Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:437/14.8BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:07/04/2019
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:AMPLIAÇÃO DO PEDIDO;
JUROS DE MORA;
OBRIGAÇÃO DE PAGAMENTO DE JUROS COMERCIAIS;
ATRASOS NO PAGAMENTO EM TRANSACÇÕES COMERCIAIS;
LEI N.º 3/2010, DE 27-04;
DECRETO-LEI N.º 32/2003, DE 17-02.
Sumário:
I – Da aplicação conjugada dos art.ºs. 35.º, n.º 1, 37.º, 42.º, 44.º do CPTA, 259.º, n.º 1, 264.º e 265.º, n.º 2, do CPC, após a apresentação da PI, o A. pode alterar o seu pedido, em qualquer altura e até ao encerramento da discussão em 1.º instância, independentemente do acordo da contraparte, se tal ampliação for o desenvolvimento ou uma consequência do pedido primitivo;
II – A alteração do quantitativo dos juros de mora requeridos na PI deve ser qualificada como uma ampliação do pedido, que corresponde a um desenvolvimento do pedido primitivo;
III - Após a vigência do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17-02, os juros aplicáveis aos atrasos de pagamento das transacções comerciais aí previstas - que abrangem as transacções entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem à prestação de serviços contra uma remuneração – são os estabelecidos no Código Comercial, isto é, são juros comerciais (cf. art.º 102.º, § 4.º do Código Comercial);
IV - O art.º 1.º da Lei n.º 3/2010, de 27-04, visou o estabelecimento da obrigação do Estado e demais entidades públicas a pagarem juros de mora pelo atraso no cumprimento de quaisquer obrigações pecuniárias, para as situações que não envolvessem “transações comerciais”, ou seja, para as demais situações que ficassem fora do comércio. Basicamente, visou-se abranger as obrigações civis. Daí, que aquela mesma Lei n.º 3/2010, de 27-04, tenha mantido em vigor o preceituado nos art.ºs 1.º, 2.º, 3.º, e 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17-02, normativos que se aplicam às transacções comerciais;
V - Opera aqui a ressalva do n.º 2 do art.º 1.º da Lei n.º 3/2010, de 27-04, devendo entender-se que os art.ºs 1.º, 2.º, 3.º, e 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17-02, constituem disposições legais que determinam a aplicação de taxa de juro diversa da referida no art.º 806.º, n.º 2, do Código Civil, designadamente porque estabelecem a obrigação de pagamento de juros comerciais.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I - RELATÓRIO

Q...., Lda, interpôs recurso da decisão do TAF de Loulé, na parte em que fixou o pagamento dos juros de mora vencidos em €2.937,38, ao invés dos €10.993,07, peticionados no requerimento de resposta às excepções.
Em alegações são formuladas pelo Recorrente, as seguintes conclusões: ”No pedido formulado, a Recorrente quantificou os juros vencidos em €2.937,38 (dois mil novecentos e trinta e sete euros e trinta e oito cêntimos), embora por lapso, uma vez que por simples cálculo aritmético se pode verificar que o valor de juros vencidos à data da apresentação da petição inicial (em 24 de Fevereiro de 2014), contabilizados à taxa de juros comerciais conforme peticionado, é bastante superior àquele que foi indicado.
Em sede de Resposta a Excepções, a Recorrente (i) confirmou a este Tribunal que o Recorrido tinha procedido ao pagamento do capital em dívida; (ii) informou que ficou em dívida o pagamento dos correspondentes juros de mora calculados à taxa dos juros comerciais até à data do pagamento (27 de Abril de 2014), totalizando os mesmos a quantia de € 10.993,07 (dez mil novecentos e noventa e três euros e sete cêntimos); e (iii) peticionou a alteração do pedido inicialmente formulado na sua Petição Inicial.
Notificada do requerimento apresentado, o Recorrido não impugnou a alteração do pedido formulada pela Recorrente e, por conseguinte, admitiu-o.
Por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 265.º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 1.º do CPTA, ad maiorí ad mínus, deve considerar-se que a quantificação e correcção dos juros devidos em sede de Resposta a Excepções deveria ter sido admitida por este Tribunal e considerada na sentença, para efeitos de condenação.”

O Recorrido não contra-alegou.

O DMMP não apresentou pronúncia.

II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – OS FACTOS
Na 1.ª instância foram fixados os seguintes factos, que não vem impugnados, pelo que se mantém:
A) A Autora é uma sociedade comercial e dedica-se à prestação de serviços de consultadoria (por confissão – cfr artº 1º da petição inicial);
B) Em 2010.04.19, a Autora e o Réu celebraram um contrato de prestação de serviços denominado ‘Contrato de Prestação de Serviços para Desenvolvimento de Competências em Inovação Social Participativa’, cujo objecto consiste na “prestação de serviços pelo adjudicatário ao município para desenvolvimento de competências em inovação social participativa nas condições definidas no Caderno de Encargos” (cfr doc da petição inicial);
C) Nos termos da cláusula 4ª do contrato referido em B), “os serviços objecto do presente contrato serão realizados nas condições fixadas no Caderno de Encargos do procedimento de ajuste directo” (cfr doc da petição inicial);
D) Nos termos do nº 2 da cláusula 2ª do contrato, o pagamento do preço do contrato “(…) será efectuado no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da data da recepção das facturas correspondentes às prestações de serviços, as quais só podem ser emitidas após o vencimento da obrigação a que se referem” (cfr doc da petição inicial);
E) O Réu pagou à Autora, a quantia de 35.738,00€, constante da factura emitida em 2010.08.05 (cfr doc da petição inicial e fls 79 dos autos virtuais);
F) O Réu refere que “os juros solicitados pela Autora foram incluídos no Plano de Ajustamento Municipal (PAM), que vão ser pagos pelo Fundo de Apoio Municipal ao qual o Município Réu se candidatou conforme deliberação de 13 de Março de 2015” (cfr fls 88 dos autos virtuais).

Nos termos dos art.ºs. 149.º, do CPTA, 662.º, n.º 1 e 665.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, acrescenta-se o seguinte facto, por provado:
G) O R. efectuou o pagamento ao A. da quantia de € 35.738,00, em 27-05-2014 (por acordo).

II.2 - O DIREITO
A questão a decidir neste processo, tal como vem delimitada pelas alegações de recurso é:
- aferir do erro decisório porque o Recorrente alterou o pedido no requerimento de resposta às excepções, passando a contabilizar os juros devidos em €10.993,07, requerendo o pagamento desse montante, em substituição do referido na PI, pagamento esse a que tem direito.
Na PI o A. peticionou o pagamento de juros legais, à taxa aplicável para os juros comerciais, contabilizando-os no montante de €2.937,38.
Na contestação o R. vem impugnar o pagamento dos juros pela taxa aplicável aos juros comerciais, considerando que o valor de juros deve ser contabilizado à taxa legal.
Na resposta às excepções, o A. e Recorrente invoca o pagamento da divida e, a final do seu requerimento, acrescenta querer corrigir o pedido inicial, por contabilizar os juros devidos em €10.993,07.
Na decisão recorrida julga-se pelo dever do R. a pagar juros de mora vencidos e vincendos, até integral pagamento, à taxa de juro comercial, condenado o R. no pagamento, a este título, do valor de €2.937,38.
É relativamente à parte da sentença que fixou este último quantitativo que vem interposto o presente recurso.
A presente acção foi apresentada no TAF de Loulé na forma de acção administrativa comum, correndo nos termos do CPTA, na sua anterior redacção.
Da aplicação conjugada dos art.ºs 35.º, n.º 1, 37.º, 42.º, 44.º do CPTA, 259.º, n.º 1, 264.º e 265.º, n.º 2, do CPC, após a apresentação da PI, o A. poderia alterar o seu pedido, em qualquer altura e até ao encerramento da discussão em 1.º instância, independentemente do acordo da contraparte, se tal ampliação fosse o desenvolvimento ou uma consequência do pedido primitivo.
Tal como decorre do antes indicado, na fase dos articulados e aquando do requerimento de resposta às excepções deduzidas, o A. alterou o seu pedido, ampliando-o, passando a quantificar os juros de mora por um valor superior.
É indubitável qua esta quantificação por um valor superior deve ser qualificada como um desenvolvimento do pedido primitivo.
Assim, tal alteração e quantificação dos juros de mora por um valor superior era permitida ao A. Consequentemente, a decisão recorrida devia ter decidido acerca deste novo quantitativo, pronunciando-se sobre o mesmo, verificando se tal era devido, o que não fez.
Atendendo aos factos provados, em causa nestes autos está um contrato administrativo celebrado em 19-04-2010, cujo pagamento do preço se fazia no prazo de 60 dias a contar da recepção das correspondentes facturas. Indica-se na matéria factual, que a factura em questão foi emitida em 05-08-2010. Logo, a factura vencia-se em 04-10-2010. Em 27-05-2014 foi paga a quantia de € 35.738,00.
Portanto, ao presente contrato era aplicável o regime previsto no Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17-02, na versão na versão alterada pela Lei n.º 3/2010, de 27-04 (cf. art.º 8.º da Lei n.º 107/2005, de 01-07 e 5.º da Lei n.º 3/2010, de 27-04).
A Lei n.º 3/2010, de 27-04, que entrou em vigor em 01-09-2010, apesar de não alterar o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17-02, nos preceitos que ora interessam, introduziu o seguinte preceito, como art.º 1.º à citada lei, com a epigrafe “Juros de mora”: “1 - O Estado e demais entidades públicas, incluindo as Regiões Autónomas e as autarquias locais, estão obrigados ao pagamento de juros moratórios pelo atraso no cumprimento de qualquer obrigação pecuniária, independentemente da sua fonte.
2 - Quando outra disposição legal não determinar a aplicação de taxa diversa, aplica-se a taxa de juro referida no n.º 2 do artigo 806.º do Código Civil.
3 - O disposto no presente artigo não é aplicável à administração fiscal, no contexto das relações tributárias, que se regem por legislação própria.”
O art.º 1.º da Lei n.º 3/2010, de 27-04, visou o estabelecimento da obrigação do Estado e demais entidades públicas a pagarem juros de mora pelo atraso no cumprimento de quaisquer obrigações pecuniárias, para as situações que não envolvessem “transações comerciais”, ou seja, para as demais situações que ficassem fora do comércio, isto é, do exercício de uma actividade comercial. Basicamente, visou-se abranger as obrigações civis.
Daí, que aquela mesma Lei n.º 3/2010, de 27-04, tenha mantido em vigor o preceituado nos art.ºs 1.º, 2.º, 3.º, e 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17-02, normativos que se aplicavam às transações comerciais e designadamente a “qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração”.
Opera aqui a ressalva do n.º 2 do art.º 1.º da Lei n.º 3/2010, de 27-04, devendo entender-se que os art.ºs 1.º, 2.º, 3.º, e 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17-02, constituem disposições legais que determinam a aplicação de taxa de juro diversa da referida no art.º 806.º, n.º 2, do Código Civil, designadamente porque estabelecem a obrigação de pagamento de juros comerciais.
Ou seja, após a vigência do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17-02, os juros aplicáveis aos atrasos de pagamento das transações comerciais aí previstas - que abrangem as transações entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respetiva natureza, forma ou designação, que dê origem à prestação de serviços contra uma remuneração, tal como ocorre no caso dos presentes autos – são os estabelecidos no Código Comercial, isto é, são juros comerciais (cf. Art.ºs 102.º, § 4.º do Código Comercial).
Assim, a tais juros devem ser aplicadas as taxas que foram fixadas em Portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça, a saber, a taxa legal de 8%, conforme Avisos n.º 13746/2010, de 12-07 e n.º 2284/2011, de 21-01, por a prestação em questão ter vencido no 2.º semestre de 2010, mais especificamente em 04-10-2010.
Como se disse, a Lei n.º 3/2010, de 27-04, não alterou a obrigação do Estado e demais entidades públicas de pagarem juros de mora pelo atraso no cumprimento de obrigações pecuniárias que envolvessem “transações comerciais”, conforme determinado no Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17-02, mas apenas veio a consagrar, através do seu art.º 1.º, uma obrigação do Estado e demais entidades públicas a pagarem juros de mora pelo atraso no cumprimento de quaisquer outras obrigações pecuniárias, nomeadamente civis (com a ressalva do n.º 3 do art.º 1.º da indicada Lei).
Aliás, atendendo ao âmbito de aplicação da Directiva n.º 2000/35/CE, de 29-06, que visou estabelecer medidas de combate aos atrasos nos pagamentos de transacções comerciais, que o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17-02, transpôs, não poderá ser outra a interpretação da Lei n.º 3/2010, de 27-04.
No sentido ora preconizado aponta a jurisprudência, nomeadamente os Acs. do STA n.º 09/04, de 05-04-2005, n.º 0634/12, de 18-10-2012, ou n.º 0753/12, de 13-09-2012, ou do TCAS n.º 189/13.9BEPDL, de 07-03-2019, n.º 117/13.1BEFUN, de 19-01-2017, ou do TRC n.º 838/05.2TBPCV.C1, de 19-12-2006 e n.º 210/11.5TBCNF.C1, de 18-11-2014.
Em suma, era permitido ao A. e Recorrente alterar o seu pedido inicial, passando a quantificar os juros devidos por um valor superior ao indicado na PI e designadamente pelo valor de €10.993,07.
Ao A. e Recorrente são também devidos juros moratórios vencidos sobre a quantia de 35.738,00€, calculados a partir de 04-10-2010 e até 27-05-2014, a data em que foi paga a quantia de €35.738,00.
Não são devidos ao A. juros vincendos, porque a quantia reclamada foi, entretanto, paga em 27-05-2014.
Ou seja, é devido ao A., a título de juros de mora vencidos, o valor 8% sobre €35.738,00, calculados de 04-10-2010 e até 27-05-2014 (isto é, calculados por 3 anos, 6 meses e 22 dias), o que perfaz o total a titulo de juros de €10.180,71 e não os requeridos €10.993,07.
Razão porque procede parcialmente o recurso interposto e se revoga a decisão recorrida, que errou quando calculou e quantificou os juros vencidos devidos em €2.937,38, por tais juros se computarem em €10.180,71.
Razão também porque se determina o pagamento pelo R. dos juros devidos em €10.180,71.

III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam:
- em conceder provimento parcial ao recurso interposto, revogando a decisão recorrida na parte em que determinou o pagamento pelo R. dos juros vencidos devidos pelo montante de €2.937,38;
- em determinar o pagamento pelo R. e Recorrido nos juros de mora vencidos, no valor de €10.180,71;
- custas de recurso pelo Recorrente, na proporção do decaimento, que se fixa em 10% e sem custas para o Recorrido, porque não contra-alegou (cf. art.ºs. 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2, do RCP e 189.º, n.º 2, do CPTA).

Lisboa, 4 de Julho de 2019.
(Sofia David)

(Helena Telo Afonso)

(Pedro Nuno Figueiredo)