Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00606/05.1BECBR-A-N
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/08/2022
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:CASOS JULGADOS CONTRADITÓRIOS; PROCESSO DECLARATIVO; PROCESSO EXECUTIVO; IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE;
CONVOLAÇÃO OBJECTIVA DO PROCESSO; INDEMNIZAÇÃO; RECONSTITUIÇÃO FICCIONADA; ALÍNEAS D) E E), DO N.º 1 DO ARTIGO 615.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:1. O caso julgado, como excepção e autoridade, não abrange apenas a parte decisória da sentença ou despacho, abrange também os fundamentos (de facto e de direito) pressupostos da parte dispositiva.

2. A decisão em processo executivo só pode violar o caso julgado formado pela decisão proferida em processo declarativo que é apresentada à execução como título executivo. Se não respeitar os respectivos limites, definidos pelos seus pressupostos imediatos e pelo dispositivo decisório. Não pode violar o caso julgado de uma outra qualquer decisão proferida em processo declarativo.

3. Isto porque no processo executivo em que o título executivo é uma decisão judicial o objecto do processo é a própria decisão judicial (causa de pedir) e o pedido de execução desse julgado; não é a relação jurídica subjacente e o pedido que constituiu o objecto do processo declarativo.

4. O que pode suceder é a sentença (ou acórdão) a executar ter transitado em julgado contra o que havia determinado anterior decisão judicial também transitada em julgado.

5. Existindo casos julgados contraditórios a decisão que se destine a dar execução ao segundo pode incorrer em erro de julgamento ao pressupor, no decidido, a existência de um título executivo válido e eficaz quando deveria, ao invés, considerar inexistente tal título e declarar extinta a execução por carência de objecto; não padece de nulidade, nos termos das alíneas d) e e), do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, por excesso de pronúncia ou por condenação em objecto diferente do pedido, porque esta decisão tem apenas de se pronunciar sobre o modo de executar a decisão que é dada à execução e conter-se nos limites por esta definidos.

6. Não existe contradição entre um acórdão que julgou verificada uma situação de impossibilidade superveniente da lide quanto ao pedido inicial e relativamente a um grupo de autores, por já não ser legalmente possível colocá-los em determinadas carreiras, como pretendiam, confirmando a convolação objectiva do processo decidida em Iª Instância, relativamente a esses autores, e o acórdão posterior que em relação a esses autores entendeu que seria possível ficcionar a transição de carreiras para o efeito de aproximar tanto quanto possível a indemnização devida pela impossibilidade precisamente a impossibilidade de reconstituir a situação que existiria se não tivesse ocorrido a ilegalidade, por omissão.*
* Sumário elaborado pelo relator
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

O Ministério da Administração Interna veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de 13.09.2021, pela qual foi julgada parcialmente procedente a acção executiva intentada por AG... em ordem a proceder à execução do acórdão proferido por este Tribunal Central Administrativo Norte, de 12.06.2019 nos autos principais.

Invocou para tanto, em síntese, que a decisão recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 4, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I – São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1) A decisão ora recorrida labora em erro do direito aplicável ao caso em juízo.

2) A decisão ora recorrida propõe-se executar o acórdão do TCAN proferido em 12.06.2019 que decreta a reconstituição da situação actual hipotética do Exequente AG... na carreira de inspector de viação.

3) A decisão ora recorrida ignora o acórdão do TCAN proferido em 06.03. 2015 sobre a mesma relação material controvertida em que é reconhecido ao Exequente AG... o direito à indemnização por impossibilidade superveniente da regulamentação da carreira de inspetor de viação.

4) O acórdão do TCAN proferido em 06.03.2015 já transitou há muito em julgado, como reconheceram tempestiva e sucessivamente o TAFC-UO 1 e o próprio TCAN nos autos dos Processos n.os 606/05.1BECBR, 606/05.1BECBR-A e 606/05.1BECBR-A-N.

5) Somente o acórdão do TCAN proferido em 06.03.2015 é aplicável à pretensão do Exequente AG..., por força do disposto nos artigos 625.º e 628.º do Código de Processo Civil, segundo a remissão supletiva do artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

6) Em consequência, a decisão ora recorrida padece do vício de nulidade previsto no artigo 615.º, n.os 1, alíneas d) e e), e 4, do Código de Processo Civil, aplicável segundo a mesma norma remissiva do artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
*

II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1. Em sentença de 09.04.2010, proferida no processo n.º 606/05.1BECBR, consignou-se, entre o mais:

“(…)
… concorda-se que para efetivação da transição para as novas carreiras e possibilidade dos (possíveis) destinatários poderem auferir o suplemento de função inspetiva, o DL nº 112/2001, de 6 de Abril carecia da publicação do referido decreto regulamentar, sem o qual o regime instituído naquele não produz efeitos relativamente aos autores, pois este diploma subordinava a essa produção de efeitos à emissão de um decreto regulamentar.

Por outro lado, é pacífico que até hoje, relativamente aos funcionários da extinta DGV, não foi emitido o decreto regulamentar em causa.

Ocorre, por isso, uma situação de ilegalidade por omissão de normas regulamentares, nos termos do nº 1 do artigo 77º do CPTA, que estabelece existe uma situação de ilegalidade por omissão das normas quando a sua adoção, ao abrigo de disposições de direito administrativo, seja necessária para dar exequibilidade a atos legislativos carentes de regulamentação.

Porém, nos termos do nº 2 do citado preceito, quando o tribunal verifique a existência de uma situação de ilegalidade por omissão, julga procedente a ação e disso dará conhecimento à entidade competente, fixando prazo, não inferior a seis meses, para que a omissão seja suprida.

Neste aspeto, face à extinção da DGV, ocorre uma situação de impossibilidade, sendo aparentemente inútil a emanação de tal injunção.

No entanto, é notório o paralelismo entre a situação dos autos e a examinada no citado acórdão.

Desde logo porque, independentemente das funções que cabem aos autores atualmente, a sua situação estatutária como funcionários da DGV deixou de ser necessária. Ou seja, perante o novo quadro legal, a situação atual não carece de qualquer regulamentação: não há necessidade de regulamentar as carreiras inspetivas (inexistentes) da DGV. Impõe-se assim a improcedência do pedido quanto à verificação da situação de ilegalidade de emissão do regulamento para situações atuais e futuras, por falta do requisito acima apontado (existência de ato legislativo – ainda - carente de regulamentação).

Neste ponto, cumpre assinalar que, por isso mesmo, o novo Ministério da tutela não carecia de ser chamado à ação, porque não se cura de regular para futuro a nova situação dos autores. E, do mesmo modo, porque é a situação passada que está em desconformidade com o ordenamento jurídico, apenas deve ser chamado à colação quem, no passado, tinha o dever regulamentar que foi omitido, assim se mantendo o interesse dos réus em contradizer.

Mas, tal como acontece na situação contemplada pelo acórdão transcrito, as situações passadas foram vividas à sombra de um quadro legal, efetivamente carente de regulamentação e estão ainda em desconformidade com a ordem jurídica e, por outro lado, já não é possível emitir um regulamento que corrija essa ilegalidade.

Ou seja, não há qualquer situação de facto que ainda possa ser objeto de regulação através de normas regulamentares, uma vez que a situação atual e futura já não carece de qualquer regulamentação e a situação passada não é suscetível de ser regulada através de ¯normas gerais e abstratas.

No entanto, à semelhança do que sucede no caso analisado pelo STA, a improcedência do pedido de declaração de ilegalidade por omissão de um regulamento por impossibilidade absoluta, faz nascer o direito à indemnização na esfera jurídica dos autores, devendo, nesse caso, o tribunal convidar as partes a acordarem, no prazo de 20 dias, no montante da indemnização devida, nos termos do nº 1 do artigo 45º do CPTA.

(…)

DECISÃO

Pelo exposto:

1) Julgo improcedente o pedido de declaração de ilegalidade por omissão de regulamento; 2) Fixo, nos termos do nº 1 do artigo 45º do CPTA, o prazo de 20 dias para as partes acordarem no montante da indemnização devida.”.

– cf. folhas 266 e seguintes dos referidos autos no SITAF.

2. Por acórdão proferido em 06.03.2015, no âmbito do processo mencionado no ponto antecedente, o Tribunal Central Administrativo Norte julgou verificada uma situação de impossibilidade superveniente da lide quanto ao pedido inicial, em relação aos autores integrados na carreira de inspetor de viação, e confirmou a decisão recorrida quanto à convolação objetiva do processo, apenas no que toca a este último grupo de autores, entre o mais, com os seguintes fundamentos:

“(…)

No caso concreto e, como vimos, apenas em relação aos autores integrados na carreira de inspector de viação se verifica uma omissão ilegal de regulamentar; pelo que se verifica ser fundamentado o pedido inicialmente formulado por estes autores.

Voltamos aqui a citar o teor do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12.06.2012, no processo n.° 0337/11, com o qual também neste trecho se concorda:

“(...)

A revogação do acto legislativo carente de regulamentação faz cessar a partir da revogação a necessidade da sua regulamentação. Por isso, a partir de então, ou seja, a partir do momento em que o acto legislativo deixa de vigorar, deixa de existir uma condição de procedência.

No entanto, esta evidência não afasta a possibilidade de, durante a vigência da norma carente de regulamentação, se ter tornado exigível a obrigação de emitir as normas e, por esse motivo, a Administração se encontrar já numa situação de “ilegalidade por omissão”. Por isso a revogação da lei carente de regulamentação, só por si, não afasta a existência de uma situação de ilegalidade por omissão ocorrida durante a sua vigência. Não é, pois, exacto concluir que a revogação da lei carente de regulamentação implica necessariamente a improcedência da acção de condenação na emissão do regulamento. Para determinar os efeitos de tal revogação, toma-se necessário averiguar várias coisas: (I) se a revogação ocorre antes ou depois de proposta a ação; (II) se a revogação é retractiva; (III) se durante a vigência da norma revogada, chegou a constituir-se na esfera jurídica dos interessados o direito ou interesse legítimo de exigir a condenação da Administração na emissão das normas.

Se a revogação da norma ocorre antes da propositura da acção, esta deve ser julgada improcedente, sem aplicação do artigo 45°, 1 do CPTA. Falta um requisito de procedência: vigência da lei carente de regulamentação. Se durante o período de vigência da norma chegou a haver uma ilegalidade por omissão, só resta ao interessado lesado pedir a respetiva indemnização através da ação para efetivação da responsabilidade civil.”.

É que, em face dessa revogação, não existem situações presentes e futuras carentes de regulamentação e, como este STA tem reafirmado, também não é juridicamente possível emitir regulamentos para o passado, dado estes não poderem ser dotados das características de generalidade e abstração que os mesmos devem conter (cfr., neste sentido, por todos, os acórdãos de 23/4/2008 e de 19/10/2010, proferidos nos recursos n.°s 897/07 e 460/08, respetivamente).

(...).

No caso concreto a revogação da norma ocorreu depois da propositura da acção.

A Direcção-Geral de Viação foi extinta com a criação da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, operada pelo DL n.º 77/07, de 29 de março, que no seu artigo 13° revogou expressamente o Decreto-Lei n.º 484/99.

E a presente ação foi proposta em 19.10.2005 - ver folha 1.

Pelo que, verificando-se em relação a este grupo de autores fundamento válido para o pedido deduzido na acção, de declaração de ilegalidade por omissão de regulamento, impõe-se em relação a eles a convolação objectiva do processo por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 45° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

(…)”.

– cf. acórdão a folhas 1506 e seguintes dos referidos autos no SITAF, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3. Por acórdão proferido em 12.06.2019, no âmbito de acção administrativa intentada, entre outros, pelo ora Exequente, contra o Ministério da Administração Interna e o Ministério das Finanças, que correu termos neste Tribunal sob o n.º 606/05.1BECBR-A, e na sequência de recurso interposto em 22.06.2017, foram as entidades demandas condenadas a «pagar a cada dos Recorrentes (…) os montantes correspondentes aos diferencias remuneratórios entre o valor das remunerações mensais que cada recorrente efetivamente auferiu desde 1 de julho de 2000 até à data de interposição do (…) recurso – ou à data da sua aposentação se anterior – e o valor da remuneração que deveria ter efetivamente recebido se tivesse transitado para a carreira de inspeção que deveria ter sido regulamentada em cumprimento do DL 112/2001, de 6 de abril, acrescido do diferencial entre o valor do suplemento de função inspetiva efetivamente auferido e o valor desse mesmo suplemento que deveria ter sido estabelecido se tivesse sido regulamentada a carreira de inspeção em que estavam inseridos os recorrentes, em cumprimento do disposto no DL 112/2001, acrescidos de juros de mora à taxa de 7%, desde 1 de julho de 2000 até 30 de abril de 2003, e de 4% desde 1 de maio de 2003 até à data de pagamento das referidas quantias, devendo ainda ser comunicada à Caixa Geral de Aposentações, o valor das novas remunerações resultantes dos referidos cálculos, para que, mostrando-se pagos os necessários descontos, se proceda ao recálculo das pensões dos recorrentes entretanto aposentados».– cf. documento n.º 1 junto com o requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. Em Julho de 2000 o exequente era técnico profissional especialista da carreira de inspector de viação e estava posicionado no escalão 4 – cfr. informação remetida pelo IMT.

5. Em 01.07.2003 progrediu para o escalão 5 – cf. informação remetida pelo IMT.

6. Em 21.11.2002 foi nomeado técnico profissional especialista principal da mesma carreira, ficando posicionado no escalão 4 – cf. processo administrativo remetido pelo IMT.

7. Em 01.11.2007, o exequente transitou para o IMTT – cf. processo administrativo remetido pelo IMT.

8. Em 01.01.2009, o exequente transitou para a carreira de assistente técnico do mapa de pessoal do IMTT – cf. processo administrativo remetido pelo IMT.

9. O exequente aposentou-se em 01.05.2009 – cf. processo remetido pelo IMT.

10. O MAI e o MF não procederam ao pagamento ao exequente de qualquer indemnização – acordo.
*

III – Enquadramento jurídico.

Dispõe o artigo 625º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “casos julgados contraditórios”:

“1- Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.

2- É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual”.

O número um refere-se aos casos julgados materiais e o número dois aos casos julgados formais.

Já no domínio do Código de Processo Civil de 1939, Alberto Reis, em anotação ao artigo 675º, com a mesma epígrafe, defendia (volume V, Coimbra Editora, 1984 (reimpressão), página 193:

“Formado caso julgado, a situação jurídica que ele declarou e definiu tornou-se imutável; portanto, não pode tal situação ser alterada por caso julgado posterior. O novo caso julgado, destruindo o benefício que o caso julgado anterior assegurava à parte vencedora, é contrário à ordem jurídica, é, por assim dizer, um facto processual ilícito, e não deve, por isso subsistir”.

Ora, como é actualmente entendimento dominante na doutrina e jurisprudência, o caso julgado, como excepção e autoridade, não abrange apenas a parte decisória da sentença ou despacho, abrange também os fundamentos (de facto e de direito) pressupostos da parte dispositiva.

Como escreve Teixeira de Sousa, em Estudos Sobre o Processo Civil, pág. 578 “não é a decisão, enquanto silogismo judiciário que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo no seu todo.”

Neste sentido os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.05.1996, CJ (STJ) Tomo II, p. 55 e de 13.07.2010 proferido no processo n.º 464/05.6TBCBT-C.G1.S1 que decidiu:

“Na perspectiva do respeito pela autoridade do caso julgado, isto é, da aferição do âmbito e limites da decisão ou dos «termos em que se julga» (art. 673º CPC), entende-se que a determinação dos limites do caso julgado e sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado.”

A decisão em processo executivo só pode violar o caso julgado formado pela decisão proferida em processo declarativo que é apresentada à execução como título executivo. Se não respeitar os respectivos limites, definidos pelos seus pressupostos imediatos e pelo dispositivo decisório. Não pode violar o caso julgado de uma outra qualquer decisão proferida em processo declarativo.

Isto porque no processo executivo em que o título executivo é uma decisão judicial o objecto do processo é a própria decisão judicial (causa de pedir) e o pedido de execução desse julgado; não é a relação jurídica subjacente e o pedido que constituiu o objecto do processo declarativo.

O que pode suceder é a sentença (ou acórdão) a executar ter transitado em julgado contra o que havia determinado anterior decisão judicial também transitada em julgado.

A este propósito discorreu Alberto Reis, em anotação ao artigo 675º do supracitado Código de Processo Civil de 1939, na página 195:

“(…) O n.º 7 do art.º 813º dá realização prática ao princípio enunciado no art.º 675º.

A parte vencedora na segunda sentença promove a execução; o executado tem agora conhecimento do caso julgado anterior que lhe é favorável: deduz oposição à execução, com base no julgado anterior (…).

(…) O processo cai, porque desaparece a sua base; o título executivo.”

O n.º 7 do artigo 813º do Código de Processo Civil de 1939 corresponde o essencial à alínea a) do artigo 729º do actual Código de Processo Civil:

“Fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter alguns dos fundamentos seguintes:

a) Inexistência ou inexequibilidade do título;”

Não se trata aqui de uma nulidade da decisão proferida no processo executivo, nos termos das alíneas d) e e), do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, por excesso de pronúncia ou por condenação em objecto diferente do pedido, porque esta decisão tem apenas de se pronunciar sobre o modo de executar a decisão que é dada à execução e conter-se nos limites por esta definidos.

E cabe ao Exequente, não ao Executado, dizer qual é o objecto da execução, nos termos previstos nos n.ºs 1 e 4 do artigo 164º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

No caso concreto o objecto da execução, indicado na petição inicial da execução, é o acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 12.06.2019 e, portanto, o respeito do caso julgado por parte da decisão ora recorrida, proferida no processo de execução, apenas se poderia colocar em relação ao ali decidido.

Na relação entre a decisão ora recorrida e o acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 06.03.2015 que não foi indicado na petição executiva como objecto da execução, não se pode, portanto, colocar a questão da violação do caso julgado. Nem a do excesso de pronúncia ou da condenação em objecto diferente do pedido.

Apenas no confronto entre os acórdãos de 06.03.2015 e de 12.06.2019 deste Tribunal Central Administrativo Norte se pode colocar a questão da existência de casos julgados contraditórios.

Existindo casos julgados contraditórios, no confronto destes dois acórdãos, a decisão ora recorrida teria incorrido em erro de julgamento ao pressupor, no decidido, a existência de um título executivo válido e eficaz quando deveria, ao invés, considerar inexistente tal título e declarar extinta a execução por carência de objecto, na tese, acima exposta, de Alberto Reis.

Mas tal contradição não existe, mostrando-se apenas aparente.

Estes são, resumindo ao essencial, os pressupostos e o dispositivo decisório do primeiro acórdão, de 06.03.2015:

“(…)

No caso concreto e, como vimos, apenas em relação aos autores integrados na carreira de inspector de viação se verifica uma omissão ilegal de regulamentar; pelo que se verifica ser fundamentado o pedido inicialmente formulado por estes autores.

Voltamos aqui a citar o teor do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12.06.2012, no processo n.º 0337/11, com o qual também neste trecho se concorda:

“Se a revogação da norma ocorre antes da propositura da acção, esta deve ser julgada improcedente, sem aplicação do art. 45º, 1 do CPTA. Falta um requisito de procedência: vigência da lei carente de regulamentação. Se durante o período de vigência da norma chegou a haver uma ilegalidade por omissão, só resta ao interessado lesado pedir a respectiva indemnização através da acção para efectivação da responsabilidade civil.”

É que, em face dessa revogação, não existem situações presentes e futuras carentes de regulamentação e, como este STA tem reafirmado, também não é juridicamente possível emitir regulamentos para o passado, dado estes não poderem ser dotados das características de generalidade e abstracção que os mesmos devem conter (cfr., neste sentido, por todos, os acórdãos de 23/4/2008 e de 19/10/2010, proferidos nos recursos n.ºs 897/07 e 460/08, respectivamente).”

No caso concreto a revogação da norma ocorreu depois da propositura da acção.

A Direcção-Geral de Viação foi extinta com a criação da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, operada pelo DL n.º 77/07, de 29 de Março, que no seu artigo 13º revogou expressamente o Decreto-Lei n.º 484/99.

E a presente acção foi proposta em 19.10.2005 – ver fls. 1.

Pelo que, verificando-se em relação a este grupo de autores fundamento válido para o pedido deduzido na acção, de declaração de ilegalidade por omissão de regulamento, impõe-se em relação a eles a convolação objectiva do processo por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 45º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

(…)

IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em JULGAR PARCIALMENTE PROCEDENTE O PRESENTE RECURSO JURISDICIONAL, pelo que:

1. Revogam parcialmente a decisão recorrida e, em consequência:

1.1. Julgam a acção improcedente relativamente aos autores que não integravam a carreira de inspector de viação, absolvendo as entidades demandadas do pedido.

1.2. Julgam verificada uma situação de impossibilidade superveniente da lide quanto ao pedido inicial, em relação aos autores integrados na carreira de inspector de viação.

2. Confirmam a decisão recorrida quanto à convolação objectiva do processo, apenas no que toca a este último grupo de autores.

(…)

Este acórdão resume-se, no seu conteúdo decisório a duas vertentes:

A primeira é a absolvição do pedido relativamente autores não integrados na carreira de inspector de viação.

Nesta vertente o acórdão de 12.06.2019 respeita o decidido no acórdão de 06.03.2015, pronunciando-se apenas quanto aos autores integrados na carreira de inspector de viação, o que não é posto em causa, antes confirmado pelo Executado (artigo 3º das alegações de recurso).

A segunda é a convolação objectiva do processo relativamente aos autores integrados na carreira de inspector de viação, incluindo o ora Recorrido JA…, técnico profissional principal da carreira de Inspector de Viação.

Nesta segunda vertente, o acórdão de 06.03.2015 reconhece a existência de uma situação de impossibilidade superveniente da lide quanto ao pedido inicial, em relação aos autores integrados na carreira de inspector de viação, e daí a convolação objectiva do processo.

Deixa de ser apreciado o pedido inicial e é fixado um prazo para as partes acordarem numa indemnização, nos termos do disposto no artigo 45º, n.º1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, confirmando-se nesta parte a decisão aí recorrida.

Quanto ao acórdão de 12.06.2019 são estes, no essencial, os respectivos pressupostos e o dispositivo decisório (com sublinhados nossos):

“(…)

Ao contrário do referido na sentença recorrida é possível determinar, com recurso ao no 3 do artigo 15º , supra transcrito, partindo da regra consagrada no no 2, o escalão para o qual o funcionário transitaria, se o DL. no 112/2001, de 6 de Abril tivesse sido, como deveria ter sido, regulamentado, dado a transição se fazer para o escalão igual ao que o funcionário detém na categoria de origem, devendo depois, ficcionada a transição, ter em conta as carreiras, categorias e escalões, previstos no Mapa I anexo ao diploma em apreço, para determinar a remuneração de cada um dos ora recorrentes.

Por outro lado, como também alegam os recorrentes, em relação ao subsídio de inspecção, o mesmo passaria a ser fixado, por força do disposto no artigo 120 no 2 do diploma em apreço, numa percentagem de 22,5% da remuneração de cada um dos recorrentes, abonado em 12 mensalidades, "...sendo considerado no cálculo da pensão pela forma prevista na alínea b) do n.0 1 do artigo 47.0 do Estatuto da Aposentação.".

Assim, o recurso deve proceder dado o DL. no 112/2001, de 6 de Abril permitir determinar em que medida se faria a transição dos recorrentes para o novo regime das carreiras inspectivas se o referido diploma tivesse sido alvo de atempada regulamentação.

(…)

LVIII. Nesse caso a indemnização pela impossibilidade de repristinar visaria compensar o demandante/exequente pela perda da posição em que o mesmo teria ficado colocado se tivesse sido possível extrair as devidas consequências da anulação judicial.".

O que, como bem referem os recorrentes, sucede no caso concreto, dado que a efectiva elaboração do regulamento da carreira de inspecção da ex-DGV, na sequência do peticionado em sede de execução de sentença, teria implicado a transição dos recorrentes para os escalões remuneratórios previstos no anexo I ao DL. no 112/2001, de 6 de Abril, bem como um aumento no suplemento de função inspectiva — de 20% para 22,5% - sem que a Administração tivesse, nesta matéria remuneratória, outra opção senão proceder à regulamentação da mesma nos termos que estritamente estão previsto no referido DL. 112/2001, alterações remuneratórias que deveriam ter produzido os seus efeitos à data de 1 de Julho de 2000, nos termos que resultam do art.º 19º do diploma em apreço, e que deverão ter reflexo no montante da aposentação dos recorrentes que, entretanto, se tenham aposentado.

(…)

Assim, a pretensão recursiva deve proceder, cabendo a indemnização peticionada pelos ora recorrentes no domínio da devida pela causa legítima de inexecução de sentença, não se verificando, contudo, qualquer causa de nulidade da mesma que os recorrentes, aliás, não concretizam, limitando-se a fazer referência à mesma no pedido formulado em sede de recurso.

(…)

- Decisão

Assim, face ao exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, em conceder provimento ao recurso interposto pelos recorrentes particulares, revogando a decisão recorrida, condenando-se o Ministério da Administração Interna e o Ministério das Finanças e da Administração Pública a pagar a cada dos Recorrentes identificados a fls. 317 dos autos — numeração física - os montantes correspondentes aos diferenciais remuneratórios entre o valor das remunerações mensais que cada Recorrente efectivamente auferiu desde 1 de Julho de 2000 até à data de interposição do presente recurso — ou à data da sua aposentação, se anterior — e o valor da remuneração que deveria ter efectivamente recebido se tivesse transitado para a carreira de inspecção que deveria ter sido regulamentada em cumprimento do DL. no 112/2001, de 6 de Abril, acrescido do diferencial entre o valor do suplemento de função inspectiva efectivamente auferido e o valor desse mesmo suplemento que deveria ter sido estabelecido se tivesse sido regulamentada a carreira de inspecção em que estavam inseridos os Recorrentes, em cumprimento do disposto no DL. no 112/2001, acrescidos de juros de mora de mora, à taxa de 7%, desde 1 de Julho de 2000 até 30 de Abril de 2003 e de 4% desde I de Maio de 2003, até à data do pagamento das referidas quantias, devendo ainda ser comunicada à Caixa Geral de Aposentações o valor das novas remunerações resultantes dos referidos cálculos para que, mostrando-se pagos os necessários descontos se proceda ao recálculo das pensões dos Recorrentes entretanto aposentados, negando provimento ao recurso ao recurso interposto pelo Ministério da Administração Interna.”.

A expressão “diferenciais remuneratórios entre o valor das remunerações mensais que cada Recorrente efectivamente auferiu … e o valor da remuneração que deveria ter efectivamente recebido se tivesse transitado para a carreira de inspecção que deveria ter sido regulamentada”, contida no dispositivo decisório deste último acórdão pode dar a ideia de que se pretendeu decidir reconstituir situação que existiria se a ilegalidade invocada na petição inicial do processo declarativo não tivesse sido praticada, ou seja, executar a decisão de procedência da acção declarativa que não chegou a ser proferida. Em manifesta contradição, nesse caso, com o decidido no acórdão de 06.03.2015, em que se reconhece a existência de uma situação de impossibilidade superveniente da lide quanto ao pedido inicial, em relação aos autores integrados na carreira de inspector de viação, e se procede à convolação objectiva do processo, para a fixação de uma indemnização.

Mas a fundamentação do acórdão de 12.06.2019 esclarece o sentido desta expressão de forma a que se conclua pela perfeita compatibilidade com o acórdão de 06.03.2015.

A transição determinada não é uma transição real – porque essa é impossível – mas apenas ficcionada. E ficcionada para determinar a indemnização devida pela causa legítima de inexecução de sentença, precisamente a impossibilidade de reconstituir a situação que existiria se não tivesse ocorrido a ilegalidade, por omissão.

De forma a obter uma indemnização tão próxima quanto possível do prejuízo a indemnizar, efectivamente sofrido pelos Autores.

Face ao que se expôs, forçoso é concluir pela improcedência do recurso.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantém a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.
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Porto, 08.04.2022


Rogério Martins
Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre