Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:7235/13.4BCLSB
Secção:
Data do Acordão:09/30/2019
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:AUDIÊNCIA PRÉVIA.
Sumário:É irrelevante a mera notificação para o exercício de audiência prévia, desacompanhada do projecto ou da exposição dos motivos que justificarão a decisão.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:1 - Relatório
A FAZENDA PÚBLICA, inconformada com o despacho do relator que, em decisão sumária, negou provimento ao recurso que havia interposto da sentença do TT de Lisboa que julgou procedente a Impugnação Judicial que K.........., LTD., deduzido contra o acto de indeferimento dos pedidos de reembolso de IVA, que formulou ao abrigo do disposto no DL n° 408/07, de 31-12, veio reclamar para a conferência, tendo alinhado no respectivo requerimento as seguintes conclusões que circunscrevem a sua discordância com a referida decisão sumária:
1.ª Em sede de procedimento de recurso hierárquico/reanálise dos pedidos de reembolso de IVA, o sujeito passivo foi notificado para efeitos de exercício do direito de audição, fls. 45 e 46, do P.A. junto aos autos, tendo exercido o referido direito.
2.ª Ora, tal facto não consta da matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida, sendo certo que a omissão de tal facto e a sua não consideração pelo Juiz a quo, levou a uma errada interpretação e aplicação da lei aos factos, erro este em que, salvo o devido respeito, continua a incorrer a decisão ora reclamada.
3.ª Donde, deve ser aditado a matéria de facto dada como provada, o seguinte facto : ­A impugnante, em sede de procedimento de recurso hierárquico, foi notificada para exercer o direito de audiência cfr. a fls. 45 e 46, do P.A. junto aos autos).
4.ª E, atendendo a tal facto, não se podia, sem mais, concluir que " a impugnante não foi notificada para algo semelhante a audiência prévia. A intervenção que lhe foi concedida restringiu-se apenas ao fornecimento de elementos necessários à apreciação dos pedidos", cfr. pag. 6 da decisão ora reclamada, ou que " a Impugnante não teve a oportunidade de contraditar a posição tomada e controlar a prova produzida no âmbito do procedimento de modo a influenciar a decisão final", cfr. sentença recorrida, a fls.112, uma vez que a impugnante acabou por ser concedido o direito de audiência prévia, ainda que em sede de procedimento de reanálise do seu pedido de reembolso.
5.ª Ainda que assim não se entenda, sem conceder, por outro lado, também não foi devidamente ponderado pela sentença recorrida e discriminado ou explicitado, na matéria de facto dada come provada, que o indeferimento dos pedidos de reembolso se deveu a circunstancia de a impugnante lido ter enviado os elementos que lhe tinham sido solicitados pela AT, designadamente, de não ter feito prova da reciprocidade de tratamento tendo, a não consideração de tal facto, salvo o devido respeito, levado a uma incorrecta subsunção dos factos ao direito.
6.ª Não tendo sido enviados esses elementos, é evidente que a decisão da AT só podia ser a de indeferimento, que foi liminar, dos pedidos efectuados, não havendo, aqui, ainda, qualquer matéria susceptível de ser objecto de audiencia previa por parte da impugnante.
7.ª Por outro lado, ainda que assim também não se entenda, devia a sentença recorrida e a decisão ora reclamada, ter ponderado convenientemente a hipótese do aproveitamento do acto.
8.ª Efectivamente, não tendo sido cumpridos, pela então impugnante, os pressupostos do pedido de reembolso e não tendo o mesmo sido acompanhado dos elementos exigidos no art.° 5 do DL 408/87, não tendo a mesma impugnante suprido tal facto, pese embora tenha sido instada pela AT para o fazer, a decisão da AT só podia ser aquela que foi tomada.
9.ª Febo que, aplicando o principio do aproveitamento do acto, sempre se haveria de concluir, no caso em concreto, que a preterição da formalidade do exercício do direito de audição previa se degradaria em não essencial ou mera irregularidade.
10.ª Finalmente, deve também a presente decisão ser reformada quanto a custas.
11.ª E que, a data em que a presente impugnação foi instaurada, 11 de Setembro de 2001, o Estado estava isento de custas.

Nas alegações de recurso jurisdicional a reclamante/recorrente concluiu como segue:
1.ª O presente recurso visa reagir contra a douta sentença declaratória da procedência da impugnação deduzida contra o acto de indeferimento de reembolso de Imposto Sobre o Valor Acrescentado.
2.ª A sentença recorrida determina em síntese que "A não observância do direito de audição constituí preterição de formalidade legal, conducente ã anulação do acto impugnado, por vício de forma (cfr. art.º 60.° da LGT)
3.ª O arest0 viola assim o dever de fundamentação das decisões proferidas pelos tribunais porque, não discrimina todos os factos probatórios levados aos autos e que implicitamente foram dados como não provados o que, por falta de apreciação crítica dessa prova, a faz padecer de nulidade nos termos legais dos artigos 158.° e 659.º do CPC, aplicáveis subsidiariamente por via do artigo 2.° do CPPT.
4.ª Efectivamente, não nos podemos conformar ter-se muito parcamente dado como provado a preterição do direito de audição
5.ª E mesmo que assim não se considere decidindo-se pela omissão de contraditório, face aos elementos e argumentos apresentados pela impugnante nem que seja com base no exercício extemporâneo desse direito, não poderá essa omissão constituir vício invalidante do consequente acto tributário, pois Como refere o já citado acórdão do Tribunal Constitucional que nos elucida neste aspecto:
"o n.° 3 [do artigo 60.° da lei geral tributaria], ... dispensa a audição antes da liquidação quando o interessado já tenha sido ouvido no procedimento e não sejam invocados factos novos sabre os quais ele ainda não se tenha pronunciado.
Esta solução restringe ainda mais o direito da audição que aquela alínea a) do n.° 2 de artigo 103.° do CPA, uma vez que ao não dispensar o direito de audiência apenas quando forem, invocados, pela administração tributária, factos novos sobre os quais o contribuinte ainda não se tenha pronunciado, dispensa-o querido forem suscitados pela administração tributária novas questões de direito e quando forem realizadas diligências que demonstrem factos novos, que não sejam invocados pela administração tributária, mas que poderiam ser invocados pelo interessado em abono da sua pretensão. (negrito nosso).
Com este alcance, parece que este n.° 3 elimina em grande parte a essência do direito de audiência, pois este não pode deixar de consubstanciar-se em possibilidade de pronúncia pelo interessado sobro todas as questões, de facto ou de direito, que possam relevar para a decisão."
6.ª Deste modo, a douta sentença ora recorrida, a manter-se na ordem jurídica, revela também uma inadequada interpretação e aplicação do disposto no art. 60° da LGT pois que como bem a se encontra patente esse direito consubstancia-se no Direito a que toda a prova pertinente oferecida venha a ser produzida. Ora a impugnante não ofereceu a prova que lhe foi solicitada nem faz referência a que tal tenha acontecido em data anterior.
7.ª Por outro lado, tal produção de prova deveria ter sido efectuada antes da decisão final, o que também não se encontra provado que aconteceu, sendo ainda patente nos autos que, ao recorrer e impugnar a decisão da Administração Tributária, a impugnante tinha plena consciência da fundamentação do acto praticado.
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Cumpre apreciar a reclamação, nos termos do artigo 652.º, n.º 3, do CPC.
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No recurso a recorrida não contra-alegou.
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Neste TCAS o EMMP emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recuso.

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2 - Fundamentação

a) De facto

A sentença consignou o seguinte probatório acolhido na decisão sumária:
(1). Em 30-06-2000, a ora impugnante, sediada no JAPÃO, efectuou quatro pedidos de reembolso de IVA ao abrigo do DL n° 408/07, de 31-12, aos serviços competentes da Administração Tributária (cfr. Fls. 7 a 23 dos autos):
a. pedido de reembolso n°.....00, no montante de 7.808.774$00;
b. pedido de reembolso n° .....70, no montante de 2.258.547$00;
c. pedido de reembolso n°.....80, no montante de 4.578.706$00;
d. pedido de reembolso n°.....90, no montante de 7.170.286$00.
(2). No âmbito dos citados pedidos de reembolso, em 24-10-2000 a impugnante foi notificada, para fornecer diversos elementos necessários à apreciação dos pedidos (cfr. fls. 24 a 29 dos autos).
(3). A impugnante foi notificada através dos ofícios n°s .....41, .....42, .....43 e .....44, de 30-05-2001, do indeferimento dos citados pedidos, todos com o seguinte teor: "Junto devolvo a V. Exa. as facturas ou documentos equivalentes, quer acompanhavam o pedido em referência", e acompanhados de anexo referente à "relação das facturas cujo imposto não foi restituído total ou parcialmente, com indicação dos motivos" (cfr. fls. 7 a 23 dos autos).
(4). Em 29-06-2001 a impugnante recorreu hierarquicamente das decisões de indeferimento referidas na alínea precedente (cfr. fls. 61 a 68 dos autos).
(5). Em 11-09-2001 foi apresentada a presente impugnação judicial (cfr. fls. 3 dos autos).
Nada mais se provou com relevância para a boa decisão da causa.
A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica de toda a prova constante dos autos.


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b) De Direito
O discurso fundamentador da decisão sumária foi o seguinte:
“A sentença rechaçou a pretensão da recorrente argumentando que não tinha sido observado o princípio da audiência prévia. Contra esta decisão a recorrente alega que a sentença violou o dever de fundamentação das sentenças por não discriminar todos os factos levados ao probatório e por não fazer a apreciação crítica dessa prova o que redundaria em nulidade.
Mas, salvo o devido respeito, não tem razão. A sentença discriminou os factos que constam do probatório, tanto que os consignou nesse segmento. É certo que se limitou a uma singela exteriorização da motivação quanto à matéria de facto: “a convicção do tribunal alicerçou-se na análise crítica de todo a prova produzida nos autos”. É pouco mas é o suficiente para se dizer que não se verifica a nulidade arguida pois como é jurisprudência constante, a nulidade por falta de fundamentação – seja quanto aos factos, e nestes no tocante à sua motivação, seja de direito - impõe que a falta dessa fundamentação seja absoluta; existindo uma fundamentação, ainda que mínima ou escassa, pode existir erro de julgamento mas não se verifica nulidade.
Não se verifica, pois, a nulidade imputada à sentença.
No mais a recorrente discorda do decidido alegando que o art.º 60.º, n.º 3, da LGT, dispensa a audição prévia quando o interessado tenha já sido ouvido no procedimento, abonando-se com um acórdão do Tribunal Constitucional.
Também aqui sem qualquer razão.
De facto, como lapidarmente se refere nesse aresto, “assim, não poderá passar em claro que, in casu, à contribuinte impugnante tão-só não foi facultado o direito de se pronunciar depois de elaborado o relatório dos serviços da inspecção tributária, tendo, porém, antes da sua elaboração, sido notificado para exercer o direito de audição”. Situações muito distintas da presente, tanto mais que os contornos de facto de um caso e outro nem sequer são semelhantes. E por outro lado, a doutrina referida no acórdão defende a inconstitucionalidade do n.º 3 do art.º 60.º da LGT, posição que a recorrente parece esquecer ou, noutra perspectiva, convenientemente não referiu. Daí que o Tribunal Constitucional, sem por em causa essa doutrina, tenha entendido que a mesma não era aplicável ao caso concreto subjacente ao aresto e não que a norma em causa dispensava a audiência prévia em qualquer caso.
Portanto, o citado acórdão é imprestável para o caso sub judice.
É que, contrariamente ao parece querer fazer crer, a impugnante não foi notificada para algo semelhante à audiência prévia. A intervenção que lhe foi concedida restringiu-se apenas ao fornecimento de elementos necessários à apreciação dos pedidos [cfr. n.º 2 do probatório] não lhe tendo sido dada hipótese de ser ouvida ante da decisão final e sobre o conteúdo desta. O princípio da audiência prévia não se esgota no exercício do direito à mera intervenção procedimental, antes exige que seja dada oportunidade ao interessado para se pronunciar sobre o conteúdo provável da decisão com o fito de eventualmente aportar argumentos que invertam ou alterem o sentido decisório.
Ora, é patente que no caso em concreto tal não aconteceu, razão pela qual a sentença em crise não é passível de qualquer crítica, já que acertadamente concluiu que preterição da audiência prévia fulminava o acto de ilegalidade, o que obviamente prejudica o conhecimento dos demais vícios que a este são assacados”.
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Como se vê do requerimento em que reclamou a intervenção da conferência, a recorrente veio agora, nessa reclamação, suscitar uma questão nova, que silenciou no recurso, qual seja a de constar no processo um facto que não teria sido levado ao probatório da sentença: a notificação da recorrida.
No recurso limitou-se, no tocante à matéria de facto, a suscitar a nulidade da sentença por falta de discriminação da matéria provada, questão que foi julgada improcedente por ter sido considerado que a sentença não sofre, em absoluto, dessa falta de descriminação, o que basta para afastar o vício de nulidade.
As reclamações para a conferência destinam-se a permitir o reexame do sentido com que as questões do recurso foram decididas pelo relator, eventualmente apreciar alguma nulidade por omissão de pronúncia mas nunca, em caso algum, para acrescentar questões que não tenham sido colocadas no momento certo e pela forma adequada: no momento da interposição do recurso e nas respectivas alegações.
Ora, não tendo a recorrente suscitado qualquer questão de falta ou deficiência da prova – note-se que a arguição de nulidade da sentença por falta de determinação da matéria factual não se confunde com a impugnação da matéria de facto – não lhe era lícito alargar o objecto do recurso invocando a questão nova da insuficiência probatória.
É certo que o tribunal de recurso pode exercer poderes em matéria de facto que não dependem da arguição das partes: artigo 662.º, n.º 1, do CPC. Mas tal não significa uma irrestrita faculdade concedida às partes para, a seu bel-prazer, suscitarem questões a esse nível quando e como entendam. As regras processuais, cristalizadas ao longo de mais de dois milénios, servem, precisamente, para que cada sujeito processual saiba os limites e o âmbito da sua actuação.
Por isso, a questão nova ora suscitada pela reclamante/recorrente não pode ser conhecida, por ser comummente sabido que ao tribunal de recurso está vedado conhecer de questões novas que não tenham sido atempadamente suscitadas antes da sentença e muito menos para conhecer de questões que não foram sinalizadas nas alegações, que constituem o lugar próprio para delimitar o objecto do recurso.
E como a recorrente se baseia, ao manifestar a sua discordância com a decisão sumária apenas na referida questão, dir-se-ia então que não aporta qualquer fundamento válido para a inversão do sentido decisório precedente.
Todavia, dir-se-á que nem mesmo que se tenha em conta tal questão a recorrente não tem razão.
Ou seja, mesmo que se aditasse que a “a impugnante, em sede de procedimento de recurso hierárquico, foi notificada para exercer o direito de audiência (cfr. a fls. 45 e 46, do P.A. junto aos autos)”, nem assim a sentença devia ser alterada.
É que basta ler a fundamentação da sentença para se perceber que esta não disse que a recorrida não foi notificada para efeitos de audiência prévia: Disse coisa diferente… de que havia sido notificada, sim, mas que o projecto de decisão não acompanhou a notificação, tendo dai extraído a conclusão de que houve preterição do princípio da audiência prévia, conclusão que a decisão sumária acolheu.
Por isso, como a matéria de facto, ainda que contida na fundamentação, não deixa por isso de se dever considerar matéria de facto (pode consubstanciar, outrossim, erro técnico sem quaisquer consequências), em bom rigor a sentença acolheu o facto que a ora reclamante e que recorrente pretende ver aditado, mas que é inócuo para a decisão.
Porém, ao contrário do afirmado pela reclamante/recorrente, a questão da preterição da audiência prévia configura-se como simples e decidida de forma tendencialmente uniforme pela jurisprudência, exceptuando, claro está, aquelas situações que justificam a degradação dessa formalidade a simples irregularidade não invalidante. O que não é o caso.
Assim, não existindo fundamentos nem se vislumbrando razões para alterar o sentido decisório anterior, remete-se para os termos da decisão sumária quanto aos fundamentos pelos quais se deve negar provimento ao recurso e confirmar a decisão reclamada.
Mas a reclamante tem razão num aspecto: na condenação em custas.
Sendo a impugnação anterior à reforma de custas que passou a incluir o Estado no elenco dos responsáveis por aquelas, é de alterar a decisão sumária neste aspecto.
No mais, é de indeferir a reclamação, confirmando a decisão reclamada quanto ao objecto do recurso.

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3 - Dispositivo

Em face de todo o exposto indefere-se a reclamação e confirmação a decisão sumária do relator que negou provimento ao recurso.

Sem custas o processo.

D.n.

Lisboa, 2019-09-30

(Benjamim Barbosa)

(Ana Pinhol)

(Isabel Fernandes)