Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00039/14.9BEMDL-S1
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/13/2022
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:NULIDADE DE SENTENÇA - FALTA DE ESPECIFICAÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO;
- ALÍNEA B) DO Nº1 DO ARTº. 615º DO CPC.
Sumário:I- Preceitua-se na al. b) do nº1 do artº. 615º do CPC que “É nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e direito que justifiquem a decisão”.

II- Porém, esse vício só ocorre quando houver falta absoluta ou total de fundamentos ou de motivação [de facto ou de direito em que assenta a decisão], e já não quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, insuficiente, medíocre ou até errada.

III- Padecendo a sentença recorrida, proferida em despacho saneador, de total ausência de fundamentação de facto, ou seja, omitindo-se nessa sentença por completo a especificação/descriminação dos factos em serviram de suporte ao julgamento de direito que conduziu à decisão final em sede de matéria excetiva, deve oficiosamente o Tribunal ad quem, à luz das disposições conjugadas dos artigos 615º, nº1, al. b), e 662º, nº2, al. c), do CPC, anular tal sentença e determinar que, na 1ª. instância, seja proferida nova sentença com a colmatação tal vício/deficiência.*
* Sumário elaborado pelo relator
Votação:Maioria
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO

AN---, S.A., com os sinais dos autos, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL do despacho saneador promanado nos autos na parte “(…) que decidiu julgar procedente a exceção perentória de prescrição quanto a parte do montante peticionado nos presentes autos e, consequentemente, absolver parcialmente o Réu do pedido (…)”.

Em alegações, a Recorrente formulou as conclusões que ora se reproduzem, que delimitam o objeto do recurso: “(…)
1. Vem o presente recurso interposto do segmento decisório proferido em sede de despacho saneador, datado de 05/03/2021 (notificada à aqui Recorrente por notificação eletrónica elaborada e certificada em 08/03/2021), que absolveu o Réu de parte do pedido ao julgar procedente a alegada exceção de prescrição de parte dos montantes faturados, decidindo: “Em conformidade com o exposto, cumpre concluir pela verificação da exceção perentória da prescrição invocada quanto à quantia reclamada pela autora pela nota de débito n° 2300000049, e respectivos juros de mora, vencidos e vincendos, e absolver o réu do pedido, nesta parte. Vai a autora condenada no pagamento das custas, na proporção do decaimento (cfr. artigo 527°, n° 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 1° do CPTA e artigo 6°, n° 1 do RCP).” — Cfr. ponto ii, páginas 3 a 6 do despacho saneador.
2. Salvo o devido respeito, a Recorrente considera que a decisão proferida no ponto ii) do despacho saneador (páginas 3 a 6 do mesmo) padece de manifesta nulidade e erro de julgamento quanto à matéria de facto e de direito, o que constitui os fundamentos do presente Recurso.
3. Em primeiro lugar, e tendo em consideração o preceituado no artigo 88.°/1 e 4 do CPTA, o segmento decisório de que ora se recorre tem, para todos os efeitos, o valor de sentença, pelo que sempre deverá ser de aplicar o disposto no artigo 94.°/2 do CPTA e, bem assim, o disposto no artigo 607°/3 do CPC, por força da remissão do artigo 88.°/5 do CPTA, ou seja, sempre caberia ao douto Tribunal a quo discriminar os factos que considera provados e não provados e que consubstanciam a decisão proferida - o que não ocorreu nos presentes autos.
4. Nesse sentido, veja-se o decidido pelo douto Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão proferido em 12/02/2004, no Processo n.° 03B1414 (disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6cca7e4bacc859b880256e4b0054b040?OpenDocument) e pelo douto Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão datado de 14/11/2017, processo n.° 3309/16.8T8VIS-A.C1 (disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/-/0A0455E9775C4075802581DB004F81C7).
5. Motivo pelo qual, a falta de fixação dos factos (provados e não provados) que levaram o douto Tribunal a quo à prolação da decisão recorrida consubstanciam NULIDADE DA DECISÃO, nos termos do disposto no artigo 615.°, n.° 1, alínea b) do CPC (aplicável aos presentes autos ex vi artigo 88.°/4 e 5 do CPTA e artigo 595.°/3 do CPC, ex vi artigo 88.°/5 do CPTA), pelo que se requer a este douto Tribunal ad quem a anulação da decisão proferida.
CUMULATIVAMENTE,
6. Em segundo lugar, considera a Recorrente que o douto Tribunal a quo comete um ERRO DE JULGAMENTO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO, precisamente por não tomar em devida consideração os factos alegados nos artigos 7.° a 11.° da Petição Inicial, bem como todos os elementos probatórios juntos aos presentes autos, concretamente o referido Acordo de Transação, junto como documento n.° 2 à PI (Cfr. fls. 76 a 86 do SITAF) - factos relevantes para a tomada de decisão quanto à prescrição do montante titulado na nota de débito 2300000049.
7. Pois que, em 12/11/2012, Recorrente e Recorrido celebraram um Acordo de Transação (Cfr. Doc. 2 junto à PI, a fls. 76 a 86 do SITAF), onde, no termos do considerando n.° B) do referido Acordo ficou estabelecido que: “Considerando que a Segunda Contraente reclama créditos não regularizados relativos aos serviços prestados ao Primeiro Contraente no montante de € 1.915.343,27 (um milhão novecentos e quinze mil trezentos e quarenta e três euros e vinte e sete cêntimos) conforme ANEXO I ao presente ACORDO, e que o Primeiro Contraente reconhece apenas o valor de € 922.855,30 (Novecentos e vinte e dois mil oitocentos e cinquenta e cinco euros e trinta cêntimos) conforme ANEXO II e ANEXO III, fazendo parte ambos do presente ACORDO”.
8. Assim, e se atentarmos aos créditos que foram reconhecidos no referido Anexo III daquele Acordo, consta expressamente a nota de débito n.° 2300000049, no valor total de € 405.906,86, pelo que este montante integra o valor de € 922.855,30 que o Recorrido expressamente reconheceu como devido, nos termos do supracitado considerando B) do referido Acordo.
9. Pelo que, é manifesto que o Recorrido (Primeiro Contraente no Acordo de Transação), reconheceu o montante titulado pela nota de debito tida como prescrita pelo douto Tribunal a quo naquele Acordo de Transação, comprometendo-se a pagar o mesmo nos termos das Cláusulas 4ª, 5ª e 9ª do referido Acordo - o que sempre levará à interrupção da prescrição da nota de débito 2300000049, nos termos do disposto nos artigos 325.° e 326.° do CC, pelo que é um facto essencial que sempre deveria ter sido tomado em consideração pelo douto Tribunal a quo.
10. Assim, e porquanto é evidente e manifesto o erro de julgamento deste douto Tribunal a quo quanto à matéria de facto, concretamente quanto à fixação dos factos provados, tendo em consideração quer o alegado nos artigos 7.° a 11.° da Petição Inicial apresentada pela ora Recorrente, quer o alegado na Contestação apresentada pelo Recorrido (porquanto este não impugnou o referido Acordo de Transação, antes pelo contrário, considera-o válido e eficaz — vide artigo 5.° da contestação), requer-se a V. Exas. que seja aditado à decisão o seguinte facto, provado através do documento n.° 2 junto à PI (Cfr. fls. 76a 86do SITAF): “Autora e Réu celebraram, em 12/11/2012, um Acordo de Transação, no qual o Réu reconheceu como devido, nos termos do considerando B) e do Anexo III do referido Acordo, e se comprometeu a pagar, nos termos das Cláusulas n.°s 4ª, 5ª e 9ª do mesmo, o montante titulado na Nota de Débito n.° 2300000049, concretamente o valor de € 405.906,86.”.
11. Pelo que, e em terceiro lugar, considera a Recorrente que o douto Tribunal a quo comete um manifesto ERRO DE JULGAMENTO QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO, porquanto não toma em devida consideração a interrupção da prescrição dos créditos que foram reconhecidos pelo Recorrido no Acordo de Transação, concretamente o montante titulado pela nota de débito n.° 2300000049, violando o preceituado no Código Civil.
12. Pois que, o Acordo de Transação celebrado entre Recorrente e Recorrido, e junto aos presentes autos a fls. 76 a 86 do SITAF, não pode deixar de ser qualificado como reconhecimento expresso do direito de crédito da Recorrente, o que implica a interrupção da prescrição, inutilizando todo o tempo anteriormente decorrido, começando a correr novo prazo a partir daquele acto interruptivo, nos termos do disposto no artigo 325.° e 326.°/1 do Código Civil.
13. Porquanto, é evidente, nos termos do considerando B) e do Anexo III do referido Acordo, que o Recorrido reconheceu expressamente e inequivocamente o direito de crédito da Recorrente ao montante titulado na nota de débito 2300000049, ainda que venha a sujeitar o seu pagamento “à resolução dos diferendos existentes entre os Contraentes” de acordo com a cláusula 5ª e 9ª do mencionado Acordo — porém, tais cláusulas não invalidam o reconhecimento daquela quantia, conforme melhor se alegou no presente recurso.
14. E nesse sentido, veja-se o sumariado pelo Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão proferido em 22/03/2007, Proc. n.° 06A3279 (disponível em: https://jurisprudencia.csm.org.pt/edi/ECLI:PT:STJ:2007:06A3279.34/), concretamente: “II — O reconhecimento do direito é uma mera declaração de ciência, quanto ao conhecimento do direito do titular. (...) IV- Mostrar-se disponível junto do credor para proceder ao pagamento da dívida ou da indemnização, fazer pedido de prorrogação do prazo ou alegar impossibilidade momentânea para o fazer, é reconhecer inequivocamente o direito do credor.”.
15. Assim, por força do disposto nos artigos 325.°/1 e 326.°/1 do CC, o prazo de prescrição interrompeu-se com a outorga daquele Acordo, pelo que, aplicando o prazo de dois anos, preceituado nas bases da concessão (Base XXIX e XXXI do DL 195/2009), aquando a citação do ora Recorrido, em 10/02/2014, tal quantia ainda não estaria prescrita, precisamente por ainda não ter decorrido tal prazo prescricional de dois anos.
16. Nestes termos, é evidente e manifesto o erro de julgamento do Tribunal a quo quanto à matéria de direito, pois que, ao considerar prescrita a quantia titulada pela nota de débito 2300000049, viola o preceituado no artigo 325.° e 326.°/1 do Código Civil.
17. Acresce ainda que, à data da celebração do Acordo de Transação junto aos presentes autos (ou seja, à data de 12/11/2012), o artigo 46.° do CPC (aprovado pelo DL n.0 329--A/95, de 12 de dezembro, na versão conferida pela Lei n.0 63/2011, de 14/12), classificava aquele Acordo de Transação outorgado entre as partes como título executivo, nos termos da alínea c) do referido normativo.
18. Pelo que, nos termos do disposto no artigo 326.°/2 e 311.°/1 do CC, o prazo de prescrição sempre seria, inclusive, o prazo ordinário de 20 anos (nos termos do disposto no artigo 309.°) - ou seja, sempre seria manifestamente impossível, à data da citação do Recorrido, tal prazo ter-se esgotado, motivo pelo qual a quantia titulada na nota de débito 2300000049 não se encontra prescrita.
19. Nestes termos, para além do alegado supra, a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo viola, também, o disposto nos artigos 326.°/2 e 311.°/1 do CC, existindo um claro erro de julgamento quanto à matéria de direito.
20. Por tudo quanto foi dito, requer-se a este douto Tribunal ad quem a alteração da decisão quanto à matéria de direito, por manifesto erro de julgamento, pois que sempre se deverá considerar totalmente improcedente a assacada prescrição da quantia titulada na nota de débito 2300000049.
21. Salvo devido respeito, a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo viola o disposto nos artigos 325.° e 326.°/1 do Código Civil, bem como o disposto nos artigos 326.°/2 e 311.°/1 do mesmo diploma legal.
22. Bem como assim, e por padecer de manifesta nulidade (nos termos do disposto no artigo 615.°/1/b)), viola, ainda, o disposto no artigo 94.°/2 do CPTA, ex vi artigo 88.°/4 do mesmo diploma legal, e, bem assim, o disposto no artigo 607°/3 do CPC, por força da remissão do artigo 595.°/3 do CPC, ex vi artigo 88.°/5 do CPTA (…)”.
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Notificado que foi para o efeito, o Recorrido Município (...) produziu contra-alegações, que rematou com o seguinte quadro conclusivo: “(…)

A. A decisão recorrida faz referência expressa e clara a todos os factos essenciais que se dão como provados para efeitos de análise do efeito prescritivo.
B. Para além de fazer uma ampla e desenvolvida análise de direito quanto à relação entre as partes, procedendo à transcrição das Bases Contratuais e dos preceitos legais da lei civil aplicáveis.
C. É igualmente este o sentido do já decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo no âmbito do Acórdão de 30/06/2016, no processo n.° 01308/15 (Relatora: MARIA BENEDITA URBANO), nos termos do qual: «No que respeita à alegação de que a decisão recorrida é nula por incumprimento do dever do contraditório e à alegação de falta ou parca fundamentação da decisão judicial, “pois não discrimina os factos que considera provados, nem interpreta e aplica as normas jurídicas correspondentes”, a decisão recorrida não nos merece qualquer tipo de censura. Com efeito, aí se disse, com argumentação que totalmente subscrevemos, que “Na presente ação administrativa comum, a exceção de prescrição foi, entre outras, invocada pelo Réu/Recorrido na respetiva contestação e na sequência da sua notificação à Autora/Recorrente, esta apresentou ‘réplica', onde expressamente se pronunciou sobre as exceções invocadas, incluindo a questão da prescrição. (...) Também não assiste razão à Recorrente quando invoca falta de fundamentação da decisão recorrida, sendo, pelo contrário, evidente que na mesma foram elencadas as razões de facto e de direito em que se apoia a decisão, a qual está também estruturada de modo a separar a matéria de facto e a de direito. »
D. Termos em que, pelo desenvolvimento e estrutura do despacho saneador, não se verifica qualquer nulidade por "ausência total da fundamentação” tal como prevista no artigo 615.°, n.°, al. b) do CPC ex vi o artigo 1.° do CPTA.
E. Como o Recorrido alegou em sede de contestação e foi devida e sobejamente enquadrado no douto despacho instrutório, não obstante a nota de débito n.° 2300000049, no valor de €405.906,86 (quatrocentos e cinco mil, novecentos e seis euros e oitenta e seis cêntimos) se encontrar relacionada no Anexo III do Acordo de Transação, a mesma encontra-se excecionada do montante reconhecido como sendo devido pelo Recorrido à Recorrente, nos termos do disposto nas respetivas Cláusulas 4.a e 5.a do mesmo acordo.
F. Acresce ainda que, nos termos do disposto na Cláusula 9.a do Acordo de Transação se reconhece expressamente que existem "diferendos existentes relativamente à dívida não reconhecida pelos Contraentes”. 
G. Ou seja, tal como decorre do douto despacho recorrido não ocorreu qualquer causa interruptiva da prescrição para efeitos do disposto no artigo 326.° do CC, na medida em o Recorrido apenas reconheceu, no mencionado Acordo de Transação de 12 de novembro de 2012, a existência e exigibilidade dos montantes titulados nas faturas identificadas nos Anexos II e III daquele Acordo, com expressa exceção da nota de débito n.° 2300000049.
H. E, por maioria de razão, na medida em que a dívida resultante da nota de crédito se encontra expressamente excluída da aplicação do Acordo de Transação, nunca poderá o mesmo ter como efeito a aplicação do artigo 311.° do CC, com a consideração do prazo ordinário de prescrição de vinte anos.
I. Termos em que, improcede o invocado erro de julgamento quanto à matéria de facto e não se justifica a fixação de qualquer facto assente para além dos já contidos no douto despacho instrutório.
J. Reitera-se que o Recorrido apenas reconheceu, no mencionado Acordo de Transação de 12 de novembro de 2012, a existência e exigibilidade dos montantes titulados nas faturas identificadas nos Anexos II e III daquele Acordo, com exceção da nota de débito n.° 2300000049.
K. Facto que a decisão recorrida bem soube apreciar, ao considerar tratar-se de uma situação de prescrição extintiva, submetida às regras da suspensão e interrupção indicadas nos artigos 318.° e seguintes do Código Civil, concretamente ao disposto nos artigos 323.° e 326.°, 327.° a propósito da interrupção da prescrição.
L. O mesmo despacho saneador remete para a data em que a nota de débito foi emitida (31/01/2011) e para a data em que ocorreu o evento interruptivo (10/02/2014) por referência aos documentos de fls. 174-175 e 176 do SITAF.
M. Isto é, resulta à saciedade que os factos que suportam a decisão foram corretamente apurados e enquadrados, não se impondo ao tribunal qualquer outra apreciação para além da que efetivamente já efetuou.
N. Termos em que, por fim, improcede o invocado erro de julgamento quanto aos fundamentos de direito (…)”.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida, não tendo, todavia, emitido pronúncia sobre a imputada nulidade de sentença, por contradição entre os fundamentos de facto e a decisão, o que se aceita excecionalmente, por razões de celeridade processual e, bem assim, por não se reputar a mesma como indispensável [cfr. nº. 5 do artigo 617º do CPC].
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito a que se alude no nº.1 do artigo 146º do C.P.T.A.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir resume-se a saber se o despacho saneador recorrido, ao julgar nos termos e com o alcance explicitados no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em (i) nulidade de sentença, por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão; em (ii) erro de julgamento de facto e (iii) erro de julgamento de direito, por violação dos “(…) artigos 325.° e 326.°/1 do Código Civil, bem como o disposto nos artigos 326.°/2 e 311.°/1 do mesmo diploma legal (…)”.
É na resolução de tais questões que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO
Na decisão recorrida não foi efetuado julgamento da matéria de facto, em face do que aqui se impõe estabelecer a matéria de facto, rectius, ocorrências processuais, mais relevante à decisão a proferir:
A. Em 14.01.2014, AN---, S.A., intentou a presente ação no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela [cfr. fls. 1 e seguintes dos autos principais -suporte digital -, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
B. Nela demandou o Município (...) [idem];
C. E formulou o seguinte petitório: “(…) Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá a presente ação ser considerada procedente, por provada e, em consequência, deverá a R. ser condenada a pagar à A. a quantia de 1.389.459,29 (um milhão, trezentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e cinquenta e nove euros e vinte e nove cêntimos, valor acrescido dos competentes juros de mora, no valor de € 150.880,00 (cento e cinquenta mil oitocentos e oitenta euros), o que perfaz o total de € 1.540.339,29 (um milhão, quinhentos e quarenta mil, trezentos e trinta e nove euros e vinte e nove cêntimos), bem como nos demais que se vierem a vencer até ao efectivo e integral pagamento da dívida. (…)” [idem].
D. O Réu foi citado para a presente ação por ofício datado de 06.02.2014 e rececionado a 13.02.2014 [cfr. fls. 171 a 174 dos autos principais -suporte digital -, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
E. Em 13.03.2014, o Réu contestou pela forma inserta a fls. 177 dos autos principais [suporte digital], na qual se excecionou, de entre outra matéria excetiva, a prescrição da nota de débito nº. 2300000049, defendendo-se ainda por impugnação, pugnando a final pela improcedência da presente ação.
F. Em 05.03.2021, o Tribunal a quo dispensou a realização de audiência prévia [cfr. fls. 1099 e seguintes dos autos principais -suporte digital -, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
G. Na esteira do que promanou despacho saneador do seguinte teor [idem]: “(…)
DESPACHO SANEADOR
I. DO VALOR DA CAUSA
Dispõe o artigo 306°, n° 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 31°, n° 4 do CPTA que compete ao juiz a fixação do valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que sobre as partes impende, o que deverá fazer-se no despacho saneador.
Assim, nos termos do disposto nos artigos 31°, n° 1 e 32°, n° 1, ambos do CPTA, tendo sido indicado pela autora o valor de 1.540.339,29 €, correspondente à quantia que pretende obter pela presente acção, que não mereceu oposição do réu e que se mostra em conformidade com os critérios legais aplicáveis, fixo à causa o valor de 1.540.339,29€.
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II. SANEAMENTO PROCESSUAL
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem na totalidade.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e mostram-se regularmente representadas.
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Cumpre, agora, apreciar a matéria exceptiva suscitada pelo réu na sua contestação, seguindo, por facilidade de exposição, a ordem da sua invocação na contestação.
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i. Da inexigibilidade parcial da dívida
Alega o réu que, na parte respeitante ao pedido de condenação no pagamento do valor titulado pelas facturas e notas de débito n° 3130385036, 3130385064, 3130385136, 3130385099, 2300000297, 2300000298, 2300000349, 2300000350, 2300000424, 2300000425, 3130540487, 2300000550, 2300000610 e 2300000611, foi celebrado, em 31/12/2013, entre as partes, um acordo de transacção, que conduz à inexigibilidade judicial da dívida.
Compulsados os autos, verifica-se que o conhecimento da excepção invocada fica prejudicado pela desistência parcial do pedido apresentada pela autora, no que se refere às indicadas facturas e notas de débito, a qual foi homologada por despacho de fls. 999-1002 do SITAF.
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ii. Da prescrição da nota de débito n° 2300000049
Alega o réu que a nota de débito n° 2300000049 foi emitida em 31/01/2011 e que o réu apenas foi citado para a presente acção no dia 10/02/2014 (portanto, depois de decorridos mais de dois anos sobre a data da respectiva emissão), pelo que se encontram prescritos os créditos nela titulados.
Cumpre apreciar e decidir.
A nota de débito em causa refere-se à cobrança, pela autora, de quantia referente a “Valores mínimos garantidos nos termos da cláusula 16° do Contrato de Concessão e da cláusula 3- dos respectivos contratos de fornecimento de água e de recolha de efluentes" (cfr. documento n° 3 junto com a petição inicial).
Está, portanto, em causa a cobrança de quantia que a autora facturou no âmbito do contrato de concessão, e dos contratos de fornecimento de água e recolha de efluentes que celebrou com o Município (...), nos termos do Decreto-Lei n° 270- A/2001, de 6 de Outubro, que prevê a celebração de contratos de fornecimento entre a concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento de Trás-Os-Montes e Alto Douro (à qual sucedeu, a ora autora) e os municípios utilizadores (no caso, o Município (...)).
O litígio dos autos surge, assim, nesta parte, no âmbito das relações entre a concessionária, gestora de sistema multimunicipal de águas e resíduos, e o município, seu utilizador “em alta".
A este propósito, preceitua o Decreto-Lei n° 162/96, de 4 de Setembro, republicado pelo Decreto-lei n° 195/2009, de 20 de Agosto, que regula o regime jurídico da concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de recolha, tratamento e rejeição de efluentes, e aprova as Bases da Concessão, além do mais, que:
“Base XXIX
Medição e factura dos efluentes
1- Os serviços prestados pela concessionária devem ser objecto de medição para efeitos de facturação, salvo disposições transitórias previstas contratualmente, e ser facturados mensalmente, com um prazo de pagamento de 60 dias.
(…)
3 - Às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime dos juros comerciais bem como um prazo de prescrição de dois anos após a emissão das respectivas facturas.
4 - Sem prejuízo do regime previsto na presente base, os utilizadores podem acordar com a concessionária procedimentos relacionados com a medição e facturação. (...)".
De igual modo, o Decreto-Lei n° 319/94, de 24 de Dezembro, republicado pelo Decreto-lei n° 195/2009, de 20 de Agosto, que regula o regime jurídico da concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público, e aprova as Bases da Concessão estipula, além do mais,
“Base XXXI
Medição e facturação da água fornecida
(...)
- Os serviços prestados pela concessionária devem ser objecto de medição para efeitos de facturação, salvo disposições transitórias previstas contratualmente, e ser facturados mensalmente, com um prazo de pagamento de 60 dias.
- Às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime dos juros comerciais bem como um prazo de prescrição de dois anos após a emissão das respectivas facturas. (.)"
Ora, assumindo o réu a posição de Município utilizador, então naturalmente será aplicável às suas dívidas o prazo de prescrição de dois anos após a emissão das facturas previsto no n° 3 das Bases XXIX e XXXI, acabadas de transcrever.
Tratando-se de uma situação de prescrição extintiva, não pode esta deixar de estar submetida às regras da suspensão e interrupção indicadas nos artigos 318° e seguintes do Código Civil (CC).
Assim, estabelece o artigo 323° do CC, a propósito da interrupção, que:
“1. A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.
Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.
(…)
4. É equiparado à citação ou notificação, para efeitos deste artigo, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido.”.
Por seu turno, o artigo 326° do CC, prescreve quanto aos efeitos da interrupção:
“1. A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo, sem prejuízo do disposto nos n°s 1 e 3 do artigo seguinte.
2. A nova prescrição está sujeita ao prazo da prescrição primitiva, salvo o disposto no artigo 311°".
E, quanto à duração da interrupção, estabelece o artigo 327° do CC que:
“1. Se a interrupção resultar de citação, notificação ou acto equiparado, ou de compromisso arbitral, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo.
2. Quando, porém, se verifique a desistência ou a absolvição da instância, ou esta seja considerada deserta, ou fique sem efeito o compromisso arbitral, o novo prazo prescricional começa a correr logo após o acto interruptivo.
Se, por motivo processual não imputável ao titular do direito, o réu for absolvido da instância ou ficar sem efeito o compromisso arbitral, e o prazo da prescrição tiver entretanto terminado ou terminar nos dois meses imediatos ao trânsito em julgado da decisão ou da verificação do facto que torna ineficaz o compromisso, não se considera completada a prescrição antes de findarem estes dois meses.”.
Ora, considerando que a nota de débito em causa foi emitida em 31/01/2011, à data em que ocorreu o evento interruptivo, in casu, a citação do réu em 10/02/2014 (cfr. fls. 174-175 e 176 do SITAF), já há muito se tinha completado o prazo de prescrição de 2 anos.
Em conformidade com o exposto, cumpre concluir pela verificação da excepção peremptória da prescrição invocada quanto à quantia reclamada pela autora pela nota de débito n° 2300000049, e respectivos juros de mora, vencidos e vincendos, e absolver o réu do pedido, nesta parte.
Vai a autora condenada no pagamento das custas, na proporção do decaimento (cfr. artigo 527°, n° 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 1° do CPTA e artigo 6°, n° 1 do RCP).
Notifique.
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iii. Da nulidade das cláusulas 16- do Contrato de Concessão e das Cláusulas 3- do Contrato de Fornecimento de Água e do Contrato de Recolha de Efluentes
Vem suscitada pelo réu a excepção da nulidade das cláusulas 16â do Contrato de Concessão e das Cláusulas 3â do Contrato de Fornecimento de Água e do Contrato de Recolha de Efluentes.
Não obstante a matéria alegada vir invocada nos artigos 25° e seguintes da contestação a título de excepção, afigura-se que estamos perante matéria de impugnação, já que o que se coloca em causa é a cláusula contratual da qual a autora pretende retirar o direito que pretende fazer valer em juízo, ou seja, a invocada ilegalidade da referida cláusula insere-se no próprio mérito da causa, não sendo matéria de excepção.
Na verdade, atendendo aos critérios definidos legalmente no artigo 576° do CPC, não pode afirmar-se que estejamos perante uma excepção dilatória, já que a eventual nulidade/ilegalidade não se repercute em termos processuais ou adjectivos, mas sobre o próprio direito da autora.
E, também não estamos perante uma excepção peremptória, já que, embora estejamos perante uma questão que pode extinguir o efeito jurídico pretendido pela autora, trata-se de uma questão jurídica que tem subjacente o confronto de uma cláusula contratual com a legalidade invocada. Para que estivéssemos perante uma excepção peremptória, necessário seria que a invocada nulidade não decorresse de factos que integram a causa de pedir (cfr. artigo 576°, n° 3 do CPC), o que não sucede no caso.
Acresce que, ainda que assim se não entendesse sempre, uma vez que para o conhecimento da matéria invocada se torna necessária a produção de prova, o seu conhecimento é relegado para o momento ulterior ao do julgamento da matéria de facto, nos termos do artigo 595°, n° 4 do CPC.
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iv. Da inexigibilidade dos valores titulados na nota de débito n° 2300000049 e na factura n° 2300000055 por falta de verificação dos respectivos pressupostos de pagamento
A presente questão, que se reconduz à invocação de excepção de não cumprimento (agora limitada à factura n° 2300000055, atenta a verificação da excepção da prescrição, no que se refere à nota de débito n° 2300000049), carece da prévia produção de prova sobre a factualidade subjacente, pelo que se relega o seu conhecimento para momento ulterior ao do julgamento da matéria de facto, nos termos do artigo 595°, n° 4 do CPC.
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v. Da caducidade do direito a exigir valor mínimo garantido
Invoca o réu que tendo o contrato de concessão sido celebrado no dia 26/10/2001, por um período de 30 anos, a obrigação de pagamento de serviços mínimos caducou, pelo menos, no dia 26/10/2011, data em que se ultrapassou o período de 1/3 (10 anos) do contrato de concessão.
Cumpre apreciar e decidir.
O Decreto-Lei n° 319/94, de 24 de Dezembro, republicado pelo Decreto-Lei n° 195/2009, de 20 de Agosto, que regula o regime jurídico da concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público, e aprova as Bases da Concessão, consagra na Base XXVIII que:
"(...) 3 - Os contratos de concessão e de fornecimento, de forma a garantir o equilíbrio da concessão, fixam os valores mínimos anuais que cada utilizador se compromete a pagar à concessionária sempre que o valor resultante da facturação da utilização do serviço seja inferior àqueles.
4 - O disposto no número anterior vigora desde a outorga do contrato de concessão até ao termo do primeiro terço do prazo inicial da concessão ou, posteriormente, se o valor resultante da facturação for inferior aos mínimos por motivo imputável ao utilizador.
5 - Os utilizadores podem recusar o pagamento dos valores mínimos no caso de se verificar o atraso na realização dos investimentos necessários à prestação do serviço no respectivo território por motivo que seja imputável à concessionária.”.
Decorre do preceito legal acabdo de transcrever que não assiste razão réu. De facto, ao contrário do alegado, os valores mínimos não estão previstos apenas para o primeiro terço do prazo inicial da concessão.
E, tal decorre do teor do normativo invocado pelo réu, o qual contempla expressamente a possibilidade de serem cobrados valores mínimos posteriormente a esse limite inicial, embora sujeito ao preenchimento de determinados requisitos.
Deste modo, não assiste razão ao réu, não se verificando a invocada caducidade com fundamento no facto de se ter ultrapassado o período de 1/3 (10 anos) do contrato de concessão.
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Não se verificam outras excepções ou questões prévias que cumpra oficiosamente conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
O processo não contém todos os elementos que permitam desde já conhecer do mérito da causa, pelo que cumpre proferir despacho destinado à identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, nos termos previstos nos artigos 593°, n° 1, alínea c) e 596°, n° 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 1° do CPTA.
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III. OBJECTO DO LITÍGIO
O presente litígio tem por objecto o pagamento da factura n° 2300000055, no montante global de 914.588,71 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento, a título de valores mínimos garantidos, nos termos da cláusula 3â dos contratos de fornecimento de água e de recolha de efluentes outorgados entre autora e o réu.
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IIV. TEMAS DA PROVA
A. Do pagamento da factura n° 2300000055;
B. Da interpelação da ré para pagamento da factura n°2300000055;
C. Da (in)exigibilidade dos valores mínimos garantidos e sua quantificação;
D. Do incumprimento das obrigações contratuais da autora.
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Notifique, nos termos do artigo 596°, n° 2 do CPC (…)”.
H) Sobre este despacho saneador, na parte que julgou procedente a exceção de prescrição da nota de débito nº. 2300000049, o presente recurso jurisdicional [cfr. fls. 1026 e seguintes dos autos – suporte digital – cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
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III.2. – DA NULIDADE DE SENTENÇA
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Vem a Recorrente arguir a nulidade de sentença com fundamento no disposto no artigo 615.°, n.° 1, alínea b) do CPC.
Sustenta, para tanto, brevitatis causae, que “(…) sempre caberia ao douto Tribunal a quo discriminar os factos que considera provados e não provados e que consubstanciam a decisão proferida - o que não ocorreu nos presentes autos (…) Motivo pelo qual, a falta de fixação dos factos (provados e não provados) que levaram o douto Tribunal a quo à prolação da decisão recorrida consubstanciam NULIDADE DA DECISÃO (…)”.
Vejamos, sublinhando, desde já, que existem duas causas de nulidade da sentença com base em vícios de fundamentação.
A primeira, prevista na alínea b) do nº.1 do artigo 615º do C.P.C., consiste na falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
A segunda, prevista na alínea c) do nº.1 do artigo 615º do C.P.C, consiste na oposição entre os factos fixados e a decisão, seja por inconcludência seja por radical antagonismo, mas sempre no sentido de que a decisão tomada seria incompatível com a fundamentação de facto relevada.
No caso versado, sendo insofismável que vem invocada a falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão, constitui convicção deste Tribunal que a decisão judicial, objeto do presente recurso jurisdicional, padece, efetivamente do arguida nulidade.
Com efeito, e como ressalta do probatório coligido nos autos, a Sra. Juíza a quo, depois de fixar o valor da causa, passou logo no despacho saneador a conhecer da matéria excetiva suscitada nos autos, ademais e especialmente, da exceção de prescrição da nota de débito nº 2300000049.
E, examinando o teor do despacho saneador recorrido que de imediato proferiu, verifica-se que entrou logo na fundamentação de direito, fazendo tábua rasa da fundamentação de facto, ou seja, fê-lo omitindo por completo a especificação/descriminação dos factos em serviram de suporte ao julgamento de direito que conduziu à decisão da matéria excetiva suscitada nos autos.
Estamos, portanto, perante uma decisão judicial que não concretiza de forma cabal os factos considerados provados, com a especificação dos elementos probatórios em baseou a convicção do Tribunal.
Logo haverá de se entender que a fundamentação de direito feita ao longo da decisão judicial recorrida assenta numa realidade factual virtual, em total desrespeito do comando estatuído no artº. 607º, nºs. 3 e 4, do CPC, o que fulmina a mesma com o vício de nulidade previsto no artº. 615º, nº1. al. b), do CPC.
Circunstância essa impeditiva deste Tribunal Superior de exercer, no âmbito das competências legais que lhe estão atribuídas, de exercer qualquer controle sobre a bondade da decisão, ademais e especialmente, por reporte aos invocados erros de julgamentos de facto e de direito invocados no presente recurso.
Na verdade, como se decidiu no aresto do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 18.01.2012, tirado no processo nº 191/04 - posição que aqui se acompanha in totum - “A fundamentação da matéria de facto provada e não provada em primeira instância, a explicação crítica por parte do julgador de tal matéria, é essencial para que o Tribunal de recurso se possa pronunciar sobre a mesma, caso venha a ser posta em causa em sede de recurso. Inexistindo nesta decisão recorrida tais razões, fica, de modo inexorável, este Tribunal de recurso coartado e impedido de exercer plenamente os seus poderes, não podendo decidir, de facto e de direito, como lhe compete”.
Neste domínio, cabe notar que não se ignora que o artigo 662º do C.P.C. fixa parâmetros e orientações para o julgamento, em sede de recurso, da decisão sobre a matéria de facto proferida em 1ª instância, podendo, com vista à sua alteração, reapreciar ou reexaminar a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto.
Tal, porém, não pode suceder sem que primeiro tenha tido lugar o julgamento da matéria na 1ª instância [Neste sentido, vd. aresto do T.C.A.N., de 09.11.06, tirado no processo nº 00345/06].
Por conseguinte, perante aquilo que se deixou exposto, impõe-se anular o despacho saneador no segmento decisório recorrido - que, diga-se, quanto ao mérito, é de rigor discutível -, determinando-se que seja proferida nova decisão judicial sobre a suscitada exceção de prescrição da nota de débito nº 2300000049 - preferencialmente já contemplando os argumentos invocados no presente recurso - da qual conste decisão sobre os fundamentos da matéria de facto, ou seja, na qual se elenquem/especifiquem os factos considerados como assentes/provados que justificam a decisão, ficando, assim, prejudicado conhecimento das questões objeto do presente recurso acima elencadas [artigo 95º, nº. 1 in fine do C.P.T.A. e 608º nº.2 do CPC].
Ao que se provirá no dispositivo.
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IV – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice”, e, em consequência, anular o despacho saneador recorrido na parte em “(…) que decidiu julgar procedente a exceção perentória de prescrição quanto a parte do montante peticionado nos presentes autos e, consequentemente, absolver parcialmente o Réu do pedido (…)”, determinando-se que seja proferida nova decisão judicial sobre tal matéria excetiva - preferencialmente já contemplando os argumentos invocados pela Recorrente no presente recurso - da qual conste decisão sofre os fundamentos da matéria de facto, ou seja, na qual se elenquem/especifiquem os factos considerados como assentes/provados que justificam/suportam a decisão.

Sem custas.

Registe e Notifique-se.
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Porto, 13 de maio de 2022,


Ricardo de Oliveira e Sousa
Rogério Martins
Luís Migueis Garcia - com voto vencido anexo:

Voto vencido.

Ao que interessa na fundamentação é que ela seja elucidativa das razões, com alimento de facto e de direito; o que fulmina de nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, b), do CPC, é que a decisão da causa esteja desprovida desses fundamentos; por múltiplos motivos convirá até que não estejam dispersos, sendo desejável segmentar/autonomizar a fundamentação de facto e a fundamentação de direito; mas a falta de compartimentação na narrativa de um específico elenco factual (se ainda assim se percepciona qual a factualidade que dá serventia) não se subsume a uma falta de fundamentos; muito menos a sua insuficiência, quando só a absoluta falta é nulidade.
E, no caso, e a meu ver, percepciona-se qual foi o circunstancialismo de facto que esteve na base da resolvida questão da prescrição, e que, não sujeito a discussão, não carecia, ao contrário do arvorado no recurso, de discriminação entre factos provados e não provados; apenas tinha de ser considerado; mesmo que por proposição hipotética.
E o recurso - como antes também se não mostrou de dificuldade - mostra que a recorrente teve mesma percepção, perfeitamente tirando sentido ao que se opõe, não inibindo perante excepcionada prescrição a sua - para uma dada realidade - interrupção (por reconhecimento do direito).
O que acontece é que a base factual é insuficiente ao julgamento; face à alegação atinente à interrupção da prescrição; uma correcta decisão tem de a ter em consideração.
A justificar-se caberia anulação, mas em ordem a essa ampliação.

Porto, 13/05/2022.

Luís Migueis Garcia