dos factos presumidos.
II. A norma em causa limita-se a atribuir um valor probatório aos factos presenciados pelas autoridades desportivas e estabelece a base fáctica que pode eventualmente consubstanciar a prática da infração, passando a caber ao arguido colocar fundadamente em causa o que dali consta.
III. Competirá então ao julgador analisar os elementos que forem carreados para os autos pelo arguido e decidir se colocam em causa a prova já existente e ilidem a presunção de veracidade daqueles elementos.
IV. Perante a prova de condutas desportivamente incorretas de sócios e/ou simpatizantes do clube, a condenação do arguido pela prática de infrações disciplinares terá de assentar na sua responsabilização pela violação de deveres a que se encontrava vinculado, o que não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul
I. RELATÓRIO
V... – Futebol, SAD, apresentou ação de arbitragem necessária no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), visando a impugnação da decisão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, constante do acórdão de 11/08/2020, que condenou a demandante na realização de um jogo à porta fechada e em multa no valor de 415 UC.
Por acórdão de 30/08/2021, o TAD decidiu, por maioria, julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.
Inconformada, a demandante interpôs recurso desta decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“1ª A V… - Futebol SAD., foi condenada no âmbito do processo disciplinar n.° 55.° - 19/20, na sanção de realização de 1 (um) jogo à porta fechada e na sanção única de multa que se fixa em 415 (quatrocentos e quinze) UC que por força da aplicação do fator de ponderação de 0,7 (escalão 3) estatuído no artigo 36.°, n.° 2, do RDLPFP19 e o critério de arredondamento previsto no artigo 36.° n.° 6 RDLPFP19 corresponde a €29.631,00 (vinte e nove mil e seiscentos e trinta e um euros).
2ª Ora, a recorrente entende, salvo devido respeito, que a decisão aqui em crise é passível de censura, quer ao nível de matéria de facto, quer ao nível das soluções de direito, tendo-se ainda como nula, porquanto omissa quanto a questões que devia ter apreciado e decidido e porque não valorou devidamente a prova produzida o que em tudo influenciou o exame e a boa decisão da causa.
3ª Dispõe o artigo 679.° do Código Processo Penal (em seguida CPP), aplicável ex vi artigo 16.° do RDLPFP19/20, que: “é nula a sentença quando: (...) c) o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
4ª No requerimento de instauração de jurisdição arbitral necessária, a Recorrente invocou e arguiu inconstitucionalidades das normas disciplinares, as quais entram no âmbito da responsabilidade meramente objetiva.
5ª No entanto, o acórdão recorrido não se pronunciou sobre elas quando, na verdade, deveria tê-lo feito, sendo certo que ao não o fazer incorreu no vício de omissão de pronúncia, que assim se arguiu e que cumpre ser declarado, tendo como consequência, a revogação do acórdão recorrido e proferida nova decisão.
6ª A maior parte dos factos provados sub judice e nos quais foi sustentada a condenação da recorrente, sem recurso a qualquer meio de prova e apenas com base em relatórios e presunções.
7ª Ora, a tipicidade da conduta do arguido encontra-se plasmada no artigo 181.°, n.° 2 do RD mas, compulsados os autos, em momento algum se recolhe qualquer elemento factual que permita aferir por que razão houve (i) a conduta que consubstancie uma agressão e, consequentemente, (ii) uma alegada tentativa de agressão.
8ª A fundamenta que todos os factos foram dados como provados tendo em conta a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios elaborados pelo árbitro e delegado ao jogo.
9ª No entanto, não se pode retirar, apenas por presunção, que o arremesso de duas cadeiras e uma garrafa de água foram com o intuito de agredir o árbitro assistente n.° 2.
10ª No caso concreto, temos o facto conhecido: arremesso de duas cadeiras e uma garrafa de água para o relvado, - note-se que estamos a falar em 3 objetos, no meio de centenas de objetos que caíram no relvado nesse jogo e o qual deu origem a dois factos desconhecido, ie, (i) em direção do árbitro assistente n.° 2 e (ii) com intenção de agredir.
11ª Assim, são várias as ordens de razões que impunham a absolvição da recorrente, a saber:
12ª Não está vertido no relatório do Delegado que na sua perceção os objetos arremessados tenham tido o propósito de atingir quem quer que seja, pelo que em momento algum pode ser admitida a interpretação conclusiva nesse sentido e que a decisão recorrida adotou, apenas da singela frase “arremessaram na direção do árbitro assistente n.° 2”. - cfr relatório do delegado ao jogo a folhas.
13ª Na verdade, esta afirmação não permite descortinar a intenção dos supostos agentes dos factos, estando, por isso, necessitada de prova quanto àquele elemento subjetivo da norma típica, prova que não foi feita nestes autos.
14ª A acusação está apenas alicerçada no facto de “arremessaram na direção do árbitro assistente n.° 2”, sem qualquer menção e prova de que o arremesso na direção desse árbitro assistente tinha como intenção atingir a integridade física do árbitro, o que não pode acontecer.
15ª Dispõe o Relatório de Policiamento Desportivo a folhas 19-21, faz constar que: 21H18 - Bancada Nascente Inferior -Arremesso de duas cadeiras para o relvado e uma garrafa de água na direção do árbitro assistente.
16ª Quer isto dizer que, os relatórios pelos quais o Tribunal se baseou para fundamentar a condenação da recorrente estão, assim, em contradição entre si!
17ª Vejamos, por um lado, o relatório do delgado ao jogo, refere o arremesso de duas cadeiras e uma garrafa de água, tudo na direção do arbitro assistente, por outro lado, o relatório de policiamento desportivo refere que foram arremessadas duas cadeiras para o relvado e “apenas” uma garrafa de água em direção ao arbitro assistente!
18ª No entanto, os factos constantes dos relatórios do árbitro, do delegado e de policiamento desportivo gozam exatamente da mesma presunção de veracidade (cfr. decisão proferida pelo Conselho de Disciplina no Processo n.° 17-18/19 e apenso Processo n.° 29-18/19) “(...) 24.Por outro lado, ainda quanto à formação da nossa convicção, importa salientar que o procedimento disciplinar obedece a um conjunto de princípios fundamentais, estatuídos no artigo 13.° do RDLPFP2017, sendo que um deles é o da presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga e dos autos de flagrante delito lavrado pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa (alínea f)). Acresce dizer que também o Relatório de Policiamento Desportivo goza de um valor probatório especial e reforçado, consubstanciado numa presunção de veracidade dos factos nele relatados pelas autoridades policiais (cf Artigo 169.° do Código de Processo Penal e artigos 363.°, n.°2 e 371.°, n.° 1, do Código Civil). ’’
19ª Do relatório de policiamento desportivo resulta uma contradição direta com o relatório do Delegado, pelo que em momento algum a decisão arbitral tinha elementos probatórios suficientes e inquestionáveis por forma a dar como provado o arremesso das cadeiras em direção ao árbitro assistente e muito menos podia ainda dar como provada uma intenção de agressão.
20ª Assim, e porque da contradição dos relatórios não permite a conclusão, sem qualquer margem de dúvida, que a recorrente adotou determinada conduta que a fez incorrer num ilícito, outra decisão não poderia haver que não a absolvição desta.
21ª Note-se, estando os dois relatórios em contradição direta e não havendo qualquer outro meio de prova complementar, o julgador, ou exclui a força probatório dos 2 relatórios, ou, por imposição da aplicação do princípio in dúbio pro reo, não pode dar matéria controvertida como provada.
22ª Ademais, a prova de que a bancada nascente inferior é uma bancada afeta a adeptos do clube visitado e visitante vem na própria decisão arbitral, a qual dá como provada, sob o facto n.° 13 “Aquando o golo obtido pela equipa da B..., SAD, ao minuto 23 da partida, um adepto afeto ao Demandante, situada na bancada nascente inferior, sector EE empurrou e desferiu um soco na face de um simpatizante do B..., SAD, que se encontravam acompanhado por um ARD, a dirigir-se para fora daquela bancada, pois tinha festejado o golo obtido em nessa sequência, gerado algum conflito naquele local. ”
23ª Razão pela qual, tal facto provado, complementado com o que foi transmitido pelas testemunhas da recorrente (que diga-se a decisão recorrida não valorou), impunha uma decisão contrária à que foi tomada, devendo a recorrente ser absolvida.
24ª Como pode a recorrente fazer prova - para além da que já consta dos autos e que se deu como provada de que naquela bancada estavam adeptos/simpatizantes da equipa visitante quando os mesmo se encontram descaracterizados? Como era possível à recorrente, para além das testemunhas que arrolou, provar que estas situações acontecem em quase todos os jogos?
25ª Quanto à argumentação relativa às imagens CCTV cumpre referir que, nos termos do artigo 18.° da LCVD, em momento algum, pode o promotor do espetáculo desportivo (no caso concreto, a recorrente) aceder às imagens de videovigilância.
26ª Se não pode a recorrente aceder às imagens, não pode, com efeito, juntá- las para efeitos de defesa em sede disciplinar, tanto mais quando a acusação foi proferida já há muito havia decorrido o período de 60 dias, findo o qual o Recorrente foi legalmente obrigado a apagar as imagens de videovigilância nos termos do n.° 6 do artigo 18º da LCVD.
27ª Não pode querer com isto dizer -se que para se defender num processo disciplinar, deveria violar a lei, in casu, conservando as imagens para além do período permitido e fazendo uso das mesmas, tal qual se como se fosse, um órgão de polícia criminal, a APCVD ou ao organizador da competição desportiva.
28ª Assumindo para o presente raciocínio que as cadeiras e a garrafa de água foram arremessadas em direção ao árbitro assistente n.° 2 — o que mera cautela de patrocínio que equaciona - também a recorrente não poderia ser condenada com base nos factos constantes do processo.
29ª Na medida em que não há qualquer menção ao elemento típico em crise, in casu, a demonstração da vontade de uma pessoa tentar agredir outra pessoa.
30ª E, não havendo factos que permitam que a alegada conduta da recorrente consubstancie o preenchimento do elemento típico do ilícito previsto no artigo 181.°, n.° 2 do RD, não pode haver agressão na forma tentada.
31ª Tem que haver uma demonstração nos autos através dos competentes meios de prova, os demais elementos típicos da norma punitiva, in casu (i) A suficiência do objecto para que possa consubstanciar uma agressão; (ii) A intenção do agente em agredir.
32ª No entanto, a decisão em sindicância é omissa quanto a este ponto, do que resulta a necessária procedência do recurso.
33ª Mostrava-se necessário demonstrar que a garrafa de água arremessada era suscetível de causar uma agressão, o que não se fez, nem agora pode ser feito, até porque nem sequer se sabe, porque os relatórios nada dizem, se a sobredita garrafa estava cheia ou vazia, sendo até certo que o mais provável é que a garrafa estivesse vazia, atendendo à proibição de entrada e venda de garrafas fechadas dentro do recinto desportivo.
34ª Mutatis Mutandi, inexistem também factos que permitam o recurso ao artigo 20.°, n.° 3, isto é, à agressão na forma tentada.
35ª não havendo factos no processo que permitam a condenação da recorrente pela alegada agressão, não poderá a mesma ser condenada pela tentativa.
36ª A recorrente não pode deixar de transcrever a fundamentação do voto de vencido do Exmo. Sr. Arbitro R..., com a qual concorda inteiramente.
37ª São, assim, várias as razões a que importam atender e que determinam a absolvição da recorrente pela prática da infração prevista no artigo 181° n.° 2 do RD, assim se fazendo justiça!
38ª Em momento algum a decisão recorrida deu como provado que aqueles alegados arremessos são capazes de concretizar o ilícito previsto no artigo 181.°, n.° 2 do RD, isto é, capazes de agredir o árbitro assistente n.° 2.
39ª Ademais, para além de não concretizar de modo os objetos foram arremessados, não concretizou qual o tamanho destes, qual o peso, qual a dimensão, entre outros, e que tais factos eram suscetíveis de agredir quem quer que fosse, pelo que os factos dados como provados são insuficientes para a condenação da recorrente por este ilícito disciplinar.
40ª Pelo que no caso concreto estamos perante uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, uma vez que como supra se referiu não foram dados como provados os factos capazes de preencherem o ilícito disciplinar em causa, nulidade que aqui expressamente se invoca.
41ª Como vimos, existe uma contradição clara entre os relatórios pelos quais o Tribunal se baseou para fundamentar a condenação da recorrente, posto que o relatório do delegado ao jogo refere o arremesso de duas cadeiras e uma garrafa de água, tudo na direção do árbitro assistente, mas o relatório de policiamento desportivo refere que foram arremessadas duas cadeiras para o relvado e “apenas” uma garrafa de água em direção ao arbitro assistente!
42ª Repete-se que estando os dois relatórios em contradição direta e não havendo qualquer outro meio de prova complementar, o julgador, ou exclui a força probatório dos 2 relatórios, ou, por imposição da aplicação do princípio in dubio por reo, não pode dar matéria controvertida como provada, Pelo que, ao fazê-lo, a decisão recorrida incorreu no vicio do erro notório na apreciação da prova, o que assim expressamente se arguiu.
43ª A recorrente defende e sempre defendeu um desporto igual e universal, sem lugar para a violência, racismo, xenofobia, intolerância ou discriminação, promovendo entre muitas outras, ações com os seus adeptos, passando mensagens nos ecrãs gigantes contra a violência, racismo, xenofobia, procedendo à punição dos adeptos que comprovadamente violem a lei, atuando sempre em cumprimento da Lei n.° 39/2009, de 30 de julho.
44ª A Recorrente tem devidamente nomeado um Director de Segurança e um Director de Segurança-Adjunto, bem com um OLA (oficial de ligação aos adeptos), sendo que são estes os órgãos do arguido que interagem com as forças policiais, entidade que assume a supervisão do recinto desportivo, assim como das revistas realizadas à entrada.
45ª Ademais, a recorrente acata todas as decisões tomadas pela P.S.P, quer estas sejam tomadas no próprio jogo, quer estas sejam tomadas nas reuniões que precedem a realização do jogo.
46ª Pelo que é demais evidente que a recorrente pratica todos os actos ao seu alcance e regulamentarmente previstos, não lhe podendo ser assacada qualquer falta, pelo que se impõe a sua absolvição!
47ª A recorrente foi condenada por violar os deveres constantes dos artigo 35.°, n.° 1, alíneas a) b), c), f) e o), e 49.°, n.° 1, ambos do RCLPFP, artigos 4.°, 6.°, alíneas b), c), d), g), e p), 9.°, n.° 1, alínea m), subalínea vi) e 10.°, n.° 1, alíneas a), b), i), j), e o) do Regulamento de Prevenção da Violência, constante do Anexo VI do citado RCLPFP no artigo 35.° n.° 1, alíneas a), f) e n.° 2, alínea f), do RCLPFP, artigos 4.°, 6.°, alíneas b), c), g), artigo 9.°, n.° 1, alínea m), subalínea vi), artigo 10.°, n.° 1, alíneas a), b), i), j), e o), todos do anexo VI do RCLPFP, e artigo 8.°, n.° 1, alínea g), artigo 22.°, n.° 1, alínea d) e artigo 23.°, n.° 1, alíneas h) e i), todos da Lei n.° 39/2009 de 30 de Julho.
48ª Sendo que as normas vindas de transcrever são quase todas normas punitivas em Branco, dado que não contêm, em si mesmas, todo os conceitos necessários para o preenchimento do tipo.
49ª No caso concreto a recorrente fica sem saber, por exemplo, quais as medidas que tem que tomar para desenvolver o espírito ético dos seus adeptos ou, de igual modo, quais são as ações de prevenção socioeducativa que tem que desenvolver.
50ª Da plena vigência do princípio do acusatório, resulta então, que caberia à acusação e num primeiro momento, fazer a completa enumeração dos factos imputados ao arguido através da descrição das concretas ações que este teria que tomar para dar cumprimento aos deveres alegadamente violados pela recorrente.
51ª De igual modo, nestes autos não se fez qualquer prova sobre quais os actos que a arguida deveria ter praticado a fim de acautelar, precaver, prevenir, formar zelar e incentivar o espírito ético e desportivo e cuja omissão determina um nexo de causalidade com a conduta dos adeptos da arguida descrita nos factos provados.
52ª Assim, resulta evidente que a decisão recorrida incorreu numa verdadeira violação do princípio do acusatório, não podendo, por isso, manter-se.
53ª Ademais, todos os ilícitos disciplinares são, como sabido, compostos por elementos subjetivos e objetivos.
54ª Em momento algum se alegou ou provou matéria atinentes ao preenchimento dos elementos subjetivos do ilícito, ou seja, que o V... sabia ou não podia ignorar que a não concretização de determinadas medidas concretas, (que como vimos também teriam que estar devidamente elencadas no corpo da acusação), iria resultar na prática, pelos seus adeptos, das condutas que constituem o elemento objetivo daquele ilícito previsto no artigo 182° do RD.
55ª A falta de preenchimento do elemento subjetivo do ilícito constitui também e por si só matéria que afeta a validade de toda a decisão sancionatória que, por isso, foi bem revogada pela decisão ora em crise.
56ª Segue-se de perto a recente decisão tomada por este Tribunal Arbitral do Desporto no âmbito do processo 82/2018 (...) que ao invés de factos, tais segmentos da matéria se tratam, efetivamente, de matéria de conclusão jurídica, que só por si encerram um juízo sobre a responsabilidade pela ocorrência dos desacatos (ou seja, só por si, decide a questão relativa ao facto ilícito e à culpa) que, em bom rigor, apenas deveriam constar do enquadramento jurídico dos factos e efetuado na decisão sucessivamente recorrida, velo que se tem, consequentemente, de se considerar como não escritos. (...) Razão pela qual se julga, nessa parte procedente o recurso interposto e se absolve a Demandante da condenação por falta de prova do elemento subjectivo do tipo relativamente aos factos de que vem condenada.’
57ª É na senda do acórdão deste mesmo Tribunal de 27 de Fevereiro de 2020, processo n.° 148-19.8BCLSB relatado por Paulo Pereira Gouveia, o qual se subscreve na íntegra, sem mais considerandos, antecipa-se como inconstitucional, por violação do princípio da PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10, da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da CULPA (art. 2.° da CRP), a interpretação dos artigos 127° n.°l e 2, 172° n.°l, 181° n.° 2, 182° n.° 2, 183° n.° 1 e 2, 187 n.° 1 alíneas a) e b) todos do RD da LFPF, no sentido de que a indiciação, com base em relatórios do jogo, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorretas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que assim expressamente se arguiu.
58ª De igual modo, tem-se como inconstitucional, aqui expressamente invocada, por violação do princípio da PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.° 5 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação doa artigos 127° n.°l e 2, 172° n.°l, 181° n.° 2, 182° n.° 2, 183° n.° 1 e 2, 187 n.° 1 alíneas a) e b) todos do RD da LFPF , no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base no artigo 13°. Alínea f) ° do RD, que esses sócios ou simpatizantes adotaram um comportamento social ou desportivamente incorreto, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.
59ª Por último, arguiu-se a inconstitucionalidade dos artigo 127° n.° l e 2, 172° n.° l, 181° n.° 2, 182° n.° 2, 183° n.° 1 e 2, 187 n.° 1 alíneas a) e b) todos do RD da LFPF, por violação do princípio constitucional da imputação culposa em matéria sancionatória prevista nos artigos Io, 2o e 32° da Constituição.
60ª Se assim não fosse entraríamos no âmbito da responsabilidade meramente objetiva, a qual como sabemos, repudia ao direito sancionatório português e, como tal, repudia, também, ao Recorrente que em momento algum admite ser condenado sem que se demonstre a sua culpa.
61ª No mesmo entendimento, o qual se subscreve na íntegra, a declaração de voto do Exmo. Senhor Arbitro J..., página 56.
62ª Prescreve o artigo 59.° do RD que quando “no âmbito do mesmo procedimento, se proceda por diversas infrações disciplinares emergentes dos mesmos factos on de factos que correspondam a um mesmo desígnio de ilicitude, as sanções da mesma espécie aplicadas a cada uma das infrações em concurso são cumuladas materialmente na decisão final do procedimento, sem, todavia, poderem exercer uma vez e meia o limite máximo da sanção dessa espécie regularmente aplicável à mais grave das infrações cometidas.
63ª Cumpre referir que estamos perante um conjunto de infrações emergentes de factos que correspondem a um mesmo desígnio de ilicitude na medida em que (i) foram praticadas nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e (ii) todas têm que ver com a alegada inobservância pela recorrente dos deveres a que estava adstrita.
64ª Após a punição da recorrente por cada uma daquelas infrações, deveria a decisão recorrida ter procedido às regras do cúmulo previstas no artigo 59.°, n.° 1 do RD.
65ª No entanto, a recorrente foi condenada na sanção de multa fixada em 415 UC's, ou seja, superior a uma vez e meia o valor aplicável à infração mais gravosa prevista no artigo 183.°, n.° 1 e 2 do RD (mínimo 100 UC e máximo 200 UC).
66ª A decisão recorrida não teve em consideração o fator de ponderação de 0,7 previsto no artigo 36.°, n.° 2 do RD, o qual dispõe que ‘No caso de multas aplicadas a dirigentes e a clubes da Liga Portugal 1, bem como a jogadores, treinadores e outros agentes desportivos vinculados a clubes da Liga Portugal 1, o valor da unidade de conta fixado nos termos do número anterior é objeto da aplicação do fator de ponderação de 1; 0,85; 0,7; 0,55 ou 0,4 conforme total das receitas, excluindo os ganhos associados a transferências temporárias ou definitivas de jogadores, inscritas no relatório e contas da época anterior depositado na Liga, seja superior a 25 milhões de euros, entre 15 e 25 milhões de euros, entre 10 e 15 milhões de euros, entre 5 e 10 milhões de euros ou inferior a 5 milhões de euros, respetivamente.’
67ª Se aplicarmos o fator de ponderação: 102,00 * 0,7 o valor a ter em consideração para efeitos de unidade de conta é de 71,40€, pelo que 200 UC * 1,5*71,40€, dá o valor total de 21.420,00€.
68ª Quer isto dizer que a sanção de multa concretamente aplicada à recorrente, no valor de 29.631,006 excede uma vez e meia o limite máximo da sanção, devendo o tribunal proceder ao cúmulo jurídico nos termos do artigo 59.°, n.° 1 do RD.”
A recorrida Federação Portuguesa de Futebol apresentou contra-alegações, terminando as mesmas com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“1. O presente Recurso de Apelação foi interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitrai do Desporto, datado de 22 de outubro de 2021, que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que sancionou a Recorrente nas sanções de realização de 1 (um) jogo à porta fechada e de multa, fixada em € 29.631,00 (vinte e nove mil seiscentos e trinta e um euros), pela prática das infrações disciplinares p. e p. pelo artigo 187.2, n.º 1, alínea a); pelo artigo 187.º, n.º 1, alínea b); pelo artigo 183.º, n.os 1 e 2; pelo artigo 182.º, n.º 2; pelo artigo 181.º, n.º 2, na forma tentada e pelo artigo 127.º, n.os 1 e 2, todos do RD da LPFP;
2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos por ocasião de jogo de futebol, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, os episódios de violência em recintos desportivos têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes espelhado na posição que a Recorrente traz aos autos em nada ajudam para combater este fenómeno;
3. A questão essencial trazida ao crivo deste TCA - responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos - revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito;
4. Assume especial relevância social a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol - seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios dirigentes dos clubes;
5. Entende o Recorrente que a decisão recorrida é ilegal, porquanto: i) Verifica-se omissão de pronuncia quanto a inconstitucionalidades por si arguidas; ii) Não foi produzida prova suficiente para sustentar os factos dados como provados, não se verificando o preenchimento dos elementos do tipo das normas pelas quais a Recorrente foi sancionada; iii) A decisão recorrida incorre em nulidades na apreciação da prova; iv) Verificou-se uma violação do princípio do acusatório; v) A decisão impugnada incorreu em violação das regras do concurso de infrações;
6. Em causa nos presentes autos estão, essencialmente, comportamentos dos adeptos da Recorrente relacionados com tentativa de agressão de agente de arbitragem, a deflagração de 28 engenhos pirotécnicos, arremesso de objetos (cadeiras e garrafas) e agressão a adepto da equipa adversária, e bem assim, a responsabilização do clube por violação de deveres a que estava adstrito de modo a evitar a ocorrência de tais comportamentos;
7. São deveres dos clubes, assegurar que os seus adeptos não têm comportamentos incorretos, o que decorre dos regulamentos federativos, é certo, mas também da Lei e da Constituição;
8. A Recorrente, declina que haja prova suficiente nos autos que permita concluir que os factos sub judice terão sido praticados por adeptos da Recorrida, apesar dos factos vertidos nos relatórios do árbitro, do Delegado da LPFP e dos agentes de policiamento desportivo, perfilhando assim entendimento ao arrepio do entendimento de toda a comunidade desportiva e das instâncias internacionais do Futebol, onde esta questão, de tão clara e evidente que é, nem sequer oferece discussão;
9. Diga-se, antes de mais que, desresponsabilizar os clubes por comportamentos incorretos dos seus adeptos, é fomentar este tipo de comportamentos o que se afigura gravíssimo do ponto de vista da repercussão social que este sentimento de impunidade pode originar;
10. Esta questão tem conhecido posições contraditórias por parte do TAD, sendo que em mais de trinta e sete processos arbitrais a questão foi decidida de forma na linha do que fez o Tribunal a quo no acórdão recorrido, contra apenas seis em sentido contrário;
11. A questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto desde o início de 2017 até à presente data deram entrada no Tribunal Arbitrai do Desporto mais de 70 processos relativos a sanções aplicadas a clubes por comportamento incorreto dos seus adeptos;
12. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo Conselho de Disciplina e pelo Tribunal a quo;
13. A Recorrente não colocou, em momento algum, em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, a suficiência da prova coligida pelo Conselho de Disciplina, alegando que existe dúvida razoável de que terão sido os adeptos da Recorrente a praticar os factos em crise, porquanto os mesmos foram praticados em bancada não exclusivamente reservada a adeptos da Recorrente, no seu entender;
Sem razão, senão vejamos,
14. Antes de mais, não assiste razão à Recorrente na nulidade invocada, por alegadamente a decisão recorrida não se pronunciar sobre as inconstitucionalidades por si invocadas, isto porque, o Tribunal a quo pronunciou-se obre as mesmas e ainda que não o tivesse feito, o entendimento do Tribunal a quo sobre as referidas inconstitucionalidades depreende- se pelo sentido da decisão, não estando o Tribunal a quo obrigado a pronunciar-se sobre todas as questões trazidas aos autos pelas partes, nos termos do que tem entendido a doutrina e jurisprudência sobre esta matéria;
15. Tal como consta dos Relatórios de arbitragem, do Delegado da LPFP e de policiamento desportivo, cujo teor se encontra junto aos autos do processo arbitrai, o Árbitro e o Delegado da LPFP, são absolutamente claros ao afirmar que as condutas sub judice foram, sem deixar qualquer margem para dúvidas, perpetradas pelos adeptos da Recorrente;
16. Com base nesta factualidade, e atendendo à gravidade dos factos perpetrados, o Conselho de Disciplina sancionou a Recorrente, com base, entre outros elementos, nos relatórios elaborados pelo árbitro, pelo delegado da LPFP e pelos agentes de policiamento desportivo. Estes relatórios gozam, consabidamente, da presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 135, al f) do RD da LPFP);
17. Os Árbitros e os Delegados da FPF são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube;
18. Acresce que, os relatórios de policiamento desportivo fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora (cf. art.5 371.5, n.5 i do Código Civil).
19. Assim, quando os Árbitros e os Delegados da LPFP colocam nos seus relatórios que foram adeptos de determinada equipa que levaram a cabo determinados comportamentos, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos delegados no local. Até porque, caso coloquem nos seus relatórios factos que não correspondam à verdade, podem ser alvo de processo disciplinar;
20. Sucede que, não obstante os meios de prova que o CD coligiu, designadamente os relatórios de arbitragem, do Delegado da LPFP e de policiamento desportivo, juntos aos autos serem claríssimos ao afirmar que foram adeptos afetos à Recorrente que praticaram os factos em crise nos autos, entende a Recorrente que não existe prova nos autos suficiente para sustentar tal conclusão.
21. Manifestamente, a Recorrente não tomou em consideração a presunção de veracidade regulamentarmente estabelecida para os relatórios dos árbitros e delegados da LPFP, respetiva mente, e bem assim, para os relatórios de policiamento desportivo;
22. E é, precisamente, esta presunção de veracidade que, inscrevendo-se nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos árbitros e delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado, e bem assim, aos factos percecionados pelo agentes de policiamento desportivo.
23. Isto não significa que os Relatórios dos Árbitros e Delegados da FPF contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo dos Relatórios, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que foram adeptos ou simpatizantes do Recorrente que levaram a cabo os comportamentos sub judice;
24. Tal não significa que quem acusa não tenha o ónus de provar. Trata-se de abalar uma convicção gerada por documentos que beneficiam de uma especial força probatória;
25. E, para abalar essa convicção, cabia ao clube, no lugar de se remeter ao silêncio, apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.5 do Código Civil;
26. Acresce que as normas constantes do RD da LPFP, em especial as constantes dos artigos 13., al. f) e bem assim nos artigos 187.5, n,5 l, ais. a) e b), 183.5, n.5s 1 e 2,182.5, n.5 2, 181.5, n.5 2 e 127.5, n.5s 1 e 2 do RD da LPFP, foram aprovadas pelos clubes participantes em competições profissionais, entre os quais a Recorrente, em sede de autorregulação e na medida em que o direito ao desporto tem uma aceção bastante ampla, que inclui o desporto profissional e o direito a organizar e participar em competições desportivas, a não aplicação de alguma norma do artigo do RD da LPFP, em especial do artigo 135 a| f), violaria, assim, o conteúdo essencial desse direito, neste segmento.
27. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de defesa no Processo Disciplinar ou quanto muito em sede de ação arbitrai. Mas a Recorrente nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede, que pudesse afastar a referida presunção de veracidade dos relatórios dos árbitros e dos Delegados da LPFP;
28. Quanto à questão de saber, se a ora Recorrente, pode ser responsabilizada a título de culpa por esses comportamentos, mais uma vez, nenhuma crítica há a fazer às decisões do Conselho de Disciplina;
29. Não caberia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios de Jogo) que a Recorrente violou deveres de formação a que se encontra adstrito, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, não caberia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível;
30. Ora, os Relatórios do Árbitro e do Delegado da LPFP, e bem assim o relatório de policiamento desportivo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrente no caso concreto.
31. Ademais, há que ter em conta, nos termos acima explanados, que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tais documentos.
32. Isto significa que o conteúdo dos Relatórios juntos aos autos, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrida incumpriu os seus deveres.
33. Em sede sancionatória, o "arguido", não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.
34. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não a Recorrente.
35. Decorre de forma claríssima da Regulamentação aplicável que os clubes e sociedades desportivas podem (e devem) impedir comportamentos como os sub judice através do cumprimento dos deveres in formando e in vigilando dos seus adeptos, em especial, do cumprimento dos deveres estatuídos no artigo 35.9, n.9 1, alíneas b), c), e o), do RCLPFP, e artigo 10.n.9 1, alíneas i), j), e o) do Regulamento de Prevenção da Violência, constante do Anexo VI do citado RCLPFP;
36. Com efeito, a imputação culposa das condutas infratoras dos adeptos da Recorrente, pelas quais esta é diretamente responsável (tal como determina a previsão legal das infrações disciplinares em causa), resulta, pois, do incumprimento culposo de deveres de prevenção e de ação no âmbito da violência associada ao Desporto que lhe estão cometidos e que levaram, em nexo de causalidade adequado e direto, ao resultado aqui verificado: os comportamentos perigosos e incorretos dos seus adeptos e simpatizantes, num espetáculo desportivo.
37. Por seu turno, o a Recorrente não coloca em crise a prática dos factos por adeptos da Recorrente, apenas alega dúvida razoável de que tenham sido os adeptos da Recorrente a praticar os mesmos;
38. Do conteúdo dos Relatórios de Jogo elaborados pelos Árbitros, pelos Delegados da Liga e pelos agentes de policiamento desportivo, é possível extrair, desde logo, diretamente duas conclusões: (i) que a Recorrente incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes da Recorrente, o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos;
39. Isto significa que para concluir que quem teve um comportamento incorreto foram adeptos da Recorrente e não adeptos do clube visitado (e muito menos de um clube alheio a estes dois, o que seria altamente inverosímil), o Conselho de Disciplina tem de fazer fé no relatório dos árbitros, dos delegados e dos agentes de policiamento desportivo, os quais têm presunção de veracidade. Posteriormente, a Recorrente pode fazer prova que contrarie estas evidências, porém, no caso concreto, tal não aconteceu;
40. Tem sido, aliás, esse o entendimento dos tribunais superiores sobre esta matéria, designadamente do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional;
41. Com efeito, de acordo com o relatório do árbitro “Aos 45 minutos da l.9 parte o jogo esteve interrompido durante 1 minuto devido ao arremesso de algumas cadeiras para a zona do AA2 e uma garrafa de água para o interior do terreno de jogo também na zona do AA2 por parte dos adeptos da equipa A.", sendo que, de acordo com o relatório elaborado pelos delegados da LPFP: "Ao minuto 45 da 1.- parte, adeptos afetos ao V… SAD, localizados no sector EF da bancada central nascente, melhor identificados pela cor das suas vestes e cachecóis alusivas à sociedade desportiva visitada, arremessaram na direção do árbitro assistente n.° 2, três cadeiras e uma garrada de água sendo que, por sua vez, do relatório de policiamento desportivo consta a seguinte menção: "21H18 - Bancada Nascente Inferior - Arremesso de duas cadeiras para o relvado e uma garrafa de água na direção do árbitro assistente.".
42. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres-foi retirado de outros factos conhecidos e de outros meios de prova, designadamente das imagens oficiais do jogo juntas a fls 100 e imagens CCTV (21:18-21:19) juntas a fls 144, as fichas técnicas dos clubes, a Declaração Setores Equipa Visitante e Organização do Jogo, Boletim de Segurança do jogo dos autos junto a fls. 146 e ss. do processo administrativo, e bem assim, os autos de inquirição de testemunhas em sede disciplinar e de P... e P..., em sede de audiência arbitrai, não se verificando qualquer nulidade ou inconstitucionalidade também nesta sede;
43. Neste sentido, dúvidas não restam quanto ao preenchimento dos elementos do tipo da uma infração disciplinar p. e p. pelo artigo 181.5, n.5 2 na forma tentada (cfr. artigo 20.5 n.9s 2 e 3, do RDLPFP), porquanto para que tal se verifique é necessário que: (i) um sócio ou simpatizante de um clube; (ii) tenha tentado agredir fisicamente (iii) elemento da equipa de arbitragem, delegado ou observador da Liga, jogador ou dirigente dos clubes participantes no jogo, (iv) o de forma a determinar o árbitro a atrasar o início ou reinicio do jogo ou a interromper a sua realização por período de duração igual ou inferior a 10 minutos, o que se verificou no caso sub judice.
44. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com nenhum princípio constitucional, tal como o princípio da presunção de inocência ou o princípio da culpa, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos, não se verificando a violação de qualquer princípio constitucional, a saber, o princípio da presunção de inocência e do in dúbio pro reo ou do acusatório, ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegidas (art.5 32.5, n5s. 2 e 10, da CRP);
45. Pelo que, resulta claro que o Conselho de Disciplina coligiu e carreou para os autos, prova mais do que suficiente para concluir e decidir pela punição da Recorrente por incumprimento de deveres a que a mesma se encontra adstrito;
46. Nestes azimutes, forçoso se torna concluir que andou bem o Tribunal a quo ao manter a decisão do Conselho de Disciplina em sancionar a Recorrente pelos factos supra referidos que consubstanciam a prática de infrações p. e p. artigos 187.5, n.5 l, ais. a) e b), 183.5, n.5s 1 e 2, 182.5, n.° 2,181.5, n.2 2 e 127.5, n.5s 1 e 2 do RD da LPFP, todos por violação dos deveres ínsitos no artigo 35.5, n.5 1, alíneas b), c), e o), do RCLPFP, e artigo 10.5, n.5 1, alíneas i), j), e o) do Regulamento de Prevenção da Violência, constante do Anexo VI do citado RCLPFP.
47. Não se verifica qualquer violação das regras do concurso de infrações, porquanto, aplicando o critério do artigo 59.9, n.e 1 à sanção de multa, como pretende a Recorrente, a sanção de multa concretamente aplicada - de € 29.631,00 (vinte e nove mil seiscentos e trinta e um euros) a que corresponde 415 UC's - não ultrapassa uma vez e meia o valor aplicável à infração mais gravosa, que seria de € 30.600,00 (200UC x 1,5 x € 102,00);
48. A tese sufragada pela Recorrente é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência;
49. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF;
50. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo manter-se na integra mantendo à Recorrente as sanções de realização de 1 (um) jogo à porta fechada e de multa, fixada em € 29.631,00 (vinte e nove mil seiscentos e trinta e um euros), pela prática das infrações disciplinares p. e p. pelo artigo 187.º, n.º 1, alínea a); pelo artigo 187.º, n.º 1, alínea b); . pelo artigo 183.º, n.os 1 e 2; pelo artigo 182.º, n.º 2; pelo artigo 181.º, n.º 2, na forma tentada e pelo artigo 127.º, n.os 1 e 2, todos do RD da LPFP, não se verificando qualquer violação dos princípios constitucionais da presunção de inocência, do in dúbio pro reo e do acusatório - artigo 32.º, n.º 2 e 10 da CRP”.

Perante as conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir:
- do erro de julgamento da decisão de facto;
- da nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia;
- do erro de julgamento por insuficiência da decisão da matéria de facto provada para preenchimento do ilícito disciplinar;
- do erro de julgamento por violação dos princípios da presunção de inocência, da culpa, do direito a um processo equitativo, do Estado de direito e da imputação culposa em matéria sancionatória
- do erro de julgamento por não aplicação das regras do cúmulo previstas no artigo 59.º, n.º 1 do RD.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. No dia 04.01.2020 realizou-se o jogo oficialmente identificado sob o n.° 11502, a contar para 15.ª jornada da Liga NOS, e que opôs o Demandante ao S… - Futebol, SAD.
2. Antes do início do jogo adeptos afetos ao Demandante queimaram dois cachecóis.
3. Ao minuto 45 da partida, adeptos afetos ao Demandante, situados no topo sul inferior, sector único, entoaram em uníssono o seguinte cântico ‘A LIGA É MERDA, A LIGA É MERDA’.
4. Ao minuto 20 da 2.ª parte, adeptos afetos ao Demandante, situados no topo sul inferior, sector único, entoaram em uníssono o seguinte cântico ‘B... É MERDA, FILHOS DA PUTA’.
5. Antes do início do jogo, adeptos afetos ao Demandante, situados no sector EG da bancada central nascente, deflagraram 5 flashlight, 5 potes de fumo e 1 tocha.
6. Adeptos afetos ao Demandante, situados no sector EG da bancada central nascente, repetiram tal comportamento ao minuto 12 da 1ª parte, deflagrando 3 flashlight.
7. Ao minuto 16 da 1ª parte, adeptos afetos ao Demandante, situados na bancada nascente superior, deflagraram 1 flashlight e 1 pote de fumo.
8. Ao minuto 12 do jogo, adeptos afetos ao Demandante, situados no topo sul inferior, sector único, deflagraram 4 tochas e 1 flashlight.
9. Das tochas suprarreferidas, deflagradas ao minuto 12 do jogo, uma delas foi arremessada para dentro do terreno do jogo, não tendo atingido qualquer interveniente, e determinou que o árbitro da partida interrompesse o jogo ao minuto 12:57 até ao minuto 13:18, momento em que o jogo foi retomado.
10. Ao minuto 54 da partida, adeptos afetos ao Demandante, situados no topo sul inferior, sector único, deflagraram 1 flashlight e 1 pote de fumo.
11. Adeptos afetos ao Demandante, situados no topo sul inferior, sector único, repetiram tal comportamento ao minuto 20 da 2ª parte, deflagrando 1 flashlight e um pote de fumo às 22hl2.
12. Ao minuto 24 do jogo, na sequência da deflagração de vários artefactos pirotécnicos por parte de adeptos afetos à S...... - Futebol, SAD (situados na bancada topo norte superior) e consequente arremesso dos mesmos na direção dos adeptos afetos ao Demandante, estes adeptos, situados no sector EG e EN da bancada central nascente, arremessaram aqueles objetos pirotécnicos e várias cadeiras na direção dos adeptos da B..., SAD, que não atingiram ninguém, caindo em zona desocupada de público e/ou terreno do jogo, o que determinou que o árbitro principal tivesse interrompido o jogo ao minuto 24:55 e recomeçasse o mesmo ao minuto 27:18.
13. Aquando o golo obtido pela equipa da B..., SAD, ao minuto 23 da partida, um adepto afeto ao Demandante, situado na bancada nascente inferior, sector EE empurrou e desferiu um soco na face de um simpatizante da B..., SAD, que se encontrava, acompanhado por um ARD, a dirigir- se para fora daquela bancada, pois tinha festejado o golo obtido e, nessa sequência, gerado algum conflito naquele local.
14. Ao minuto 45 do jogo, adeptos situados no sector EG da bancada central nascente, afetos ao Demandante, arremessaram, na direção do árbitro assistente n.° 2, V…, uma garrafa de água e duas cadeiras, no momento em que este assinalou uma falta a favor da equipa da B..., SAD.
15. Os objetos arremessados não atingiram o árbitro assistente, mas determinaram que o árbitro principal interrompesse o jogo durante 1 minuto.
16. Não obstante os comportamentos atrás referidos serem proibidos pelo ordenamento jus-disciplinar desportivo, os Arguidos não fizeram tudo que estava ao seu alcance para que se não concretizassem.
17. Do registo disciplinar do Demandante resulta um extenso conjunto de ocorrências respeitantes a atos de violência perpetrados pelos seus sócios / simpatizantes, com carácter de regularidade, evidenciando múltiplas condenações disciplinares.
18. Não existe registo de aplicação de medidas sancionatórias do Demandante aos seus sócios / adeptos envolvidos em perturbações da ordem público.
19. A demandante não tomou qualquer atitude nem empreendeu ação de qualquer tipo junto dos seus adeptos, na sequência e em virtude dos vários incidentes de deflagrações de artefactos pirotécnicos por adeptos seus no jogo em causa.
20. O jogo foi quente, e houve lançamento de mais artefactos de pirotecnia que o normal.
21. A demandante agiu, assim, de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento, ao não cumprir com o seu dever de acautelar, precaver, formar, vigilância, zelar e incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados, constituía comportamento previsto e punido pelo ordenamento jus disciplinar desportivo, não se abstendo, porém, de o realizar, violando dessa forma com culpa/negligência da Demandante, por ação ou omissão, na ocorrência dos factos que integram a tipicidade das infrações disciplinares violadas.
22. A Demandante, à data dos factos, tinha sido sancionada, mediante decisões disciplinares já transitadas em julgado, pelo ilícito disciplinar p. e p. no artigo 183.°, n.° 1 do RDLPFP, numa das três épocas anteriores, não tendo, porém, sido punida, na época desportiva em curso pelo ilícito disciplinar p. e p. pelo artigo 183.°, n.° 2, do RDLPFP, nem pela infração disciplinar p. e p. pelo artigo 181.°, do RDLPFP, numa das três épocas anteriores à presente.’
VII. Motivação e fundamentação:
1. A fundamentação da matéria de facto dada como provada, resulta da prova documental bem como testemunhal, presente nos autos e que se dá integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais, sendo que de acordo com o disposto no art.° 607.°, n°5 CPC, aplicável ex vi, do art.° l.° do CPTA, e art.° 61.° da Lei do TAD, o tribunal aprecia livremente as provas produzidas, decidindo segundo a convicção que forme sobre cada facto em discussão, ressalvados os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial e aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
2. Tribunal aprecia livremente as provas produzidas, decidindo de acordo com a sua convicção acerca de cada facto, que assim encontra acolhimento na consagração do Princípio da prova livre, nunca deixando de ter em linha de conta todas as provas produzidas de acordo com o disposto no art.° 413.° do CPC, apreciando-se a prova na sua globalidade, e analisada igualmente à luz da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.
3. De acordo com o art.° 16° n.° 1 do RDLPFP2019 cuja previsão transcrevemos: ‘Na determinação da responsabilidade disciplinar é subsidiariamente aplicável o disposto no Código Penal e, na tramitação do respetivo procedimento, as regras constantes do Código de Procedimento Administrativo e, subsequentemente, do Código de Processo Penal, com as necessárias adaptações’.
4. Compulsados os diversos compêndios legais adjetivos existentes no nosso ordenamento jurídico e, portanto, potencialmente aplicáveis, é, sem dúvida, no processo penal que vamos encontrar um complexo normativo referencial para a questão da valoração da prova no direito disciplinar desportivo.
5. Efetivamente, desde logo, temos que as normas processuais penais são, naturalmente, aquelas que se colocam como mais garantísticas dos direitos de defesa dos arguidos, razão pela qual, nalguns casos e sempre com as necessárias adaptações, o processo penal pode e deve representar a matriz do direito sancionatório público (criminal, contraordenacional e disciplinar).
6. Por outro lado, é entendimento jurisprudencial constante e pacífico que ao processo disciplinar se deve aplicar a regra da livre apreciação da prova, consagrada no artigo 127.° do Código de Processo Penal, o que bem se compreende dadas as proximidades entre o processo disciplinar e o processo penal, designadamente no que toca às garantias do arguido. O artigo 127.° do Código de Processo Penal estatui que a prova é apreciada ‘segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente’ sem prejuízo, como é óbvio, do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.°, n.° 2, da CRP, e do princípio ‘in dubio pro reo’, que igualmente fazem parte da dimensão jurídico-processual do princípio material da culpa.
7. Assim, o julgador, tal como no exercício do poder disciplinar da autoridade competente, tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento, sendo que a livre apreciação da prova não pode nunca ‘ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas valoração racionai e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão’.
8. O mesmo é dizer que, a liberdade concedida trata-se de uma liberdade de acordo com um dever, qual seja o de prosseguir a verdade material, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo. Deste modo, a liberdade do julgador, neste particular, não é mais do que a liberdade para a objetividade, uma verdade que transcende a pura subjetividade.
9. A exigência da objetivação da livre convicção não significa, porém, que o julgador não seja livre no que ao ato de julgar diz respeito, já que a sua convicção é pessoal, muito embora objetivável e, evidentemente, motivável.
10. A matéria de facto julgada provada resultou da conjugação dos diversos elementos de prova carreados para os autos, designadamente:
11. Relatório de Árbitro, Relatório de Delegado e de Policiamento Desportivo, imagens televisivas oficiais do jogo, e imagens CCTV, esclarecimentos prestados pela Divisão de Policiamento e Ordem Pública, depoimento das testemunhas P... e P..., Boletim de Segurança, cadastro disciplinar da Demandante.
12. A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto provada assentou na análise crítica dos documentos constantes dos autos, com especial ênfase para os documentos que integram o processo administrativo. Concretizando:
a) Para a prova do facto l.° contribuíram os documentos constantes do processo disciplinar (relatórios de árbitro, de delegado e de policiamento desportivo; fichas técnicas dos clubes; Declaração Setores Equipa Visitante e Organização do Jogo);
b) Para a prova do facto 2.° relevaram o relatório de policiamento desportivo.
c) Os factos 3.° a 15° foram julgados provados com base nos documentos constantes do processo disciplinar (relatórios de árbitro, de delegado, de policiamento desportivo, fichas técnicas dos clubes, depoimento das testemunhas, Declaração Setores Equipa Visitante e Organização do Jogo, imagens CCTV e imagens televisivas oficiais do jogo) e da convicção do julgador segundo juízos de normalidade e regras da experiência.
d) O facto 16° foi julgado provado com base nos depoimentos das testemunhas, cadastro disciplinar da Demandante, Boletim de Segurança, imagens televisivas oficiais do jogo, imagens CCTV, fichas técnicas dos clubes e Relatório de Policiamento.
e) O facto 17° foi julgado provado com base cadastro disciplinar da Demandante.
f) O Facto 18° foi julgado com base em informações públicas do Demandante e correspondem ainda, em particular, a factos que, na sua objetividade, não foram postos em causa pela Demandante, que não os impugnou no seu recurso nem sobre os mesmos ofereceu qualquer contraprova.
g) O Facto 19° foi julgado provado com base no depoimento da testemunha P....
h) O facto 20° foi julgado provado com base conjugação dos diversos elementos de prova carreados para os autos, designadamente, Relatório de Árbitro, Relatório de Delegado e de Policiamento Desportivo, imagens televisivas oficiais do jogo, e imagens CCTV, esclarecimentos prestados pela Divisão de Policiamento e Ordem Pública, depoimento das testemunhas P... e P..., Boletim de Segurança, cadastro disciplinar da Demandante e da convicção do julgador segundo juízos de normalidade e regras da experiência.
i) O facto 21° foi julgado provado com base cadastro disciplinar da Demandante.

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II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, as questões a decidir neste processo cingem-se a saber se:
- ocorre nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia;
- ocorre erro de julgamento da decisão de facto;
- ocorre erro de julgamento por insuficiência da decisão da matéria de facto provada para preenchimento do ilícito disciplinar;
- ocorre erro de julgamento por violação dos princípios da presunção de inocência, da culpa, do direito a um processo equitativo, do Estado de direito e da imputação culposa em matéria sancionatória
- ocorre erro de julgamento por não aplicação das regras do cúmulo previstas no artigo 59.º, n.º 1 do RD.


a) da nulidade da decisão por omissão de pronúncia

Sustenta o recorrente que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre as questões de inconstitucionalidade por si suscitadas, incorrendo assim na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
De acordo com este preceito, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Aplicável ao caso ex vi artigos 61.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto (LTAD - aprovada pela Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, na redação da Lei n.º 33/2014, de 16 de junho), e 1.º do CPTA.
A invocada omissão de pronúncia verifica-se perante ausência de posição expressa ou de decisão expressa do tribunal sobre as matérias que os sujeitos processuais interessados submeteram à apreciação do tribunal em sede de pedido, causa de pedir e exceções, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, bem como sobre as que sejam de conhecimento oficioso, mas não perante a ausência de resposta concreta aos argumentos convocados pelas partes em defesa dos seus pontos de vista (cf. acórdãos do STA de 06/02/2019, proc. n.º 0249/09.0BEVIS 01161/16, e de 19/05/2016, proc. n.º 01657/12, e do TCAS de 10/01/2019, proc. n.º 113/18.2BCLSB, de 22/11/2018, proc. n.º 942/14.6BELLE, e de 16/12/2015, proc. n.º 04899/09, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Está em causa a falta de pronúncia sobre inconstitucionalidades alegadas no requerimento arbitral.
Vista a decisão recorrida, constata-se que o Tribunal Arbitral se pronunciou expressamente sobre tal matéria, cf. fls. 34/35 do acórdão, ainda que sem esgrimir todos os argumentos convocados pelo recorrente, o que, conforme já se assinalou, não lhe incumbia fazer.
Como tal, não procede a invocada nulidade.


b) do erro de julgamento da decisão de facto

Sustenta nesta sede a recorrente que não se mostra provado:
- o facto constante do ponto 13 do probatório, em função do que foi transmitido pelas testemunhas da recorrente;
- o facto constante do ponto 14 do probatório, dada a contradição direta entre os relatórios da PSP e do delegado e do árbitro.
Dispõe como segue o artigo 640.º do CPC, sob a epígrafe ‘ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto’:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Daqui decorre que, ao impugnar a matéria de facto em sede de recurso, recai sobre o recorrente o ónus de indicar (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e (ii) os concretos meios probatórios que impõem decisão distinta, mais devendo identificar precisa e separadamente os depoimentos caso se trate de meios probatórios gravados.
E cabe-lhe alegar o motivo pelo qual os meios probatórios que indica impõem decisão diversa e também porque motivo os meios probatórios tidos em conta pelo tribunal não permitem se considere provado determinado facto.
Há que ter ainda em consideração que é em função da definição do objeto do processo e das questões a resolver nos autos que deve ser apreciada a relevância da matéria fáctica alegada pelas partes. Assim, nem toda a matéria fáctica que se possa considerar provada deve ser levada, sem mais, ao probatório.
E como é consabido, os factos respeitam à ocorrência de acontecimentos históricos, afastando-se de tal qualificação os juízos de natureza valorativa, que comportam antes conclusões sobre factos.
Outrossim, deve ter-se em consideração que no novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, se optou por reforçar os poderes da 2.ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada, incrementados os respetivos poderes e deveres, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material, conforme consta da exposição dos motivos e se consagra no atual artigo 662.º, n.º 1, “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Isto sem que, nesta reapreciação, especificamente quando se trate de analisar a gravação dos depoimentos prestados em audiência, como ocorre no caso, se olvide a livre apreciação da prova obtida em primeira instância, assente nos princípios da imediação e da oralidade, cf. artigos 396.º do Código Civil e 607.º, n.º 5, do CPC.
Vejamos então se tem fundamento o invocado.
No que concerne à primeira questão, impugnação da decisão relativamente ao facto constante do ponto 13 do probatório, não cumpriu a recorrente o ónus imposto pelo artigo 640.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPC, limitando-se a invocar singelamente o que foi transmitido pelas testemunhas por si arroladas.
Pelo que se impõe a sua rejeição nesta parte.
No que concerne à segunda questão, a prova do facto constante do ponto 14 do probatório assentar numa suposta contradição direta entre os relatórios da PSP e do delegado e do árbitro, é falha de qualquer fundamento.
A circunstância de determinado facto ser assinalado por determinada autoridade e não assinalado por outra não consubstancia qualquer contradição, mas tão-só que tal circunstancialismo foi notado num caso e não outro.
Como tal, ter-se-á de concluir que improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.


c) da condenação pela prática de infração disciplinar

Defende a recorrente que:
- é insuficiente a decisão da matéria de facto provada para preenchimento do ilícito disciplinar, por inexistir menção ao elemento típico demonstração da vontade de uma pessoa tentar agredir outra pessoa
- a recorrente pratica todos os atos ao seu alcance e regulamentarmente previstos, não lhe podendo ser assacada qualquer falta, sendo que inexiste prova sobre quais os atos que deveria ter praticado a fim de acautelar, precaver, prevenir, formar zelar e incentivar o espírito ético e desportivo e cuja omissão determina um nexo de causalidade com a conduta dos adeptos da arguida descrita nos factos provados, redundando em violação do princípio do acusatório;
- não se mostra alegada ou provada matéria atinente ao preenchimento dos elementos subjetivos do ilícito;
- ocorre violação dos princípios da presunção de inocência, do direito a um processo equitativo, do Estado de direito e da culpa, na interpretação dos artigos 127.º, n.º 1, e n.º 2, 172.º, n.º 1, 181.º, n.º 2, 182.º, n.º 2, 183.º, n.º 1 e n.º 2, 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RDLPFP, no sentido da indiciação, com base em relatórios do jogo, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorretas é suficiente para dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, e bem assim no sentido de se dar como assente a violação de deveres quando se prove, com base no artigo 13.º, al. f), do RD, que sócios/simpatizantes adotaram comportamento social ou desportivamente incorreto;
- são inconstitucionais os artigos 127.º, n.º l e n.º 2, 172.º, n.º 1, 181.º, n.º 2, 182.º, n.º 2, 183.º, n.º 1 e n.º 2, 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RDLPFP, por violação do princípio constitucional da imputação culposa em matéria sancionatória prevista nos artigos 1.º, 2.º e 32° da CRP;
- perante conjunto de infrações emergentes de factos que correspondem a um mesmo desígnio de ilicitude impunha-se o recurso às regras do cúmulo previstas no artigo 59.º, n.º 1, do RD.
Vejamos se lhe assiste razão.
No que concerne à suposta insuficiência da decisão da matéria de facto provada, é patente o equívoco do seu raciocínio.
Resulta da matéria de facto dada como assente, amparada em devida motivação, que adeptos da recorrente enviaram objetos na direção do árbitro assistente, decorrendo à evidência das regras da experiência e do senso comum que a tais condutas subjaz uma intenção de agressão da referida autoridade, sendo os objetos em questão aptos, naquele contexto, a produzir uma previsível lesão na respetiva integridade física.
Quanto ao invocado incumprimento por parte da recorrente dos deveres que constam do Regulamento, incumbindo-lhe acautelar, precaver, prevenir, formar zelar e incentivar o espírito ético e desportivo e cuja omissão, inexiste violação do princípio do acusatório, porquanto aqueles deveres são do seu conhecimento e o contínuo desrespeito pelas regras por parte dos seus adeptos são assaz reveladores do seu incumprimento.
Já no que respeita à matéria atinente ao preenchimento dos elementos subjetivos do ilícito, igualmente não assiste razão à recorrente.
Como é consabido, a prova dos elementos subjetivos é sempre realizada por via indireta, devendo ser extraída dos elementos constantes nos autos, com recurso às regras de bom senso e experiência comum.
O que foi feito, não ensaiando a recorrente qualquer argumento que o permita disputar.

No que concerne às invocadas inconstitucionalidades, será de iniciar a análise atentando no disposto no artigo 13.º, al. f), do RD. De acordo com este normativo, vigora o princípio geral da presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percecionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa, inscrevendo-se esta presunção nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, e conferindo um valor probatório reforçado àqueles elementos.
Veja-se, em lugar paralelo, que o artigo 169.º do Código de Processo Penal (CPP), considera provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa.
E o artigo 170.º, n.º 3, do Código da Estrada (CE), ao prever que “[o] auto de notícia levantado e assinado nos termos dos números anteriores faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário.”
Destes preceitos não decorre qualquer presunção de culpabilidade ou inversão do ónus da prova, posto que as normas em causa se limitam a atribuir um valor probatório reforçado relativamente a factos presenciados pelas autoridades, policiais neste caso, desportivas no caso dos autos.
Os relatórios e declarações a que alude o artigo 13.º, al. f), do RD, estabelecem, caso dos mesmos isso expressamente decorra, a base fáctica que pode eventualmente consubstanciar a prática da infração.
Estabelecida esta base fáctica, passa a caber ao eventual agente da infração colocar fundadamente em causa o que dali consta. Competindo ao julgador analisar os elementos que forem carreados para os autos pelo eventual agente da infração, decidindo se colocam em causa a prova já existente, ilidindo a presunção de veracidade daqueles elementos.
E a utilização de presunções judiciais no direito e processo sancionatórios não contraria os seus princípios estruturantes da culpa e da presunção de inocência.
As presunções judiciais, como definidas no artigo 349.º do Código Civil, são as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
E na prova por utilização de presunção judicial, como já analisado pelo Tribunal Constitucional (acórdão n.º 391/2015, de 12/08/2015, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do réu.”
Tal orientação está longe de ser inovadora, antes se ancorando num historial de decisões do Tribunal Constitucional no sentido da compatibilidade com a presunção geral de inocência e com o princípio in dubio pro reo da prova de um facto poder resultar do funcionamento de uma presunção, conforme ali enunciadas, vejam-se:
- o acórdão n.º 38/86, que decidiu não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 169.º, § 1.º, e 557.º do Código de Processo Penal (de 1929) e as do artigo 2.º, n.º 2 e seu § único, do Decreto-Lei n.º 35 007, de 13 de outubro de 1948, que se referiam à “fé em juízo” do auto de notícia em processo sumário;
- o acórdão n.º 448/87, que decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 26.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 85-C/75, de 26 de fevereiro (Lei de Imprensa), que havia como autor do escrito ou imagem o diretor da publicação e o responsabilizava como autor do crime;
- o acórdão n.º 246/96, que decidiu não julgar inconstitucionais as normas do artigo 22.º, n.os 1 e 2, do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Aduaneiras, quanto a presumir não nacionais as mercadorias detidas sem os documentos e selos legalmente exigíveis;
- o acórdão n.º 276/2004, que decidiu interpretar, nos termos do disposto no artigo 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o artigo 152.º, n.º 1, do Código da Estrada (com correspondência nos atuais n.os 2 e 3 do artigo 171.º), que estabelecia a presunção ilidível do proprietário ou possuidor do veículo ser o seu condutor.
Do que fica dito resulta já, de certa forma, a improcedência da invocação da recorrente relativa à inconstitucionalidade por violação dos princípios da presunção de inocência, do direito a um processo equitativo, do Estado de direito e da culpa (imputação culposa em matéria sancionatória, designação que depois lhe atribui), da interpretação dos artigos 127.º, n.º 1, e n.º 2, 172.º, n.º 1, 181.º, n.º 2, 182.º, n.º 2, 183.º, n.º 1 e n.º 2, 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RDLPFP, no sentido da indiciação, com base em relatórios do jogo, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorretas é suficiente para dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, e bem assim no sentido de se dar como assente a violação de deveres quando se prove, com base no artigo 13.º, al. f), do RD, que sócios/simpatizantes adotaram comportamento social ou desportivamente incorreto.
Decorre do disposto nos artigos 222.º, n.º 2, e 250.º, n.º 1, do RDLPFP, a necessidade de fundamentação de facto e de direito dos acórdãos da Secção Disciplinar, com enunciação clara e sintética da sua motivação, e que os mesmos se devem fundar na prova produzida durante a instrução e no decurso da audiência disciplinar. O que foi cumprido.
Não decorre da decisão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, e bem assim do acórdão recorrido, que a comprovação de elemento constitutivo de uma infração disciplinar esteja sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido. Conforme já sublinhado, os relatórios e declarações a que alude o artigo 13.º, al. f), do RD, limitam-se a estabelecer uma base fáctica que pode eventualmente consubstanciar a prática da infração. E caso isso suceda, a partir daí passa a caber ao arguido colocar em causa o que dali resulta.
Por outro lado, como igualmente se aponta no citado acórdão n.º 391/2015, a utilização da prova indireta ou por presunções “assenta num processo lógico de inferência” e numa “valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos e proceder a uma efetiva motivação da decisão”, como tal compatível com o dever de fundamentação.
Os invocados normativos do RDLPFP (2019/2020) dispõem como segue:
“Artigo 127.º
Inobservância de outros deveres
1. Em todos os outros casos não expressamente previstos em que os clubes deixem de cumprir os deveres que lhes são impostos pelos regulamentos e demais legislação desportiva aplicável são punidos com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 10 UC e o máximo de 50 UC.
2. Na determinação da medida da pena prevista no n.º 1 do presente artigo, salvo se cometer a violação do mesmo dever violado na mesma época desportiva, não será considerada a circunstância agravante da reincidência prevista nos artigos 52.º e 53.º, n.º 1 alínea a) do presente regulamento.
Artigo 172.º
Princípio geral
1. Os clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial.
Artigo 181.º
Agressões simples com reflexo no jogo por período igual ou inferior a 10 minutos
(…)
2. Se a agressão tiver por objeto elemento da equipa de arbitragem, delegado ou observador da Liga, jogador ou dirigente dos clubes participantes no jogo, o clube é punido nos termos do n.º 1 do artigo 179.º.
Artigo 182.º
Agressões graves a espectadores e outros intervenientes
1. O clube cujo sócio ou simpatizante, designadamente sob a forma coletiva ou organizada, agrida fisicamente espectador ou elemento da comunicação social ou pessoa presente dentro dos limites do recinto desportivo, antes, durante ou depois da realização do jogo, de forma a causar lesão de especial gravidade, quer pela sua natureza, quer pelo tempo de incapacidade é punido com a sanção de realização de jogos à porta fechada a fixar entre o mínimo de um e o máximo de dois jogos e, acessoriamente, na sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 100 UC.
2. Se a agressão prevista no número anterior não causar lesão de especial gravidade, o clube é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 100 UC.
Artigo 183.º
Arremesso de objetos com reflexo no jogo
1. O clube cujos sócios ou simpatizantes arremessem para dentro do terreno de jogo objetos, líquidos ou quaisquer outros materiais que pela sua própria natureza sejam idóneos a provocar lesão de especial gravidade aos elementos da equipa de arbitragem, agentes de autoridade em serviço, delegados e observadores da Liga, dirigentes, jogadores e treinadores e demais agentes desportivos ou qualquer pessoa autorizada por lei ou regulamento a permanecer no terreno de jogo e que, dessa forma, determinem que o árbitro, justificadamente, atrase o início ou reinício do jogo ou levem à sua interrupção não definitiva é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 50 UC e o máximo de 100 UC.
2. Em caso de reincidência o clube infrator é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 100 UC e o máximo de 200 UC.
Artigo 187.º
Comportamento incorreto do público
1. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos:
a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC;
b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC.”
Que aqui cumpre conjugar com a presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa, prevista no artigo 13.º, al. f), do mesmo diploma.
Cumprindo ter aqui igualmente em consideração o respetivo artigo 17.º, que considera infração disciplinar o facto voluntário, por ação ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável.
Veja-se também que o artigo 35.º do Regulamento das Competições da LPFP (RCLPFP), em matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, considera deveres dos clubes, designadamente:
- assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança, al. a);
- incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados, al. b);
- aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto, al. c);
- zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos, al. l).
Ressalta dos factos dados como assentes que:
- no jogo em questão, adeptos afetos à recorrente queimaram dois cachecóis, entoaram cânticos insultuosos dirigidos à Liga e ao clube oponente, deflagraram flashlights, potes de fumo e tochas, uma delas arremessada para dentro do terreno do jogo, levando à sua interrupção;
- mais arremessaram objetos pirotécnicos e várias cadeiras na direção dos adeptos do clube oponente, levando a nova interrupção do jogo;
- um adepto afeto à recorrente empurrou e desferiu um soco na face de um simpatizante do clube oponente;
- adeptos afetos à recorrente arremessaram, na direção do árbitro assistente n.º 2, uma garrafa de água e duas cadeiras, levando a nova interrupção do jogo;
- a recorrente nada fez, no que estava ao seu alcance, para que aqueles atos não se concretizassem.
A condenação da recorrente não assenta numa presunção de culpa ou em responsabilidade objetiva, mas antes na responsabilização do clube por violação de deveres a que se encontrava vinculado, em função do decidido em sede de matéria de facto, resultante da prova produzida e da utilização de presunções, a que nada obstam os preceitos da Lei Fundamental invocados.
Os adeptos que proferiram insultos, lançaram petardos, tochas ou flash lights, bem como o adepto que perpetrou agressão contra adepto do clube oponente, encontravam-se em locais destinados aos adeptos da recorrente, estavam identificados com cachecóis, bandeiras, camisolas e entoavam cânticos de apoio ao clube; presume-se, pois, que eram seus adeptos de facto, conforme atestado no relatório de jogo.
Competia então à recorrente infirmar tal factualidade, o que manifestamente não fez.
Pelo que, não tendo evitado o cometimento destes factos, omitiu o cumprimento dos deveres legalmente impostos, incorrendo na prática das sobreditas infrações.
Atente-se que, em sede de fiscalização da constitucionalidade de normas do Decreto-Lei n.º 270/89, de 18 de agosto, que estabeleceu medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto, e do anterior Regulamento Disciplinar, aprovado na assembleia geral extraordinária da FPF de 18/08/1984, com alterações introduzidas na assembleia geral extraordinária de 04/08/1990, o TC pronunciou-se quanto a tais questões (acórdão n.º 730/95, de 14/12/1995, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/), não discernindo em normas paralelas às que agora estão em causa uma ideia de responsabilidade objetiva, mas sim de responsabilidade por violação de deveres, desde logo por se exigir para a aplicação da sanção da interdição dos recintos desportivos, que as faltas praticadas pelos espectadores nos recintos desportivos possam ser imputadas aos clubes, servindo o processo disciplinar para “averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube). Com o que não pode dar-se como verificada a tese sustentada pelo requerente da violação do princípio da culpa.”
Acolhe-se aqui a orientação consensual da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, de que são exemplos os acórdãos de 21/02/2019, proc. n.º 33/18.0BCLSB, de 04/04/2019, proc. n.º 030/18.6BCLSB, de 04/04/2019, proc. n.º 040/18.3BCLSB, de 02/05/2019, proc. n.º 073/18.0BCLSB, e de 11/03/2021, proc. n.º 089/19.9BCLSB (todos disponíveis em http://www.dgsi.pt).
Conforme lapidarmente sumariado no primeiro dos citados arestos:
- a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do RD/LPFP, conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 2.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.os 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo;
- a responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência;
- a responsabilidade desportiva disciplinar ali prevista mostra-se ser, in casu, subjetiva, já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.
Seguindo o entendimento aí propugnado, não se vislumbra uma interpretação desconforme aos invocados princípios constitucionais dos artigos 13.º, 127.º, n.º 1, e n.º 2, 172.º, n.º 1, 181.º, n.º 2, 182.º, n.º 2, 183.º n.º 1, e n.º 2, e 187.º, als. a) e b), do RDLPFP.


No que respeita ao cúmulo jurídico previsto no artigo 59.º do RDLPFP (2019/2020), prevê este normativo o seguinte:
“1. Quando, no âmbito do mesmo procedimento, se proceda por diversas infrações disciplinares emergentes dos mesmos factos ou de factos que correspondam a um mesmo desígnio de ilicitude, as sanções da mesma espécie aplicadas a cada uma das infrações em concurso são cumuladas materialmente na decisão final do procedimento, sem todavia poderem exceder uma vez e meia o limite máximo da sanção dessa espécie regulamentarmente aplicável à mais grave das infrações cometidas.
2. O limite previsto na parte final do número anterior tem também aplicação à cumulação material das sanções de multa.
3. Quando no âmbito do mesmo procedimento se proceda por diversas infrações emergentes de factos diferentes que não correspondam a um mesmo desígnio de ilicitude as sanções da mesma espécie aplicadas a cada uma das infrações em concurso são cumuladas sem qualquer limite.”
Conforme decorre da matéria de facto dada como assente, estão em causa comportamentos diversos dos adeptos afetos à recorrente, que vão do queimar cachecóis, ao entoar cânticos insultuosos dirigidos à Liga e ao clube oponente, a deflagrar flashlights, potes de fumo e tochas, ao arremesso de objetos pirotécnicos e várias cadeiras na direção dos adeptos do clube oponente, à agressão por parte de um adepto afeto à recorrente que empurrou e desferiu um soco na face de um simpatizante do clube oponente, ao arremesso, na direção do árbitro assistente n.º 2, de uma garrafa de água e duas cadeiras. Tudo isto em distintos momentos do jogo.
Estamos, pois, perante um conjunto de infrações emergentes de factos diferentes que não correspondem a um mesmo desígnio de ilicitude, dada a diversidade de atuações, em momentos distintos do jogo e sem conexão entre as mesmas.
Como tal, decorre do citado n.º 3 que as sanções são cumuladas sem qualquer limite.
Improcede, pois, também a presente questão suscitada pela recorrente.

Em suma, será de negar provimento ao recurso.

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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão do TAD.
Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 6 de janeiro de 2021

(Pedro Nuno Figueiredo)

(Ana Cristina Lameira)

(Ricardo Ferreira Leite)