Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:415/22.3BEBJA
Secção:CA
Data do Acordão:10/31/2024
Relator:FREDERICO MACEDO BRANCO- relator por vencimento
Descritores:AMNISTIA
EFEITO EX TUNC
Sumário:I– A chamada amnistia própria respeita à infração propriamente dita, ocorrendo, pois, antes da condenação, ao passo que a imprópria respeita antes aos seus efeitos, ocorrendo depois daquela.
II– A amnistia é um procedimento de carácter geral através do qual o Estado apaga o relevo jurídico de certas infrações, subdividindo-se em amnistia própria, anterior à condenação definitiva e amnistia imprópria, a que atua depois da condenação definitiva, ou seja, se for caso disso, depois do transito em julgado da correspondente decisão judicial.
III- Na situação controvertida, verifica-se que, não obstante o MAI tenha efetivamente aplicado administrativamente a controvertida pena, o que é facto é que a mesma não se consolidou ainda na ordem jurídica, uma vez que foi jurisdicionalmente impugnada, não tendo a correspondente Ação transitado ainda em julgado, em face do que não há ainda condenação efetiva e definitiva.
IV- Na realidade, nos termos do art.° 6.° da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto “São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar. ”
Por outro lado, resulta da al. b) do n.° 2 do art.° 2.° da referida lei que beneficiam do perdão as “Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.°”, o que significa que a infração aqui em causa se situa em momento em que é abrangida pela referida lei.
V- Extinguindo-se o procedimento disciplinar, perde objeto a pena aplicada, designadamente os seus efeitos, tanto mais que, como se afirmou já, não ocorreu o trânsito em julgado.
VI- A amnistia opera não só sobre a própria pena, como também sobre o ato disciplinar passado, que cai em “esquecimento”, o qual é tido como não praticado e, consequentemente, eliminado do registo individual do trabalhador, declarando-se extinto o procedimento disciplinar a sanção e seus efeitos.
Como o artigo 6° da Lei no 38-A/2023, de 2/8, não distingue entre amnistia própria e amnistia imprópria, o efeito útil da norma é o de que a amnistia aí prevista constitui um comando que "apaga” a infração disciplinar.
VII- A amnistia faz cessar a responsabilidade disciplinar do arguido, pelo que, salvo disposição legal em contrário, tem eficácia ex-tunc, e faz desaparecer o objeto da ação que visa a anulação ou declaração de nulidade do ato que aplicou a pena disciplinar, determinando a inutilidade da respetiva lide.
Votação:COM VOTO VENCIDO
Indicações Eventuais:Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, Subsecção Social:


I. RELATÓRIO
P.............., com os demais sinais nos autos, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja – TAF de Beja, contra o Ministério da Administração Interna - MAI, ação administrativa, pedindo a revogação do ato administrativo de 2022-03-03, que manteve a aplicação de uma pena disciplinar de suspensão, pelo período de 25 dias, ou caso assim não se entenda a declaração de nulidade do ato impugnado.


O TAF de Beja, por sentença de 2023-12-08, declarou “… amnistiada a infração disciplinar sancionada pelo ato impugnado com a pena de suspensão, e consequentemente, julga-se extinta a presente instância, por impossibilidade superveniente da lide…”:


Inconformada a entidade demandada, ora entidade recorrente, interpôs recurso de apelação para este Tribunal Central Administrativo do Sul - TCAS, no qual peticionou a procedência do presente recurso e, consequentemente, ser a sentença recorrida parcialmente revogada e substituída por acórdão que a altere quanto aos efeitos «ex tunc» da amnistia, para tanto, apresentando as respetivas alegações e conclusões, nos seguintes termos:
“(…) A. A douta sentença recorrida considerou, e bem, que a infração disciplinar praticada pelo representado da ora recorrida, cujo ato de punição é impugnado nos presentes autos, deve ser amnistiada nos termos do art. 6. ° da Lei n° 38-A/2023, de 2 de agosto, e, por conseguinte, declarou a extinção da ação administrativa por o seu objeto se ter tomado supervenientemente impossível.
B. Não está em causa, nem é tema de discussão, a verificação dos requisitos legais previstos na Lei da Amnistia relativamente à infração disciplinar cometida pelo recorrido, pois não há dúvidas de que esta se enquadra no seu âmbito de aplicação.
C. No entanto, o Recorrente não se pode conformar com os efeitos da amnistia da infração, constantes da fundamentação de direito, maxime quanto ao efeito «ex tunc» da amnistia.
D. Nos termos do art. 6. ° da Lei n.º 38-A/2023, são amnistiadas as infrações disciplinares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão.
E. A amnistia, de acordo com o regime jurídico previsto nos artigos 127. ° e 128. ° do Código Penal, aplicável com as devidas adaptações, extingue o procedimento disciplinar e no caso de ter havido condenação faz cessar a execução da sanção disciplinar e dos seus efeitos.
F. Tendo em conta os termos da Lei da Amnistia e o conceito de amnistia ínsito no Código Penal (artigo 128. °), a amnistia acarreta a extinção do procedimento disciplinar e faz cessar a execução da sanção disciplinar e dos seus efeitos.
G. Tal significa que: (i) se o procedimento criminal ou disciplinar ainda estiver a decorrer, extingue-se; (ii) se já tiver havido condenação e se a pena criminal ou disciplinar estiver a ser cumprida, a sua execução cessa com a entrada em vigor da lei amnistiante e (iii) se a pena criminal ou disciplinar já estiver cumprida cessam todos os efeitos que ainda se poderão produzir após a entrada em vigor da lei de amnistia, ficando ressalvados todos os efeitos que legalmente já foram produzidos antes da sua entrada em vigor.
H. É este, de facto, o entendimento jurisprudencial majoritário em face de outras leis de amnistia.
I. Por outro lado, a Lei n.º 38-A/2023 não transparece que o legislador tenha querido, agora, uma solução diferente; isto é, o legislador não mencionou que pretendia abdicar da já antiga distinção doutrinária e jurisprudencial entre amnistia própria e imprópria, optando exclusivamente pela primeira. Ademais, a redação da Lei n.º 38-A/2023 é semelhante à sua antecedente de 1999, a Lei n.º 29/99, de 12 de maio.
J. Por fim, a Lei n.º 38-A/2023 não prevê que seja aplicada retroativamente, daí que quanto às penas já cumpridas, como a dos presentes autos, os efeitos que já foram legalmente produzidos ficam ressalvados; não se pode cessar a execução de algo que está cumprido ou executado.
K. O que significa que a Lei n.º 38-A/2023, entrando em vigor em 1 de setembro de 2023 e não prevendo expressamente a sua aplicação retroativa, tem por efeito o esquecimento dos factos passados, mas não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da sanção disciplinar em data anterior a 1 de setembro de 2023. Isto é, verifica-se o esquecimento dos factos passados por referência à produção de efeitos para o futuro, como seja, em matéria de reincidência ou de agravação da sanção disciplinar, no caso de o trabalhador voltar a ser sujeito a medida disciplinar, não podendo a infração abrangida pela amnistia relevar para aqueles efeitos.
L. Tratando-se as leis da amnistia de providências de exceção, devem as mesmas interpretar-se e aplicar-se nos termos em que se encontram redigidas, sem ampliações decorrentes de interpretações extensivas ou por analogia, nem restrições que nelas não venham expressas.
M. Relativamente aos efeitos da amnistia, a citada jurisprudência proferida sobre anteriores leis de amnistia com idênticas normas sobre as infrações disciplinares, é abundante e unânime ao considerar que:
i. A amnistia significa etimologicamente esquecimento, atua sobre a própria infração cometida, eliminando todos os efeitos da infração, apaga juridicamente a infração, destrói os seus efeitos retroativamente e se não pode destruir aqueles que já se produziram e são indestrutíveis, faz desaparecer todos aqueles cuja ação persiste quando a lei amnistiante se publicou (acórdão do STJ, de 20/01/1993, proferido no processo n.º 003366);
ii. As normas que estabeleçam amnistia devem ser interpretadas em termos estritos. Na declaração de nulidade, os efeitos produzem-se "ex tunc"; na amnistia, produzem-se "ex nunc" (acórdão do STJ, de 28-04-1993, no processo. n.º 003540);
iii. A amnistia não apaga integralmente a infração. Extingue a pena para o futuro. A amnistia não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da pena. A lei amnistiante não concede uma reconstituição total, "ex tunc", da situação anterior. Assim, a reintegração vale apenas para o futuro (acórdão do STJ, de 14-04-1993, no processo n.º 003206);
iv. A propósito da Lei da Amnistia de 1999 (Lei n.º 29/99, de 12 de maio), com uma redação idêntica, a jurisprudência manteve o referido entendimento, senão vejamos. No acórdão do STA de 15-11-2000, Recurso 46018, foi entendido que, etimologicamente amnistia significa esquecimento, e é assim que sempre tem sido entendida aos olhos quer da lei quer da generalidade da doutrina e da jurisprudência. Isto significa que os factos objeto de punição, por ficção legal, consideram-se como se nunca tivessem existido, a amnistia não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da pena, mas produz efeitos para o futuro. Assim mesmo que a pena já se mostre cumprida, a aplicação da amnistia tem relevância para o futuro;
v. No acórdão do STA de 15-11-2000, Recurso 46018, julgou no sentido de que ocorre impossibilidade superveniente da lide, causa de extinção do recurso, ainda que a pena já tivesse sido executada, e efetivamente cumprida, antes da entrada em vigor da lei, dado que a Lei n.º 29/99 não estabelecia qualquer diferenciação, abrangia tanto as infrações ainda não punidas (amnistia própria) como aquelas em que já foram aplicadas penas (amnistia imprópria). No primeiro caso, cessava a responsabilidade disciplinar dos arguidos, devendo arquivar-se o respetivo processo; no segundo caso, a amnistia apenas fazia cessar o prosseguimento da execução da pena ou impedia a sua execução quando o seu cumprimento ainda se não tivesse iniciado, cessando os efeitos ainda não produzidos, mas ficando intactos os já verificados;
vi. No acórdão de 16-11-1995 do STA, Recurso 18072, defendeu-se que ainda que imediatamente aplicável a lei da amnistia, sempre subsistiriam os efeitos já produzidos pelo ato sancionador, efeitos estes que só desapareceriam da ordem jurídica através da anulação com efeitos «ex tunc», que só o eventual provimento do recurso contencioso poderia proporcionar.
vii. Com o devido respeito à posição defendida na douta sentença ora recorrida, o Recorrente considera que, face aos termos da lei da amnistia de 2023, à tradição das leis de amnistia anteriores e à jurisprudência existente sobre o tema, a amnistia não opera «ex tunc».
viii. A interpretação defendida quanto aos efeitos «ex tunc» é contrária à letra e ao espírito da lei, violando os princípios e regras de interpretação vertidos nos artigos 7.º a 9.º e 12.º do Código Civil.
ix. Nos termos da Lei n.º 38-A/2023, a amnistia tem por efeito a extinção da infração disciplinar e de todos os seus efeitos, com exceção dos já produzidos e que são indestrutíveis. A amnistia da sanção disciplinar não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da sanção, os quais só poderiam vir a ser eliminados através do provimento da presente ação de impugnação.
x. Cabendo, ainda, referir que a amnistia não tem os mesmos efeitos que a anulação do ato impugnado em causa nestes autos.
xi. À luz do art.° 45. °, al. e), do EDGNR, a amnistia constitui uma das causas de extinção da responsabilidade disciplinar, sendo que, nos termos do art.° 50. ° do mesmo diploma, a amnistia “tem os efeitos previstos na lei penal; segundo o art.° 128. °, n.º 2, do CP, a amnistia “extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos".
xii. O procedimento disciplinar que se encontra regulado no EDGNR é unicamente composto pelas fases procedimentais aí previstas, não existindo qualquer fase judicial que faça parte desse procedimento, aliás, nem o processo judicial constitui qualquer continuação do procedimento disciplinar, não com este se confunde.
xiii. Consequentemente, no caso dos autos, tendo o procedimento disciplinar sido extinto com a aplicação de uma pena de 25 dias de «suspensão», nos termos do art.° 128. °, n.º 2 (segunda parte), do CP, aplicável ex vi art.° 50.° do RDGNR, resta extinguir a pena aplicada e não cumprida, salvaguardando-se os demais efeitos já produzidos.
xiv. Por outro lado, mesmo no caso das infrações disciplinares amnistiadas, o registo também não pode ser eliminado, pois, para além de ser um facto histórico válido, que produziu efeitos, tal releva ainda para efeitos da verificação da «reincidência» (cf. art.° 75. °, n.º 4, do CP, aplicável ex vi art.° 50.° do RDGNR), devendo apenas ser efetuado o respetivo averbamento. Nos termos do art.° 36. °-A, n.º 4, do RDGNR, só se a decisão punitiva for anulada contenciosamente, isto é, com fundamento na sua invalidade, é que as infrações disciplinares são definitivamente eliminadas não só do registo, como do próprio registo disciplinar dos militares, circunstância que não se verificou no caso do recorrido, pois foi julgada extinta a instância.
xv. Se o requerido pretendia obter os efeitos de anulação da decisão punitiva, o recorrido, nos termos do art.° 11, °, números 1 e 2, da Lei da Amnistia, sempre poderia ter requerido a recusa da amnistia, o que ditaria o prosseguimento do processo em ordem à apreciação da legalidade da decisão punitiva, porém, livre e conscientemente optou por não o fazer, esgotando, assim, qualquer possibilidade de obter uma sentença anulatória.
xvi. A maioria das decisões dos tribunais não configuraram e apreciaram a questão nos devidos termos, limitando-se a subsumir as infrações disciplinares aos requisitos estabelecidos na Lei da Amnistia, sem nunca terem a preocupação de indagar da existência de normativos especiais que pudesse coexistir nos regulamentos disciplinares em causa (da GNR ou até da PSP), muito provavelmente toldadas pela teoria vigente em relação à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, que atualmente não prevê qualquer norma que limite os efeitos da declaração de amnistia.
N. A justiça disciplinar militar difere dos demais acervos disciplinares públicos e privados, e justifica-se sobretudo pela estrutura fortemente hierarquizada, disciplinada e intrinsecamente ligada a valores como o respeito pela hierarquia, a valorização da coesão, a salvaguarda da segurança (e da defesa nacional), a obediência aos órgãos de soberania, e direcionada ao cumprimento de uma missão.
O. O ambiente de atuação dos agentes da PSP é substancialmente diferente do comum dos cidadãos, sobretudo atendendo à perigosidade danosa da sua conduta, que poderá ser muito superior comparativamente à do normal cidadão (utilização de força armada), confere uma legítima justificação para uma regulamentação disciplinar com características próprias e especiais.
P. Posto isto, verifica-se que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, por ter feito uma errónea interpretação dos efeitos da Lei n.º 38-A/2023, pelo que a douta sentença recorrida deve ser alterada no que se refere aos efeitos «ex tunc» operados pela amnistia…”.


Notificado, o Autor, aqui Recorrido, contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida, para tanto, apresentando as respetivas contra-alegações com as conclusões que se transcrevem:
“1. Não se conformando com a douta decisão proferida a fls. e segs dos autos, veio o recorrente interpor o presente recurso, por entender, sumariamente: o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, por ter feito uma errónea interpretação dos efeitos da Lei n.º 38-A/2023, devendo, consequentemente, revogar-se a sentença em crise no que se refere aos efeitos «ex tunc» operados pela amnistia.
2. Fundamentou, a sentença em crise, a sua decisão, quanto aos efeitos produzidos pela amnistia, na seguinte linha jurisprudencial: os "(...) nossos tribunais superiores já se pronunciaram, de forma unânime, sobre esta questão, no sentido de que a amnistia "apaga" a infração disciplinar, abolindo-a retroativamente, pelo que se pode dizer que opera ex tunc.".(…)
4. O recorrido, por obediência à legalidade, só pode subscrever a douta exegese da Lei da Amnistia, levada a cabo pelo Tribunal a quo.
5. No que tange às alegações do recorrente, cabe, reiterando os louváveis fundamentos da decisão recorrida, sublinhar que:
6. É entendimento dominante na jurisprudência e na doutrina que a amnistia faz cessar a responsabilidade disciplinar do arguido, pelo que, salvo disposição legal em contrário (que inexiste), determina o «esquecimento» da infração, extinguindo os respetivos efeitos com eficácia ex tunc.
7. Daqui decorre, necessariamente, que a amnistia faz desaparecer também - retroativamente - o objeto da ação que visa a anulação ou declaração de nulidade do ato que aplicou a correspondente pena disciplinar.
8. Ora, se cessou a responsabilidade disciplinar do arguido, extinguindo-se os efeitos do ato que a efetivou, não subsiste nenhum interesse em determinar se o poder disciplinar prescreveu ou não antes da prática daquele ato, porque não existem outros efeitos jurídicos a extinguir para além daqueles que são extintos pela própria amnistia.
9. O Tribunal recorrido limitou-se a cumprir a Lei, não merecendo, na nossa modesta opinião, qualquer reparo ou censura a louvável sentença recorrida.
Termos em que não deve ser dado provimento ao presente recurso interposto e, em consequência, manter-se a douta decisão recorrida, nos seus precisos termos, assim se fazendo a acostumada justiça…”: cfr. fls. 472 a 482.


O recurso foi admitido e ordenada a subida dos autos por Despacho de 2024.05.02.


Notificado o Ministério Público nesta instância em 9 de agosto de 2024, nada veio este dizer, requerer ou Promover.
Prescindindo-se dos vistos legais, mas com o envio prévio do projeto de Acórdão aos Juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.


II. OBJETO DO RECURSO:
Delimitadas as questões a conhecer pelo teor das alegações de recurso apresentadas pela entidade recorrente e respetivas conclusões (cfr. art. 635º, nº 4 e art. 639°, n°1, nº. 2 e nº 3 todos do Código de Processo Civil – CPC ex vi art. 140º do CPTA), não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas - salvo as de conhecimento oficioso -, importa apreciar e decidir agora se a decisão sob recurso padece, ou não, do assacado erro de julgamento de direito.


III. FUNDAMENTAÇÃO:
A – DE FACTO:
Factos provados:
Não tendo sido fixados factos na decisão recorrida e por ser mostrar relevante para a boa decisão em sede recursiva, em face dos elementos juntos aos autos, do Processo Administrativo - PA, da prova por admissão e das regras de experiência comum, resulta agora assente que:
1. Em 2022-03-03, o MAI rejeitou o Recurso Hierárquico interposto pelo ora recorrido, mantendo, em consequência, a decisão disciplinar condenatória, que no âmbito do processo disciplinar n.º ../21...EVR, lhe havia aplicado uma pena disciplinar de suspensão, pelo período de 25 dias: cfr. doc.s juntos com a Petição Inicial – PI e PA;
Factos não provados:
A. A pena disciplinar encontra-se integralmente cumprida: cfr. doc. s juntos com a PI e PA; vide ainda fls. 425 dos autos versus articulado nas alegações de recuso (v.g. o articulado sob o n.º 5 versus xiii).


IV - DO DIREITO:
No que aqui releva, discorreu-se no discurso fundamentador da decisão recorrida:
“Considerando que a sanção disciplinar objeto de impugnação nos presentes autos, se integra no âmbito material - sanção disciplinar de suspensão - e no âmbito temporal de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto - relativa a uma infração disciplinar praticada antes do dia 19.06.2023 -, nos termos do disposto nos artigos 2.°, n.° 2, al. b) e 6.° deste diploma legal, e bem assim, que o A. não recusou a amnistia, ao abrigo do disposto no artigo 11°, n.° 1 da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de agosto, conclui-se que estão reunidos os pressupostos legais exigíveis para que a infração disciplinar em discussão no caso sub iudice seja amnistiada.
Com a declaração da amnistia da infração disciplinar sancionada pelo despacho impugnado com a pena de suspensão, os presentes autos perdem o seu objeto, tornando impossível o ulterior prosseguimento da presente lide, que, assim, importa extinguir, nos termos do disposto no artigo 277.o, al. e) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo l.° do CPTA.
A respeito dos alegados efeitos meramente ex nunc, produzidos pela lei da amnistia, importa referir que não assiste razão à Entidade Demandada, uma vez que os nossos tribunais superiores já se pronunciaram, de forma unânime, sobre esta questão, no sentido de que a amnistia “apaga” a infração disciplinar, abolindo-a retroativamente, pelo que se pode dizer que opera ex tunc.
Vejam-se, neste sentido, o recente acórdão do STA de 16.11.2023, proferido no âmbito do proc. n.° 262/12.0BELSB, e os acórdãos do TCAS de 12.10.2023, prolatados nos processos n.° 400/22.5BEBJA e 699/23.0BELSB, para cuja fundamentação se remete, citando-se infra os seus excertos mais relevantes.
No acórdão do STA de 16.11.2023. no processo n.° 262/12.0BELSB. disponível para consulta em www.dgsi.pt, refere-se o seguinte, a propósito dos efeitos da amnistia:
“6.. O Reclamante não tem razão quando alega que a amnistia apenas produz efeitos para futuro (...).
Sem prejuízo dos efeitos de facto que, entretanto, se tenham consumado, nomeadamente os relativos ao cumprimento da pena, é entendimento dominante na jurisprudência e na doutrina que a amnistia faz cessar a responsabilidade disciplinar do arguido, pelo que, salvo disposição legal em contrário, determina o «esquecimento» da infração, extinguindo os respetivos efeitos com eficácia ex-tunc.
Daqui decorre, necessariamente, que a amnistia faz desaparecer também - retroativamente - o objeto da ação que visa a anulação ou declaração de nulidade do ato que aplicou a correspondente pena disciplinar. (...)”
Por sua vez, no acórdão do TCAS proferido no processo n.º 400/22.5BEBJA (e em termos idênticos, no proc. n° 699/23.0BELSB), ambos de 12.10.2023, pode ler-se, no mesmo sentido, que:
“13. A amnistia da infração disciplinar em sentido próprio, é aquela que ocorre antes da condenação do trabalhador, refere-se à própria infração e faz extinguir o procedimento disciplinar. Por sua vez, a amnistia em sentido impróprio, ou seja, a que ocorre depois da condenação, apenas impede ou limita o cumprimento da sanção disciplinar aplicada, fazendo cessar ou restringir a execução dessa sanção, bem como das sanções acessórias.
14. No caso presente, como o artigo 6° da Lei n° 38-A/2023, de 2/8, não distingue entre amnistia própria e amnistia imprópria, o efeito útil da norma é o de que a amnistia aí prevista constitui uma providência que “apaga ” a infração disciplinar, sendo por isso apropriado falar-se aqui numa abolição retroativa da infração disciplinar, porquanto esta (a amnistia), opera “ex tunc”, incidindo não apenas sobre a própria sanção aplicada, como também sobre o facto típico disciplinar passado, que cai em “esquecimento”, tudo se passando como se não tivesse sido praticado e, consequentemente, eliminado do registo disciplinar do trabalhador. (...)”
Em suma, à luz do entendimento jurisprudencial supra exposto, que sufragamos integralmente, e que é inteiramente aplicável ao caso sub iudice, ao contrário do que alega a Entidade Demandada, a amnistia da infração disciplinar aplicada ao A., ao abrigo da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de agosto, produz efeitos jurídicos ex tunc, abolindo-a retroativamente.”


Vejamos:
Importa desde logo distinguir a amnistia própria da imprópria.
Como resulta do sumariado no Acórdão do STA nº de 10-02-1993, “A chamada amnistia própria respeita à infração propriamente dita, ocorrendo, pois, antes da condenação, ao passo que a imprópria respeita antes aos seus efeitos, ocorrendo depois daquela.”


Em razão do seu conteúdo, a amnistia é um procedimento de carácter geral através do qual o Estado apaga o relevo jurídico de certas infrações, subdividindo-se em amnistia própria, anterior à condenação definitiva e amnistia imprópria, a que atua depois da condenação definitiva, ou seja, se for caso disso, depois do transito em julgado da correspondente decisão judicial.


Como se discorreu no Rec.nº64/A/97 - Proc.:R-2353/94, de 3.09.1997, do Provedor de Justiça, “No que concerne a este argumento, aparentemente, ao fazer a distinção entre amnistia imprópria e própria pretende V.ª Ex.ª retirar consequências ao nível do regime aplicável e dos efeitos da medida de clemência em causa. É que, segundo V.ª Ex.ª, na amnistia própria estaríamos na presença de uma verdadeira extinção do procedimento encetado com esta finalidade, ao passo que na amnistia imprópria a medida de clemência incidiria sobre as consequências da falta cometida. Esta distinção doutrinária foi introduzida pela primeira vez em Portugal pela mão do Professor Beleza dos Santos que, por influência clara da doutrina italiana, afirmava que na amnistia própria a medida de clemência respeitava ao próprio crime ou infração, ao passo que a amnistia imprópria respeitava à consequência jurídica do crime ou infração. Esta posição doutrinal, que reaparece ainda hoje feita pelo nosso ordenamento jurídico quando se refere à amnistia (própria) e perdão genérico (que corresponde em termos doutrinários à dita amnistia imprópria), recebeu o aplauso do Prof. Eduardo Correia. Porém, como ensina o Professor Figueiredo Dias( ), se tal distinção pode ser feita, o certo é que “não deve considerar-se suscetível de fundar efeitos jurídicos diversos, reduzindo-se portanto a um dispensável e inconveniente luxo de conceitos. Não se trata minimamente, na verdade, de que na amnistia própria exista uma espécie de “descriminalização”, enquanto na amnistia imprópria se estaria perante uma mera “despenalização”: Ainda na amnistia própria, e mesmo quando ela seja feita por apelo a certos tipos de factos, o que definitivamente está em causa (e só) é o impedir-se que o agente agraciado sofra a sanção a que poderia vir a ser (ou a que já foi) condenado. Em suma: “tanto a amnistia própria como a imprópria (ou perdão genérico) se reconduzem à mesma fonte de legitimação e devem possuir os mesmos efeitos jurídico-penais”.


Na situação controvertida, verifica-se que, não obstante o MAI tenha efetivamente aplicado administrativa e instrumentalmente a controvertida pena, o que é facto é que a mesma não se terá ainda consolidado na ordem jurídica, uma vez que foi jurisdicionalmente impugnada, não tendo a correspondente Ação transitado ainda em julgado, em face do que não há ainda condenação efetiva e definitiva.


Na realidade, nos termos do art.° 6.° da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto “São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar. ”


Por outro lado, resulta da al. b) do n.° 2 do art.° 2.° da referida lei que beneficiam do perdão as “Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.°”, o que significa que a infração aqui em causa se situa em momento em que é abrangida pela referida lei.


É pois reconhecido que o aqui Recorrido foi abrangido pela lei da amnistia, estando apenas controvertido se os efeitos do declarado terão efeitos ex tunc ou ex nunc.


Extinguindo-se o procedimento disciplinar, perde objeto a pena aplicada, designadamente os seus efeitos, tanto mais que, como se afirmou já, não ocorreu o transito em julgado.


Assim, aderimos ao entendimento constante da decisão de primeira instância, uma vez que, em bom rigor, a pena administrativamente aplicada, não se consolidou ainda na ordem jurídica, não sendo ainda definitiva.
Com efeito, aplica-se ao Autor a Lei da Amnistia e concretamente o regime de amnistia previsto artigo 2.°, n.° 2, alínea b) e do artigo 6.° da mencionada Lei, o que tem como consequência a extinção do procedimento disciplinar e, no caso de ter havido já condenação administrativa, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos.


Como decidido em 1ª Instância, a amnistia opera não só sobre a própria pena, como também sobre o ato disciplinar passado, que cai em “esquecimento”, o qual é tido como não praticado e, consequentemente, eliminado do registo individual do trabalhador, tendo necessariamente de aplicar-se ao Recorrido a Lei da Amnistia, declarando-se extinto o procedimento disciplinar a sanção e seus efeitos.


Como o artigo 6° da Lei no 38-A/2023, de 2/8, não distingue entre amnistia própria e amnistia imprópria, o efeito útil da norma é o de que a amnistia aí prevista constitui um comando que “apaga” a infração disciplinar.


Refira-se, finalmente, que o próprio STA já adotou repetidamente o referido entendimento.


Efetivamente, sumariou-se no Acórdão do STA nº 01618/19.3BELSB, de 07.12.2023, que “A amnistia faz cessar a responsabilidade disciplinar do arguido, pelo que, salvo disposição legal em contrário, tem eficácia ex-tunc, e faz desaparecer o objeto da ação que visa a anulação ou declaração de nulidade do ato que aplicou a pena disciplinar, determinando a inutilidade da respetiva lide.


Do mesmo modo, no que aqui releva, sumariou-se no recente Acórdão do STA nº 01043/20.3BEPRT, de 16-05-2024 que (…) II- A amnistia extingue a respetiva responsabilidade disciplinar, tendo como efeito a extinção do procedimento disciplinar e, como tal o ato sancionatório impugnado (cujos efeitos condenatórios não se encontram, por isso, consolidados na ordem jurídica) perde o seu objeto.
(…)
IV- Estando verificados os pressupostos legais previstos nos artigos 2.º, n.º2, alínea b) e 6.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, a infração disciplinar que motivou a aplicação da sanção disciplinar de advertência escrita ao autor deve declarar-se amnistiada.
V- Sendo inútil o prosseguimento da lide, por se encontrar amnistiada a infração que lhe deu causa, inútil é também o conhecimento do presente recurso de revista, dado que o mesmo, sendo um recurso ordinário, que visa a revogação das decisões proferidas pelas instâncias, não se destina a fixar uma orientação jurisprudencial e não tem autonomia em relação ao processo de que emerge.”


Assim, não se reconhece que o Recurso mereça provimento, pois que a decisão Recorrida fez uma correta subsunção dos factos ao direito aplicável, de acordo com a jurisprudência dominante.


V - Decisão
Deste modo, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul, subsecção social, em negar provimento ao Recurso, confirmando-se a Sentença Recorrida.


Custas pelo Recorrente


Lisboa, 31 de outubro de 2024

Frederico Macedo Branco (Relator por Vencimento)

Rui Belfo Pereira

Teresa Caiado (Voto Vencido)


VOTO VENCIDO:
Concederia provimento ao recurso e, em consequência, revogaria a decisão recorrida na parte em que declarou os efeitos «ex tunc» da amnistia.
De acordo com a seguinte ordem de razões:
1. Partindo do pressuposto consensual de que estamos perante uma amnistia imprópria (que extingue a infração em litígio), tal não determina, todavia, sempre a eliminação dos efeitos já produzidos, porquanto, como sucede no caso concreto, existindo, como existe, disposição legal em sentido contrário, não ocorre, por isso, in casu, a eliminação dos efeitos já produzidos, com a consequente eliminação do registo disciplinar militar e/ou da devolução dos montantes pagos a título de multa disciplinar (pena disciplinar de multa que, recorde-se, no caso, é questão que não se coloca): cfr. art. 45º al. e); art. 36.°-A, n.º 4 e art. 50º todos do RDGNR; art. 75º n.º 4 e art. 128. ° n.º 2 ambos do CP ex vi art. 50º do RDGNR; vide Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo – STA, de 2023-11-16, processo nº 262/10.0BELSB, disponível em www.dgsi.pt;
2. A amnistia não tem os mesmos efeitos que a anulação do ato impugnado, como a amnistia da sanção disciplinar não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da sanção, os quais só poderiam vir a ser eliminados do registo disciplinar militar através do provimento de ação de impugnação: cfr. art. 36º -A, n.º 4 do RDGNR versus art. 6.º da Lei n.º 38- A/2023, de 02 de agosto.
3. Existe erro de julgamento de direito por a decisão recorrida não ter reconhecido a existência de disposições legais e regulamentares que, tratando-se, como se trata de um ilícito disciplinar militar, se impunham observar em articulação com a aplicação da citada Lei da Amnistia: cfr. art. 45º al. e); art. 36. °-A, n.º 4 e art. 50º todos do RDGNR; art. 75º n.º 4 e art. 128. ° n.º 2 ambos do CP ex vi art. 50º do RDGNR versus art. 6.º da Lei n.º 38- A/2023, de 02 de agosto;
4. Destarte, a decisão recorrida padece de erro de julgamento de direito, por errónea interpretação do art. 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, ao considerar que a amnistia extingue sempre a infração disciplinar com efeitos ex tunc, porquanto, tendo sido, como foi, repisa-se, a doutrina penalista importada para o direito disciplinar público, e tratando-se, como se trata de uma sanção disciplinar militar importa ter presente, no caso, a existência, de disposições legais e regulamentares próprias que afastam tal efeito: cfr. art. 45º al. e); art. 36. °-A, n.º 4 e art. 50º todos do RDGNR; art. 75º n.º 4 e art. 128. ° n.º 2 ambos do CP ex vi art. 50º do RDGNR; cfr. Germano Marques da Silva, em “Direito Penal Português”, Parte Geral III, Teoria das Penas e das Medidas de Segurança, 2.ª edição, Verbo Jurídico, 2008, pág. 274 e 275; neste sentido vide art. 128° do CP; art. 12º da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto; Jorge Miranda e Rui Medeiros, em “Constituição da República Anotada, Tomo II, Organização Económica e Organização do Poder Político – art. 80º a 201º, pág. 498; voto vencida de Suzana Tavares da Silva, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo – STA, de 2023-12-07, processo n.º 01618/19.3BELSB, disponível em www.dgsi.pt.
Lisboa, 31 de outubro de 2024
Teresa Caiado