Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:497/04.0BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:02/06/2020
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:FATURAS FALSAS
INDÍCIOS
IRC
Sumário:
I. Se, para um dos alegados fornecedores, a AT reuniu indícios sérios de que as transações tituladas pelas faturas em causa não tiveram efetividade, revelando tais indícios que há uma probabilidade séria de não terem sido feitos os fornecimentos em causa, o ónus da prova da efetividade de tais transações é do sujeito passivo.

II. Caso esses indícios não tenham sido reunidos, a legalidade da correção encontra­-se ferida por esse motivo, não se exigindo a prova da efetividade das transações.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 18.09.2012, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Almada, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por D..... - Construções, Lda (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto as liquidações de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) e respetivos juros compensatórios, atinentes ao exercício de 1995.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“I – Na sequência de procedimento inspetivo à sociedade D..... – Construções, Ld.ª, foi detetada a utilização, no ano de 1995, de 3 faturas emitidas por Valdemar .........., com os n.ºs 52, 53 e 54, emitidas em 31.07.1995, 31.08.1995 e 30.09.1995, no valor total de 13 150 350$00 de base tributável, a que acresceu IVA no valor de 2 235 560$00;

II – Foram também detetadas 5 faturas emitidas por Jorge .........., com os n.º ....., de 20.07.1995, n.º ....., datada de 30.08.1995, n.º ....., datada de 30.10.1995, n.º ....., com data de 30.11.1995 e n.º ....., datada de 31.12.1995, com um valor total de 16 762 000$00, a que acresceu IVA, no montante de 2 849 541$00;

III – Realizadas várias diligências no decorrer da ação inspetiva, concluiu a Autoridade Tributária estarmos perante faturas emitidas por negócios simulados;

IV– Esta conclusão teve por base diversos fundamentos, nomeadamente os seguintes:

a) Apesar de notificada a empresa, em 26.06.1996, na pessoa do seu contabilista, para justificar os pagamentos efetuados aos Srs. Valdemar .......... e de Jorge .........., e apresentar os documentos relacionados com os trabalhos por eles executados, não o fez, tendo afirmado o gerente da firma, em Auto de Declarações, que todos os pagamentos se tinham verificado em dinheiro;

b) Não existem orçamentos, folhas de obra, nem quaisquer outros documentos passados por aquelas pessoas;

c) O sujeito passivo Valdemar .......... não existe no sistema informático – cadastro do IVA;

d) O sujeito passivo Jorge .......... iniciou atividade em 01.06.1991, tendo sido enquadrado no regime normal, com periodicidade trimestral. Nunca enviou qualquer declaração periódica aos serviços do IVA, tendo sido cessado oficiosamente em 31.12.1994, nos termos do art.º 33.º do CIVA;

e) Foram feitos diversos telefonemas para os números de telefone constantes nas faturas, que nunca resultaram, porque ninguém atende o telefone;

f) Foi remetido Ofício a Jorge .........., para a morada constante das faturas, o qual foi devolvido, por não reclamado;

g) O Inspetor Tributário deslocou-se pessoalmente à morada indicada nas faturas em nome de Valdemar .......... – Rua ..... –  .....  –  Fogueteiro)  tendo  verificado  que  nessa  rua,  o número de lote mais elevado é o 18. Ou seja, constatou-se que não existe aquele número e aquele indivíduo não é conhecido no local;

h) Foi contactada a tipografia que executou as faturas em nome de Valdemar .........., tendo ali sido exibido a requisição do livro de faturas, com 50 folhas, com início no n.º 51, requisição datada de 7.09.1995 (isto é, de data posterior àquela em que as faturas com os n.ºs 52 e 53 foram emitidas);

i) Diligenciou-se, junto dos TLP, no sentido de se obterem os números de telefone daqueles indivíduos, tanto através dos seus nomes como moradas, não existindo qualquer contacto em nome dos mesmos

V – Como bem referido na Douta Sentença recorrida, “Não é necessário que a administração tributária prove os pressupostos da simulação previstos no art.º 240.º do Código Civil, sendo suficiente a prova de elementos indiciários que levem a concluir nesse sentido, isto é, indícios sérios e objetivos que traduzam uma probabilidade elevada de que as facturas não titulam operações reais (cfr. acórdão do TCA de 12/04/2005 – rec. 3045/99, cabendo ao contribuinte o ónus da prova de que elas efectivamente se realizaram.”

VI – “A presunção de veracidade da declaração do contribuinte cessa quando, estando, embora, a escrita ou contabilidade organizada de acordo com a lei, haja indícios fundados” de que, apesar da sua correcta organização, não reflecte a matéria tributável efectiva. Mas aqui, a lei não exige senão “indícios fundados”, ou seja, não impõe à Administração a “prova concludente” de que por detrás dos documentos não está a realidade que normalmente reflectem e comprovam, bastando-se com indícios fundados para fazer cessar a presunção a favor do contribuinte. A este, uma vez dessa forma desprovido do escudo protector da presunção, resta demonstrar a veracidade dos seus elementos contabilísticos, e respectivos suportes” – Sentença recorrida;

VII – Não ficou provado nos Autos, quer documentalmente quer através do depoimento das testemunhas inquiridas, que as faturas foram emitidas por verdadeiros serviços prestados e pelos montantes nelas inscritos;

VIII – Nos termos do disposto no art.º 23.º do CIRC (redação à data), consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto; Nos termos da alínea h) do n.º 1 do art.º 41.º do mesmo diploma, não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável os encargos não devidamente documentados;

IX - Ao decidir, como decidiu, violou a Sentença, aqui recorrida, o disposto naqueles artigos;

X – Não padece a liquidação dos restantes vícios assacados pela Impugnante;

XI – Não existindo erro imputável aos serviços, não tem a Impugnante direito a juros indemnizatórios, pelo que, infringiu também, a Sentença, o disposto no art.º 43.º da LGT”.

A Recorrida não contra-alegou.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:
a) Há erro de julgamento atinente à decisão proferida sobre a matéria de facto?
b) Há erro de julgamento, por terem sido reunidos indícios suficientes no sentido de as faturas controvertidas não corresponderem a efetivos serviços prestados, não tendo resultado provada tal efetividade?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“a) A impugnante, D..... — Construções, Lda., desenvolve a actividade de construção civil e prestação de serviços nessa área, tendo iniciado a actividade em Julho de 1991, e sendo o seu quadro de pessoal constituído normalmente pelo sócio-gerente, Diamantino ....., e mais três empregados (cfr. fls. 73 do processo administrativo apenso);

b) A impugnante foi objecto de uma acção inspectiva, em sede de IVA e IRC aos exercícios de 1992 a 1995, na sequência da qual foram propostas pelos Serviços de Prevenção e Inspecção Tributária correcções em sede de IRC, por desconsideração de facturas cujo valor havia sido relevado contabilisticamente pela impugnante (cfr. relatório de fls. 71 e ss. do processo administrativo em apenso);

c) Sobre tal proposta de correcção recaiu despacho de concordância do chefe de divisão de Prevenção e Inspecção Tributária, datado de 05.08.1996, que sancionou as conclusões e fundamentação do relatório de inspecção e respectivo parecer, determinando as alterações ao lucro tributável, tendo sido acrescido ao montante já declarado pela impugnante o valor de esc. 29.912.350$00 (cfr. fls. 71 e 81 do P.A. apenso);

d) Os serviços de inspecção consideraram que, no exercício de 1995, três facturas emitidas por Valdemar .......... (n°s 52, 53 e 54) no valor total de esc. 13.150.350$00 (s/ IVA) e cinco facturas emitidas por Jorge .......... (n°s ....., ....., ....., ..... e .....), no valor total de esc. 16.762.000$00 (s/IVA), correspondiam a operações simuladas (cfr. fls. 77 do P.A. apenso);

e) Nas facturas emitidas por Valdemar .........., a descrição dos serviços prestados refere-se a “execução de trabalhos de drenagem na obra da auto-estrada Fogueteiro-Almada”. E no caso de Jorge .........., os serviços são descritos como “drenos na obra em Almada - construção da auto-estrada’’(cfr. fls. 118 a 125 do P.A. apenso);

f) Os serviços verificaram que Valdemar .......... era inexistente no cadastro do IVA e que Jorge .........., tendo iniciado a actividade em 01.06.1991, nunca apresentou qualquer declaração periódica tendo sido cessado oficiosamente em 31.12.1994 (cfr. fls. 78-79 do P.A. apenso);

g) E fizeram constar do relatório a seguinte fundamentação: ‘Tendo em conta o elevado montante das facturas e o facto dos emitentes não terem entregue o IVA nelas liquidado nos cofres do listado, surgiram-nos dúvidas quanto à sua autenticidade, até porque a forma de pagamento das mesmas foi em dinheiro, de acordo com a contabilidade, o que não deixa de ser estranho” (cfr. idem);

h) E descrevem no relatório as diligências que efectuaram: ‘Foram feitos diversos telefonemas para os números de telefone constantes nas facturas, que nunca resultaram, porque ninguém atende o telefone. Em 1 de Julho de 1996 foi enviado um ofício ao Sr Jorge .........., para a morada constante das facturas, tendo o mesmo sido devolvido a estes serviços porque ninguém respondeu no dia 03.07.96 nem ter sido reclamado posteriormente, conforme consta no envelope. Deslocamo-nos pessoalmente à morada indicada nas facturas de Valdemar .......... (...) tendo verificado que nessa rua, o número do lote mais elevado é o 18. Não existe portanto o lote 25 nem é conhecido nessa rua o Sr Valdemar ........... Contactada a tipografia que executou as facturas em nome de Valdemar .........., exibiu-nos a requisição do livro das facturas m com 50 folhas e início no n° 51 que se encontra datada de 7 de Setembro de 1995. (...) De salientar que a factura n° 52 encontra-se datada de 31 de Julho de 1995 e a 53 de 31 de Agosto de 1995, ou seja, foram emitidas antes da sua execução na tipografia. Diligenciou-se junto dos TLP no sentido de se obterem os números de telefone das pessoas antes referidas m através dos seus nomes e também das moradas, não existindo nenhum telefone atribuído em nome daquelas pessoas nem para aquelas moradas” (cfr. idem);

i) E concluíram o seguinte: “O facto da empresa D..... - Construções, Lda., não ter produzido quaisquer provas da realização dos trabalhos facturados em nome de Valdemar .......... e Jorge ..........; Não ter apresentado qualquer comprovativo dos pagamentos eventualmente efectuados aos subempreiteiros; Nenhum deles ter entregue o imposto constante nas facturas nos cofres do Estado; Algumas facturas terem sido emitidas com datas anteriores ã execução das mesmas na tipografia; O facto das facturas processadas pela empresa e omitidas na contabilidade e nas declarações respectivas, em sede de IVA e IRC, terem sido substituídas por outras com o mesmo número, mas destinadas a outros clientes. (...) afigura-se-nos seguro concluir que todas as facturas emitidas em nome de Valdemar .......... e Jorge .......... titulam negócios simulados e que a firma D..... - Construções, Lda. as registou dolosamente na sua contabilidade, com a intenção de (...) imputar o valor líquido das mesmas, no montante de 29.912.350800, como custos da actividade (...)” (cfr. fls. 81-82 do P.A. apenso);

j) Na sequência da acção de inspecção foram efectuadas liquidações adicionais de IRC e juros compensatórios com referência ao ano de 1995 no montante global de € 111.044,97 (cfr. fls. 70 do P.A. apenso);

k) A impugnante efectuou o respectivo pagamento, tendo para o efeito aderido, em 31.01.1997, ao regime de regularização de dívidas fiscais previsto no DL 124/96, de 10.08 (cfr. fls. 68 do P.A. apenso);

l) No decurso do ano de 1995, a impugnante D..... - Construções, Lda., realizou uma subempreitada, no âmbito de obra para alargamento da auto-estrada do sul, no percurso entre Almada e Fogueteiro, em que era empreiteiro a sociedade B..... Construções, S.A. (cfr. depoimento das testemunhas);

m) Valdemar ..... e Jorge ..... trabalharam na obra de alargamento da auto-estrada Almada-Fogueteiro sob a orientação e supervisão da “D.....”, tendo esta a seu cargo a organização dos meios (máquinas e meios de transporte), incumbindo aos emitentes das facturas a prestação da mão-de-obra (cfr. depoimentos das testemunhas);

n) Valdemar ..... e Jorge ..... emitiam as facturas de trabalhos que eram pagos ao m2, no caso da cofragem, e por metro linear, no caso da drenagem, sendo os pagamentos efectuados em dinheiro (cfr. depoimentos das testemunhas);

o) No âmbito do processo comum n° 30/96.5IDSTB do Tribunal judicial de Setúbal – 2º Juízo Competência Criminal foi proferida sentença transitada em julgado em 11.07.2003 nos termos do qual foi absolvida a ora impugnante da prática de um crime de fraude fiscal (cfr. fls. 117-124 dos autos)”.

II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida:

“Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito em face das possíveis soluções de direito e que, por conseguinte, importe registar como não provados”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A convicção do Tribunal fundou-se no teor dos documentos juntos ao processo, e indicados em cada um dos pontos supra e no depoimento das testemunhas melhor identificadas na acta de inquirição junta a fls. 176-179 dos autos”.

II.D. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

Entende a Recorrente que o Tribunal a quo errou no seu julgamento de facto, ao considerar ter ficado provado nos autos que os emitentes das faturas trabalharam na obra de alargamento da autoestrada Almada/Fogueteiro e que eram pagos no local da obra pelo gerente ou pela sócia da D..... – Construções, tendo, desta forma, a Impugnante, logrado provar a existência das transações

Apreciando.

Considerando o disposto no art.º 685.º-B do CPC/1961 (a atentar para efeitos de análise das alegações de recurso, considerando a data de apresentação das mesmas, correspondendo, em grande medida, ao disposto no art.º 640.º do CPC/2013), a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão[1].

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 685.º-B, n.º 1, al. a), do CPC/1961, equivalente ao art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC/2013];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 685.º-B, n.º 1, al. b), do CPC/1961, equivalente ao art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC/2013], sendo de atentar nas exigências constantes dos n.ºs 2 e 4 do mesmo art.º 685.º-B, do CPC/1961.

Especificamente quanto à prova testemunhal, dispunham os n.ºs 2 e 4 do art.º 685.º-B do CPC:

“2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição.

(…) 4 - Quando a gravação da audiência for efetuada através de meio que não permita a identificação precisa e separada dos depoimentos, as partes devem proceder às transcrições previstas nos números anteriores”.

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­‑se-lhe os ónus já mencionados[2].

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que tais ónus não foram cumpridos.

Com efeito, como resulta das alegações de recurso, a Recorrente limita-se a insurgir-se contra o facto de “ter ficado provado nos Autos que os emitentes das faturas trabalharam na obra de alargamento da auto-estrada Almada Fogueteiro, e que eram pagos no local da obra pelo gerente ou pela sócia da D..... – Construções, tendo, desta forma, a Impugnante, logrado provar a existência das transações”, concluindo no sentido de que da prova produzida não resultava tal demonstração.

Ora, como decorre das alegações e conclusões, não são indicados os factos que se entende deveriam ter sido considerados provados ou não provados nem, consequentemente, a prova, documental ou testemunhal, que deverá ser atendida.

Assim, não tendo sido cumpridos minimamente os requisitos exigidos no art.º 685.º-B do CPC/1961, nesta parte o recurso tem de ser rejeitado.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Alega a Recorrente erro de julgamento, na medida em que, na sua perspetiva, foram reunidos, pela administração tributária (AT), indícios suficientes que permitem concluir que as faturas emitidas não corresponderam a efetivos serviços prestados, não tendo resultado provado nos autos o contrário.

Vejamos.

Nos termos do art.º 78.º do Código de Processo Tributário (CPT):

“Quando a contabilidade ou escrita do sujeito passivo se mostre organizada segundo a lei comercial ou fiscal, presume-se a veracidade dos dados e apuramentos decorrentes, salvo se se verificarem erros, inexatidões ou outros indícios fundados de que ela não reflete a matéria tributável efetiva do contribuinte”.

Cabe, pois, à AT ilidir esta presunção de veracidade da contabilidade, carreando, maxime em sede de fundamentação do ato tributário, elementos suficientes para esse efeito.

É pacífico o entendimento de que, em situações como a dos autos, para efeitos designadamente do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil [uma vez que o CPT (em vigor à data da realização da ação inspetiva) não continha norma equivalente ao atual art.º 74.º, n.º 1, da LGT], a AT não tem de provar, em sede de ação inspetiva, a efetiva simulação nos termos constantes do art.º 240.º do Código Civil. É assim bastante a demonstração da existência de indícios sérios e objetivos que impliquem uma probabilidade elevada de que as operações tituladas pelas faturas não foram operações reais[3]. Assim, reunidos e demonstrados que estejam tais indícios, cessa a presunção de veracidade prevista no art.º 78.º do CPT, competindo ao sujeito passivo alegar e provar a efetividade das operações.

Como tal, cumpre verificar se a AT cumpriu o seu ónus probatório, ou seja, aferir se foi pela mesma alegada e demonstrada a existência de indícios que, de forma séria, abalam a presunção de veracidade dos documentos em causa, legitimando a desconsideração dos custos, por não se enquadrarem no âmbito do art.º 23.º do CIRC.

Para melhor estruturação da análise, proceder-se-á a esta apreciação de forma separada, por emitente de fatura.

III.A.1. Emitente de faturas Valdemar ..........

In casu, relativamente a este emitente de faturas, em sede de relatório de inspeção tributária (RIT), a AT elencou uma série de indícios, que, em seu entender, permitiram pôr em causa a presunção de veracidade. Assim, resultam como indícios recolhidos os seguintes:
A) De acordo com o gerente da ora Recorrida, todos os pagamentos foram feitos em dinheiro, não tendo apresentado documentos que refletissem esses pagamentos;
B) Não existem orçamentos, folhas de obra ou outros documentos passados pelo emitente das faturas;
C) O emitente das faturas é sujeito passivo inexistente para efeitos de IVA;
D) Foram feitos telefonemas para os números constantes das faturas, sendo tais diligências infrutíferas;
E) A morada indicada nas faturas inexiste, não sendo o emitente das faturas conhecido na rua em causa;
F) Duas das faturas estão datadas de momento anterior ao que foram executadas na tipografia;
G) Não foi obtido qualquer contacto telefónico junto dos TLP.

Atento este elenco, considerou a AT estar perante um conjunto de indícios suficiente para pôr em causa a materialidade das prestações tituladas pelas faturas em análise.

Com efeito, foram reunidos os indícios elencados, que são relativos a diversos aspetos atinentes ao emitente das faturas e que têm de ser considerados e valorados enquanto um todo. Tais indícios vão desde os pagamentos em dinheiro, não demonstrados, à inexistência de quaisquer documentos que atestem a realização dos trabalhos e, bem assim, à inexistência da morada constante das faturas, à aposição de datas nas faturas anteriores à sua execução pela tipografia e à inexistência deste sujeito passivo para efeitos de IVA.

Cumpre, então, aferir, atento o elenco referido supra, se a AT logrou reunir indícios de que as operações, tituladas pelas faturas elencadas no RIT e que estiveram na base das correções técnicas em causa, não correspondiam a operações reais.

Reitere-se que nestas situações, em termos de ónus da prova a cargo da AT, é pacífico que esta não tem de provar a simulação, mas tem apenas de recolher indícios de que as operações a que se referem as faturas não ocorreram efetivamente. Nestes casos, como já referido, cessa a presunção de veracidade da contabilidade, passando o ónus da prova para o sujeito passivo, cabendo a este demonstrar a efetividade das operações, individualmente consideradas.

A este propósito, o Tribunal a quo considerou não terem sido recolhidos pela AT tais indícios.

Desde já se adiante que, quanto a este emitente de faturas, não se acompanha esta posição, em consonância, aliás, com o decidido por este Tribunal no âmbito dos autos n.º 03397/09, em acórdão de 18.06.2015, no qual a situação fática era a mesma, sendo apenas distinto o imposto cuja legalidade era ali discutida.

Com efeito, da análise do conjunto dos indícios recolhidos, verifica-se que a AT elencou uma série de situações que revela de forma séria a forte probabilidade de as operações em causa não serem operações reais, considerando todo o circunstancialismo atinente às caraterísticas do emitente das faturas, à inexistência da sua morada de contacto, à ausência de qualquer documentação relativa aos trabalhos e aos pagamentos aliada a emissão de faturas com data anterior à da respetiva execução tipográfica, a que acresce o facto de se tratar de pagamentos em dinheiro de valores elevados.

Todos estes indícios, com as particularidades já mencionadas, são indícios de que as operações tituladas não corresponderam a operações reais.

Assim, tal como refere a Recorrente, a AT, quanto a este emitente de faturas, logrou reunir um conjunto de indícios suficientemente forte para abalar a presunção de veracidade da contabilidade da Recorrente, o que, nos termos já explanados supra, implica que caiba a esta o ónus da prova da efetividade das operações tituladas pelas faturas em causa.

Tendo a AT logrado reunir indícios sérios de que as operações tituladas pelas faturas em causa não correspondiam à realidade, caberia à Recorrida o ónus da prova da efetividade de todas as alegadas operações inerentes às faturas emitidas, o que não ocorreu.

Com efeito, a prova produzida foi demasiado vaga e genérica, não tendo a Recorrida logrado demonstrar, como era seu ónus, que foram efetivamente realizados por Valdemar .......... os concretos e específicos serviços titulados pelas faturas em causa.

Como tal, nesta parte, assiste razão à Recorrente.

III.A.2. Emitente de faturas Jorge ..........

Relativamente a este emitente de faturas, em sede de RIT, a AT elencou como indícios recolhidos os seguintes:
A) De acordo com o gerente da ora Recorrida, todos os pagamentos foram feitos em dinheiro, não tendo apresentado documentos que refletissem esses pagamentos;
B) Não existem orçamentos, folhas de obra ou outros documentos passados pelo emitente das faturas;
C) O emitente das faturas iniciou a sua atividade a 01.06.1991, enquadrado no regime normal trimestral, nunca tendo apresentado qualquer declaração periódica de IVA, tendo sido cessado oficiosamente a 31.12.1994;
D) Foram feitos telefonemas para os números constantes das faturas, sendo tais diligências infrutíferas;
E) Foi enviado um ofício para a morada constante das faturas, que veio devolvido;
F) Não foi obtido qualquer contacto telefónico junto dos TLP.

Ora, neste caso, entende-se, em consonância com o referido pelo Tribunal a quo que não foram reunidos indícios suficientes que permitam concluir pela existência de uma probabilidade séria de se tratar de faturação falsa, sendo que ressalta a realização de poucas diligências que permitam caraterizar a situação deste emitente, para daí se extrair uma conclusão sustentada, ainda que indiciariamente. Neste sentido foi igualmente o já mencionado acórdão, proferido nos autos n.º 03397/09, a 18.06.2015.

Com efeito, os elementos recolhidos centram-se sobretudo nas tentativas de contacto com o emitente das faturas, ficando muito aquém das diligências que deviam ter sido realizadas, ao contrário do que sucedeu com o outro emitente de faturas.

Trata-se, pois, de indícios ténues, para efeitos de abalar a presunção de veracidade já referida.

Como tal, nesta parte acompanha-se o entendimento do Tribunal a quo no tocante à falta de indícios, motivo pelo qual resulta prejudicada a apreciação da alegada falta de prova da efetividade das operações.

Assim, não assiste razão à Recorrente nesta parte, quer no tocante à legalidade da liquidação, quer no tocante a juros indemnizatórios, dado estarmos perante uma situação de erro nos pressupostos de facto (falta de fundamentação substancial), alegada pela Recorrida na sua petição inicial, subsumível ao art.º 43.º, n.º 1, da LGT.

Em suma, assiste razão à Recorrente, na parte atinente às correções relativas às faturas emitidas por Valdemar .........., não lhe assistindo razão quanto ao demais.

Considerando o decidido relativamente ao emitente das faturas Valdemar .......... e uma vez que Tribunal a quo não conheceu as restantes questões invocadas pela Recorrida, cumpre aferir se se reúnem condições para passar ao seu conhecimento em substituição, atento o disposto no art.º 665.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, nos termos do qual “[s]e o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”.

Atenta a petição inicial, resultaram por apreciar as seguintes questões:
a) Ilegalidade do procedimento inspetivo;
b) Incompetência para a prolação do “despacho de decisão”;
c) Incompetência para a prática do ato de liquidação;
d) Preterição de formalidades essenciais;
e) Falta de fundamentação (formal) dos atos impugnados;
f) Nulidade da notificação;
g) Ilegalidade dos juros compensatórios;
h) Direito a juros indemnizatórios, relacionado com as irregularidades que ficaram por conhecer.

Sucede, porém, que não constam dos autos todos os elementos de prova necessários à boa decisão da causa, designadamente parte dos elementos documentais mencionados na petição inicial (de onde se destacam as notas de cobrança, quer do imposto quer dos juros compensatórios). Ademais, o processo administrativo parece resultar incompleto, o que se depreende desde logo das alegações de recurso onde, em matéria de juros compensatórios, se remete para documento que não consta do mesmo. Adicionalmente, cumpre ainda levar a cabo diligências instrutórias para o cabal conhecimento das questões da incompetência, suscitadas pela Impugnante.

Como tal, devem os presentes autos regressar ao Tribunal a quo, onde deverão ser realizadas todas das diligências instrutórias que se apurem necessárias, designadamente as mencionadas supra, que permitam o conhecimento das questões ainda não apreciadas.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
a.1. Revogar a sentença recorrida na parte relativa às correções atinentes às faturas emitidas por Valdemar .......... e correspondentes juros indemnizatórios;
a.2. Manter a sentença recorrida quanto ao demais (correções atinentes às faturas emitidas por Jorge ..... e o direito a juros indemnizatórios correspondente);
b) Determinar a baixa dos autos ao Tribunal a quo, para eventual ampliação da matéria de facto, após realização das pertinentes diligências de prova, e conhecimento das questões cujo conhecimento resultou prejudicado;
c) Custas pela Recorrente na parte em que decaiu, fixando-se tal decaimento em 56%, e sem custas quanto ao demais, face à baixa dos autos ordenada;
d) Registe e notifique.


Lisboa, 06 de fevereiro de 2020

(Tânia Meireles da Cunha)

(Anabela Russo)

(Vital Lopes)


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[1] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
[2] V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.
[3] Vejam-se, exemplificativamente, os Acórdãos do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 01.02.2016 (Processo: 0591/15), de 16.03.2016 (Processos: 0400/15, 0587/15), de 19.10.2016 (Processo: 0511/15), de 16.11.2016 (Processo: 0600/15) e de 27.02.2019 (Processo: 01424/05.2BEVIS 0292/18).