Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00634/21.0BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:12/17/2021
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA; ARTIGO 473º, DO CÓDIGO CIVIL; ACÇÃO ADMINISTRATIVA, EXECUÇÃO DE GARANTIA BANCÁRIA;
EXTENSÃO DA GARANTIA; EXCESSO NA EXECUÇÃO; RESTITUIÇÃO DA IMPORTÂNCIA INDEVIDAMENTE RETIDA.
Sumário:1. A garantia bancária cria uma situação jurídica por força da qual o garante, ao ser interpelado pelo credor (com ou sem justificação documental conforme acordado), terá de pagar a quantia garantida, sem discussão, isto é, sem poder contestar o pagamento do que lhe é exigido.

2. Não tendo o prestador da garantia posto em causa o fundamento para a respectiva execução, no caso concreto a não execução de obras numa empreitada municipal, por parte da empresa de que era sócio, mas apenas a sua extensão, por o município ter retido a totalidade do valor da garantia quando o valor das obras realizadas pelo município, em substituição, ascenderam apenas a cerca de 50% do valor da caução, não podia impugnar o acto que ordenou o accionamento da garantia.

3. Posto que o contrato de empreitada se extinguiu com a reconhecida impossibilidade de a empresa adjudicatária o cumprir – alínea a) do artigo 330º do Código de Contratos Públicos – com ele se extinguiu a garantia executada.

4. Neste contexto o Município não tem título contratual ou legal que legitime a retenção da importância que excede o valor das obras por si realizadas nem o garante tem outro meio processual ou substantivo para obter a devolução da importância indevidamente retida pelo Município que não seja a acção administrativa intentada, com fundamento no enriquecimento sem causa.

5. Apenas pôs em causa a extensão da execução da garantia, dado que ultrapassou em muito, invoca, o necessário para cobrir as despesas com as obras executadas pelo Município, em substituição da empresa a quem foi adjudicada empreitada no âmbito da qual foi prestada a caução em causa.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:J.
Recorrido 1:Município (...)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

J. veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, de 04.07.2021 pela qual foi julgada totalmente improcedente a acção administrativa que intentou contra o Município (...) para que o Réu seja “…condenado a restituir ao Autor o valor correspondente à diferença entre o custo da obra executada pelos serviços da Câmara Municipal (...) e o valor da caução por ele recebido, acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor até efetivo e integral pagamento e, subsidiariamente, que o valor pago pela execução coerciva dos trabalhos seja reduzido ao valor do preço praticado no mercado aquela data.

Invocou para tanto, em síntese, que ao contrário do decidido não tinha outro meio processual para obter a restituição do que indevidamente lhe foi exigido a coberto de uma caução e tem direito a tal restituição, por enriquecimento injustificado do Município à sua custa.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
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Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que concluiu pela improcedência da ação,

2. Na qual se visava o reconhecimento do direito do Recorrente a obter o pagamento do valor correspondente à diferença entre o custo da obra executada pelos serviços da Recorrida e o valor da caução recebida, em razão de existir um aumento patrimonial do Recorrido à custa do Recorrente e em resultado do seu empobrecimento.

3. Ou seja, o objeto dos presentes autos prende-se com a diferença entre o valor da caução prestada pela sociedade loteadora no valor de € 40.032,97 (quarenta mil e trinta e dois euros e noventa e sete cêntimos) e o custo efetivo das obras coercivamente levadas a cabo pelo município – de valor manifestamente inferior segundo informação verbal obtida pelo Réu junto dos serviços da câmara municipal.

4. Esta causa de pedir preclude com o entendimento sufragado pela primeira instância de que “(…) competia ao Autor agir judicialmente contra a sociedade em causa (…)”.

5. A faculdade de o Recorrente fazer uso da competente ação judicial contra a sociedade J., SA ocorreria se a desconformidade de valores lhe fosse imputável, o que não sucede nos presentes autos.

6. O Recorrente, nos presentes autos, diversamente daquele que parece ser o entendimento acolhido pelo tribunal a quo, nunca se insurgiu contra o acionamento da garantia bancária por parte do Recorrido, nem tampouco quis obstar ao seu pagamento, uma vez que, o incumprimento da sociedade devedora foi patente.

7. Razão pela qual, o Recorrente nunca poderia ter lançado mão da impugnação de ato administrativo.

8. Isto porque, a impugnação administrativa consiste na faculdade de os administrados poderem contestar ou sindicar a validade dos atos administrativos, tendo em vista, respetivamente, a sua anulação ou declaração de nulidade desses atos, conforme resulta da norma ínsita no artigo 50º do CPTA.

9. Por seu turno, anular um ato administrativo é destruir os efeitos jurídicos por este produzidos, por razões de ilegalidade (artigo 165.º do C.P.A.).

10. O Recorrente não poderia impugnar o ato que decretou o acionamento da garantia bancária, sob pena de abuso de direito de ação, por utilização dos meios judiciários sem causa razoável ou provável.

11. Conforme resulta do entendimento unanimemente sufragado pela jurisprudência, apenas se poderia lançar mão da ação de impugnação do acionamento da garantia bancária se ocorresse uma violação manifesta, flagrante do princípio da boa-fé ou um abuso de direito por parte do beneficiário da garantia – cfr. acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 18.12.2014, sob o proc. nº 11609/14.

12. Em sentido convergente, dispõe o Tribunal Central Administrativo Sul, em acórdão datado de 11.07.2013, que: “A única possibilidade de o devedor ou do garantido se opor ao pagamento ao garante após a solicitação, é invocando ter em seu poder prova ilíquida e inequívoca de fraude manifesta ou abuso evidente do beneficiário.”

13. Aquando do acionamento da garantia bancária por parte do Recorrido, não se verificava qualquer circunstância que obstasse à prática daquele ato administrativo.

14. Além do mais, naquela data, o Recorrente desconhecia que não existia correspondência jurídica entre o valor acionado pelo Recorrente e o custo efetivo da obra.

15. Não era exigível ao Recorrente que reagisse contra o ato administrativo visando a sua anulação por ilegalidade como pretende o Tribunal a quo, conquanto nenhum vício poderia ser imputado àquele ato, havendo consenso sobre a adequação e solidez dos respetivos fundamentos de acionamento da garantia bancária.

16. A garantia bancária foi acionada pelo Recorrido em 23 de janeiro de 2014.

17. Em 1 de agosto de 2017 o Recorrente foi interpelado pela Caixa Económica Montepio Geral para proceder ao pagamento do capital vencido, data em que já teria corrido o prazo de caducidade para instaurar a competente ação de impugnação de ato administrativo.

18. O Recorrente não dispunha, nem dispõe de qualquer outro meio processual de que se possa socorrer para conseguir a pretendida restituição, senão o do instituto do enriquecimento sem causa.

19. Conforme resulta dos ensinamentos de Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 329, onde se lê que à «inexistência da ação normalmente adequada equipara-se a circunstância de esta não poder ser exercida em consequência de um obstáculo legal (prescrição, caducidade), ou de não poder sê-lo utilmente por razões de facto (“maxime” a insolvência do devedor). Também neste caso deverá o interessado recorrer à pretensão de enriquecimento».

20. Conclui-se, pois, que, no caso dos presentes autos, não tem o Recorrente a seu favor qualquer dipositivo legal específico que crie o dever do Recorrido lhe restituir o montante pago em excesso.

21. E, não tem também o Recorrido causa que justifique que se mantenha na sua esfera jurídica o montante pago pelo Recorrente a título de garantia bancária.

22. Houve, efectivamente, um enriquecimento ilícito do Recorrido à custa do empobrecimento do Recorrente, pelo que, é fundado o pedido de pagamento da diferença entre o custo efetivo da obra e o valor da garantia bancária aciona.
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II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

A. A sociedade J., SA foi constituída em 03.07.1981, tendo por objecto a indústria de construção civil e a compra e venda de imóveis, na qual C. ocupava o cargo de Administrador Executivo do Conselho de Administração e J. de Presidente desse Conselho, e de ter cessado essas funções em 14.10.2010 (cf. certidão junta aos autos com a petição inicial, que se dá aqui por integralmente reproduzido).

B. Em 24.11.2016, ocorreu a dissolução e encerramento da liquidação da sociedade J., SA (cf. certidão junta aos autos com a petição inicial, que se dá aqui por integralmente reproduzido).

C. A sociedade J., SA adquiriu um prédio urbano para a realização de obras de urbanização na quinta de (…), tendo sido o auto de recepção provisória das referidas obras recebido em 27.01.2006, pelo Presidente da Câmara Municipal (...) (por confissão e documentos juntos aos autos com a petição inicial, que se dão aqui por integralmente reproduzidos).

D. Por forma a garantir a boa e regular execução dos trabalhos de urbanização do loteamento até à recepção definitiva da obra pela Câmara Municipal (...), foi emitida a favor desta última, uma garantia bancária até ao montante máximo de €100.000,00, a qual foi avalizada por J., nos termos do contrato de emissão de garantia bancária n.º 085/43.010064-5, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (por confissão e cf. documento n.º3 junto aos autos com a petição inicial, que se dá aqui por integralmente reproduzido).

E. A partir de 26.01.2011, a sociedade J., SA, na pessoa do seu administrador C., começou a ser notificado pela Divisão de Fiscalização da Câmara para proceder à conclusão das obras de urbanização (por confissão e cf. documento n.º 4 junto aos autos com a petição inicial, que se dá aqui por integralmente reproduzido).

F. Perante a inércia da sociedade que, apesar das várias notificações recebidas nada fez, em 28.03.2012, foi emitido parecer técnico, no qual se conclui pelo accionamento da garantia bancária e pela execução das obras através dos Serviços da Câmara Municipal (...) (por confissão e cf. documento n.º 8 junto aos autos com a petição inicial, que se dá aqui por integralmente reproduzido).

G. A Câmara Municipal (...) accionou a caução existente através da garantia bancária, no valor de €40.032,97, para se substituir ao loteador e levar a cabo, coercivamente, as obras em causa (por confissão e cf. documento n.º 9 junto aos autos com a petição inicial, que se dá aqui por integralmente reproduzido).

H. Em 01.08.2017, a Caixa Económica Montepio Geral remeteu uma interpelação a J. em que comunicava que o contrato de financiamento relativo à garantia bancária se encontrava em mora desde 29.05.2014, e que por essa razão o interpelava na qualidade de avalista/fiador para no prazo de 30 dias proceder ao pagamento do capital vencido (por confissão e cf. documento n.º 9 junto aos autos com a petição inicial, que se dá aqui por integralmente reproduzido).

I. Em 29.12.2017, J. pagou o capital e juros decorrentes do accionamento da referida garantia, num total de €45.600,00; (por confissão e cf. documento n.ºs 9 e 10junto aos autos com a petição inicial, que se dá aqui por integralmente reproduzido).

J. J. endereçou requerimento ao Presidente da Câmara Municipal (...) no qual requereu que fosse informado dos custos dos trabalhos em falta com vista à recepção definitiva dos trabalhos de urbanização do loteamento da Quinta de (...) (cf. documento junto aos autos com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido).

K. Corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Cível de Braga – Juiz 3, a acção de processo comum nº 1501/20.0T8BRG, intentada por J., na qual figura como Réu C., ex-accionista da sociedade loteadora, em que é alegado ter sido pago ao Montepio Geral o valor da garantia executada pelo Município (...), no valor de € 45.085,79, peticionando-se que o Réu seja condenado a pagar ao Autor 50% daquele montante, isto é, € 22.799,74 (por acordo das partes, cf. artigo 48.º a 50.º da contestação e artigo 31.º da réplica, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

L. Em 31.03.2021, deu entrada neste Tribunal de petição inicial que originou os presentes autos (cfr. fls. dos autos, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
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III - Enquadramento jurídico.

Dispõe o artigo 473º, do Código Civil, a propósito do enriquecimento sem causa e sob a epígrafe “Princípio geral”:

“1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.”

O enriquecimento consiste na aquisição de um benefício de carácter patrimonial, podendo revestir a forma de aumento do activo ou diminuição do passivo, em particular a poupança de despesas. O requisito à custa de outrem significa que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem empobreceu, isto é, “a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondentemente suportado pelo outro.”Antunes Varela, Direito das Obrigações, volume I, página 488.

Para que esta hipótese se verifique é necessário afastar qualquer outra fonte de obrigações, face ao disposto no artigo 474º do Código Civil:

“Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.”

No caso concreto está em causa o accionamento de uma garantia bancária.

A garantia bancária cria uma situação jurídica por força da qual o garante, ao ser interpelado pelo credor (com ou sem justificação documental conforme acordado), terá de pagar a quantia garantida, sem discussão, isto é, sem poder contestar o pagamento do que lhe é exigido (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09.01.1996, Boletim do Ministério da Justiça nº 453, página 428, de 21.05.1998, no Boletim do Ministério da Justiça nº 477, página 482 e de 31.10.2002, no processo 2818/02 da 2ª secção).

Ora, “não obstante a natureza autónoma da garantia bancária, e a sua actuação ou execução automática, a possibilidade da sua exigência pelo beneficiário não pode ter-se como ilimitada: há, com efeito, no direito português, que estabelecer alguns limites à exigência da garantia, sempre que o imponham as regras da boa-fé (art. 762º, nº 2, do C.Civil) ou o abuso do direito (art. 334º do mesmo diploma), como por exemplo nos casos extremos de manobras tendentes a enganar o garante ou de procedimento abusivo do beneficiário, designadamente exigindo a garantia em caso de cumprimento pontual da obrigação do devedor” (cfr. jurisprudência citada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.2004, processo 04B2883 publicado em www.dgsi.pt, que aqui seguimos).

Voltando ao caso concreto e conforme o Autor, Recorrente, alega não pôs em causa o accionamento da garantia em si mesmo, porque efetivamente a empreiteira não executou cabalmente a empreitada nos termos contratados.

Apenas pôs em causa a extensão da execução da garantia, dado que ultrapassou em muito, invoca, o necessário para cobrir as despesas com as obras executadas pelo Município, em substituição da empresa a quem foi adjudicada empreitada no âmbito da qual foi prestada a caução em causa.

Não se pode, portanto, afirmar, como se faz na decisão recorrida, que:

“Como tal, para obstar ao pagamento dessas mesmas quantias, ou para obter o seu ressarcimento, competia ao Autor agir judicialmente contra a sociedade em causa, ou, porventura, intentar a competente acção de impugnação da decisão de accionamento da caução por aquele concreto valor.
(…)
Assim, e constituindo as decisões camarárias que ordenam a realização de obras de urbanização e de accionamento das garantias bancárias, por determinado valor, actos administrativos deverão os mesmos ser impugnados nos termos do artigo 51.º e seguintes do CPTA, e nos prazos previstos no artigo 58.º do CPTA.
(…)

Mais ainda, no âmbito da ação administrativa comum importa atender à norma ínsita no artigo 38.° do CPTA, nos termos da qual:

«1 - Nos casos em que a lei substantiva o admita, designadamente no domínio da responsabilidade civil da Administração por atos administrativos ilegais, o tribunal pode conhecer, a título incidental, da ilegalidade de um ato administrativo que já não possa ser impugnado.

2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, não pode ser obtido por outros meios processuais o efeito que resultaria da anulação do ato inimpugnável.».

Do exposto se depreende que a acção de enriquecimento sem causa não pode ser usada para obter o efeito que resultaria da anulação do ato impugnável. Tanto mais que, embora se admita que a apreciação incidental da ilegalidade de um ato administrativo possa ter lugar no âmbito de uma ação administrativa, proíbe-se que esta ação possa ser utilizada para obter o efeito típico da anulação do ato inimpugnável, ou seja, que seja usada para contornar a falta de impugnação desse ato, ofendendo o caso resolvido administrativo”.

O Autor não podia impugnar o acto de accionamento da garantia porque o considerava legal em si mesmo, face ao incumprimento do contrato de empreitada por parte da sociedade a quem foi adjudicada a obra.

Apenas pôs em causa que tivesse sido accionada a garantia pelo seu valor total e muito além do valor das obras feitas pela edilidade em substituição da empresa incumpridora.

Circunstância de que só mais tarde veio a ter conhecimento.

Pelo que não podia ter sido julgada improcedente a acção por este fundamento.

Cabe agora apreciar as demais questões que se suscitavam no âmbito do mérito da acção.

Não se impõe assegurar aqui o contraditório porque, por um lado, este já foi assegurado quanto ao mérito da acção nos respectivos articulados (petição inicial, contestação e réplica) e, por outro lado, o Réu prescindiu desse direito processual ao não apresentar contra-alegações.

Não se vislumbra que haja qualquer outro meio processual para garantir a restituição do que foi exigido ao Autor no accionamento da caução em apreço.

E, na verdade, o Município ficou para si com uma importância que exigiu ao Autor a coberto dessa caução, mas que não utilizou para a finalidade da caução, executar obras não executadas pela empresa a quem foi adjudicada a empreitada e contidas no objecto deste contrato.

Sustenta o Réu, no artigo 46º da contestação que a “quantia remanescente encontra-se à guarda do Município, pois até à recepção definitiva das obras de urbanização e caução relativa às obras de urbanização mantém-se, conforme decorre dos artigos 54º e 87º do RJUE).

Dispõe a alínea a) do artigo 330º do Código de Contratos Públicos que, além de outras, é causa de extinção do contrato:

“O cumprimento, a impossibilidade definitiva e todas as restantes causas de extinção das obrigações reconhecidas pelo direito civil”.

O referido contrato de empreitada está extinto pela reconhecida impossibilidade definitiva de ser cumprido.

E, a caução, como garantia de execução desse contrato, extingue-se de igual forma, dado não ter autonomia contratual.

O Município demandado não tem assim título para reter uma importância que é do Autor e que não se assumiu como garante de nada para além do contrato de empreitada, tanto quanto resulta dos autos.

Por outro lado, a pendência de outra acção com a mesma, ou parcialmente coincidente, finalidade nos tribunais comuns, é uma questão adjectiva que não se pode aqui colocar, neste momento e nesta sede, de decisão final do recurso jurisdicional.

Em todo o caso, sempre se dirá que face aos fundamentos invocados para o que é pedido, tanto aqui como no processo cível, a competência é dos Tribunas Administrativos.

Competência que aqui nunca foi questionada.

Pelo que, sendo a questão da competência a ser decidida, ante de todas as demais, não existe teórica e legalmente a hipótese de o Município demandado ser duplamente condenado pelos mesmos fundamentos.

Termos em que, ao contrário do decidido, se impõe julgar a acção procedente e condenar o Município demandado nos termos peticionados a título principal, ou seja, a restituir ao Autor o “valor correspondente à diferença entre o custo da obra executada pelos serviços da Câmara Municipal (...) e o valor da caução executado, acrescido de juros de mora, com fundamento em enriquecimento sem causa”.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que:

1. Revogam a decisão recorrida.

2. Julgam a acção totalmente procedente e condenam o Réu nos termos peticionados.

Custas pelo Recorrido em Primeira Instância. Não são devidas custas no recurso por não terem sido apresentadas contra-alegações.
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Porto, 17.12.2021

Rogério Martins
Fernanda Brandão
Hélder Vieira