Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:389/21.8BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:08/31/2021
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:DIREITO À HABITAÇÃO;
FOGO MUNICIPAL;
DESPEJO;
PROVIDÊNCIA CAUTELAR;
REQUISITOS
Sumário:i) No regime do CPTA (revisto pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro) a decisão a proferir sobre o pedido de suspensão de eficácia exige que o julgador constate se há probabilidade de que a acção principal seja procedente, o que implica a probabilidade da ilegalidade do acto ou da norma.

ii) Não vindo minimamente demonstrada a ilegalidade do acto que determinou o despejo da fracção que a requerente da providência ocupa sem título, a pretensão de que se suspenda a eficácia desse acto soçobra por falta do indispensável fumus boni juris.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

N... (Recorrente), interpôs recurso jurisdicional da sentença de 4.07.2021 do TAF de Sintra que indeferiu a providência cautelar por si intentada contra o Município de Cascais para suspensão de eficácia de acto “que consistiu no despacho do Presidente da Câmara Municipal de Cascais, datado de 03/11/2020, que aprovou a cessação da ocupação ilegal do prédio urbano sito na E... (casa 4) em Cascais e ordenou a notificação dos seus ocupantes para o desocuparem no prazo de 90 dias”.

As alegações de recurso que apresentou culminam com as seguintes conclusões:

a) Recorre-se da douta sentença que indeferiu a presente providência cautelar; se não, vejamos:

b) Em primeiro lugar, discorda-se que seja irrelevante apurar desde que data é que a ora recorrente reside no locado, se tal residência tem carácter permanente ou até mesmo se foram realizadas obras;

c) Tendo sido exactamente a alegada falta de permanência no locado por parte da ora recorrente o fundamento em que a requerida se baseou para ordenar a sua desocupação do locado – cfr. o despacho nº 33/2019, al. e) da requerida;

d) Tendo sido emitido anteriormente parecer jurídico por parte da requerida, de 14-11-2019, que foi homologado através daquele despacho, em que mais uma vez se baseia essencialmente na falta de residência permanente da recorrente;

e) Aliás, os argumentos fáctico-jurídicos constantes da douta oposição da requerida de fls., mormente os arts. 13º a 47º, demonstram a relevância de saber se o arrendatário ocupa ou não o imóvel, com carácter permanente;

f) Por outro lado, a provar-se a realização de obras no imóvel, nomeadamente quanto às de natureza necessária, afigura-se que goza a recorrente do direito de retenção, o que também foi alegado no requerimento inicial;

g) Conferindo a matéria alegada uma probabilidade séria do direito de retenção por parte da recorrente, não obstante o entendimento do Mmo. Juiz “a quo” de que será matéria que pode ser apreciada em acção própria para o efeito, ainda que admita expressamente que essas obras possam ter sido realizadas (cfr. parte final da pág. 15 da douta sentença);

h) Descorando que na acção principal de que a presente providência é dependente, a recorrente pede expressamente que seja reconhecido esse direito;

i) Na decisão da requerida, posta em crise com a providência cautelar, não está em causa se a capacidade económica da ora recorrente lhe permite residir ou não no locado;

j) A requerida, como decorre do processo instrutor junto aos autos, nunca confrontou a recorrente com base na sua suficiência económica para não ter direito à ocupação do imóvel, a não ser com a dedução da douta oposição;

k) Afigura-se que esse comportamento constitui, assim, abuso de direito, na vertente de venire contra factum proprium;

l) De resto, esse nunca foi o critério utilizado pela requerida quando iniciou o processo de realojamento dos moradores da “Casa dos Pobres de Cascais” (cfr. o processo administrativo junto aos autos pela requerida, cuja certidão instrui o presente recurso);

m) Através do qual a maior parte dos moradores da “Casa dos Pobres de Cascais” foi realojada, independentemente dos seus rendimentos actuais;

n) Não estando em causa se a capacidade económica da ora recorrente lhe permite residir ou não no locado (cfr. “visita de controle” e “ficha de registo de atendimento do processo instrutor”);

o) Em todo o caso, a requerente colaborou com o tribunal “a quo”, logo que lhe foi solicitado para indicar quais os proventos da sua reforma e seu marido, recebidas em Inglaterra;

p) Afigurando-se ser de extrema relevância poder provar, com recurso às testemunhas arroladas pela ora recorrente, desde quando é que a ora recorrente residia no locado e que obras realizou e respectivos custos;

q) As quais, eventualmente, confirmariam que após o locado ter sido atribuído à mãe da ora recorrente em 1945, esta sempre lá viveu até ter ido para o Reinou Unido, em 1986;

r) Passando, ainda assim, longas temporadas em Portugal, para acompanhar a sua mãe, na velhice e na doença, até à sua morte, em 2005;

s) Continuando a ocupar o locado quando vinha, com frequência, a Portugal;

t) Para onde, no ano de 2007, decidiu regressar em definitivo;

u) Dando início a inúmeras obras de reparação do imóvel, de modo a ficar o mesmo com condições de habitabilidade e dignas a passar a ora recorrente (que já tem 73 anos de idade) e o seu marido (actualmente com 79 anos) a velhice;

v) Não estando a ora recorrente e o seu marido em condições, nem pessoais, nem financeiras, de estar, nesta fase da sua vida, à procura de uma nova habitação que possam suportar economicamente;

w) Especialmente depois de terem investido quantias avultadas em todas as obras que realizaram no imóvel, com o conhecimento e consentimento da senhoria;

x) As quais se afigura serem igualmente relevantes para os presentes autos, contrariamente ao vertido na douta sentença recorrida, nomeadamente quanto ao direito de retenção por si invocado;

y) Devendo a ora recorrente ter tido oportunidade de fazer prova da sua realização, bem como das quantias despendidas com as mencionadas obras;

z) O que não sucedeu;

aa) A douta sentença apenas teve em consideração a inexistência de contrato (escrito) que legitime a permanência da ora recorrente no locado, desconsiderando tudo o que se passou desde 1945;

bb) Ora, conforme se alegou, ao longo de todos estes anos a situação em causa foi tratada como se de um verdadeiro contrato de arrendamento se tratasse;

cc) Sempre foi paga uma renda mensal e emitidos recibos de renda, os quais referiam expressamente ser referentes à renda da casa nº 4;

dd) Anualmente, a renda mensal era actualizada pelo Instituto da Segurança Social, através de carta escrita;

ee) E, por carta recebida pela ora recorrente a 13/03/2019, o Instituto da Segurança Social dava-lhe conhecimento que o pagamento da renda mensal deveria ser feito à Câmara Municipal de Cascais, menciona a alteração da titularidade do contrato de arrendamento e refere a comunicação da alteração a todos os inquilinos;

ff) Ou seja, a ora recorrente sempre foi aceite como inquilina, afigurando-se resultar do supra exposto a existência de um contrato de arrendamento;

gg) Surpreendentemente, ao fim de tantos anos, entende a requerida que, afinal, não se trata de um contrato de arrendamento e que a ora recorrente não tem qualquer título que a legitime a continuar a ocupar o locado;

hh) Embora, não obstante, tenha proposto uma indemnização à ora recorrente pela desocupação, equivalente a cinco anos de renda, conforme também se alegou;

ii) Crendo-se que a ora recorrente não pode ser tão gravemente penalizada pela eventual “inércia, incúria ou desleixo do Instituto da Segurança Social, I.P.”, contrariamente ao referido a fls. 22 da douta sentença recorrida;

jj) Afigura-se que não pode o tribunal “a quo”, considerar sem mais e sem qualquer vestígio de prova, como faz, que houve desleixo por parte do anterior senhorio ao permitir que a recorrente habitasse no local;

kk) Se a ora recorrente reside no local há tantos anos foi porque tal lhe foi permitido pela senhoria, que sempre a fez crer que não havia qualquer problema com a sua situação;

ll) Afigura-se natural e razoável que a ora recorrente tivesse uma absoluta expectativa da existência de um contrato de arrendamento e, consequentemente, a convicção de que a situação estava regularizada e legal;

mm) Estando, assim, esse direito a ser exercido contra a boa fé (cfr. artigo 10º do CPA);

nn) Discorda-se, igualmente, de que não estão preenchidos os requisitos para a adopção da providência em causa;

oo) Quanto ao primeiro requisito – periculum in mora – discorda-se de que nada de concreto tenha sido alegado quanto à existência de um facto consumado ou prejuízo de difícil reparação;

pp) A douta sentença recorrida refere também que a ora recorrente não esclareceu a sua situação patrimonial ou financeira e que se baseia numa “…aparência de “parcos rendimentos”, a qual é manifestamente insuficiente para que tribunal cumpra um juízo de preenchimento do pressuposto do periculum, porquanto a alegação e respectiva prova que é efectuada a propósito do referido pressuposto, é muito parca e impossibilita o tribunal de o considerar preenchido…”;

qq) Mesmo que o referido entendimento fosse verdadeiro afigura-se que seria sempre aconselhável que o Mmo. Juiz “a quo” convidasse a recorrente, ao abrigo dos princípios da cooperação e da justa composição da lide, definido nos nº 3 e 4 do art. 590º do CPC, a suprir essas alegadas insuficiências alegatórias;

rr) E, se após o convite ao aperfeiçoamento e se a recorrente não correspondesse satisfatoriamente ao mesmo, deveria então o juiz proferir decisão sobre o mérito da causa, julgando improcedente a providência;

ss) Pelo que se crê que o tribunal recorrido deveria ter convidado a recorrente a aperfeiçoar o seu requerimento inicial de forma a suprir essas insuficiências, em vez de, sem sequer esperar pelo decurso do prazo que estava em vigor para a recorrente se pronunciar sobre um requerimento da requerida, com a junção do IRS daquela e de seu marido, proferir, de imediato, a sentença recorrida, omitindo aquele dever processual, como fez;

tt) Atente-se que tendo a recorrente alicerçado essencialmente o seu requerimento inicial com base na sua residência permanente no local arrendado, face aos fundamentos da decisão da CMC de não aceitar o seu realojamento que se baseiam precisamente nesse facto, mais se impunha esse dever de aperfeiçoamento por parte do Mmo. Juiz “a quo”, se entendia, como entendeu, relevar o critério da situação económica para proferir a decisão;

uu) Como, aliás, é entendimento da doutrina e jurisprudência que considera que a falta de tal convite consubstancia uma irregularidade processual, que teve influência na decisão da causa e que à cautela se argui, para os devidos e legais efeitos;

vv) A ora recorrente alegou, designadamente, que a prosseguir a ordem de desocupação do locado ela e o seu marido ficariam sem uma casa onde residir, especialmente numa altura de pandemia e em que continuam a ser decretadas medidas de permanência na habitação e em que a cessação dos contratos de arrendamento esteve suspensa até ao passado dia 30/06/2021;

ww) Alegou também que as poupanças que ela e o seu marido reuniram ao longo das suas vidas, fruto do seu trabalho, foram gastas nas inúmeras obras que realizaram no locado;

xx) E que as suas pensões de reforma não lhes permitem obter com facilidade outro local com condições para habitarem o resto dos seus dias;

yy) Mesmo somando as pensões semanais que auferem do Reino Unido, com a pensão que auferem do estado português, os rendimentos do casal perfazem pouco mais que dois salários mínimos nacionais;

zz) Sendo difícil com essa quantia arrendar uma habitação condigna e suportar as despesas inerentes à mesma, para além das despesas com alimentação, saúde, alimentação e despesas do dia-a-dia de duas pessoas com uma idade já avançada;

aaa) Pelo que se afigura que o requerimento inicial continha suficiente fundamento para que a instrução do procedimento requerido tivesse prosseguido, com ou sem despacho de aperfeiçoamento, para a audição das testemunhas indicadas pelas partes;

bbb) Crendo-se que existe um perigo real de inutilidade da decisão a proferir no processo principal pois se a mesma for favorável à ora recorrente mas for proferida já após a desocupação do locado e, até mesmo, da sua demolição, já de nenhuma utilidade será a mencionada sentença;

ccc) Não tendo a ora recorrente familiares a quem recorrer para a abrigarem se for forçada a sair do locado ou que a possam ajudar a encontrar uma habitação alternativa;

ddd) Nem tendo sido englobada pela requerida no programa de realojamento dos moradores da “Casa dos Pobres de Cascais;

eee) Sendo difícil a reparação deste tipo de situação;

fff) Assim, afigura-se que se verifica, a provarem-se esses factos, o requisito do periculum in mora;

ggg) Quanto ao segundo requisito – fumus boni iuris – reitera-se que a situação sempre foi vista pela anterior senhoria da ora recorrente como um arrendamento, como sempre foi mencionado nas comunicações escritas já mencionadas;

hhh) Nada na vigência de cerca de 70 anos desta situação fez crer o contrário;

iii) Nem podia fazê-lo, a não ser por má fé;

jjj) À mãe da ora recorrente foi atribuído o imóvel em causa em 1945 para nele residir com os seus filhos e, após o seu óbito em 2005 foi mantida a situação;

kkk) Passando a estar o imóvel ocupado pela ora recorrente e seu marido, para onde regressaram após a recorrente ter vivido lá grande parte da sua vida;

lll) Sem que tivesse sido interpelada pelo Instituto da Segurança Social, I.P. para que o desocupasse ou que fosse efectuada alguma alteração na situação de uso do mesmo;

mmm) Ou seja, a ora recorrente continuou a ser aceite como inquilina, que sempre pagou a renda mensal;

nnn) Não tendo sido possível à ora recorrente provar que ocupava em permanência o imóvel visto que foi proferida sentença que considerou que tal não era relevante, apesar de se afigurar ser essa a principal questão a discutir nos presentes autos;

ooo) Refira-se, ainda, que se a situação do imóvel em causa não foi reavaliada após o óbito da mãe da ora recorrente, conforme dispõe o art. 7º do Decreto nº 35.106, tal não pode ser imputado à ora recorrente, nem deve ser penalizada por esse facto;

ppp) Cabia ao Instituto da Segurança Social I.P ter verificado a situação da ocupação;

qqq) Não se podendo sequer dizer que a desconhecia pois autorizou a realização de obras no local e foi ao mesmo verificá-las;

rrr) Pelo que aquele Instituto não só nada fez para evitar a presente situação, como a aceitou;

sss) Assim, afigura-se que também o segundo requisito para o decretamento das providências cautelares, a provarem-se os factos alegados e com relevância para o seu apuramento, poderá encontrar-se preenchido;

ttt) Quanto ao terceiro requisito – ponderação de interesses – não obstante não ter sido alvo de apreciação do Tribunal a quo cumpre referir, conforme alegado em sede de requerimento inicial e incidente de declaração de ineficácia do acto de execução indevida, que não se vislumbra que a ocupação do locado pela ora recorrente acarrete quaisquer danos para o interesse público,

uuu) Pelo contrário a ocupação do locado importou melhorias substanciais para o mesmo, estando agora com boas condições de habitabilidade, contrariamente ao estado de degradação em que se encontrava quando se iniciaram as mencionadas obras;

vvv) Os danos para o interesse particular, neste caso da ora recorrente e do seu marido, serão muito superiores, podendo ficar os mesmos sem um lugar onde viver;

www) Para além dos custos elevados que suportaram com as obras de reparação;

xxx) Ora, assim sendo, afigura-se que a manutenção da decisão da requerida causará prejuízos demasiado elevados para a recorrente e seu marido;

yyy) Afigura-se que da justa ponderação de ambos os interesses em jogo resulta que quem sai claramente mais prejudicada é a ora recorrente com todas as consequências que daí podem advir por se ver forçada a deixar o imóvel no qual residiu quase toda a sua vida, sem ter outro sítio para onde ir;

zzz) Nem capacidade financeira para arrendar outro local para habitar com o seu marido, a preço acessível;

aaaa) Pelo que também este requisito, a provar-se a matéria alegada, se afigura estar preenchido;

bbbb) Ao entender diversamente, a douta sentença recorrida viola, designadamente, por erro de interpretação, o disposto no art. 120º do CPTA e 65º da CRP;

cccc) Pelo exposto, deve a presente apelação ser julgada procedente, substituindo-se a douta decisão recorrida por outra que ordene o prosseguimento dos termos da presente providência cautelar, nomeadamente convidando a recorrente a aperfeiçoar o seu requerimento inicial, alegando factos necessários à concretização dos requisitos da providência, designadamente do periculum in mora, ou se assim se não entender, e de todo o modo, e pelas razões já expostas, por o requerimento inicial conter suficiente fundamento para que a instrução do procedimento requerido tivesse prosseguido, com ou sem despacho de aperfeiçoamento, designar dia e hora para a audição das testemunhas indicadas pelas partes, assim se fazendo a costumada

O Recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido, onde concluiu:

A. Em recurso de sentença proferida em sede cautelar, não tem aplicação o artigo 143.º, n.º 1 do CPTA, que estabelece a regra de que os recursos têm efeito suspensivo, mas antes o artigo 143.º, n.º 2 do CPTA, que estabelece norma especial aplicável às providências cautelares impondo efeito meramente devolutivo.

B. Consequentemente, os n.ºs 3 e 4 do artigo 143.º não são aplicáveis in casu, já que pressupõem o regime-regra do n.º 1, e não o do n.º 2 do mesmo artigo, além de que, as medidas mitigatórias previstas no n.º 4 não incluem a inversão do regime dos efeitos do recurso, mas apenas a adoção de medidas cautelares inominadas, bem como a prestação de garantia, pelo que a inversão de efeitos pretendida pela Recorrente carece de sustentação legal.

C. A decisão de desocupação da casa ilegalmente ocupada pela Recorrente foi dirigida a todos os moradores da referida “Casa dos Pobres”, independentemente da efetividade e antiguidade da sua ocupação dos respetivos imóveis, pelo que, ao contrário do que refere a Recorrente, a mesma seria sempre irrelevante.

D. Tal critério foi apenas utilizado para decidir quais os moradores a realojar, tendo o Recorrido decidido que, quem vivesse permanentemente no local, seria realojado; quem não o fizesse e utilizasse as casas de forma intermitente ou como segunda residência, como era o caso da Recorrente, não seria realojado.

E. O Tribunal a quo analisou a alegação de obras pela Recorrente no imóvel, tendo concluído que não fora produzida prova nos autos, sequer de forma indiciária, que demonstrasse que tais obras tivessem sido efetivamente realizadas.

F. Sobre o periculum in mora, a Recorrente não fez prova nos autos dos motivos pelos quais – tendo diversos familiares, além de amigos, que costuma receber na sua casa e que visita frequentemente outros familiares– filhos e netos – no Reino Unido – nenhuma destes a poderia sequer ajudar a Recorrente a encontrar uma habitação alternativa, já que dispõem de rendimento suficiente para o efeito.

G. Pelas mesmas razões, da prova carreada para os autos pela Recorrente não resulta a existência de quaisquer prejuízos de difícil reparação, pelo que também este requisito de decretamento da providência se não verifica.

H. Por fim, no que toca ao fumus bonus iuris alegado pela Recorrente com base na existência de um contrato de arrendamento entre a Segurança Social, primeiro, e o Recorrido, depois, a verdade é que a prova produzida nos autos é clara no sentido que o imóvel foi cedido à mãe da Recorrente com base numa cedência precária motiva por insuficiência económica, não existindo nem nunca tendo existido qualquer arrendamento entre os mesmos.

I. Consequentemente, a Recorrente está sujeita à aplicação do regime legal das cedências precárias, previstas no Decreto n.º 35.106, de 6.11.1945, que, além de não serem transmissíveis hereditariamente sem decisão expressa nesse sentido, consagram o direito de o cedente rever se a situação de carência económica e demais pressupostos se mantêm e, caso tal não aconteça, revogar a cedência, o que aconteceu precisamente no caso sub judice através do Ato Suspendendo.

J. Não se verificando in casu nenhum dos requisitos de decretamento da providência cautelar, a sentença recorrida não merece censura.



Neste Tribunal Central Administrativo, o Ministério Público, notificado nos termos do artigo 146.º, n.º 1, e 147.º do CPTA, não emitiu pronúncia.

Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à conferência (em turno) desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.


I. 2. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao ter indeferido a providência cautelar requerida, devendo antes ter concluído pela inexistência de fumus boni juris e de periculum in mora ou então deveria ter convidado a requerente da providência a aperfeiçoar o requerimento inicial.


II. Fundamentação

II.1. De facto

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

a) No ano de 1945 foi concedido à mãe da requerente o uso da habitação sita no prédio da E... – denominado “Casa dos Pobres de Cascais” (casa 4), em Cascais) ao abrigo do antigo regime do Arrendamento Apoiado para Habitação (DL nº 35106 de 6/11/1945) (provado por acordo);

b) Em 1975, este equipamento passou a ser denominado por “Casa de Repouso de Cascais”, revertendo todos os seus bens e valores para o Instituto da Família e Acção Social, que por via das várias integrações chegou à posse do Instituto da Segurança Social (doc. 3, junto aos autos com o RI, denominado Termo de Entrega e Recepção de Imóvel e provado por acordo).

c) A requerente nasceu e cresceu no imóvel a que se reportam as alíneas anteriores do probatório e em 1986 foi para o reino unido (doc. de fls. 421 e 513 da numeração SITAF e presunção judicial);

d) Aos 23-03-2018, o imóvel em causa foi entregue ao Município de Cascais (cfr. doc.3 junto aos autos com o RU e provado por acordo);

e) No ano de 2007 e no ano de 2014, foram solicitados pela requerente e seu marido orçamentos para remodelação da casa, designadamente, ao nível dos pavimentos (interior e exterior), paredes, canalização, electricidade, esgotos, caixilharia de alumínio das janelas e portas, pintura, num valor global orçamentado a 29,093,11 (cfr. docs. 4 a 6, junto aos autos com o RI)

f) A requente era titular de contrato de fornecimento de água, com as águas de Cascais, desde 2007 (cfr. doc. 10 a 22 junto aos autos com o RI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);

g) A requerente e o seu marido, recebem correspondência no imóvel a que se reportam os presentes autos (docs. 10 a 22, junto aos autos com o RI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

h) A requerente e o seu marido auferem, respetivamente, pensões mensais pela Segurança Social Portuguesa, de 192,65 euros e 278,35 euros, e pelos Serviços de Pensões Inglês, de 500,76 euros e de 461,06 euros (cfr. doc. 23, 24 e doc. juntos aos autos a fls. 513 a 516 da numeração SITAF, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);

i) A requerente tem 73 anos de idade e o seu marido 78 anos de idade (cfr. doc. de fls. 420 e 421 da numeração SITAF);

j) A requerente procedia ao pagamento de 72 ou 73 cêntimos directamente ao Instituto da Segurança Social, após missiva desta entidade com o valor da “renda actualizada” (cfr. doc. 46 a 50, junto aos autos com o RI)

k) A partir de Março de 2019, a requerente passou a efectuar o pagamento da “renda”, no valor de 73 cêntimos, através da consignação em depósito na C... à ordem da Câmara Municipal de Cascais (cfr. docs. 25 a 45)

l) A requerente já procedeu ao pagamento de todo o ano de 2021 (doc.45 )

m) A 10/08/2018, a requerente e o seu marido compareceram perante os serviços da empresa municipal Cascais Envolvente – Gestão Social da Habitação, EM SA, que se encontrava a preparar o processo de realojamento, a Requerente e seu marido, ocorrida em 10 de agosto de 2018, ficou registada a seguinte informação:

“Os senhores residem em Inglaterra, há muitos anos, estavam a pensar regressar, foram a atendimento acompanhados por uma advogada, a quem foi explicado que não haveria direito ao realojamento, porque efetivamente não residem: a advogada irá fazer um requerimento a expor a situação para serem realojados.” (cfr. processo administrativo, a págs. 3, linha referente a “N...”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

n) Por ofício, recebido pela requerente a 13/03/2019, o Instituto da Segurança Social informou que “na sequência da v/carta com registo de correio de 07/03/2019, cumpre informar que com o encerramento do estabelecimento denominado por “Casa de Repouso de Cascais”, e consequente entrega das instalações à Câmara Municipal de Cascais, o pagamento da renda da habitação em assunto, deve ser realizado ao Município de Cascais. Esta alteração da titularidade do contrato de arrendamento, já tinha sido informada presencialmente em reunião anterior aquando da visita ao imóvel. Tem este serviço conhecimento que, em devido tempo, a Autarquia comunicou esta alteração a todos os inquilinos” (doc. 50, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);

o) A 03/11/2020, pelo Presidente da Câmara Municipal de Cascais, foi proferido o Despacho n.º63/2020, com o seguinte teor:


«Imagem no original»

Inexistem outros factos alegados, provados ou não provados, que tenham interessam para a decisão da presente acção cautelar, sendo totalmente irrelevante a data desde que ali reside a requerente, ou se tal residência tem ou não carácter permanente ou até mesmo se realizaram obras ou a extensão das mesmas, considerando que, de acordo com o alegado pela requerente, estamos perante uma posse não titulada, fundada em anterior comodato, autorizado pelo Instituto da Segurança Social, face à inexistência de qualquer contrato, autorização ou outro instrumento, face à exiguidade dos valores em causa na “renda” associada.

Por outro lado, irreleva a feitura das obras para a presente acção cautelar, sendo que tal questão estravasa o objecto dos presentes autos, pois que não se destina a qualquer ressarcimento ou contéudo indemnizatório, por tais obras. Por outro lado, os orçamentos apresentados não provam o pagamento das obras que a requerente ali tenha levado a cabo, o que não é inverosímil que o tenha feito, por via de presunção judicial e regras da experiência comum, face à idade do imóvel, mas que surge apenas como facto complementar.

Os factos provados assentam na análise crítica e perfunctória dos documentos juntos aos autos, bem como por consulta ao SITAF, pela melhor legibilidade dos referidos instrumentos documentais ali constantes, conforme se indica em cada alínea do probatório, bem como os que resultam de presunção judicial.



II.2. De direito

A questão essencial trazida a juízo consiste em apurar se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de direito ao ter indeferido a providência cautelar requerida e não intimando o Município ora Recorrido a abster-se de executar o despejo da fracção identificada nos autos.

Para assim decidir, após ter efectuado o devido enquadramento normativo no que se refere à tutela cautelar, afirmou o Mmo. Juiz a quo o seguinte:

A primeira questão que se coloca, desde logo, é a de saber se face aos elementos trazidos a juízo, atenta a natureza do meio processual urgente empregue, se impõe ou não deferir a pretensão do requerente, por existir fundado receio de constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação, ou seja, se existe perigo na demora na decisão de um processo principal.

Quanto a este requisito, cumpre referir que a requerente nada de concreto alegou, quanto à existência de um facto consumado ou prejuízo de difícil reparação, firmando-se apenas na alegação (cfr. artigo 28.º), de que, juntamente com o seu marido, “auferem apenas as respectivas pensões de reforma”, no valor mensal de 192,65 euros e de 278,35 euros, sem cuidarem de alegar e provar se efectivamente não tinham mais rendimentos o que, aliás, se veio a vislumbrar não corresponder à realidade dos factos, o que se afere pelas quantias que auferem por via do Serviços de Pensões da Inglaterra, informação esta prestada apenas, após notificação do Tribunal para o efeito.

Em boa verdade, verifica-se que a requerente, e o seu marido, beneficiam de pensões estatais no valor mensal de 1.432 euros, sendo certo que não lograram sequer demonstrar que não tenham mais rendimentos para além destes, prova documental esta que podia e lhe competia fazer, mas não fez.

Entenda o requerente que o que interessa ao parâmetro decisório do primeiro pressuposto previsto no nº 1,do artigo 120º, do CPTA, respeitante ao periculum in mora, é aferir da existência de um perigo real de inutilidade da decisão a proferir no processo principal, ainda que meramente parcial, pela constituição de uma situação de facto consumado ou pelo receio de se produzirem prejuízos de difícil reparação.

E no caso concreto, resulta evidente, pela própria natureza das coisas, que a requerente, omitindo outros rendimentos e não esclarecendo nos presentes autos, qual a sua situação patrimonial ou financeira, fundando-se apenas numa aparência de “parcos rendimentos”, o que é manifestamente insuficiente para que tribunal cumpra um juízo de preenchimento do pressuposto do periculum, porquanto a alegação e respectiva prova que é efectuada a propósito do referido pressuposto, é muito parca e impossibilita o tribunal de o considerar preenchido.

Isto é, não demonstrando a requerente, em concreto, de que forma a desocupação daquele fogo, de facto, a afecta, nem demonstrando, através dos meios de prova disponíveis no direito processual civil, que não tem outros meios económicos, familiares ou outros de natureza social, que o impossibilitem habitar noutro sítio, nem sendo tal afectação uma evidência que resulte da natureza das coisas, nem presumível judicialmente pela parca sustentação factual que rodeia tal alegação, não se extrai no caso vertente qualquer perigo que advenha da demora ou inutilidade da sentença a proferir na acção principal sobre os pressupostos do direito do requerente a manter a residência daquele fogo que ocupa, sem qualquer título jurídico, fundado apenas numa prática reiterada de posse e pagamento de exígua quantia ao Instituto da Segurança Social, que se aproxima de um comodato, mas que, desde o conhecimento , e que caracteriza uma efectiva ocupação abusiva, conforme é denominado pela entidade demandada.

Aliás, conforme confessa, viveu desde 1986 em Inglaterra, ali passando temporadas junto dos seus filhos e netos, nunca invocando a requerente a razão pela qual não tem alternativa habitacional, tratando-se de uma alegação sem qualquer suporte factual que a sustente.

Não obstante o Tribunal compreender a dificuldade, incómodo e desconforto naturalmente inerente à desocupação de um imóvel no qual viveu, juntamente com a sua mãe, desde de tenra idade, beneficiando de tal posse durante toda a sua vida, tal não significa que, sem mais alegação e prova dessa alegação, possam equivaler tais circunstâncias a uma situação de prejuízo de difícil reparação, nos termos em que é exigido no artigo 120.º, n.º1. do CPTA.

Só estaríamos perante prejuízos de difícil reparação para os interesses que a requerente visa assegurar no processo principal se os factos concretos por esta alegados inspirassem fundado receio de que, se a providência fosse recusada, a reintegração no plano dos factos se tornaria difícil, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente, o que, apesar de vir genérica e vagamente alegado, não tem qualquer concretização factual de apoio ou de compreensão.

Aliás, em boa verdade, o que resulta, numa análise perfunctória, face às alegações que expende no seu requerimento inicial e da factualidade supra descrita é que a aqui autora, não viveu no imóvel desde 1986, de forma permanente e reiterada, apenas usando o locado para deslocações a Portugal, fosse em férias ou noutras ocasiões, mas tendo o seu centro de atenções familiares em Inglaterra, sendo irrelevante que ali recebesse a sua correspondência ou recebesse familiares e amigos, ou as obras que ali tenha realizado, questão esta irrelevante para o efeito que pretende com a presente acção cautelar.

Não obstante o esforço probatório, quanto aos contratos de serviço abastecimento de água, em seu nome, certo é que, por si só, tais contratos não provam que ali tenha residido de forma permanente e necessitada, face a parcas condições económicas ou sociais.

Bem compreenderá a requerente que, não existindo qualquer contrato ou autorização, por parte da Câmara Municipal de Sintra [Cascais], verdadeira proprietária do imóvel e sendo a sua posse fundada em simples cedência, mera inércia ou ausência de fiscalização dos pressupostos de atribuição de habitações sociais por parte da Segurança Social, numa análise perfunctória vislumbra-se que a posse do imóvel por parte da requerente se consubstancia numa ocupação abusiva, de um fogo habitacional, que não lhe pertence, não obstante a ligação emocional que possa ter ao mesmo, considerando que ali viveu desde tenra idade até à idade adulta.

Nestes termos, e sem necessidade de mais considerações, se conclui não estar verificado o pressuposto do periculum in mora, o que tem como consequência a improcedência da requerida providência.

Assim, sendo de carácter e conhecimento cumulativo os pressupostos de que depende a adopção de medidas cautelares ao abrigo do regime jurídico ínsito no artigo 120º do CPTA/2015, a falta do preenchimento do periculum in mora prejudica o conhecimento dos demais requisitos, determinando per si, o indeferimento da providência cautelar requerida.

Não obstante, a latere, cumpre referir quanto ao fumus boni iuris, que o tribunal havia de conhecer, em hipotética verificação do pressuposto do periculum in mora - não resultar claro qualquer evidência de bom direito.

É que não compreende nem vislumbra o Tribunal, numa análise sumária em face da matéria alegada, em que medida seria provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal viesse a ser julgada procedente, em sede de acção principal, face a uma ocupação de um fogo municipal, através de uma posse não titulada, ou seja, desprovida de qualquer título jurídico, o que, como já supra referimos, teve apenas por base uma autorização precária à mãe da requerente, no ano de 1945.

Por outro lado, há que ter em consideração que face à situação patrimonial em que se encontra a requerente, mormente os rendimentos aufere, juntamente com o seu marido, na ordem dos 1400 euros mensais, a título de pensões, afasta a requerente de um quadro de carência financeira.

Entenda-se que o próprio direito de ocupação concedido à mãe da requerente, relativamente ao prédio em causa, enquadra-se no âmbito duma cedência precária titulada por alvará, tal como o previa o Decreto n.º 35.106, de 06/11/1945, entretanto revogado pela Lei n.º 21/2009 (cfr. art.º 1.º).

Conforme expressamente resultava do art.º 1.º do Decreto n.º 35.106 a concessão de habitação social concedida nos termos desse diploma era a título precário, tratando-se, pois, de um regime legal fortemente marcado pela precariedade do direito à ocupação por parte dos destinatários de tais habitações.

A este respeito, diz-se, a título de exemplo, no Acórdão do TCAN, proferido no âmbito dos autos de providência cautelar n.º 2834/10.9BEPRT que “ A ocupação de casa de habitação à luz deste diploma, contrariamente ao que sucede no Regime do Arrendamento Urbano, não tem base contratual, inserindo-se numa política de alojamento de famílias pobres, sendo que os interessados são autorizados a ocupar a casa mediante a concessão de licença, após uma análise apurada da sua situação familiar, profissional e económica.(...) O estabelecimento do regime excecional da precariedade dos actos de concessão dessas licenças tem manifestamente em vista possibilitar a revogação desses actos a todo o tempo, pois é essa a característica que distingue os actos precários dos não precários”.

Outro traço marcante desse regime, para além da situação económica dos ocupantes, era o que respeitava à composição do agregado familiar, constituindo obrigação que impendia sobre os requerentes à concessão desse tipo de licença de ocupação, a de indicarem a composição do seu agregado familiar, explicitando o grau de parentesco de cada um dos seus membros em relação ao “chefe de família”.

Ademais, resultava do disposto no art.º 7.º do mesmo diploma que, em caso de morte ou ausência do titular da licença, a situação seria novamente avaliada, para efeitos de ser ponderada a transferência dos direitos e obrigações que lhe pertenciam, por meio de novo alvará.

Ora, no caso concreto, certo é que a requerente não é detentora de qualquer alvará, vislumbrando o Tribunal, numa análise perfunctória que nos presentes autos cabe fazer, que apenas por inércia, incúria ou desleixo do Instituto da Segurança Social, a situação da requerente se manteve inalterável por via da falta da avaliação dos pressupostos de atribuição de casas sociais.

Note-se que, conforme estipulava o artigo 12.º do Decreto n.º 35.106, nas causas de cessação do direito de utilização de tais habitações, entre as quais, “quando se verifique que os ocupantes deixaram de ter necessidade ou quando se tornem indignos do direito de ocupação que lhe foi concedido” .

Conforme bem invoca a entidade requerida, a Lei n.º21/2009, que veio revogar o Decreto 35.106, estipula no seu artigo 3.º, “1 - Sem prejuízo das condições do título de ocupação do fogo, pode a entidade proprietária dos imóveis cedidos determinar a cessação da utilização do fogo atribuído” com fundamento na “c) Prestação pelo ocupante de falsas declarações sobre os rendimentos do agregado familiar ou sobre factos e requisitos determinantes do acesso ou da manutenção da cedência, sem prejuízo de outras sanções aplicáveis ao caso nos termos legais”.

Por outro lado, e quanto à suposta violação do artigo 65.º da CRP, face aos rendimentos que a requerente, juntamente com o seu marido auferem, a título de pensões, não se vislumbra em que medida o acto suspendendo é violador de tal disposição constitucional.

Quanto ao direito à habitação, é verdade que encontra justa consagração constitucional no artigo 65.º da nossa Lei Fundamental, prevendo o respetivo n.º 1 que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.

Contudo, conforme foi já por várias vezes objeto de ponderação pelo Tribunal Constitucional, o direito à habitação tem de ser entendido na sua caracterização de direito fundamental de natureza social, como um direito a prestações, de conteúdo não determinável ao nível das opções constitucionais, a pressupor, antes, uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, cuja efetividade está dependente da „reserva do possível, em termos políticos, económicos e sociais, como se refere no acórdão de 26 de Setembro de 2002 (proc. n.º 321/01, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Mais aí se assinalando que o “cidadão não é, por conseguinte, titular de um direito imediato e uma prestação efetiva, já que este direito não é diretamente aplicável, nem exequível por si mesmo.”

Vejam-se ainda, decidindo neste sentido quanto a situações semelhantes, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 18/12/2013, proc. n.º 01373/13, e do Tribunal Central Administrativo Sul de 15/02/2018, proc. n.º 1299/17.9BELSB, de 24/05/2018, proc. n.º 998/17.0BELSB, de 21/03/2013, proc. n.º 09712/13, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/).

Neste sentido se compreende que a legislação ordinária sobre a matéria preveja que “os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais, tratando-se uma disposição naturalmente imperativa.

Contudo, tal encaminhamento apenas ocorre em situações de carência efetiva de apoio social, pois que a habitação social é, em si mesma, um bem escasso e que visa acudir à satisfação das necessidades básicas da população mais carenciada, pelo que, a ocupação da mesma deve ser atribuída após uma ponderação concreta das necessidades dos indivíduos e famílias elegíveis para o efeito, de modo a que se possa equilibradamente proceder a uma distribuição correta das habitações existentes.

E no caso concreto da requerente, nem se vislumbra que se verifique, face aos rendimentos que auferem e que se conseguiu apurar nos presentes autos, que afasta a situação da requerente de uma situação de carência ou insuficiência económica.

Por último a questão das obras que ali levou a cabo, do respectivo enriquecimento sem causa ou abuso de direito, reitera-se, é irrelevante para apreciação do bom direito, pois que extravasa o objecto destes autos, sem prejuízo de tal questão poder ser apreciada em acção própria para o efeito.

Nestes termos e sem mais delongas, considerando a summario cognitio, próprias da lide cautelar, indefere-se a providência cautelar requerida.

Pode já adiantar-se que a decisão recorrida é de manter.

A questão essencial prende-se com a falta de preenchimento do requisito da aparência do bom direito (fumus boni juris). Sendo que para tanto a factualidade fixada na sentença recorrida é suficiente, nada mais se exigindo neste capítulo.

Sobre o tema em debate já existe jurisprudência firmada, podendo indicar-se, entre outros, os acórdãos deste TCAS de 1.10.2015, proc. n.º 12441/15, e de 24.02.2016, proc. n.º 12937/16, bem como o acórdão de 18.06.2020, por nós proferido no processo 334/20.8BELSB, cujos contornos factuais são em tudo idênticos aos presentes e de que se extrai a conclusão da manifesta falta de fundamento da pretensão principal.

Atenta a natureza instrumental das providências cautelares, não deve ser decretada a providência de suspensão de eficácia do acto que ordenou a desocupação do identificado fogo habitacional se é de concluir que a pretensão anulatória, necessariamente objecto da acção principal, está de modo manifesto votada ao fracasso – como se demonstrou na fundamentação da sentença recorrida.

A não ser assim, a providência cautelar destinar-se-ia apenas a retardar a execução do acto ora suspendendo e não, como seria sua função e vocação, acautelar o efeito útil da acção principal destinada à anulação daquele mesmo acto.

Em abono da demonstração da correcção da decisão alcançada pelo tribunal a quo, importa ainda deixar os necessários considerandos.

Estatui o art. 120.º do CPTA revisto, sob a epígrafe “Critérios de decisão”, que:

1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.

2 - Nas situações previstas no número anterior, a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.

(…)”.

Do disposto neste art. 120º n.ºs 1 e 2 infere-se que constituem condições de procedência das providências cautelares:

1) “Periculum in mora”- receio de constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação (art. 120º n.º 1, 1ª parte, do CPTA revisto);

2) “Fumus boni iuris” (aparência de bom direito) – ser provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente (art. 120º n.º 1, 2ª parte, do CPTA revisto), e

3) Ponderação de todos os interesses em presença segundo critérios de proporcionalidade (art. 120º n.º 2, do CPTA revisto).

Como ensina Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2ª ed., 2016, pp. 449 e 450:

Se não falharem os demais critérios de que depende a concessão da providência, ela deve ser, pois, concedida desde que os factos concretos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio de que, se a providência for recusada, se tornará depois impossível, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente, proceder à reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade. É este o único sentido a atribuir à expressão “facto consumado”. Nestas situações, em que a providência é necessária para evitar o risco da infrutuosidade da sentença a proferir no processo principal, o critério não pode ser, portanto, o da susceptibilidade ou insusceptibilidade da avaliação pecuniária dos danos, mas tem ser o da viabilidade do restabelecimento da situação que deveria existir se a conduta ilegal não tivesse tido lugar: pense-se no risco da demolição de um edifício ou da liquidação de uma empresa.

Do ponto de vista do periculum in mora, a providência também deve ser, entretanto, concedida quando, mesmo que não seja de prever que a reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade se tornará impossível pela mora do processo, os factos concretos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio da produção de “prejuízos de difícil reparação” no caso de a providência ser recusada, seja porque a reintegração no plano dos factos se perspectiva difícil, seja porque pode haver prejuízos que, em qualquer caso, se produzirão ao longo do tempo e que a reintegração da legalidade não é capaz de reparar ou, pelo menos, de reparar integralmente. Ainda neste último caso, justifica-se a adopção da providência para evitar o risco do retardamento da tutela que deverá ser assegurada pela sentença a proferir no processo principal: pense-se no risco da interrupção do pagamento de vencimentos ou pensões, que podem ser a principal ou mesmo a única fonte de rendimento do interessado.

Do exposto resulta que as providências cautelares visam impedir que, durante a pendência de qualquer acção principal, a situação de facto se altere de modo a que a decisão nela proferida, sendo favorável ao requerente, perca toda a sua eficácia ou parte dela (cfr., i.a., o ac. de 22.09.2016 deste TCAS, proc. n.º 13468/16).

Quanto ao requisito do fumus boni juris, cumpre destacar que a revisão do CPTA de 2015, operada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, modificou a sua relevância, quer no que se refere à sua suficiência para o decretamento da providência (situação que o anterior art. 120.º, n.º 1, al. a), previa), quer por via da uniformização do regime no que se refere à comprovação da probabilidade de procedência da acção principal (existente no regime anterior, em que se distinguia, com exigência variável, conforme estivesse em causa uma providência conservatória ou uma providência antecipatória).

Neste particular, refere Vieira de Almeida, in A Justiça Administrativa (Lições), 15.ª ed., 2016, pp. 320 e s.:

“(…)

Antes de 2015, nas situações intermédias, que correspondem à grande maioria dos casos, em que há uma incerteza prima facie relativamente à existência da ilegalidade ou do direito do particular, a lei optava por uma graduação, em função do tipo de providência requerida: a) se a probabilidade fosse maior, isto é, “se fosse provável que a pretensão principal viesse a ser julgada procedente nos termos da lei", podia ser decretada a providência, mesmo que fosse antecipatória; b) se a providência pedida fosse apenas uma providência conservatória, já não era preciso que se provasse ou que o juiz ficasse com a convicção da probabilidade de que a pretensão fosse procedente, bastando que não fosse manifesta a falta de fundamento da pretensão principal ou a existência de circunstâncias que obstassem ao seu conhecimento do mérito. Por outras palavras, a lei bastava-se com um juízo negativo de não-improbabilidade (non fumus malus) da procedência da acção principal para fundar a concessão de uma providência conservatória, mas obrigava a que se pudesse formular um juízo positivo de probabilidade para justificar a concessão de uma providência antecipatória.

A eliminação desta diferenciação, em 2015, pode justificar-se pela dificuldade e eventual inadequação, em alguns casos, da distinção conceitual entre as providências, mas significa objectivamente uma maior exigência de prova feita ao requerente para a obtenção de medidas cautelares conservatórias - e, portanto, um maior relevo negativo da juridicidade material. [sublinhado nosso]

Seja como for, o fumus boni iuris não é decisivo, tendo de verificar-se os outros requisitos necessários para a concessão, designadamente, o receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para o requerente, bem como, conforme veremos a seguir, a proporcionalidade dos efeitos.

Há, portanto, aqui, um tributo à justiça material (à legalidade e aos direitos dos particulares), que deixa de ser, como era antes de 2002, a pretexto da sumaridade do conhecimento do juiz, sacrificada ou menosprezada por respeito, por vezes absolutamente indevido, ao poder administrativo e à pretensão de validade dos seus actos - embora o Código, com alguma prudência, não confira à "aparência do direito” uma prevalência absoluta, precisamente por estarem em jogo interesses contrapostos e conflituantes, que necessitam, como veremos melhor, de uma ponderação.

Na realidade, a relevância da juridicidade material, sobretudo nos casos de incerteza à primeira vista, não pode ser pretexto para alongar e desvirtuar o processo cautelar - que, visando uma decisão provisória ou interina, se caracteriza justamente por uma cognição sumária sobrecarregando-o com uma argumentação e uma instrução aprofundadas sobre o mérito da causa, como se fosse um processo principal. A referência ao “fumus”, ou seja, à "aparência” do direito visa justamente exprimir que a convicção prima facie do fundamento substancial da pretensão é bastante e é adequada à decisão cautelar, ao contrário do que se exige na decisão dos processos principais.

Também explica Mário Aroso de Almeida, a este propósito, in Manual de Processo Administrativo, 2ª ed., 2016, p. 451, o seguinte: “A atribuição das providências cautelares depende de um juízo, ainda que perfunctório, por parte do juiz, sobre o bem fundado da pretensão que o requerente faz valer no processo declarativo. O juiz deve, portanto, avaliar o grau de probabilidade de êxito do requerente no processo declarativo. Essa avaliação deve, naturalmente, conservar-se dentro dos estritos limites que são próprios da tutela cautelar, para não comprometer nem antecipar o juízo de fundo que caberá formular no processo principal.”.

Significa isto que no actual regime do CPTA a decisão a proferir sobre o pedido de suspensão de eficácia exige que o julgador constate se há probabilidade de que a acção principal seja procedente, o que implica a probabilidade da ilegalidade do acto ou da norma. E a simplicidade, provisoriedade e sumariedade, face à urgência que caracteriza este meio cautelar, não se coadunem com a ideia de que os vícios devam ser apreciados exaustivamente.

Do exposto resulta que, caracterizando-se o processo cautelar pela provisoriedade e urgência, o requisito relativo à aparência do bom direito implica um juízo sumário e perfunctório de probabilidade de procedência da acção principal. Dito de modo inverso, embora a apreciação de procedência dos vícios imputados ao acto suspendendo não seja compatível com uma exaustiva análise da situação, sob pena de se esgotar nesta apreciação o mérito da acção principal, dessa análise terá que resultar já um juízo afirmativo de probabilidade da ilegalidade do acto ou da norma.

Assim, não é possível decretar a pretendida providência cautelar, se através dela se visa apenas retardar a execução do acto, e não, como seria sua função e vocação, acautelar o efeito útil da acção principal destinada à anulação daquele mesmo acto, por esta se evidenciar votada ao fracasso.

Neste capítulo, importa sublinhar que o fogo habitacional em questão está a ser ocupado sem título. Como se explicita na sentença recorrida, trata-se de “uma posse não titulada, fundada em anterior comodato, autorizado pelo Instituto da Segurança Social, face à inexistência de qualquer contrato, autorização ou outro instrumento, face à exiguidade dos valores em causa na “renda” associada”. Mais se referindo na sentença recorrida: “entenda-se que o próprio direito de ocupação concedido à mãe da requerente, relativamente ao prédio em causa, enquadra-se no âmbito duma cedência precária titulada por alvará, tal como o previa o Decreto n.º 35.106, de 06/11/1945, entretanto revogado pela Lei n.º 21/2009 (cfr. art.º 1.º). //Conforme expressamente resultava do art.º 1.º do Decreto n.º 35.106 a concessão de habitação social concedida nos termos desse diploma era a título precário, tratando-se, pois, de um regime legal fortemente marcado pela precariedade do direito à ocupação por parte dos destinatários de tais habitações.

Ou seja, em suma e ao que aqui apenas importa, a ora Recorrente não é ocupante autorizada do fogo municipal, não detendo qualquer título para o efeito.

É que o título de ocupação que em 1940 foi atribuído à mãe da Recorrente tinha caráter meramente precário e não era transmissível hereditariamente. Donde, a ocupação do imóvel que a mesma Recorrente fez nos últimos anos não configura um contrato de arrendamento, mas antes uma cedência precária, a qual não confere ao seu titular direitos contratuais de uso da coisa cedida.

E tanto basta para impedir o deferimento da providência requerida, sendo o demais alegado irrelevante atento o meio processual em uso (sem prejuízo de poder relevar noutra sede, nomeadamente no âmbito da tutela indemnizatória).

Assim, em conclusão, não se encontra minimamente demonstrado o requisito do fumus boni juris, isto é, que o acto em apreço seja inválido e que a acção a propor para impugnação do mesmo tenha qualquer viabilidade de procedência.

Nestes termos, faltando a verificação do requisito relativo ao fumus boni iuris sempre ficaria prejudicada a análise dos demais requisitos de decretamento da providência cautelar, ainda que porventura a ora Recorrente os pudesse demonstrar, uma vez que os mesmos são de verificação cumulativa (art. 120.º do CPTA).

Uma palavra ainda acerca do direito à habitação.

O art. 65.º, n.º 1 da CRP, não confere um direito imediato a uma prestação efectiva dos poderes públicos mediante a disponibilização de uma habitação, antes rege na garantia de critérios objectivos e imparciais no acesso dos interessados às habitações oferecidas pelo sector público (sobre esta questão, também em caso similar ao presente, o ac. deste TCAS de 2.04.2014, proc. n.º 1133/14; idem o ac. deste TCAS de 21.03.2013, proc. n.º 9712/13). Também por aqui não se antevê, portanto, o mínimo de probabilidade de ganho de causa na acção principal.

Donde, na falta de prova, ainda que sumária, da invalidade do acto suspendendo, não poderia deferir-se a providência requerida, tornando-se assim inútil sequer conhecer do requisito do periculum in mora. Improcede desde modo a pretensão da Recorrente em ver (melhor) apreciada a existência de periculum in mora.

Perante o que se vem de dizer, naturalmente se conclui que não poderia ocorrer, ainda que autonomamente, o deferimento do pedido de manutenção da ocupação da fracção identificada nos autos e por si ocupada sem título, ainda que provisoriamente.

Razões pelas quais tem que ser negado provimento ao recurso, com a consequente manutenção da sentença recorrida.


III. Conclusões

Sumariando:

i) No regime do CPTA (revisto pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro) a decisão a proferir sobre o pedido de suspensão de eficácia exige que o julgador constate se há probabilidade de que a acção principal seja procedente, o que implica a probabilidade da ilegalidade do acto ou da norma.

ii) Não vindo minimamente demonstrada a ilegalidade do acto que determinou o despejo da fracção que a requerente da providência ocupa sem título, a pretensão de que se suspenda a eficácia desse acto soçobra por falta do indispensável fumus boni juris.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Notifique.

Lisboa, 31 de Agosto de 2021 (em turno)

Pedro Marchão Marques (relator).
Carlos Araújo
Vital Lopes

O relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento.