Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:05802/01
Secção:Contencioso Tributário - 1º Juízo Liquidatário
Data do Acordão:03/01/2005
Relator:Francisco Rothes
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
FALTA DE REMESSA DA DECLARAÇÃO PERIÓDICA E DO MEIO DE PAGAMENTO DO IVA
DIFICULDADES ECONÓMICAS
CAUSA DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE E DA CULPA
Sumário:I -Sendo aplicada coima por infracção ao disposto nos arts. 40.º, n.º 1, alínea a), e 26.º, n.º 1, do CIVA, ou seja por falta de remessa da declaração periódica e do montante do imposto exigível no prazo legal para o efeito, a alegação da Arguida, de que foi por dificuldades económicas que não entregou oportunamente o imposto, é irrelevante quer como causa de exclusão da culpa quer como causa de exclusão da ilicitude da falta de entrega do IVA, pois não se trata de imposto cujo pagamento fosse ela a suportar, antes tendo cobrado o mesmo dos seus clientes para entregar nos cofres do Estado, motivo por que se não fez essa entrega é porque deu outro destino ao respectivo montante, que estava à sua guarda.
II - Sem prejuízo do que ficou dito, para que se pudesse verificar o estado de necessidade como causa de exclusão da ilicitude, seria necessário, para além do mais, que a Arguida tivesse alegado factualidade de que pudesse retirar-se que a entrega do imposto ao Estado teria como consequência a ocorrência de um mal superior ao resultante da infracção cometida, como exigido pelo art. 34.º do CP.
III - Por outro lado, e sempre sem prejuízo do que ficou dito em I, para que se pudesse verificar uma situação de exclusão da culpa, exigir-se-ia que ficasse provasse que o facto ilícito tinha sido praticado sob a pressão de uma situação exterior tal que não era possível exigir ao infractor diferente comportamento (cfr. art. 35.º do CP).
IV -O art. 29.º do RJIFNA constitui uma norma típica da incriminação, com a previsão e a respectiva sanção (coima), sendo esta a graduar, nos termos do art. 19.º do mesmo diploma e de acordo com os diversos parâmetros aí fixados («a determinação da medida das coimas far-se-á em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa e da situação económica do agente e deverá, sempre que possível, exceder o benefício económico que o agente retirou da prática de contra-ordenação»), entre um mínimo e um máximo (cfr. art. 18.º ainda do mesmo diploma), motivo por que não lhe descortinamos a invocada inconstitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:1. RELATÓRIO

1.1 No..., Lda. (adiante Recorrente ou Arguida) recorreu para este Tribunal Central Administrativo da sentença que negou provimento ao recurso por ela interposto, ao abrigo do disposto no art. 213.º do Código de Processo Tributário (CPT), da decisão do Director de Finanças Adjunto que, no uso de poderes delegados pelo Director de Finanças de Leiria, a condenou ao pagamento de uma coima de esc. 4.860.000$00, por não ter apresentado oportunamente nem a declaração periódica de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) respeitante ao mês de Junho de 1999 nem o respectivo meio de pagamento, o que constitui infracção ao disposto no art. 26.º, n.º 1, e 40.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA (CIVA), a qual integra o ilícito contra-ordenacional punível pelo art. 29.º, n.º 2, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (1) (RJIFNA).

1.2 No recurso da decisão que lhe aplicou aquela coima alegou a Recorrente, em síntese, o seguinte:
- atento o teor da notificação que lhe foi efectuada, «desconhece inteiramente» (2) o teor do despacho administrativo que a condenou, «Pelo que o acto praticado sofre de ausência total de fundamentação», motivo por que deve ser anulado;
- se é certo que no período em causa não entregou nos cofres do Estado o IVA liquidado, foi unicamente porque nesse período «atravessou dificuldades financeiras imprevisíveis, resultantes do incumprimento de terceiros e principalmente entidades estatais, como, por exemplo, os hospitais públicos, que não pagaram, como ainda não pagam, atempadamente as facturas que lhes são enviadas para o efeito» colocando-a perante um «conflito de deveres» – «o pagamento imediato dos impostos ou o pagamento dos salários aos seus mais de 3.000 trabalhadores» – perante o qual optou pelo pagamento dos salários, por se afigurar o mais relevante;
- «Fica assim excluída toda a culpa, incluindo a negligência», na medida em que lhe não era exigível outro comportamento e que «foi o próprio Estado o causador desta situação» e, assim não se entendendo, «sempre terá que se reconhecer que a recorrente actuou ao abrigo de um estado de necessidade desculpante», o que também constitui motivo de exclusão da ilicitude da sua conduta, nos termos do disposto no art. 9.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, aplicável por força do estatuído no art. 4.º, n.º 2, do RJIFNA;
- considerar que o princípio da exclusão da ilicitude por conflito de deveres não é aplicável no domínio contra-ordenacional seria «interpretar em sentido desconforme os princípios constitucionais da necessidade e proporcionalidade das penas»;
- «É também inconstitucional o art.º 29º do RJIFNA na medida em que não respeita o princípio da proporcionalidade das penas».

1.3 Na sentença recorrida considerou-se, em resumo:
- que a falta de comunicação dos fundamentos da decisão que aplicou a coima não se confunde com a falta de fundamentação da mesma, sendo que aquela só poderia determinar a repetição da notificação e nunca a anulação da decisão;
- que a decisão está devidamente fundamentada, de facto e de direito;
- quanto à invocada colisão de deveres, «pese embora se tenha provado que a recorrente sofreu atrasos no pagamento dos seus créditos, resultantes do incumprimento de terceiros, nomeadamente de entidades estatais (hospitais)», não só não se provou que a Arguida tenha destinado as quantias pecuniárias devidas por IVA para o pagamento de salários, «como é forçado, salvo o devido respeito, apelar-se ao estado de necessidade desculpante, que (...) supõe a obliteração do poder de agir e da liberdade de determinação por força de causas exógenas», sendo que no caso, por um lado, se demonstra que a recorrente não estava limitada ou coarctada na sua liberdade de agir e, por outro, «que não se antolha qual o perigo actual ou iminente (por referência à data dos factos) que não pudesse ser removido ou evitado de outro modo»;
- que inexiste o alegado conflito de deveres que constitua causa de exclusão da ilicitude, «à luz do art.º 36º, n.º 1, do Cód. Penal, ex vi do art.º 191º do CPT», pois o pagamento dos impostos, porque estes visam «a satisfação das necessidades vitais da comunidade» e «a sua falta pode colocar em crise a prestação de cuidados de saúde, a educação, a segurança, etc.», logra prioridade, na hierarquia de valores, sobre os invocados pela Recorrente, «que têm por base a satisfação de meros interesses patrimoniais»;
- que o art. 29.º do RJIFNA não infringe qualquer princípio constitucional da necessidade e proporcionalidade das penas.

1.4 Dessa sentença foi interposto o presente recurso, que a Recorrente motivou e no qual formulou as seguintes conclusões:

« a) A sentença recorrida errou ao não dar como provados os factos acima descritos no art.º 4º destas alegações de recurso em virtude desses factos constarem da escrita e contabilidade comerciais da ora recorrente e esta gozar de presunção de veracidade nos termos do art.º 75º n.º 1 da LGT que não foi abalada por qualquer meio de prova alegado pela administração ou invocado pelo tribunal.
b) A sentença recorrida errou ainda ao não dar como provado, de acordo com as regras de razoabilidade e de experiência comum e por presunção natural ou judicial construída sobre o volume dos créditos da recorrente sobre o Estado a que se refere a alínea anterior e sobre o facto das operações a que respeita o IVA dizerem respeito a prestações de serviços de limpeza, que "o Estado através dos seus Serviços Hospitalares não tinha também pago à ora recorrente IVA que lhe havia sido liquidado por esta de valor superior àquele que deixou de pagar em tempo em Junho de 1999 e que esta ficou incapacitada económica e financeiramente de pagar este imposto e os salários dos seus trabalhadores através dos quais foram realizadas as prestações de serviços de limpeza a que respeita o imposto".
c) O Estado está a venire contra factum proprium ao não ter pago em tempo os montantes de que era devedor à ora recorrente referidos na alínea a) supra e por outro lado ao agir contravencionalmente contra a mesma credora.
d) A ora recorrente agiu sem negligência pois foi colocada pelo Estado na posição de incumprir os seus deveres fiscais, não lhe sendo exigível outro comportamento.
e) Numa situação como esta em que é o próprio Estado a colocar o contribuinte numa situação de incumprimento pela qual depois o mesmo Estado o vem sancionar contravencionalmente, de autêntica imoralidade (!...), não pode deixar de considerar-se como inconstitucional a previsão da coima constante dos n.ºs 1, 2 e 9 do art.º 29º do RJIFNA, bem como o art.º 21º do mesmo RJIFNA, este enquanto impeditivo do juiz não aplicar a coima prevista abstractamente naquele preceito em circunstâncias como esta.
f) E tudo por violação do princípio da justiça ínsito no princípio do Estado de Direito proclamado no art.º 2º da CRP e do princípio da necessidade das penas e do princípio da proporcionalidade (Sobre estes princípios constitucionais de política criminal, cfr. José de Sousa e Brito, «A lei penal na Constituição» em Estudos sobre a Constituição, Lisboa, 1978, págs. 199 e segs. e, entre muitos outros, o acórdão do T. Constitucional n.º 202/2000, de 04/04/2000, publicado no D.R. II Série, de 11/10/2000), em ofensa à regra constitucional constante do art.º 18º n.º 2 da CRP, na restrição dos direitos fundamentais da liberdade, da autonomia privada e do direito de propriedade, reconhecidos, respectivamente, nos art.ºs 27º, 29º, 61º e 62º da mesma Lei Fundamental.

Termos em que se requer que seja dado provimento ao recurso e revogada a sentença recorrida, bem como a decisão administrativa que a condenou em coima, absolvendo-se a recorrente ou, quando assim se não entenda, e subsidiariamente, isenta de pena nos termos do art.º 21º do RJIFNA (arredando-se a sua aplicação por inconstitucional enquanto limitada aos pressupostos aí estabelecidos)».

1.5 O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

1.6 O Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso nos seguintes termos:

«Em face dos factos dados como provados na sentença – e que não sofrem contestação – , não nos merece qualquer censura a sentença recorrida.

Aliás, como bem se refere na sentença, não foram apresentadas provas de qual foi o destino dado ao montante do imposto retido. Também não foram apresentadas provas dos créditos referidos nas alegações e de qual a influência dos mesmos no valor dos impostos deduzidos.

Não nos merece censura a medida da pena».

1.7 Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

1.8 As questões que cumpre apreciar e decidir são as seguintes:
1ª - saber se a sentença recorrida fez errado julgamento de facto
- ao não dar como provada a factualidade que a Recorrente alega sob o art. 4.º das alegações deste recurso jurisdicional, respeitante às quantias, nas quais se inclui o IVA, num total de esc. 379.251.562$00, que lhe estavam em dívida em Junho de 1999 por falta de pagamento pelos serviços hospitalares do Estado (cfr. conclusão da alínea a) e o referido artigo da motivação do recurso);
- ao não dar como provado que foi essa falta de pagamento do Estado («através dos seus serviços hospitalares») à Recorrente, designadamente do IVA que aquela lhe liquidara (e de montante superior ao que ela devia entregar com referência a Junho de 1999), que originou a incapacidade económica e financeira da Recorrente para pagar o IVA e os salários dos trabalhadores (cfr. conclusão da alínea b));
2ª - saber se a sentença recorrida fez errado julgamento de direito
- quando considerou que não ocorre a invocada causa de exclusão da culpa e da ilicitude (cfr. conclusões das alíneas c) e d));
- quando considerou que os arts. 29.º e 21.º do RJIFNA não violam os princípios constitucionais da justiça, da necessidade das penas e da proporcionalidade (cfr. conclusões das alíneas c), e) e f)).


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

2.1.1 Na sentença recorrida, o julgamento de facto foi efectuado nos seguintes termos:

«III - Fundamentação:
III.1 – Factos provados:
a) A recorrente exerce a actividade de prestação de serviços a empresas diversas (CAE 074842);
b) A recorrente encontrando-se registada como sujeito passivo de IVA e enquadrada no regime mensal;
c) A recorrente entregou a 10-11-1999 o montante de Esc. 24.291.313$00, relativo à prestação do mês de Junho de 1999;
d) O prazo de apresentação da prestação referida na al. anterior havia terminado em 10-08-1999;
e) Foi notificada para pagar a coima no montante de Esc. 1.214.565$00, já com a redução prevista no art.º 25º do CPT;
f) Montante esse que não pagou;
g) Por infracção ao disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 40º e n.º 1 do art.º 26º do CIVA, foi-lhe levantado, em 06-01-2000, o auto de notícia de fls. 5;
h) Notificada para deduzir defesa ou requerer o pagamento voluntário da coima, a arguida veio requerer a anulação da coima ou o seu pagamento pelo montante referido supra em c) [(3);
i) Por despacho do Exmo. Director de Finanças, no uso de poderes delegados, foi condenada ao abrigo do disposto no art.º 29º, n.º 2, do RJIFNA, por infracção ao disposto nos artigos 26º, n.º 1, e 40º, n.º 1, al. a), do CIVA, na coima de 4.860.000$00.
j) A recorrente sofreu atrasos no pagamento dos seus créditos, resultante do incumprimento de terceiros, nomeadamente de entidades estatais (hospitais).

*
II.2 – Factos não provados:
Que a recorrente utilizou o montante referido em b) [(4)] para pagamento de salários.
*
II.3 – Motivação
II.3.1 – De facto:
A prova dos factos baseou-se nos documentos juntos aos autos, designadamente o auto de notícia de fls. 5 e informação anexa de fls. 6, bem como na prova testemunhal reduzida a escrito a fls. 92 e ss.
Quanto ao facto não provado, saliente-se que não foi carreado para os autos qualquer elemento documental donde se pudesse inferir o destino dado ao montante do imposto temporariamente retido, nem essa finalidade resulta do depoimento das testemunhas arroladas pela recorrente/arguida».

2.1.2 Com interesse para a decisão a proferir, entendemos ainda dar como provado o seguinte facto:

k) a Arguida apenas apresentou a declaração periódica relativa ao mês de Junho de 1999 em 10 de Novembro de 1999.

2.1.3 A Recorrente pretende que, para além dos factos que foram dados como assentes no Tribunal a quo, factos que não questionou e que, por isso, temos como assentes, deveria ainda aquele Tribunal ter dado como provada outra factualidade, que indicou.
Sobre essa questão, pronunciar-nos-emos adiante, no ponto 2.2.2.

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

Inconformada com a sentença que julgou improcedente o recurso judicial por ela deduzido contra a decisão administrativa que lhe aplicou uma coima por não ter apresentado oportunamente nem a declaração periódica de IVA respeitante ao mês de Junho do ano de 1999 nem o pertinente meio de pagamento, a Arguida dela veio recorrer para este Tribunal Central Administrativo.

Começou por alegar que a sentença recorrida fez errado julgamento de facto quando não deu como provado que em Junho de 1999, o Estado, através dos seus Serviços Hospitalares, lhe devia esc. 379.251.562$00 (cfr. conclusão da alínea a) e art. 4.º da motivação do recurso) e que foi a falta de oportuno pagamento dessa dívida à Recorrente (na qual se inclui o IVA que esta liquidara e de montante superior ao que deixou de entregar em tempo respeitante ao mês de Junho de 1999) que originou a incapacidade económica e financeira da Recorrente para pagar o IVA e os salários dos trabalhadores (cfr. conclusão da alínea b)).

Depois, sustentou não ter culpa pelo incumprimento da obrigação, uma vez que foi o próprio Estado, através dos Serviços Hospitalares, quem a colocou «na posição de incumprir os seus deveres fiscais», motivo por que não lhe era exigível outro comportamento, padecendo de inconstitucionalidade, por violação do princípio da justiça ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no art. 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), quer o disposto no art. 29.º, n.ºs 1, 2 e 9, do RJIFNA, quer o art. 21.º do mesmo diploma, este na medida em que não permite o afastamento da coima em situações como a presente.

Assim, cumpre verificar se a sentença enferma ou não dos invocados erros de julgamento de facto e de direito.


2.2.2 DO ERRO NO JULGAMENTO DE FACTO

A Recorrente pretende que a sentença recorrida deveria ter dado como provado:
«Que no período a que respeita o imposto deixado de entregar à administração fiscal, ou seja, Junho de 1999, o Estado, pelos seus seguintes Serviços Hospitalares lhe devia as seguintes importâncias nas quais se inclui o IVA à taxa de 17%:

[segue-se uma lista de hospitais e centros hospitalares com indicação do montante das dívidas de cada um]

tudo no total de 379 251 562$00»
(cfr. conclusão da alínea a) e art. 4.º da motivação do recurso);
que foi essa falta de oportuno pagamento do Estado («através dos seus serviços hospitalares») à Recorrente (e na qual se inclui o IVA que esta lhe liquidara e de montante superior ao que deixou de entregar em tempo respeitante ao mês de Junho de 1999) que originou a incapacidade económica e financeira da Recorrente para pagar o IVA e os salários dos trabalhadores (cfr. conclusão da alínea b)).

Salvo o devido respeito, relativamente ao primeiro facto que a Recorrente considera que deveria ter sido dado como assente, o Tribunal a quo levou ao probatório, na alínea j), que «A recorrente sofreu atrasos no pagamento dos seus créditos, resultante do incum-primento de terceiros, nomeadamente de entidades estatais (hospitais)». Foi isso que foi alegado pela Arguida no recurso judicial que interpôs da decisão administrativa que a condenou e de que ora recorre para este Tribunal Central Administrativo (cfr. art. 8.º da petição daquele recurso, a fls. 31v.º/32) e foi isso que o Juiz do Tribunal Tributário de 1.ª instância de Leiria deu como provado. Afigura-se-nos, pois, que a sentença, neste aspecto, não merece censura.

Quanto ao segundo facto que a Recorrente pretende estar provado e omisso na sentença – que foi essa falta de pagamento que a impossibilitou, por falta de meios financeiros, de entregar em tempo o IVA respeitante ao mês de Julho de 1999 –, a nosso ver, face à prova produzida nos autos, nada mais podia ter sido levado ao probatório para além da factualidade aí consignada. Na verdade, nada nos permite estabelecer correspondência directa entre o atraso nos pagamentos dos clientes e a falta de entrega do IVA liquidado no mês de Junho de 1999. Certo é que não pode dar-se como provado (nem nada foi alegado nesse sentido) que a Recorrente não tenha recebido oportunamente dos seus clientes o IVA que liquidou e deveria ter entregue relativamente àquele período. Ora, tal facto era o único que poderia relevar para afastar a responsabilidade dela. Adiante se verá porquê.
Muito menos poderá estabelecer-se relação entre qualquer atraso ou falta de pagamento por parte dos clientes da Recorrente e a falta de oportuna remessa da declaração periódica, a qual sempre poderá e deverá ser remetida até ao dia 10 do 2.º mês seguinte àquele a que respeitam as operações (cfr. art. 40.º, n.º 1, alínea a), do CIVA), independentemente da existência ou não de possibilidade de entrega ao Estado do IVA respeitante àquele período.
Por tudo isto, entendemos que a sentença não enferma dos erros de julgamento de facto que a Recorrente lhe assaca.

2.2.3 DO ERRO NO JULGAMENTO DE DIREITO

No caso sub judice, a Arguida não põe em causa que o seu comportamento é abstractamente subsumível ao tipo legal de contra-ordenação que lhe foi imputado e por que veio a ser condenada pela autoridade administrativa.
A Arguida não questiona que era sujeito passivo de IVA, sujeita ao regime da periodicidade mensal e que lhe competia entregar nos serviços da AT as declarações periódicas a que alude o art. 40.º do Código daquele imposto (CIVA) e, simultaneamente com as declarações, o montante do imposto exigível, nos termos do art. 26.º, n.º 1, do mesmo código. Também não questiona que não remeteu oportunamente a declaração respeitante ao mês de Junho do ano de 1999 nem o meio de pagamento do imposto a entregar ao Estado, do montante de esc. 24.291.313$00, até ao termo do prazo para o efeito, que ocorreu em 10 de Agosto de 1999, apenas vindo a cumprir as duas referidas obrigações em 10 de Novembro de 1999, factos que determinaram a sua condenação por infracção ao disposto nos arts. 26.º, n.º 1, e 40.º, n.º 1, alínea a), do CIVA, a qual integra o ilícito contra-ordenacional punível pelo art. 29.º, n.º 2, do RJIFNA.
O que a Recorrente sustenta, quer no recurso que interpôs dessa decisão administrativa para o Tribunal Tributário de 1.ª instância de Leiria, como agora, no recurso que interpôs para este Tribunal Central Administrativo da sentença que julgou improcedente aquele recurso judicial, é que só não entregou oportunamente o IVA liquidado no mês de Junho de 1999, porque «naquele período, [...] atravessou dificuldades financeiras imprevisíveis, resultantes do incumprimento de terceiros e principalmente entidades estatais, como, por exemplo, os hospitais públicos, que não pagaram, como ainda não pagam, atempadamente as facturas que lhes são enviadas para o efeito». Essas dificuldades financeiras, na perspectiva dela, colocaram-na perante uma «colisão de deveres» – «o pagamento imediato dos impostos ou o pagamento dos salários aos seus mais de 3.000 empregados» –, tendo a Recorrente optado por «cumprir o que se [lhe] afigurava como o mais importante», ou seja, o pagamento dos salários, motivo por que, sempre na perspectiva da Recorrente, se verifica uma causa de exclusão da ilicitude ou, pelo menos, da culpa.
A sentença recorrida não acolheu essa tese. Desde logo, porque não ficou provado que a Recorrente tenha destinado as quantias referentes ao IVA ao pagamento de salários. Por outro lado, porque não se verifica qualquer conflito de deveres, tal como a define o art. 36.º do Código Penal (CP), que pudesse constituir causa de exclusão da ilicitude. Muito menos se verifica qualquer estado de necessidade desculpante que exigiria um perigo actual ou iminente que não pudesse ser removido ou evitado de outro modo.
A nosso ver, a sentença decidiu bem quando considerou não se verificar qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Não se ignora que o estado de necessidade, de acordo com a teoria diferenciada (5) que vingou no nosso CP, pode constituir causa de exclusão da ilicitude ou da culpa (cfr. arts. 31.º, 34.º e 35.º). No entanto, nunca a factualidade alegada pela Recorrente poderia integrar causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. Vejamos:
O método por que opera o IVA determina que não é a Recorrente, enquanto sujeito passivo do IVA, quem suporta o encargo do pagamento do imposto, que é suportado pelos seus clientes, enquanto consumidores finais. Esclarecendo:
Nos termos do art. 1.º do respectivo código, o IVA é um imposto sobre as transmissões de bens e prestações de serviços efectuadas em território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal, e sobre as importações de bens.
No que respeita às operações internas, o facto gerador do imposto do imposto e a sua exigibilidade coincidem no tempo; assim, de acordo com disposto no art. 7.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CIVA, o imposto é devido e torna-se exigível, nas transmissões de bens, no momento em que os bens são postos à disposição do adquirente e, nas prestações de serviços, no momento da sua realização.
No entanto, sempre que a transmissão do bem ou a prestação do serviço dê lugar, nos termos do art. 28.º, n.º 1, alínea a), do CIVA, à obrigação de emitir factura ou documento equivalente é, por regra, no momento da emissão da factura que o imposto se torna exigível (art. 8.º do CIVA). O que bem se compreende se tivermos em conta que o IVA opera pelo método do crédito do imposto ou “das facturas”, que, de forma sintética e simplificada se pode explicar nos seguintes termos:
Cada um dos operadores económicos que se sucedem ao longo do circuito de produção e distribuição deverá deduzir do imposto liquidado nas suas vendas o montante do imposto que suportou nas suas compras, pelo que o imposto a entregar ao Estado relativamente ao período fiscal a considerar será a diferença entre o imposto que o operador facturou aos seus clientes e o imposto que o mesmo suportou nas suas compras.
Em termos ainda mais simples, pode dizer-se que as empresas têm direito a deduzir ao imposto que recebem dos clientes aquele que pagam aos fornecedores.
Assim, verificado o acto sujeito a imposto (transmissão de bens ou prestação de serviços), e dando este lugar à obrigação de emitir factura ou documento equivalente, o sujeito passivo deve nela liquidar o imposto ao adquirente do bem ou serviço, o qual, por sua vez, tem a obrigação de lho pagar. Ulteriormente, deve o sujeito passivo, entregar esse imposto nos cofres do Estado, sem prejuízo de, nos termos do método por que opera o IVA – o já referido método do crédito do imposto ou “das facturas” –, poder deduzir-lhe o imposto que suportou nas suas compras. Por seu turno, o adquirente do bem ou serviço que seja também sujeito passivo de IVA tem o direito de deduzir o imposto pago.
Dito isto, fácil se torna perceber porque se disse que não é a Recorrente quem suporta o IVA, mas antes os seus clientes, rectius, o consumidor final.
Daí que, como é jurisprudência pacífica deste TCA (6) , nenhum relevo assuma em sede de recurso da decisão administrativa de aplicação da coima por falta de oportuna entrega do IVA a alegação de dificuldades económicas por parte da Recorrente. Na verdade, uma vez que o montante do IVA a entregar nos cofres do Estado tenha sido recebido pela Arguida dos seus clientes (e nada foi alegado em sentido contrário), não serão as alegadas dificuldades económicas que determinaram a não entrega ao Estado do imposto, mas antes o facto de a Arguida ter dado outro destino ao dinheiro que recebeu dos clientes a título de IVA e de que era mera detentora, a título precário.
Só assim não seria se a Recorrente alegasse e tivesse ficado provado que não recebera dos seus clientes o IVA que lhes liquidou no período em causa. Mas, nos termos da própria alegação da Recorrente, não terá sido isso que sucedeu; o que sucedeu foi que o atraso no pagamento por parte de clientes lhe criou dificuldades económicas. Assim, independentemente da situação económica da Recorrente, se esta não tem o montante de IVA a entregar ao Estado, é porque lhe deu destino diverso. Ora, como é manifesto face à natureza do IVA, o imposto a entregar pelos sujeitos passivos ao Estado não pode por estes ser considerado como receita sua e, consequentemente, não lhes assiste qualquer liberdade quanto ao destino a dar ao respectivo montante.
É certo que a Recorrente alegou que se verificava uma causa de exclusão da ilicitude. No entanto, como resulta do que vem de se dizer, porque o IVA nem está na disponibilidade do sujeito passivo, que mais não é do que um intermediário entre o Estado e os consumidores finais, nem é receita sua, não lhe assiste qualquer opção quanto ao destino a dar-lhe. Acresce que a factualidade alegada não preenche os requisitos do estado de necessidade como causa de exclusão da ilicitude. Na verdade, como ficou também já dito, a Recorrente, quando da petição por que recorreu da decisão administrativa que lhe aplicou a coima, limitou-se a alegar que não fez a entrega do IVA porque tinha dificuldades económicas. Para além destas dificuldades não justificarem a falta de entrega do IVA, que vimos já não constitui um pagamento mas uma mera entrega do imposto cobrado, a factualidade invocada pela Recorrente não integra a exigência do art. 34.º, alínea b), do CP, de que a entrega do imposto ao Estado tivesse como consequência a ocorrência de um mal superior ao resultante da infracção cometida. Como bem se salientou na sentença recorrida, os impostos visam, para além do mais, a satisfação de necessidades vitais da comunidade, sendo que a sua falta pode colocar em crise a prestação pelo Estado de serviços essenciais nas áreas da saúde, segurança, educação, assistência social, etc., motivo por que não pode considerar-se que o pagamento de salários constitua um interesse sensivelmente superior ao da entrega ao Estado do IVA.
Sustenta ainda a Recorrente que se verifica uma causa de exclusão da culpa. Mas, a culpa só poderia considerar-se excluída se ficasse provasse (e no caso não se provou) que o facto ilícito tinha sido praticado sob a pressão de uma situação exterior tal que não era possível exigir ao infractor diferente comportamento (cfr. art. 35.º do CP).
Por tudo o que ficou dito, concluímos que não se verifica a invocada causa de exclusão da ilicitude e da culpa
Alegou ainda a Recorrente que foi o Estado, através dos seus Serviços hospitalares, quem a colocou na situação de incumprimento, pelo que, ao sancioná-la por este facto, se verificaria abuso de direito, na modalidade de «venire contra factum proprium» (cfr. conclusão da alínea c)). Este argumento também não colhe, uma vez que, como ficou já dito, não ficou demonstrado que a Recorrente não tivesse recebido oportunamente dos seus clientes o IVA que liquidou no período em causa
Quanto à invocada inconstitucionalidade dos arts. 29.º e 21.º do RJIFNA, este na medida em que não permite a isenção de pena (cfr. conclusões das alíneas e) e f)), sempre se dirá que a Recorrente parte sempre de um pressuposto que não se verifica: o de que a falta de oportuna entrega do IVA em causa ao Estado se deve a dificuldades económicas que lhe foram criadas pelo próprio Estado.
Em todo o caso, quanto ao art. 29.º do RJIFNA, sempre diremos que obedece à estrutura típica das normas de incriminação, com a previsão e a respectiva sanção (coima). Porque esta é a graduar nos termos do art. 19.º do mesmo diploma e de acordo com os diversos parâmetros aí fixados («a determinação da medida das coimas far-se-á em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa e da situação económica do agente e deverá, sempre que possível, exceder o benefício económico que o agente retirou da prática de contra-ordenação») e entre um mínimo e um máximo (cfr. art. 18.º ainda do mesmo diploma), não lhe descortinamos a invocada inconstitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade.
Por tudo o que vimos de dizer, o recurso judicial que a Recorrente deduziu contra a decisão administrativa que lhe aplicou a coima não podia proceder, como bem decidiu a sentença recorrida, motivo por que o presente recurso não merece provimento, como decidiremos a final.

2.2.4 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulam-se as seguintes conclusões:
I - Sendo aplicada coima por infracção ao disposto nos arts. 40.º, n.º 1, alínea a), e 26.º, n.º 1, do CIVA, ou seja por falta de remessa da declaração periódica e do montante do imposto exigível no prazo legal para o efeito, a alegação da Arguida, de que foi por dificuldades económicas que não entregou oportunamente o imposto, é irrelevante quer como causa de exclusão da culpa quer como causa de exclusão da ilicitude da falta de entrega do IVA, pois não se trata de imposto cujo pagamento fosse ela a suportar, antes tendo cobrado o mesmo dos seus clientes para o entregar nos cofres do Estado, motivo por que se não fez essa entrega é porque deu outro destino ao respectivo montante, que estava à sua guarda.
II -Sem prejuízo do que ficou dito, para que se pudesse verificar o estado de necessidade como causa de exclusão da ilicitude, seria necessário, para além do mais, que a Arguida tivesse alegado factualidade de que pudesse retirar-se que a entrega do imposto ao Estado teria como consequência a ocorrência de um mal superior ao resultante da infracção cometida, como exigido pelo art. 36.º do CP.
III -Por outro lado, e sempre sem prejuízo do que ficou dito em I, para que se pudesse verificar uma situação de exclusão da culpa, exigir-se-ia que ficasse provasse que o facto ilícito tinha sido praticado sob a pressão de uma situação exterior tal que não era possível exigir ao infractor diferente comportamento (cfr. art. 35.º do CP).
IV -O art. 29.º do RJIFNA constitui uma norma típica da incriminação, com a previsão e a respectiva sanção (coima), sendo esta a graduar, nos termos do art. 19.º do mesmo diploma e de acordo com os diversos parâmetros aí fixados («a determinação da medida das coimas far-se-á em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa e da situação económica do agente e deverá, sempre que possível, exceder o benefício económico que o agente retirou da prática de contra-ordenação»), entre um mínimo e um máximo (cfr. art. 18.º ainda do mesmo diploma), motivo por que não lhe descortinamos a invocada inconstitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UCs.

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(1) Em vigor à data.
(2) As partes entre aspas e com um tipo de letra diferente, aqui como adiante, constituem transcrições.
(3) A referência à alínea c) constitui lapso de escrita. Por certo, queria referir-se a alínea e).
(4) Também aqui terá havido lapso de escrito. Por certo, a referência seria para a alínea c).
(5) Teoria segundo a qual o estado de necessidade constitui obstáculo à ilicitude quando o interesse protegido é sensivelmente superior ao sacrificado (art. 34.º do CP); e como obstáculo à culpa quando aquele interesse é igual ou inferior a este (art. 35.º do CP).
(6) Vide , entre muitos outros e por mais recentes, os seguintes acórdãos deste Tribunal Central Administrativo:
- de 22 de Fevereiro de 2000, proferido no recurso com o n.º 1986/99;
- de 25 de Junho de 2002, proferido no recurso com o n.º 6682/02;
- de 8 de Outubro de 2002, proferido no recurso com o n.º 6681/02;
- de 22 de Outubro de 2002, proferido no recurso com o n.º 7055/02;
- de 19 de Novembro de 2002, proferido no recurso com o n.º 6625/02;
- de 19 de Novembro de 2002, proferido no recurso com o n.º 6786/02, da mesma Recorrente e em que a situação fáctica e as questões suscitadas são em tudo idênticas às dos presentes autos, acórdão que confirmou a sentença, por remissão para os fundamentos da mesma;
- de 20 de Novembro de 2002, proferido no recurso com o n.º 6532/02;
- de 14 de Janeiro de 2003, proferido no recurso com o n.º 6277/02;
- de 14 de Outubro de 2003, proferido no recurso com o n.º 743/03.

Lisboa, 1 de Março de 2005
Francisco Rothes (Relator)
Lucas Martins
Pereira Gameiro