Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1073/21.8 BELSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:01/17/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
JUÍZO DE CONTRATOS PÚBLICOS
Sumário:
Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

I. RELATÓRIO

O Exmo. Senhor Juiz do juízo administrativo comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa veio, ao abrigo do disposto na alínea t) do n.º 1 do artigo 36.º do ETAF e artigos 109.º, n.ºs 2 e 3 e 111.º, n.º 1, ambos do CPC, requerer oficiosamente, junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, a resolução do conflito negativo de competência em razão da matéria, suscitado entre si e a Exma. Senhora Juíza do juízo de contratos públicos do mesmo Tribunal, visto que os Magistrados Judiciais dos referidos juízos atribuem-se, mutuamente, competência, negando a própria, para conhecer da acção administrativa que a Universidade de Lisboa, instaurou contra a sociedade E……………, Lda. (processo iniciado no Balcão Nacional de Injunções).

Neste TCA foi cumprido o disposto no artigo 112.º, n.º 1 do CPC.

Os autos foram com vista ao Digno Procurador-Geral Adjunto, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que promoveu que fosse proferida decisão.



I. 1. Questões a apreciar e decidir:

A questão colocada consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para apreciar e decidir a presente acção administrativa: se o juízo administrativo comum do TAC de Lisboa ou se o juízo de contratos públicos do mesmo Tribunal.


II. Fundamentação

II.1. De facto

Para julgamento do presente conflito, julgam-se relevantes as seguintes ocorrências processuais:

1. Em 30.03.2021 a Universidade de Lisboa apresentou requerimento no Balcão Nacional de Injunções - injunção com o nº ……../21.2YIPRT- com vista à notificação da ali requerida, sociedade E……………, LDA, para proceder ao pagamento da quantia global EUR: 3.563,46, sendo destes EUR: 3.062,70, a título de créditos decorrentes de fatura n.º 31000001468, por si emitida, no âmbito de um contrato de cedência de instalações referente à cedência dos espaços do picadeiro junto do Museu Nacional de História Natural e Ciência; EUR: 449,76 a título de juros de mora e EUR:51,00, de taxa de justiça (cfr. fls. 1 a 16, numeração em formato digital-sitaf).

2. Gorada a citação da Ré, foram os autos remetidos ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa e distribuídos no juízo de contratos públicos (por consulta ao sitaf).

3. Por sentença de 30.06.2021, a Senhora Juíza do juízo de contratos públicos, a quem os autos foram atribuídos, excepcionou a incompetência em razão da matéria daquele tribunal e determinou a remessa dos autos ao juízo administrativo comum do mesmo tribunal, por entender ser esse o juízo competente (cfr. fls. 18 a 28, numeração em formato digital-sitaf).

4. Aí chegados, o Senhor Juiz do juízo administrativo comum a quem os autos foram atribuídos, por decisão datada de 19.10.2021, declarou aquele juízo igualmente incompetente, em razão da matéria, cometendo a competência para apreciar a acção ao juízo administrativo comum do mesmo tribunal (cfr. fls. 47 a 58, numeração em formato digital-sitaf).

5. Em 3.12.2021, o Senhor Juiz do juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, requereu a este Tribunal Superior a resolução do conflito negativo de competência aberto entre si a Senhora Juízo do juízo de contratos públicos do mesmo Tribunal (cfr. fls. 66, numeração em formato digital-sitaf).

6. As decisões em conflito transitaram em julgado (por consulta ao sitaf).



II.2. DE DIREITO

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional e de atribuições se encontram regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

Estabelece-se no n.º 1 do artigo 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” seguem o regime da acção administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109.º e s. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111.º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

No contencioso administrativo, por força do disposto no artigo 13.º do CPTA, a competência, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.

Tal equivale a dizer que o presente conflito de competência, suscitado oficiosamente pelo Senhor Juiz do juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, ao abrigo do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, foi levantado por quem tem legitimidade para tal.

Continuando, sob a epígrafe “[c]onflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109.º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.

É sabido que o critério de atribuição de competência material ao juiz projecta a habilitação funcional do tribunal para a matéria que constitui o objecto do seu conhecimento (in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, p.107). Na verdade, a eficiência da organização judiciária com vista à melhor prestação da qualidade da Justiça reclama que se atribua a competência ao tribunal que mais vocacionado estiver para conhecer do objecto da causa respectiva. E quanto mais apurado for o critério atributivo de competência material, que é aquele aqui em causa, melhor surtirá a garantia da qualidade com que a Justiça é administrada ao cidadão a quem se destina.

A questão que nos é trazida a juízo – insistentemente, aliás - coloca-se por via da alteração ao artigo 9.º e dos aditados artigos 9.º-A e 44.º-A, ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº13/2002, de 19 de Fevereiro, operada pela Lei n.º 114/2019, de 12/09 (vide, artigos 2º e 3º).

No seguimento desta revisão foi publicado em 13.12.2019 o Decreto-Lei n.º 174/2019 que procedeu – no aqui e, agora, importa – à criação de juízos de competência especializada no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, onde além do juízo administrativo comum e do juízo administrativo social, criou ainda um juízo de contratos públicos, com jurisdição alargada sobre o conjunto das áreas de jurisdição atribuídas aos Tribunais Administrativos de Círculo de Almada, Lisboa e Sintra (cfr. artigo 2.º, n.ºs 1 e 2 deste diploma).

O legislador do ETAF plasmou no artigo 44º-A (aditado pela Lei nº 114/2019, de 12/9) e para os casos em que tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, os critérios de eleição para determinar a sua habilitação funcional.

De acordo com o citado artigo 44º-A do ETAF, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, passou a dispor-se o seguinte:

1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

2- Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a ação ser proposta no juízo competente para a apreciação do pedido principal.

Daqui resulta que o juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual; i.é, caso as matérias em dissensão não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as apreciar cabe ao juízo administrativo comum.

A competência material especializada prevalece, assim, sob a competência material comum, precisamente porque esta é residual.

E na delimitação de competências entre o juízo comum e os diferentes juízos especializados dos tribunais administrativos (e estes entre si), afigura-se-nos evidente que o legislador atendeu ao objecto material das causas, relevando as especificidades que decorrem do direito substantivo que regula as correspondentes relações jurídicas, associando, no que aqui importa, as áreas de competência do juízo de contratos públicos, a execução de um contrato de procura pública com interesse concorrencial. Por isso o legislador utilizou a expressão “contratação pública”, para o que nos remete para o Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, que aprovou o Código dos Contratos Públicos (CCP).

Feito este enquadramento, é chegado o momento de apreciar a natureza do litígio que subjaz à presente à acção administrativa para se aferir se a competência cabe ao juízo de contratos públicos do TAC de Lisboa ou, inversamente, se esta radica no juízo administrativo comum do mesmo Tribunal.

Vejamos então, o que deve ser feito olhando para o caso concreto trazído a Juízo e não por recurso a teses em abstracto.

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91 e, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc. n.º 11/2006.

Em suma, a competência afere-se pela substância do pedido formulado e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da causa de pedir. E em conformidade com o disposto no artigo 13.º do CPTA, o seu conhecimento é oficioso e precede o conhecimento das demais questões.

Recorde-se que na presente acção administrativa a A., UNIVERSIDADE DE LISBOA, veio pedir ao Tribunal a condenação da R., a sociedade E…………….., LDA, no pagamento da quantia total global EUR: 3.563,46, sendo destes EUR: 3.062,70, a título de créditos decorrentes de fatura n.º …………., EUR: 449,76 a título de juros de mora e EUR:51,00, de taxa de justiça.

A causa de pedir radica no contrato que a Autora celebrou com a Ré com vista à cedência provisória da utilização dos espaços do picadeiro junto do Museu Nacional de História Natural e Ciência, bem como no alegado incumprimento, por parte da Ré, da obrigação contratual emergente desse contrato, mais precisamente o não pagamento do valor indicado na factura nº………., enviada à sociedade devedora e que deveria ter sido paga até ao dia 30.07.2017, conforme melhor se alcança do teor da 1ª pagina do requerimento de injunção (nº ………/21.2YIPRT).

O aludido contrato foi celebrado pela Universidade de Lisboa, de acordo com as respetivas atribuições especificadas na Lei n.º62/2007 e à luz do quadro normativo previsto no Regulamento em vigor - Regulamento de Cedência de Espaços dos Museus da Universidade de Lisboa/ Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNA), não restando, pois, dúvida alguma de que a questão em dissídio na presente acção administrativa prende-se com a execução do aludido contrato de cedência e com a eventual responsabilidade civil contratual da sociedade ré, ao qual não se lhe aplica, nem é suscetível de aplicação, qualquer dos procedimentos pré-contratuais previstos no Título II do CCP, nem tão pouco se lhe aplica a parte III do mesmo Código. O que é manifesto.

Efectivamente, para que se considere que um determinado contrato está sujeito às normas da contratação pública, é necessário que haja procura pública, no sentido de corresponder esta à satisfação de um interesse próprio e de uma necessidade da entidade adjudicante (cfr., a este propósito, Pedro Costa Gonçalves, Direito dos Contratos Públicos, 4.ª ed., 2020, p. 312 e s.). O que não é seguramente o caso dos presentes autos, como acima já se deixou dito.

Sublinha-se e reitera-se que o Juízo de Contratos Públicos é o juízo da contratação pública e não o juízo comum dos contratos que cabem no âmbito da jurisdição administrativa.

Como se disse na recente decisão sumária por nós proferida no processo n.º 1077/14BELSB, em que estava em causa situação análoga:

O contrato em questão seguiu as regras da contratação pública? Não. Foi celebrado ao abrigo de acordos-quadro? Não. Os aspetos da execução do contrato estão sujeitos à disciplina do CCP? Não. A sanção por incumprimento encontra-se prevista nos artigos 325.º e s. do CCP? Não. Donde, não estarmos perante uma situação-tipo susceptível de ser inscrita no catálogo dos litígios emergentes da formação e execução de contratos (administrativos) sujeitos ao regime da contratação pública. É que, como se afirmou na decisão de 18.01.2021 da Exma. Presidente do TCAN, proc. n.º 2063/06.6BEPRT, «o juízo de contratos públicos é, a final, o juízo da contratação pública e não o juízo residual de todo e qualquer contrato (administrativo ou de direito privado) celebrado por entidades ou sujeitos na órbita da Administração Pública»”.

Em face do que fica dito, concluímos, em face do teor da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF e tendo presente o objecto do litígio – o qual se prende com o incumprimento de um contrato de cedência celebrado pela Universidade à luz do quadro normativo previsto no Regulamento de Cedência de Espaços dos Museus da Universidade de Lisboa/ Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNA) - que a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito, não cabe ao juízo de contratos públicos do TAC de Lisboa, mas sim ao juízo administrativo comum do mesmo Tribunal, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, nºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º 1, alínea a) do ETAF (na versão que lhe foi dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro), artigo 2.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e artigo 1.º, alínea a), da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio.



III. Decisão

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao Juízo Administrativo comum do TAC de Lisboa.

Sem custas.

Notifique.

O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques