Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 873/19.3BEALM |
Secção: | CA |
Data do Acordão: | 11/14/2024 |
Relator: | LUÍS BORGES FREITAS |
Descritores: | AMNISTIA CUMPRIMENTO DA PENA GNR |
Sumário: | O cumprimento da pena não obsta à aplicação da amnistia |
Votação: | Unanimidade |
Indicações Eventuais: | Subsecção SOCIAL |
Aditamento: |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul: I I… intentou, em 1.11.2019, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, ação administrativa contra o Ministério da Administração Interna, impugnando o ato de 15.7.2019 através do qual lhe foi aplicada a pena de suspensão por cinco dias, suspensa na sua execução pelo período de um ano. Por sentença de 29.10.2023 o tribunal a quo declarou «amnistiada a infracção disciplinar em causa nos autos e, em consequência, [julgou] extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, atenta a falta de objecto». Inconformado, o Ministério da Administração Interna interpôs recurso daquela decisão, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões: 1. Em 15JUL19, no âmbito do processo disciplinar n.° PD32/19CTSTB, o recorrido foi punido com a pena de 5 dias de «suspensão», suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, decisão que foi confirmada posteriormente pelo Exmo. Comandante-Geral, em 10OUT19, o qual decidiu negar provimento ao recurso hierárquico necessário (com efeito suspensivo). 2. Com essa decisão, nos termos do RDGNR, não tendo o recorrido interposto recurso hierárquico (facultativo) para SExa. o Ministro da Administração Interna, esgotou-se a via impugnatória administrativa e, por conseguinte, a decisão punitiva consolidou-se na ordem jurídica. 3. O procedimento disciplinar que se encontra regulado no RDGNR é unicamente composto pelas fases procedimentais aí previstas, não existindo qualquer fase judicial que faça parte desse procedimento. 4. O procedimento disciplinar, sendo um procedimento administrativo (especial), tal como sucede com qualquer procedimento administrativo, extinguiu-se com a tomada de decisão, conforme resulta do art.° 93.° do CPA, aplicável ex vi do art.° 7.° do RDGNR. 5. Não obstante, a qualquer arguido em sede disciplinar assiste-lhe o direito de recorrer à via judicial para obter a anulação contenciosa da decisão punitiva ou impedir que a mesma produza os seus efeitos. 6. Em 01NOV19, o recorrido intentou a ação administrativa (proc. n.° 873/19.3.BEALM) junto do TAF/Almada, impugnando a decisão do Exmo. Comandante de Unidade, contudo, com a citação do réu, tal não provocou qualquer efeito suspensivo sobre a decisão punitiva, na medida em que não foi requerida a suspensão da sua eficácia através da adoção de providência cautelar. 7. Em 13NOV19, o recorrido foi notificado da decisão do Exmo. Comandante- Geral, cumprindo-se o respetivo requisito de eficácia, ficando, a partir desse momento, a decisão punitiva apta a produzir os seus efeitos jurídicos, ou seja, tornou-se executória. 8. No dia seguinte (14NOV19), deu-se início à contagem do período referente à suspensão da execução da pena, sendo que, durante esse período, o recorrido não foi novamente punido em processo disciplinar. 9. Por conseguinte, em 14NOV20, foi extinta a pena disciplinar, por força do disposto no art.° 57.°, n.° 1, do CP, ex vi do art.° 7.° do RDGNR. 10. Com a decisão tomada, o TAF/Almada desconsiderou e omitiu completamente o facto de a pena disciplinar aplicada ao recorrido já se encontrar extinta desde 14NOV20. 11. Na data em que foi proferida a douta sentença, já não era possível aplicar a Lei da Amnistia à infração disciplinar e, muito menos, de haver lugar à eventual extinção do procedimento disciplinar, pois este extinguiu-se com a decisão final, situação só possível de acontecer se a amnistia fosse declarada na pendência do procedimento disciplinar, o que não é manifestante o caso. 12. A consequência jurídica que o TAF/Almada retirou da aplicação da amnistia à infração disciplinar cometida pelo recorrido contraria os efeitos que o RDGNR prevê para esta situação, o que configura um flagrante erro de julgamento na aplicação do direito, pois apenas tomou em consideração o facto de o art.° 6.° da Lei da Amnistia não ter efetuado qualquer distinção entre amnistia própria e imprópria, e não, como se impunha, observar o que dispunha o RDGNR sobre essa matéria (da amnistia). 13. Contrariamente ao que a douta sentença defendeu, sustentada no recente acórdão do TCA/Sul, lavrado no âmbito do proc. n.° 74/23.6BCLSB, não pode, em qualquer circunstância, haver lugar ao “desaparecimento” da infração disciplinar, e, muito menos, não pode o ato punitivo simplesmente deixar de ter “existência jurídica”. 14. A luz do art.° 45.°, al. e), do RDGNR, a «amnistia» constitui uma das causas de extinção da responsabilidade disciplinar, sendo que, nos termos do art.° 50.° do mesmo regulamento, a amnistia “tem os efeitos previstos na lei penal"; segundo o art.° 128.°, n.° 2, do CP, a amnistia “extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos". 15. Em 29OUT23, data em que foi proferida a douta sentença, há muito que a pena aplicada ao recorrido já tinha sido extinta, logo, nem o procedimento disciplinar podia ser extinto, nem a execução ou os efeitos da pena aplicada podiam cessar — é uma impossibilidade, como resulta óbvio. 16. Com efeito, em caso de extinção da pena (como sucedeu com a pena aplicada ao recorrido), deve efetuar-se o correspondente averbamento no respetivo registo, conforme impõe o art.° 36.°-A, n.° 1, do RDGNR. 17. Aliás, mesmo no caso das infrações disciplinares amnistiadas, o registo também não pode ser eliminado, pois, para além de ser um facto histórico válido, que produziu efeitos, tal releva ainda para efeitos da verificação da «reincidência» (cf. art.° 75.°, n.° 4, do CP, aplicável ex vi do art.° 50.° do RDGNR). 18. Ao invés, nos termos do art.° 36.°-A, n.° 4, do RDGNR, só se a decisão punitiva for anulada contenciosamente, isto é, com fundamento na sua invalidade, é que as infrações disciplinares são definitivamente eliminadas não só do registo, como do próprio registo disciplinar dos militares, circunstância que não se verificou no caso do recorrido, pois foi julgada extinta a instância. 19. Além do mais, atendo o preconizado no art.° 11.°, n.os 1 e 2, da Lei da Amnistia, o recorrido sempre poderia ter requerido a recusa da amnistia, o que ditaria o prosseguimento do processo em ordem à apreciação da legalidade da decisão punitiva, porém, livre e conscientemente optou por não o fazer, esgotando, assim, qualquer possibilidade de obter uma sentença anulatória com as respetivas consequências. 20. Concluindo, a douta sentença incorre em erro de julgamento, por vício de direito, na aplicação que faz da Lei da Amnistia, outrossim e especialmente das consequências jurídicas que dela extrai, violando claramente o previsto no art.° 128.°, n.° 2, do CP, ex vi do art.° 50.° do RDGNR. 21. Nestes termos, considerando que infração disciplinar já se encontra extinta, decorrem os seguintes efeitos: (i) a infração disciplinar já não pode ser objeto de amnistia; (ii) a decisão punitiva não pode desaparecer da ordem jurídica; (iii) o procedimento disciplinar não pode ser extinto e, em consequência, ser extinta a responsabilidade disciplinar do recorrido; (iv) e, por fim, os efeitos já produzidos não podem serem apagados, nomeadamente ao nível do averbamento da decisão punitiva no seu registo. O Recorrido não apresentou contra-alegações. * O Ministério Público emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento. * Com dispensa de vistos, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos Juízes Desembargadores adjuntos, vem o processo à conferência para julgamento. II Como se sabe, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do apelante, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso (cf. artigos 144.º/2 e 146.º/4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e 608.º/2, 635.º/4 e 5 e 639.º/1 e 2 do Código de Processo Civil). Por outro lado, o conteúdo da sentença recorrida condiciona e limita o objeto do recurso. Importa, então, ter presente o seguinte: a decisão constante da sentença recorrida é a de julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, a qual tem por fundamento a perda de objeto determinada pela declaração de amnistia. Não temos, portanto, qualquer decisão a determinar a extinção do procedimento disciplinar. É certo que a sentença recorrida – se bem se a interpreta – pronunciou-se em termos que não foram claros. Na verdade, depois de anunciar, na página 3, segundo parágrafo, que ia «[regressar] ao caso dos autos», o tribunal a quo acaba por deixar escrito que «[d]este modo, mostrando-se preenchidos os requisitos legais para o efeito, aplica-se ao Autor a Lei da Amnistia e concretamente o regime de amnistia previsto artigo 2.º, n.º2, alínea b) e do artigo 6.º, o que tem como consequência o esquecimento da infração e a extinção do procedimento disciplinar e, no caso de ter havido já condenação, faz cessar a execução tanto da sanção e dos seus efeitos (cf. n.° 2 do artigo 128.° do Código Penal), mais se impondo proceder ao averbamento da amnistia no registo disciplinar do Autor». Ora, o procedimento disciplinar, no caso, mostrava-se extinto, sabendo-se já ter havido cumprimento da pena. Portanto, o texto foi redigido alegadamente por referência direta ao Recorrido, ali Autor, mas – vê-se pelo seu conteúdo – não passou de uma apreciação genérica, exceto na parte relativa ao averbamento da amnistia no registo disciplinar, que acaba por afastar a consideração anterior constante da parte final do segundo parágrafo da página 3 (em obediência, aliás, e como bem referiu o Recorrente, ao disposto no artigo 36.º-A/1 do Regulamento Disciplinar da Guarda Nacional Republicana, não havendo lugar, no caso, à aplicação do n.º 4 do mesmo artigo). Deste modo, e tendo em conta, como se disse, que a sentença recorrida considerou haver lugar ao averbamento da amnistia no registo disciplinar, a única questão que vem submetida à apreciação deste tribunal de apelação consiste em determinar se a decisão recorrida errou ao declarar amnistiada a infração disciplinar em causa. III 1. A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude. Resulta do disposto no seu artigo 2.º que estão abrangidas pela referida lei, nomeadamente, as sanções relativas a infrações disciplinares praticadas até às 00:00 horas de 19.6.2023, nos termos definidos no artigo 6.º, ou seja, apenas as infrações disciplinares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão. Isto caso não se trate de reincidente, situação que impede o benefício da amnistia, nos termos do artigo 7.º/1/j) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto. 2. Nos presentes autos está em causa um agente da Guarda Nacional Republicana, ao qual foi aplicada uma pena disciplinar de cinco dias de suspensão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, pena essa que já se mostra extinta, como bem referiu o Recorrente/Ministério da Administração Interna, facto que o leva a defender a impossibilidade de aplicação da amnistia. Mas sem razão, ainda que essa aplicação apenas tenha efeitos ao nível do registo. 3. Na verdade, e de acordo com o disposto no artigo 45.º/c) do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana, aprovado em anexo à Lei n.º 145/99, de 1 de setembro, e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 66/2014, de 28 de agosto, o cumprimento da pena é causa determinante da extinção da responsabilidade disciplinar. 4. E o mesmo sucede com a amnistia, agora em resultado do disposto na alínea e) do referido artigo 45.º, ainda que importe evidenciar a diferença substancial decorrente do facto de a amnistia atingir a própria infração, o que não se verifica no caso do cumprimento da pena (recorde-se que a eficácia ex tunc da amnistia operada pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, tem sido reiteradamente afirmada na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a partir do acórdão de 16.11.2023, proferido no processo n.º 262/12.0BELSB). 5. Portanto, há lugar à aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, como entendido na sentença recorrida, situação determinante da extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, como ali foi decidido. Essa amnistia dá lugar, no caso, e apenas, ao averbamento desse facto no respetivo registo disciplinar. IV Em face do exposto, acordam os Juízes da Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida. Custas da apelação a cargo do Recorrente (artigo 527.º/1 e 2 do Código de Processo Civil). Lisboa, 14 de novembro de 2024. Luís Borges Freitas – relator Frederico de Frias Macedo Branco – 1.º adjunto Teresa Caiado – 2.ª adjunta |