Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01376/23.7BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/01/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:ACIDENTE EM SERVIÇO; REABERTURA DO PROCESSO; PRAZO DE DEZ ANOS;
N. º1 DO ARTIGO 24.º DO REGIME JURÍDICO DOS ACIDENTES EM SERVIÇO; INCONSTITUCIONALIDADE;
ARTIGO 18.º, N.ºS 2 E 3, E ARTIGO 59.º, N.º 1, ALÍNEA F), DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA;
Sumário:
1. Não tendo sido reaberto o processo de acidente em serviço em 2015, quando ocorreu uma recidiva das sequelas do acidente, a alta médica ocorrida em 30.11.2017 não é uma alta médica relevante para efeitos do disposto no artigo 24.º do Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço no âmbito da Administração Pública, porque não ocorreu no âmbito e depois de cumprida a tramitação de um processo de acidente em serviço, com a apresentação, desde logo, de requerimento da sinistrada nesse sentido.

2. O prazo de 10 anos para pedir a reabertura do processo por acidente em serviço, a que alude o n.º1 do artigo 24.º do Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço apresenta-se no caso concreto perfeitamente razoável e de forma nenhuma uma exigência excessiva ou intolerável em termos de poder considerar-se que afronta o princípio da proporcionalidade na limitação, temporal, ao exercício do direito em causa, ou seja, não fere o disposto no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, nem qualquer princípio fundamental nem sequer o direito à justa reparação por acidentes de trabalho e doenças profissionais constitucionalmente consagrado, no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Lei Fundamental.

3. Isto porque em 2022, quando foi requerida a reabertura processo, já se encontrava esgotado o referido para de dez anos para esse efeito,- a contar da data da alta médica declarada em 2008 - por motivo imputável à sinistrada porque não requereu, como podia e devia, a reabertura do processo por acidente em serviço em 2015.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

O Sindicato dos Trabalhadores da Função Pública do Norte em representação da sua associada, «AA», na acção administrativa para reconhecimento de direito, que moveu contra a Câmara Municipal ... veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, Juízo Administrativo Social, de 19.12.2023 pela qual foi julgada totalmente improcedente a acção e, em consequência, absolvido o Réu dos pedidos.

Alegou para tanto, em síntese, que a decisão recorrida, ao julgar a acção totalmente improcedente violou a Constituição e a Lei, pelo que deve ser revogada com as legais consequências.

A Entidade Demandadas contra-alegou defendendo a manutenção da decisão recorrida.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.

*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

a) A sentença recorrida, salvo o devido respeito, ao decidir como decidiu, incorre em vício de violação de Lei e da Constituição e, consequentemente, erro de julgamento.

b) A função do Tribunal a quo, de controlo judicial, e a interpretação e aplicação do direito substantivo ao caso concreto plasmada na sentença recorrida não foi bem exercida, pelo que urge a sua reapreciação de forma a que não se cristalize na ordem jurídica.

c) E, com o devido respeito, reitera-se, a RA preenche todos os requisitos previstos na Lei para lhe ser reconhecido, em 2022, o direito à reabertura do processo de acidente em serviço.

d) Do acidente ocorrido em 2008, existiu uma reabertura do processo em 2015, com nexo de causalidade clinicamente comprovado e com alta médica atribuída em 2017.

e) Esta alta médica aparece no final de um processo que não foi bem instruído pelo Réu, nos termos do previsto no DL 503/99, de 20 de novembro, num documento avulso quando supostamente o documento previsto legalmente para o efeito (BAM) seria o garante de todo o historial médico da RA.

f) E, agora, chegados a 2022, não pode a RA ver o seu direito não reconhecido, por serem colocados em causa factos devidamente comprovados pela mesma, na altura própria, como a declaração médica que serviu de base á reabertura do seu processo em 2015.

g) Aliás, só o não cumprimento por parte do Réu dos trâmites previstos em Lei no caso de reabertura de processos de acidente em serviço na função pública, deu origem à discussão da causa, pois que, tudo se baseia, aos dias de hoje, em aferir a data a partir da qual se contam os 10 anos contados desde a alta clínica, para que seja possível a um sinistrado pedir a reabertura do seu processo de acidente em serviço.

h) I.e., interessa para o caso concreto assinalar a ocorrência, no ano de 2015, de uma reabertura do processo de acidente ocorrido em 2008, que altera a questão da contagem dos 10 anos como prazo preclusivo para o exercício do direito a reabrir o processo, pois que, muda a data da alta clínica atribuída ao sinistrado.

i) No caso sub judice, a RA, sinistrada, teve a primeira alta clínica atribuída em 2008 e, uma segunda alta médica, em 2017.

j) Na primeira foram seguidos todos os trâmites legais previstos no DL 503/99, de 20 de novembro, ou seja, foi submetida às Juntas Médicas previstas, foi a consulta de medicina do trabalho após a alta, enquanto que, na segunda, tudo isso foi subvertido por inacção do Réu.

k) Ou seja, na reabertura ocorrida em 2015, a RA apenas conheceu o direito a serem pagas todas as despesas médicas com a intervenção cirúrgica a que foi submetida, bem como a faltar por motivo reconhecido de reabertura do seu processo de acidente em serviço de 2008.

l) No limite, teve um clínico que assinou o seu BAM apenas em 2017, na data da alta médica, onde não consta nenhum histórico do desenvolvimento da sua lesão.

m) Não era sua responsabilidade, mas antes do Réu, conforme o exposto, cumprir com o estipulado na legislação aplicável e, esse cumprimento alteraria o cenário documental relevante para que o novo pedido de reabertura, apresentado em 2022, conhecesse desfecho diferente.

n) Não pode é ser agora a RA prejudicada por erros e omissões dos quais não tem qualquer responsabilidade.

o) O direito a ver reconhecido, em 2022, o seu pedido de reabertura do processo de acidente em serviço terá de ser garantido, contando para isso com todo o historial médico, junto aos autos por documentos relevantes, pelo que, não pode a RA concordar com o argumento de que a contagem do prazo de 10 anos desde a alta clínica, como limite inultrapassável para uma reabertura do processo, remonte ao ano de 2008.

p) A presunção de estabilização da sua situação clínica foi frontalmente afastada, ainda que, sem que tivesse ocorrido uma actualização intercalar do grau de incapacidade reconhecido pela Junta Médica da CGA em 2011.

q) Assim, nem a jurisprudência conhecida sustenta a tese defendida na douta sentença recorrida.

r) Como referido, o aresto sob recurso não contempla a solução jurídica propugnada e consentânea com o próprio regime jurídico vigente do acidente em serviço regulado, especialmente, pelo Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro.

s) Pelo que, e em face de todo o exposto, a sentença ora recorrida não fez uma correta interpretação e aplicação da Lei e da Constituição aos factos provados, pelo que, deve ser revista, evitando a sua manutenção na ordem jurídica, para as devidas e legais consequências.

t) Impõe-se, pois, concluir pela procedência do presente recurso dado o manifesto erro de julgamento, por indevida interpretação e aplicação de lei substantiva, assim como da Constituição.

Termos em que, e nos melhores de direito que doutamente serão supridos, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, com as legais consequências.
*
II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

A) Em 23/05/2008, a representada pelo Autor sofreu um acidente tendo esse evento sido qualificado pela sua entidade empregadora como acidente de trabalho [cfr. Doc.... junto à petição inicial e admitido por acordo].

B) A representada pelo Autor obteve alta clínica a partir do dia 08/10/2008 relativamente ao acidente me Serviço referido em A), [cfr. fls. 13 do processo administrativo junto aos autos].

C) A representada pelo Autor foi submetida a junta médica da ADSE que determinou a seguinte incapacidade permanente parcial:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
» [cfr. fls. 17 do processo administrativo].

D) A representada pelo Autor foi convocada para a junta médica da CGA, para efeitos de confirmação e graduação da incapacidade nos termos do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20/11 [cfr. fls. 46 do processo administrativo].

E) Em 26/05/2011, pela CGA foi comunicado ao Réu o resultado da junta médica referida em B), nos seguintes termos:
«(...)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...)»
(cfr. doc. ... junto à petição inicial e fls. 47 do processo administrativo).

F) Pela CGA foi elaborado o cálculo do capital de remição relativo à representada pelo Autor, nos seguintes termos:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[cfr. fls. 49 do processo administrativo].

G) Em 05/08/2011, a CGA mediante ofício ...0, comunicou ao Réu a decisão relativa à remição de pensão da representada pelo Autor, cfr. fls. 50 do processo administrativo, cujo teor se dá por reproduzido e se transcreve parcialmente:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
H) Em 2015, a representada pelo Autor teve de ser sujeita a uma intervenção cirúrgica decorrente de lesões provocadas pelo acidente referido em A), tendo o Réu assumido as consequentes despesas, designadamente com a cirurgia e fisioterapia [cfr.doc. ...- relatório médico e doc....- pedido de imputação das despesas efetuado pelo Réu ao prestador clínico e ainda no pagamento da fisioterapia juntos à petição inicial].

I) Neste período, a representada pelo Autor esteve de baixa médica por acidente em serviço, de 11 de Novembro de 2015 a Novembro de 2017 [cfr. doc. ... junto à petição inicial].

J) A representada pelo Autor obteve alta médica em 30/11/2017 com a seguinte menção:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[cfr. doc. ... junto à petição inicial].

K) Em 12/08/2021 pelo Médico «BB» foi emitida declaração, cfr. doc. ... junto à petição inicial, cujo teor se transcreve parcialmente:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

L) Em 02/05/2022, o Autor em representação da representada pelo Autor requereu ao Réu a reabertura do processo de acidente em serviço, nos termos do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20/11 [cfr. fls. 136/137 do processo administrativo cujo teor aqui se dá por reproduzido].

M) Em 29/06/2022, pelos Serviços Jurídicos do Réu foi emitido parecer negativo quanto à pretensão da representada pelo Autor referido em L), cfr. fls. 143/139 do processo administrativo, cujo teor aqui se dá por reproduzido e se transcreve parcialmente:

“(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...)»

N) O Réu notificou o Autor, em 14/07/2022, do parecer jurídico proposto pelos Serviços jurídico, cfr. doc. ...0 junto à petição inicial, cujo teor se transcreve:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

O) Em 06/12/2022, o Réu notificou a representada pelo Autor nos seguintes termos:
«(...)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...)»
[cfr. doc. ...1 junto à petição inicial].

P) A presente acção deu entrada neste Tribunal em 30-06-2023 [fls.1 do SITAF].

*
III - Enquadramento jurídico.

A decisão recorrida é do seguinte teor, na parte relevante:

“(…)
Questões que ao Tribunal cumpre decidir:

Atento o teor da PI, considera o Tribunal (ao abrigo do princípio pro actione é um corolário normativo ou uma concretização do princípio constitucional do acesso efectivo à justiça) que a questão primordial a decidir nos presentes autos prende-se em aferir do direito da Autora à reabertura do processo de acidente em serviço ocorrido em 2008 e posteriormente reaberto em 2015, o que lhe foi indeferido no requerimento apresentado em 2022, para o efeito.

Vejamos:

O regime de acidentes de trabalho e doenças profissionais dos trabalhadores que exercem funções públicas consta de diploma próprio: o Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro.

Nos moldes em que se encontra gizado, quer o procedimento por acidentes em serviço, quer o respectivo regime material, as responsabilidades da entidade pública empregadora, da ADSE e da CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES não são iguais e indistintas. Cada uma delas haverá intervir e actuar em cada momento, e nos termos e com as competências legalmente definidas, sendo as respetivas obrigações as que legalmente se encontram definidas.

Isso mesmo se mostra, aliás, desde logo, evidenciado no artigo 5º do Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço no âmbito da Administração Pública (DL. n.º 503/99), ao dispor o seguinte: “Artigo 5 º Responsabilidade pela reparação

1. O empregador ou entidade empregadora é responsável pela aplicação do regime dos acidentes em serviço e doenças profissionais previsto neste diploma.

2. O serviço ou organismo da Administração Pública ao serviço do qual ocorreu o acidente ou foi contraída a doença profissional é responsável pelos encargos com a reparação dos danos deles emergentes, nos termos previstos no presente diploma.

3. Nos casos em que se verifique a incapacidade permanente ou morte, compete à Caixa Geral de Aposentações a avaliação e a reparação, nos termos previstos neste diploma.”

Percorrendo a respectiva sistemática verifica-se, que a situação sub judice é, antes de mais, enquadrável no Capítulo II de tal diploma relativo aos acidentes em serviço que se divide na secção relativa à qualificação e participação do acidente e na secção relativa à reparação do dano sofrido. Neste diploma, o legislador dividiu a Secção II do Capítulo II em três subsecções onde a subsecção III rege as questões referentes à incapacidade temporária.

In casu, estamos em face de um acidente de serviço, que dele resultou uma incapacidade permanente parcial e em que é invocada uma recidiva.

Sobre a recidiva o art.º 24.º, com a epígrafe “Recidiva, agravamento e recaída”, dispõe o seguinte:

«1 - No caso de o trabalhador se considerar em situação de recidiva, agravamento ou recaída, ocorrida no prazo de 10 anos contado da alta, deve apresentar à entidade empregadora requerimento de submissão à junta médica referida no artigo 21.º, fundamentado em parecer médico.

2 - O reconhecimento da recidiva, agravamento ou recaída pela junta médica determina a reabertura do processo, que seguirá, com as necessárias adaptações, os trâmites previstos para o acidente e confere ao trabalhador o direito à reparação prevista no artigo 4.º.» (sublinhado nosso)

Decorre claramente deste preceito que a situação de recidiva é equiparada pelo legislador à situação de acidente em serviço, devendo seguir basicamente os mesmos trâmites procedimentais previstos para aquela, conferindo ao trabalhador o direito à reparação prevista no artigo 4.º e também, por ser equiparado a um acidente em serviço, o regime de faltas constantes do art.º 19.º do mesmo diploma. Este é o princípio basilar a ter em conta que nenhuma minudência procedimental pode por em perigo.

O legislador considera relevante a recidiva que ocorra no prazo de dez anos contados a partir da alta, não no prazo de dez anos contados a partir do encerramento do processo de acidente em serviço, ou da data em que a CGA faça a junta médica que lhe compete.

Como tal, temos de atender à verificação dos seguintes requisitos tendentes à reabertura do procedimento:

i) requerimento devidamente instruído e apresentado pelo acidentado;
ii) apresentado dentro do prazo de dez anos contados da alta e,
iii) fundamentado em parecer médico.

Revertendo estes considerandos ao caso em apreço verificamos que o a alta clínica ocorreu em 08/10/2008 e o requerimento cujo indeferimento se encontra em “crise” nos presentes autos foi apresentado em 02/05/2022, logo somos aptos a concluir que há um obstáculo inultrapassável ao pedido de reabertura do acidente em serviço pela RA, já decorreram 10 anos sobre a alta clínica. Logo, terá de claudicar a pretensão do Autor em representação da RA.

Na verdade, não descura o Tribunal a invocação pelo Autora de alguma jurisprudência designadamente a aludida no artigo 38.º da PI, em que o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Proc. Nº 0837/09, de 12 de novembro de 2009, declarou inconstitucional, por restringir de forma intolerável o direito fundamental dos trabalhadores previsto no artigo 59º, nº1, al. f) da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 24º do DL 503/99 “como estabelecendo um prazo absolutamente preclusivo (10 anos a contar da alta clínica) para o ocorrência de recidiva, agravamento ou recaída decorrente de acidente sem serviço, não permitindo, em caso algum, a revisão da situação clínica do sinistrado quando qualquer dessas situações ocorra para além do referido prazo”.

Porém, olvida o Autor que tal decisão foi objecto de escrutínio pelo Tribunal Constitucional, no âmbito do Processo n.º 25/10 e por Acórdão n.º 271/2010, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 203, de 19 de Outubro de 2010, se decidiu nos seguintes termos: «(...) Entendeu o acórdão recorrido que, aplicada a uma situação com o a dos autos, em que o trabalhar sinistrado foi declarado como curado sem qualquer incapacidade e só mais de 10 anos depois (cerca de 14 anos depois) veio a saber que, como consequência normal do tipo de cirurgia a que foi submetido aquando do acidente, apareceram sequelas a que corresponde uma IPP de 8 % (indiciariamente, segundo o relatório médico apresentado para reabertura do processo, porque o pedido de submissão a junta médica para determinação da incapacidade foi indeferido, com fundamento na caducidade do direito), o referido prazo de caducidade restringe desproporcionadamente o direito à justa reparação reconhecido aos trabalhadores quando vítimas de acidente de trabalho pela alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição. Para tanto, o acórdão socorre-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional, designadamente dos Acórdãos n.ºs 147/06 e 59/07, a que equipara a situação em apreciação. Com efeito, a questão da constitucionalidade da fixação de um prazo de 10 anos de caducidade do direito à revisão das pensões fixadas, quando ocorra agravamento superveniente da incapacidade resultante de acidente de trabalho (ou doença profissional), já foi apreciada pelo Tribunal diversas vezes, embora a propósito do regime jurídico de acidentes de trabalho e doenças profissionais no âmbito das relações de direito privado. Dos diversos matizes dessa jurisprudência, em consequência da disparidade dos casos e, portanto, da dimensão aplicativa concreta da norma, dá pormenorizada conta, por último, o Acórdão n.º 161/09, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. Embora a disposição agora em causa esteja inserida noutro diploma, no regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais ocorridos ao serviço de entidades empregadoras públicas (os denominados „acidentes em serviço‟), a questão de constitucionalidade é a mesma.

Dessa jurisprudência resultam as seguintes directrizes fundamentais:

1.ª O legislador dispõe de alguma margem de conformação na concretização do direito à justa reparação por acidentes de trabalho e doenças profissionais constitucionalmente consagrado, não lhe estando vedado considerar estabilizada a situação do trabalhador ao fim de um prazo razoável e condicionar o direito à revisão em função disso;

2.ª O prazo de 10 anos contado a partir da fixação inicial da pensão é suficientemente dilatado, segundo a normalidade das coisas, para permitir considerar como consolidado o juízo sobre o grau de desvalorização funcional do sinistrado e, por razões de segurança jurídica, estabelecer a caducidade do direito à revisão;

3.ª Mas já não o será quando aplicado a hipóteses em que, no decurso do prazo de 10 anos a contar da fixação inicial da pensão, tenham ocorrido revisões em consequência de agravamento da incapacidade, porque essas revisões intercorrentes demonstram que o pressuposto de estabilização da situação não se verifica.

É certo que no Acórdão n.º 161/09 se prescindiu, para chegar ao juízo de inconstitucionalidade, da ocorrência de revisões intermédias fundadas em agravamento da incapacidade. Mas para isso foi determinante a particularíssima dimensão aplicativa em apreciação, em que foi considerado um elemento que o Tribunal entendeu afastar, de modo irrecusável, a presunção de estabilidade que justifica a solução normativa em causa e que consistiu em ter sido determinada uma prestação de natureza cirúrgica a cargo da seguradora. Intervenção essa inexistente à data do acidente e tornada possível pela evolução das técnicas médicas, mas que, afinal, resultou em agravamento da incapacidade.

6 — Aplicando ao caso esse entendimento, verifica-se que a dimensão normativa julgada inconstitucional não contém elementos que substancialmente a distingam daquelas em que o Tribunal não julgou inconstitucional o estabelecimento do referido prazo de caducidade, designadamente daquela que apreciou no Acórdão n.º 612/08, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.

Efectivamente, para este efeito da razoabilidade do estabelecimento de um prazo de caducidade do direito fundado na pressuposição legislativa, não arbitrária porque fundada em dados da experiência médica, de estabilidade da situação segundo critérios de normalidade, não há diferença material entre a pretensão de que ocorreu agravamento da incapacidade [artigo 3.º, n.º 1, alínea p) do Decreto-Lei n.º 503/99] ou de que ocorreu recidiva [artigo 3.º, n.º 1, alínea o) do mesmo diploma], entendido este conceito no acórdão recorrido como abrangendo as situações em que o trabalhador, inicialmente considerado curado sem qualquer incapacidade, vem posteriormente a revelar a situação geradora da incapacidade, como sequência normal do tipo de cirurgia a que foi submetido. A diferença entre as duas situações consiste em que no “agravamento” há uma incapacidade funcional determinada à data da cura clínica que evolui desfavoravelmente enquanto na recidiva a limitação da capacidade funcional surge posteriormente à data da alta. Mas essa diferença é irrelevante na perspectiva do interesse da segurança jurídica prosseguido com o estabelecimento do prazo e não se vê em que se torne a segunda situação mais gravosa para o sinistrado do que a primeira. Em qualquer dos casos o que se exige é que situação que justifica a revisão ocorra dentro de 10 anos e, portanto, que o trabalhador a detecte e accione os meios correspondentes a fazê-la reconhecer dentro desse prazo. Afigura-se que para o sinistrado identificar o agravamento da lesão antiga ou o (re)surgimento dela após a alta e fazer reconhecer uma e outra situação apresentam grau idêntico de dificuldade semelhante.

E também não é de molde a justificar diverso juízo sobre a proporcionalidade do prazo a diferença quanto ao modo de contagem; no regime geral (acidentes de trabalho), a contar da fixação originária da pensão; no regime do direito público (acidentes em serviço), a contar da data da alta. Esta diversidade, que pode explicar-se pelo diferente regime procedimental de determinação das consequências do acidente (cf. artigos 20.º, 21.º e 22.º do Decreto-Lei n.º 503/99), não afecta a razoabilidade do prazo de 10 anos, suficientemente longo, para tornar tais diferenças irrelevantes.

Ora, como se disse no Acórdão n.º 612/2008:

«O ponto é que o legislador dispõe de alguma margem de livre conformação na concretização do direito à justa reparação por acidentes de trabalho e doenças profissionais constitucionalmente consagrado.

Pelo que a questão que poderá colocar-se, para além das já analisadas, é a de saber se a fixação de um prazo de dez anos para a admissibilidade da revisão — que, como se viu, tanto é aplicável aos pensões por acidente de trabalho como às pensões por doença profissional não evolutiva —, é susceptível de violar o próprio direito constitucional previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da lei Fundamental.

Assentando na ideia, que já antes se aflorou, de que o direito à justa reparação por acidentes de trabalho apresenta natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, a fixação de um prazo para a revisão da pensão, nos termos previstos na n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, configura um mero requisito relativo ao modo de exercício do direito.»

E como tem sido sublinhado pelo Tribunal Constitucional, «[s]ó as normas restritivas dos direitos fundamentais (normas que encurtam o seu conteúdo e alcance) e não meramente condicionadoras (as que se limitam a definir pressupostos ou condições do seu exercício) têm que responder ao conjunto de exigências e cautelas consignado no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da lei Fundamental». Para que um condicionamento ao exercício de um direito possa redundar efectivamente numa restrição torna-se necessário que ele possa dificultar gravemente o exercício concreto do direito em causa (acórdão n.os 413/89, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 15 de Setembro de 1989, cuja doutrina foi reafirmada, designadamente, no acórdão n.º 247/02).

Ora, no caso concreto, a lei fixa um prazo suficientemente dilatado, que, segundo a normalidade das coisas, permitirá considerar como consolidado o juízo sobre o grau de desvalorização funcional do sinistrado, e que, além do mais, se mostra justificado por razões de segurança jurídica, tendo em conta que estamos na presença de um processo especial de efectivação de responsabilidade civil dotado de especiais exigências na protecção dos trabalhadores sinistrados.

E, nesse condicionalismo, é de entender que essa exigência se não mostra excessiva ou intolerável em termos de poder considerar-se que afronta o princípio da proporcionalidade.» Não há, pois, motivo para manter o julgado de inconstitucionalidade formulado pelo acórdão recorrido, que assenta em jurisprudência do Tribunal Constitucional que não é inteiramente transponível para o caso dos autos. Efectivamente, não ocorreu, neste caso, qualquer actualização intercalar do grau de incapacidade, nem se verifica qualquer circunstância que afaste, de modo irrecusável, a presunção de estabilização da situação clínica. Pelo que a norma do n.º 1 do artigo 24.º do Decreto- Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro, interpretada no sentido de que se considera caducado o direito de pedir o reconhecimento de recidiva ocorrida mais de 10 anos contados da data da alta, quando o sinistrado tenha sido considerado curado das lesões sofridas sem que das mesmas tenha resultado qualquer incapacidade funcional e não tenha ocorrido actualização intercalar do grau de incapacidade dentro do mesmo prazo, nem qualquer circunstância que afaste de modo irrecusável a presunção de estabilização da situação clínica, não viola a alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição.

III — Decisão

Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:

a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro, interpretada no sentido de que se considera caducado o direito de pedir o reconhecimento de recidiva ocorrida mais de 10 anos contados da data da alta, quando o sinistrado tenha sido considerado curado das lesões sofridas sem que das mesmas tenha resultado qualquer incapacidade funcional e não tenha ocorrido actualização intercalar do grau de incapacidade dentro do mesmo prazo;

b) Determinar a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o agora decidido quanto à questão de constitucionalidade (...)».

Da concatenação da referida jurisprudência com a factualidade assente nos autos o Tribunal encetou uma análise rigorosa no sentido de apurar se efectivamente, não ocorreu, no caso em apreço, qualquer actualização intercalar do grau de incapacidade, nem se verificou qualquer circunstância que afastasse, de modo irrecusável, a presunção de estabilização da situação clínica, porém, resulta à saciedade da factualidade apurada que, pese embora, tenha sido reaberto o processo de acidente em serviço em 2015, na verdade aquando da alta médica em 30/11/2017 foi expressamente referido “Sem incapacidade” o que significa que não houve qualquer alteração do grau de incapacidade que lhe havia sido atribuída anteriormente, i. é. 3%. Ademais, nada demonstra cabalmente nos autos a ocorrência de uma circunstância tal, que permitisse colocar em “crise” a estabilização da situação clínica da RA visto que somente consta dos autos a mera declaração de um médico a apontar a necessidade de intervenção cirúrgica mas não há elementos clínicos atestadores da gravidade da condição de saúde da RA e que comprovassem o nexo de causalidade daquelas com o acidente ocorrido em 2008.

Logo, perante o exposto é entendimento deste Tribunal que no caso sub judice tendo a alta clínica ocorrido em 08/10/2008 e o requerimento cujo indeferimento se encontra em “crise” nos presentes autos, apresentado em 02/05/2022, logo somos aptos a concluir que há um obstáculo inultrapassável ao pedido de reabertura do acidente em serviço pela RA, porquanto já decorreram 10 anos sobre a alta clínica, nos termos do n.º 1 do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20/11.
(…)”.

Com acerto.

O Recorrente parte, de resto, de dois pressupostos errados: o de que houve uma reabertura do processo de acidente em serviço em 2015 e, logo, que cabia ao Réu cumprir os trâmites legais como se fosse um novo processo por acidente em serviço.

Em 2015 não houve reabertura do processo de acidente em serviço porque a representada pelo Autor o não requereu nessa data, como lhe competia, face ao inequivocamente disposto no artigo 24.º do Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço no âmbito da Administração Pública acima citado:

«1 - No caso de o trabalhador se considerar em situação de recidiva, agravamento ou recaída, ocorrida no prazo de 10 anos contado da alta, deve apresentar à entidade empregadora requerimento de submissão à junta médica referida no artigo 21.º, fundamentado em parecer médico”.

Como, de resto, fez em 2022. Tarde, pois nesta data já tinham passado mais de dez anos sobre a data da alta, ocorrida em 2008.

Não tendo sido reaberto o processo de acidente em serviço em 2015, por inércia da representada pelo Autor, a alta médica ocorrida em 30.11.2017 não é uma alta médica relevante para efeitos do disposto no artigo 24.º do Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço no âmbito da Administração Pública, porque não ocorreu no âmbito e depois de cumprida a tramitação de um processo de acidente em serviço, com a apresentação, desde logo, de requerimento da representada pelo Autor nesse sentido.

O prazo de 10 anos para pedir a reabertura do processo por acidente em serviço apresenta-se no caso concreto perfeitamente razoável e de forma nenhuma uma exigência excessiva ou intolerável em termos de poder considerar-se que afronta o princípio da proporcionalidade na limitação, temporal, ao exercício do direito em causa, ou seja, não fere o disposto no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, nem qualquer princípio fundamental nem sequer o direito à justa reparação por acidentes de trabalho e doenças profissionais constitucionalmente consagrado, no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Lei Fundamental.

Tal como decidido na sentença recorrida.

A representada pelo Autor podia e devia ter requerido a abertura do processo não em 2022, como fez, mas em 2015, quando ainda não tinha decorrido o prazo de dez anos sobre a alta médica dada em 2008.

Em 2022, quando foi pedida a reabertura do processo por acidente em serviço já tinha caducado o direito a pedir a reabertura do processo, em 2018, como decidiu o Réu em sede administrativa, impondo-se assim julgar a acção improcedente, como se decidiu na sentença recorrida.

Termos em que se impõe manter a decisão recorrida, negando provimento ao recurso.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, mantendo a decisão recorrida.

Não é devida tributação - artigo 48º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20.11.
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Porto, 01.03.2024


Rogério Martins
Isabel Costa
Paulo Ferreira de Magalhães, em substituição