Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01030/17.9BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/30/2023
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:LEI DOS COMPROMISSOS;
VIOLAÇÃO;
NULIDADE; SANAÇÃO;
Sumário:

I – A celebração de um contrato administrativo de prestação de serviços ou de fornecimento de bens sem a prévia e válida assunção do respetivo compromisso tem como consequência a sua nulidade.

II- Nos termos do nº. 4 do artigo 5º da Lei nº. 08/12, de 21 de janeiro, tal nulidade é sanável mediante decisão judicial quando, perante o confronto dos interesses em causa, a mesma se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé.

III- Escrutinados os interesses em causa - da empresa, aqui A., de receber a contrapartida do preço pelo serviço executado, com os interesses públicos, assumidos por uma empresa municipal como foi a Gaianima, traduzido em cumprir a lei dos compromissos públicos -, não é possível afirmar que a nulidade do contrato seja desproporcional ou contrária à boa-fé.

IV. Na verdade, a Recorrida não podia ignorar a vigência à data da Lei nº. 08/12, de 21 de janeiro, e, qua tale, a necessidade da certificação da emissão de compromisso por parte da Recorrente previamente à prestação dos serviços contratados, sob pena de impossibilidade de reclamação “(…) do Estado ou das entidades públicas envolvidas o respetivo pagamento ou quaisquer direitos ao ressarcimento, sob qualquer forma (…)” [cfr. artigo 9º, nº. 2 da Lei nº. 08/2012].

V. Assim, para efeito de verificação dos pressupostos de proteção da boa-fé e das situações de confiança, só é de relevar a aquisição processual da adoção de comportamentos por parte da Administração tendentes a convencer que a Autora, aqui Recorrida, da garantia de recebimento da contrapartida de preço como contraprestação do serviço executado numa situação de não prestação de compromisso não fiscalizada previamente pela mesma.

VI. No caso em apreço, não se retiram da matéria de facto apurada sinais suficientemente consistentes de que o Recorrente tivesse inopinadamente destruído expectativas legitimamente constituídas pela Recorrida de garantia de recebimento da contrapartida de preço como contraprestação do serviço executado numa situação de não prestação de compromisso por parte da entidade contratante não previamente fiscalizada pelo prestador de serviços.

VII- O que nos transporta para evidência da não verificação dos pressupostos de proteção da boa-fé e das situações de confiança, determinante da impossibilidade judicial da sanação do contrato de empreitada descrito nos autos.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte - Secção de Contencioso Administrativo, subsecção de Contratos Públicos:
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I – RELATÓRIO

1. O MUNICÍPIO ..., Réu nos presentes autos de AÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM em que é Autora a sociedade [SCom02...], LDA., vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL do (i) “(…) Despacho de fls. 189 e ss. dos autos que julgou improcedente a exceção de ilegitimidade passiva do R. e indeferiu o incidente de intervenção principal provocada do sócio da [SCom01...] na pessoa do seu liquidatário (…)”, e, bem assim, da (ii) sentença promanada nos autos, que julgou a presente ação procedente e, em consequência, condenou “(…) o Réu a pagar à Autora o montante de € 21.365,00, acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor, contados desde 06/12/2013, até efetivo e integral pagamento (…)”.

2. Alegando, o Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)

A - O presente recurso vem interposto do douto despacho interlocutório que o Município, tal como se encontra representado, é parte legítima nestes autos, bem como da douta sentença proferida nos autos;

B - Conforme prescreve o art. 163° do Código das Sociedades Comerciais, após o encerramento da liquidação as ações que visem a cobrança de dívidas terão que ser propostas contra os sócios, que serão representados pelo liquidatário para todos os efeitos, incluindo a citação;

C - Esta norma especial aplica-se a todas as situações em que os sócios da sociedade liquidada sejam responsáveis por dívidas da empresa, por terem adquirido bens na partilha, como decorre da parte inicial do seu n° 2;

D - Não pode, por isso, ser derrogada apenas porque o sócio - no caso o recorrente - “assumiu na sua esfera jurídica os ativos e passivos da [SCom01...]”, pois precisamente nestas situações que a norma se aplica;

E - Assim sendo, o douto despacho recorrido violou o art. 163° do Código das Sociedades Comerciais pelo que deve ser revogado e substituído por decisão que julgue verificada a ilegitimidade do recorrente e admita o chamamento peticionado pela Autora na réplica, quer do sócio representado pelo liquidatário, quer dos administradores da [SCom01...] que assumiram a obrigação ilegal;

F - A douta sentença sob recurso alicerça a decisão na boa-fé da recorrida, que permitiria afastar a nulidade das obrigações assumidas pela [SCom01...];

G - É unanimemente aceite que a obrigação de pagamento à recorrida é nula, por violação da Lei dos Compromissos;

H - No âmbito do processo de liquidação da [SCom01...] o recorrente assumiu todos os compromissos que haviam sido legalmente contraídos e não poderia nunca assumir compromissos nulos;

I - A falta de número de compromisso é um requisito de validade do contrato;

J - Nos termos do art. 9°, n° 2, da Lei dos Compromissos a recorrida tinha também obrigação de fiscalizar o cumprimento desta obrigação legal;

L - Esta obrigação não era de difícil cumprimento;

M - A nulidade não decorre da atuação do recorrente mas sim da [SCom01...] e também da recorrida, que omitiu o seu dever de fiscalização;

N - O recorrente sempre agiu de boa-fé perante a recorrida, só não pagando a obrigação existente porque a lei o impede e não por vontade própria;

O - Não houve um comportamento do recorrente - ou da [SCom01...] - visando induzir a recorrida em erro quanto ao cumprimento da Lei dos Compromissos;

P - A recorrida pode demandar os responsáveis pela violação da lei, pelo que não fica desprotegida;

Q - Não foi produzida prova sobre a boa ou má-fé das partes quando negociaram o contrato ou as suas renovações;

R - Não há fundamentos para que o Tribunal possa afastar o efeito anulatório;

S - Se o efeito anulatório for levantado só são devidos juros de mora desde a data em que a obrigação se tornou válida, ou seja desde a sentença, pois só nessa altura a obrigação se torna exigível;

T - A douta sentença em crise viola os arts. 5° e 9° da Lei 8/2012, bem como o art. 289° do C. Civil, pelo que deve ser revogada e substituída por decisão que julgue a ação totalmente improcedente;

U - Ainda que assim se não entenda, sempre deve ser revogada a condenação do recorrente no pagamento dos juros de mora que se tenham vencido antes da prolação da douta sentença (…)”.


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3. Notificada que foi para o efeito, a Recorrida produziu contra-alegações, que rematou da seguinte forma: “(…)

1ª - A assembleia municipal do “MUNICÍPIO ...”, por deliberação, aprovou os planos de dissolução e integração da “[SCom01...], E.E.M” propostos pelo executivo.

2ª - Em resultado da internalização das atividades desenvolvidas pela “[SCom01...]” nos serviços do município, na qualidade de entidade pública participante, assumiu este todos os compromissos financeiros que aquela havia contraído na prossecução dos seus fins. Pelo que,

3ª - A responsabilidade pelo pagamento do crédito da autora pelo “MUNICÍPIO” é inquestionável, sendo, por isso, manifesta a legitimidade passiva do recorrente, não merecendo qualquer censura a decisão que assim o declarou, devendo ser mantida nos seus precisos termos.

4ª - Apesar de o contrato de empreitada celebrado entre a recorrida e a “[SCom01...]” ser nulo, por força do disposto no art.° 5.°, n.° 3, da LCPA e no art.° 7.°, n.° 3, do Dec.-Lei n.° 127/2012, de 21 de junho, a douta decisão recorrida considerou tal nulidade sanada, atenta a verificação dos pressupostos ou requisitos fixados para o efeito no n.° 4 do art.° 5.° da LCPA.

5ª - Sanada a nulidade, o referido contrato de empreitada foi expurgado o vício de que enfermava, pelo que o mesmo não pode deixar de ser considerado válido e eficaz desde o momento da sua celebração, contrariamente ao pretendido pelo recorrente.

6ª - Com efeito, como irrepreensivelmente se consignou na douta decisão recorrida, a referida nulidade, por força do disposto no n.° 4 do art.° 5.° da LCPA é havida como ‘mista ou atípica', afastando-se o seu regime do instituído para tal vício.

7ª - Sendo, como é, uma nulidade ‘mista ou atípica', além de poder ser sanada, produz efeitos como se o contrato e/ou obrigação subjacente(s) fosse(m) vlido(s) desde a sua celebração, e não se verificando os efeitos restitutivos associados ao regime da nulidade.

8ª - Assim, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, a douta decisão recorrida não é merecedora de qualquer censura, não só quando condena o recorrente no pagamento do preço à autora pelos trabalhos que executou, mas também quando o condena no pagamento dos juros a partir do momento de constituição em mora, em conformidade com o que dispõem os art.°s 805.°, n.° 2, al. a), e 806.°, n.° 1, ambos do C.C..

9ª - A douta decisão recorrida não incorreu em erro de interpretação e aplicação dos normativos invocados pelo recorrente (…)”


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4. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão dos recursos, fixando os seus efeitos e o modo de subida.

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5. O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito vertido no nº.1 do artigo 146º do C.P.T.A.

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6. Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.

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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR

7. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.

8. Neste pressuposto, as questões essenciais a dirimir resumem-se a saber se:

(i) o despacho recorrido enferma de erro de julgamento de direito, por violação do disposto no artigo 163º do Código das Sociedades Comerciais.

(ii) a sentença recorrida incorre em erro de julgamento de direito, por ofensa do estatuído nos arts. 5º e 9º da Lei 8/2012, de 21 de fevereiro, e no artigo 289º do C. Civil.

9. É na resolução de tais questões que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.


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III – FUNDAMENTAÇÃO

III.1 – DE FACTO

10. A matéria de facto pertinente é a dada como provada na sentença «sub censura», a qual aqui damos por integralmente reproduzida, como decorre do art. 663º, n.º 6, do CPC.


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IV- DO MÉRITO DA INSTÂNCIA DE RECURSO

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IV.1 – Do recurso interposto do despacho promanado a fls. 189 dos autos

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11. Este recurso está veiculado nas alíneas A) a E) das conclusões de recurso, substanciando-se, no mais essencial, na alegação de que o despacho recorrido, ao desatender a exceção de ilegitimidade passiva do Réu e indeferir o incidente de intervenção principal provocada do sócio da [SCom01...] na pessoa do seu liquidatário, incorreu em erro de julgamento de direito, por violação do disposto no artigo 163º do Código das Sociedades Comerciais.

12. Salvo o devido respeito, o Recorrente labora em manifesto equívoco quanto ao erro de julgamento supra argumentado.

13. Na verdade, não se deteta na decisão judicial recorrida a prolação de qualquer juízo decisório no sentido de indeferimento da exceção de ilegitimidade passiva do Réu e indeferimento do incidente de intervenção principal provocada do sócio da [SCom01...] na pessoa do seu liquidatário.

14. De facto, no despacho em questão, o que ficou decidido foi o seguinte:“(…)

1. Req. de fls. 124 do processo físico: Considerando que a A. desistiu do chamamento à demanda do sócio da “[SCom01...]”, fica prejudicada a pronúncia do Tribunal sobre tal requerimento.

2. No que se refere ao chamamento dos administradores da “[SCom01...]”, «AA», «BB» e «CC» (cf. verso de fls. 110, 111 e 114 dos autos físicos) e atendendo à relação material controvertida presente nestes autos, fundada na responsabilidade contratual, verifica-se que o núcleo essencial da sua causa de pedir consubstancia-se na celebração de um alegado contrato de empreitada e na sucessão da posição contratual da [SCom01...], E.E.M. nesse contrato para o MUNICÍPIO ..., por força da dissolução e encerramento da liquidação da primeira.

Mais se verifica que a causa de pedir primitivamente deduzida na ação diz respeito, exclusivamente, às relações jurídicas estabelecidas entre a autora e o réu, por força daquela sucessão na posição contratual, bem como, ao contrato de empreitada que, alegadamente, não foi remunerado pelo réu.

Ora, estabelecem os artigos 32.º, 33.º, e 34.º do CPC, que apenas pode intervir na ação como parte principal aquele que, em relação ao objeto da ação, tenha um interesse igual ao do autor ou do réu.

Considerando que a relação material controvertida apenas respeita à autora e ao MUNICÍPIO ..., os chamados não integram a relação material principal trazida aos presentes autos, nem entre o réu e eles se verifica uma situação de litisconsórcio passivo, necessário ou voluntário.

Na verdade, o fundamento material para a intervenção principal provocada dos referidos chamados reside em, caso proceda a defesa do réu, a autora poder efetivar a sua responsabilidade por força do disposto no artigo 9.º, n.º 3, da Lei dos Compromissos e Pagamentos em Atraso das Entidades Públicas, aprovada pela Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, o qual dispõe que “sem prejuízo do disposto no artigo 11.º, os responsáveis pela assunção de compromissos em desconformidade com as regras e procedimentos previstos na presente lei respondem pessoal e solidariamente perante os agentes económicos quanto aos danos por estes incorridos”.

Todavia, no fundo, a pretensão da autora altera a causa de pedir e implica a convocação de relação jurídica diversa da inicialmente controvertida.

Isto é, a autora pretende trazer aos autos uma nova relação material controvertida assente na responsabilidade dos referidos chamados pelo alegado incumprimento contratual, ao não assegurarem a prévia legalidade ou regularidade financeira dos compromissos assumidos, formulando um pedido diverso e novo relativamente ao inicialmente erigido: condenação dos mesmos a título subsidiário e solidariamente na obrigação de ressarcir a autora do valor peticionado.

Por conseguinte, a causa de pedir que suporta o pedido condenatório formulado pela autora a título subsidiário na sua réplica, além de se reportar à responsabilidade individual e solidária estabelecida no artigo 9.º, n.º 3, da Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, determina ainda, no entendimento plasmado pela autora, a aferição, supletivamente, dos pressupostos de responsabilidade civil (causa de pedir complexa) consagrados no regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, por força do disposto no artigo 1.º, n.º 3, da Lei nº 67/2007, de 31/12.

Resulta do exposto que a pretensão de provocar a intervenção principal provocada dos chamados não se justifica em termos de se reconhecer que entre eles e o réu se verifica uma situação de litisconsórcio passivo voluntário, mas antes se traduz e se materializaria num novo pedido autónomo contra pessoas singulares que carecem de legitimidade para estar em litígio quanto à relação material controvertida primitiva dos presentes autos, pedido esse que não tinha sido formulado inicialmente na ação e que alteraria, pelo menos parcialmente, a estrutura desta.

Não se reconhecendo a admissibilidade do chamamento dos intervenientes aludidos pela autora, pois tal situação não se subsume à primeira parte do artigo 316.º, n.º 2, do CPC, cabe analisar se o chamamento dos mesmos se justifica por se tratar de terceiros contra quem a autora pretende dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º do CPC (cfr. artigo 316.º, n.º 2, do CPC, parte final).

Preceitua o artigo 39.º do CPC, que: “é admitida a dedução subsidiária do mesmo pedido, ou a dedução de pedido subsidiário, por autor ou contra réu diverso do que demanda ou é demandado a título principal, no caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida”.

Ora bem, analisando o pedido inicial, constata-se não existir correspondência com a pretensão processual agora requerida a título subsidiário na réplica. Efetivamente, a primeira parte do artigo 39.º do CPC não tem aplicação aos presentes autos, pois a autora não pretende deduzir subsidiariamente o pedido primitivo contra os intervenientes ora chamados.

Por outro lado, também não se afigura aplicável a segunda parte do mencionado artigo 39.º do CPC, porquanto, aí apenas se prevê que, em caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação material controvertida, possa ser deduzido pedido subsidiário contra réu diverso daquele que é demandado a título principal.

Acontece que, nos presentes autos, não se constata - nem tal vem alegado nem concretizado pela autora -, qualquer dúvida fundamentada sobre qual o sujeito passivo da relação material controvertida, o que resulta, diferentemente, é que a autora, além da relação material controvertida geneticamente presente nos presentes autos, pretende adicionar outra relação material controvertida, com sujeitos passivos diferentes. O que, como vimos, não encontra respaldo no artigo 316.º, n.º 2, do CPC.

Pelo exposto, indefiro o requerido incidente de intervenção principal provocada de «AA», «BB» e «CC» (…)”.

15. Como se facilmente se apreende, o despacho recorrido não se pronunciou sobre qualquer exceção de ilegitimidade processual do Réu, ademais e especialmente, desatendendo-a.

16. De igual modo, não indeferiu o incidente de intervenção principal provocada do sócio da [SCom01...] na pessoa do seu liquidatário; antes o julgou o conhecimento do mesmo prejudicado em face da desistência por parte da Recorrida do chamamento à demanda do sócio da “[SCom01...]”.

17. Em bom rigor, o despacho recorrido promanou juízo decisório unicamente no que tange ao pedido de intervenção de intervenção principal provocada dos administradores da “[SCom01...]”, tendo indeferido o mesmo.

18. Sendo estes os contornos decisórios imutáveis que derivam do despacho recorrido, é nosso entendimento que o presente recurso jurisdicional carece de falta de objeto, por ausência de edição de qualquer juízo decisório nos vetores assinalados pelo Recorrente no presente recurso.

19. Falta de objeto do recurso que acarreta o seu não conhecimento.

20. Realmente, incumbe apenas a este Tribunal Recursivo indagar a existência de eventuais nulidades e erro de julgamento na decisão judicial recorrida.

21. Como supra se evidenciou, o recurso interposto nada dirige contra o juízo decisório verdadeiramente vertido a fls. 189 dos autos, pelo que nada existe a reapreciar por este Tribunal de recurso.

22. Pelo que não se conhecerá do recurso interposto do despacho promanado a fls. 189 dos autos, por falta de objeto, ao que se provirá no dispositivo.


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IV.2 – Do recurso interposto da sentença promanada nos autos

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23. A Autora intentou a presente ação visando a condenação do MUNICÍPIO ... no pagamento da quantia de € 24.265,96 com fundamento em incumprimento contratual, que imputa ao Réu, por ter sucedido na posição contratual da “[SCom01...], E.E.M.”, entidade originariamente contratante.

24. O T.A.F. do Porto, como sabemos, julgou procedente a presente ação, tendo condenado o Réu no pedido.

25. Fê-lo, sobretudo, por entender que o contrato de empreitada celebrado pelas partes não é nulo, por (i) preterição absoluta das regras procedimentais da contratação pública, nem sequer por (ii) violação das regras constantes da Lei nº 8/2012, de 21 de fevereiro, impondo-se, por isso, a condenação do Réu na contraprestação reclamada nos presentes autos.

26. A ponderação de direito convocada para arrimar o juízo de inverificação da nulidade derivada da preterição de regras procedimentais da contratação pública foi a seguinte: “(…)

Determina o artigo 284° do CCP (sob a epígrafe Invalidade própria do contrato; na redação em vigor à data) o seguinte:

“1 - Os contratos celebrados com ofensa de princípios ou normas injuntivas são anuláveis.

2 - Os contratos são, todavia, nulos quando se verifique algum dos fundamentos previstos no artigo 133° do Código de Procedimento Administrativo ou quando o respetivo vício determine a nulidade por aplicação dos princípios gerais de direito administrativo.

3 - São aplicáveis aos contratos administrativos as disposições do Código Civil relativas à falta e vícios da vontade.”

Já no que respeita à alínea f) do n° 2 do artigo 133° do CPA (na redação vigente à data), esclarece esta norma são actos nulos os que careçam em absoluto de forma legal.

Se bem que, à luz do regime da invalidade dos contratos, conforme previsto no artigo 285° do CCP, se possa discutir qual é o regime aplicável, se as normas do direito administrativo, se as normas próprias do direito civil, não subsistem dúvidas que, a tudo o que respeitar ao procedimento de formação dos contratos em causa, se aplica o n° 1 daquela norma, ou seja, é aplicável o regime de invalidade previsto para o acto administrativo com o mesmo objeto.

Nas palavras de João Pacheco de Amorim (A invalidade e a (in)eficácia do contrato administrativo no Código dos Contratos Públicos, em Estudos da Contratação Pública -1, 2008, Coimbra Editora, pág. 627 e seguintes), “(,..)Toda a invalidade de qualquer contrato administrativo decorrente de um desrespeito pelas disposições reguladoras do respetivo procedimento de formação, regulado e sancionado nos termos do n° 1 do artigo 185° do CPA, será pois qualificável como sendo anulabilidade ou nulidade, se for essa a consequência determinada por força de normas de direito administrativo, e não por força de normas do direito civil, que nesta hipótese não serão chamadas à colação. (...)”

Assim, conforme vem a questão alegada pelo Réu, considera este nada ter que prestar à Autora porquanto está o contrato em causa ferido do desvalor da nulidade, por absoluta falta de forma legal.

Todavia, atenta a factualidade dada como provada, não pode o Tribunal sufragar tal entendimento. Na verdade, e como resulta da matéria de facto dada como assente nos pontos D) a L) verifica-se que existiu um procedimento prévio, nos serviços internos da entidade [SCom01...], para a contratação de uma empreitada de Requalificação de balneários, pavimentação de armazém e colocação de portão no Estádio ..., por via de ajuste direto. De facto, e durante os meses de fevereiro a maio de 2013, aqueles serviços detetaram a necessidade de proceder a tais obras de requalificação, em virtude da deslocação de atletas para aquele estádio e a consequente necessidade de mais balneários, tendo sido proposta uma solução com um determinado preço, e tendo havido uma autorização expressa, emitida pelo respetivo Conselho de Administração, para a realização de procedimento prévio de contratação pública, de ajuste direto, bem como convite dirigido à Autora para apresentação de uma proposta. A Autora aceitou tal convite, tendo lestamente apresentado uma proposta para o efeito, conforme advém do probatório coligido.

Face ao que vem exposto, e apesar de imediato, resultar que não foram observadas todas as formalidades exigidas pelo disposto nos artigos 114° a 127° do CCP para o procedimento prévio de ajuste direto (e uma vez que, atento o preço contratual bem como a natureza jurídica do contrato a celebrar, não seria admissível a aplicação do regime simplificado, constante dos artigos 128° e 129° do mesmo diploma), não pode afirmar-se que tenha havido uma preterição absoluta de tais formalidades, conducentes ao desvalor da nulidade do contrato.

Na verdade, nos termos do disposto nos artigos 133° e seguintes do CPA (na redação em vigor à data), a sanção regra para a invalidade dos actos administrativos era (e ainda é com a nova redação do referido diploma) a da sua anulabilidade e só nos casos contados na lei se pode qualificar um acto inválido como um acto nulo. De facto, sendo o regime da nulidade muito mais radical que o da anulabilidade - basta pensarmos na absoluta incapacidade dos actos nulos produzirem efeitos e na possibilidade da sua impugnação judicial a todo o tempo - e sendo os princípios da certeza e da estabilidade fundamentais na atividade e nas relações administrativas será fácil concluir que se o regime regra fosse o da nulidade a Administração veria a eficácia da sua atividade altamente diminuída e a segurança das suas relações com o Administrado severamente afetada.

E daí que, inexistindo norma que especificamente taxe de nulo um acto inválido, o mesmo será, em princípio, meramente anulável, só assim não acontecendo se se puder considerar que ele é por natureza nulo. Todavia, atenta a excecionalidade deste tipo de actos, importa agir com contenção e cuidado na definição do que se deve entender por acto nulo por natureza.

Conforme o disposto no n° 1 do artigo 133° do CPA (ainda na redação em vigor à data), os actos nulos por natureza são aqueles a que falta qualquer um dos seus elementos essenciais. Marcello Caetano foi preciso na definição que usou, fazendo coincidir esses elementos essenciais com os elementos integrantes do próprio acto administrativo e, nessa conformidade, considerou como essenciais a) a conduta de um órgão da Administração, b) a voluntariedade dessa conduta, c) a produção de efeitos jurídicos num caso concreto e d) a prossecução de interesses postos na lei a seu cargo (Manual de Direito Administrativo, 10ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 429 e seg.).

No caso sub iudice, afirma o Réu que está o contrato administrativo ferido de nulidade por preterição absoluta das regras procedimentais da contratação pública. Todavia, não lhe assiste razão. Ainda que se admita que, nos termos da lei, que a contratação em causa estava dependente do cumprimento de certas formalidades que não foram observadas por parte da Administração, ou seja, pela [SCom01...], a verdade é que tal falta não consubstancia uma ausência de elementos fundamentais do acto e, consequentemente, não implica que esteja o mesmo ferido com o desvalor da nulidade. Existiu procedimento prévio, se bem que porventura não tenha este cumprido com todos os formalismos impostos pelo Código dos Contratos Públicos, consubstanciando uma conduta voluntária de um órgão da Administração, que efetivamente produziu efeitos num caso concreto, visando a prossecução de um interesse público, o da requalificação de um equipamento desportivo posto à disposição dos munícipes.

Nestes termos, tal eventual incumprimento de todas as formalidades prévias de contratação pública acarretaria, tão-somente, o desvalor da anulabilidade, que não o da nulidade, como se expôs (numa situação semelhante, pode ler-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03/03/2004, P. 01938/03, disponível em www.dgsi.pt). Ora, tal vício, além de não vir alegado em sede de contestação, não seria suscetível de ser conhecido nos presentes autos, já que não cabe no objeto do processo e já foram largamente ultrapassados os prazos constantes do artigo 58° do CPTA (na redação em vigor à data da ocorrência dos factos, em 2013).

Afirme-se ainda que foi o contrato de empreitada reduzido a escrito e devidamente assinada - conforme resulta do ponto M) do probatório coligido.

Por fim, tão pouco procede a arguição do Réu, de que o caderno de encargos seria um mero mapa de medições. Efetivamente, analisado o mesmo, resulta claro que observa o mesmo os ditames impostos pelo CCP. Não se olvide que, como resulta de forma cristalina, quer do facto I), quer da descrição dos trabalhos da fatura emitida pela Autora (cf. ponto P) do probatório), a complexidade técnica da obra a realizar era diminuta, pelo que não seria exigível, como resulta do senso comum, a elaboração de um autêntico projeto de execução, conforme aliás previsto nos artigos 42°, n° 2, e 43° do CCP.

Nestes termos, e face a tudo o que vem exposto, improcede a alegada nulidade do contrato, por preterição absoluta das regras procedimentais da contratação pública, arguida pelo Réu, o que desde já se declara (…)”.

27. Por sua vez, e quanto ao afastamento do regime de nulidade derivado do eventual incumprimento violação das regras constantes da Lei nº 8/2012, de 21 de fevereiro, a motivação acolhida pelo Tribunal a quo foi a seguinte: “(…)

Aqui chegados, está bom de ver que o Réu, apesar de admitir que a Autora efetivamente cumpriu com as suas obrigações contratuais (execução da obra de requalificação de balneários, pavimentação de armazém e colocação de portão no Estádio ...), coloca em causa a sua obrigação de pagamento, escudando-se para o efeito na Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso.

Desta forma, e antes do mais, cumpre expor o quadro normativo aplicável à situação em apreço.

Dispõe o n° 2 do artigo 2° da LCPA, na redação à data em vigor, que “sem prejuízo do princípio da independência orçamental, estabelecido no n.° 2 do artigo 5.° da lei de enquadramento orçamental, aprovada pela Lei n.° 91/2001, de 20 de agosto, alterada e republicada pela Lei n.° 52/2011, de 13 de outubro, os princípios contidos na presente lei são aplicáveis aos subsetores regional e local, incluindo as entidades públicas reclassificadas nestes subsetores”.

Donde, emerge, desde logo, a conclusão de que, sendo a [SCom01...] uma entidade empresarial de índole municipal e, portanto, uma empresa local, com uma base territorial e populacional em tudo coincidente com uma autarquia local (vide Lei n° 50/2012, de 31 de agosto), estava abrangida pela LCPA. Ou seja, estando vinculada ao seu cumprimento, a [SCom01...], entidade contratante, encontrava-se obrigada a seguir as regras de assunção de compromissos consagradas no artigo 5° da LCPA.

De entre essas obrigações, destaca-se o disposto no n° 3 do referido artigo 5° da LCPA, que determina que “os sistemas de contabilidade de suporte à execução do orçamento emitem um número de compromisso válido e sequencial que é refletido na ordem de compra, nota de encomenda, ou documento equivalente, e sem o qual o contrato ou a obrigação subjacente são, para todos os efeitos, nulos.”

O artigo 3°, na sua alínea a) apresenta uma definição de “compromissos”, indicando que estes constituem “as obrigações de efetuar pagamentos a terceiros em contrapartida do fornecimento de bens e serviços ou da satisfação de outras condições. Os compromissos consideram-se assumidos quando é executada uma ação formal pela entidade, como sejam a emissão de ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente, ou a assinatura de um contrato, acordo ou protocolo, podendo também ter um carácter permanente e estar associados a pagamentos durante um período indeterminado de tempo, nomeadamente salários, rendas, eletricidade ou pagamentos de prestações diversas”. Já de acordo com a alínea f) deste mesmo artigo, consideram-se fundos disponíveis as verbas disponíveis a muito curto prazo.

Em suma, resulta destes normativos que, por um lado, é indispensável que a assunção do compromisso seja precedida da emissão de um número de compromisso válido e sequencial, que constitui o comprovativo de que, aquando da assunção da despesa/compromisso, a entidade local dispõe de fundos disponíveis para proceder ao respetivo pagamento; e, por outro, que a consequência da não emissão do número de compromisso é gravosa, e consiste na nulidade do contrato ou da obrigação subjacente.

Tais requisitos encontram-se reafirmados no n° 3 do artigo 7° do Decreto-Lei n° 127/2012, de 21 de junho (que, no desenvolvimento do regime estabelecido na LCPA, contempla as normas legais disciplinadoras dos procedimentos necessários à aplicação daquela Lei), que dispõe da seguinte forma:

“3 - Sob pena da respectiva nulidade, e sem prejuízo das responsabilidades aplicáveis, bem como do disposto nos artigos 9.° e 10.° do presente diploma, nenhum compromisso pode ser assumido sem que tenham sido cumpridas as seguintes condições:

a) Verificada a conformidade legal e a regularidade financeira da despesa, nos termos da lei;

b) Registado no sistema informático de apoio à execução orçamental;

c) Emitido um número de compromisso válido e sequencial que é refletido na ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente.”

Regressando ao caso vertente, emerge da factualidade considerada provada que, em abril de 2013, quando foi proferida a decisão de contratar, o fundo disponível atualizado da [SCom01...] era de - 2.397.467,95€. Ou seja, ressuma à evidência que não dispunha a referida entidade de fundos disponíveis que garantissem o efetivo pagamento da prestação contratada à Autora. Mais resulta do probatório coligido que em momento algum foi por aquela entidade gerado, no que respeita à contratação ora em análise, um número de compromisso, refletido numa ordem de compra ou documento equivalente que tenha sido enviado à Autora. Efetivamente, só existiu a referida ordem de compra.

Nestes termos, não foi a assunção do compromisso sujeita a qualquer escrutínio de validade, uma vez que inexistiam fundos disponíveis de que a [SCom01...] pudesse lançar mão. Por outro lado, não foi emitido, pelo sistema de contabilidade de suporte à execução do orçamento, qualquer número de compromisso, válido e sequencial, que tenha sido refletido numa ordem de compra naquele concreto valor, ou outro documento remetido à Autora.

Pelo que se conclui que o contrato de empreitada celebrado entre a Autora e a [SCom01...] é nulo, por força do disposto nos artigos 5°, n° 3 da LCPA e 7°, n° 3 do Decreto-Lei n° 127/2012, de 21 de junho.

Contudo, pese embora os efeitos habituais associados à nulidade harmoniosamente consagrados no nosso ordenamento jurídico, a situação em presença revela contornos diferentes, por força do disposto no n° 4 do artigo 5° da LCPA. Como afirmam Joaquim Freitas da Rocha, Noel Gomes e Hugo Flores da Silva (Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, 2012, Coimbra Editora, pág. 81 e seguintes), “(...) consideramos não restar alternativa senão admitir tratar-se de uma nulidade atípica, que (i) produz efeitos originariamente; (ii) é suscetível de sanação por via de declaração judicial; e (iii) em relação à qual não se verificam os efeitos restitutivos normalmente associados a tal regime. (...) ”

Exposto o quadro normativo aplicável ao caso em presença, cabe agora aferir se é aplicável ao mesmo o disposto no n° 4 do artigo 5° da LCPA, ou seja, se no caso do contrato de fornecimento de bens e serviços sub judice, a nulidade do mesmo pode ser sanada.

Vejamos então.

Atendendo ao disposto naquele referido normativo, decorre a exigência legal do preenchimento de dois pressupostos cumulativos para o afastamento dos efeitos decorrentes da nulidade. São eles (i) a ponderação dos interesses públicos e privados em presença e (ii) que a nulidade se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé.

Iniciando a análise pelo primeiro pressuposto, ou seja, pela ponderação dos interesses públicos e privados em presença, importa salientar que ficou sobejamente demonstrado nos presentes autos que os trabalhos executados pela Autora foram solicitados a esta pela [SCom01...], que se verificou um procedimento prévio tendente à contratação daquela, e que a Autora apresentou àquela entidade uma proposta detalhada para a realização do contrato de empreitada atinente à requalificação de balneários, pavimentação de armazém e colocação de portão no Estádio .... Mais foi admitido pelo próprio Réu, por falta de impugnação especificada, que os trabalhos que compunham a referida empreitada foram efetivamente prestados pela Autora no prazo devido e pelo montante constante do respetivo orçamento (€ 21.365,00).

O que permite inequivocamente concluir que tais trabalhos foram executados pela Autora em obras promovidas pela [SCom01...] na prossecução de fins públicos.

Mais cumpre atender a que a execução dos trabalhos de empreitada em causa implicou um esforço financeiro por parte da Autora, não só quanto à aquisição dos bens necessários à mesma, como ao pagamento da mão-de-obra necessária, o que permite concluir que o impacto decorrente do não pagamento daqueles trabalhos aqui em discussão é indiscutivelmente suscetível de afetar negativamente o desenvolvimento da atividade da Autora.

Por banda do Réu, a verdade é que este beneficiou dos trabalhos executados pela Autora (não se olvidando que se está perante um equipamento da sua propriedade, mas cuja gestão e exploração se encontrava entregue, à data, à [SCom01...]), não se demonstrando, nem tendo sido para o efeito alegado, que pudesse ter beneficiado desses mesmos trabalhos a preços mais baixos e adequados à sua capacidade financeira.

Assim, ponderados os interesses públicos e privados em presença, conclui este Tribunal que nada obsta a que, por esta via, sejam eliminados os efeitos da nulidade, por via de aplicação do disposto no n° 4 do artigo 5° da LCPA.

Quanto ao segundo requisito, tangente aos ditames da boa-fé, cumpre, antes do mais, referir que aquilo que o legislador pretende significar quando alude à boa-fé não é o mero desconhecimento da obrigação de emissão do número de compromisso, pois que tal obrigação decorre diretamente da lei, pelo que não é desculpável nem justificativo do seu incumprimento a ignorância ou a má interpretação da LCPA, por força do disposto no artigo 6° do Código Civil. Ou seja, é sobejamente sabido que a ignorância ou a má interpretação da lei, além de não justificar o seu incumprimento, não isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas.

Desta forma, o controlo imposto pelas limitações decorrentes dos ditames da boa-fé que o legislador aqui quis consagrar prende-se com uma análise, a efetuar pelo julgador, do comportamento das partes no âmbito da relação negocial entre elas estabelecidas, associado às circunstâncias do caso concreto.

Assim, da factualidade provada resulta que os trabalhos executados pela Autora, a partir de junho de 2013, foram expressamente solicitados pela [SCom01...], mediante procedimento prévio tendente à contratação pública por ajuste direto, e atenta à imperiosa necessidade de proceder a tal requalificação, por via deslocação de atletas de um estádio para aquele sujeito a obras, assim se impondo a adaptação de balneários, atento o aumento da sua taxa de ocupação.

Sendo certo que sobre a Autora recaía a obrigação de conhecer a lei, nomeadamente, no que para a economia dos presentes autos importa, o disposto na LCPA, a verdade é que o conhecimento das obrigações decorrentes da LCPA, e respectiva regulamentação, recaía, em primeira linha, sobre a [SCom01...], uma vez que é esta quem se insere no âmbito subjetivo daquele diploma legal (artigo 2°, n° 2 da LCPA).

Donde, decorre a conclusão necessária de que a [SCom01...], ora substituída pelo Réu, tendo contratado a execução daqueles trabalhos à Autora, sem mais, não pode negar o conhecimento desses factos e, com base na mera invocação dos normativos legais que a própria não observou na contratação daqueles serviços, venha a manter-se numa situação inadimplente, procurando furtar-se ao cumprimento dos negócios que foram celebrados, frustrando, dessa forma, as legítimas expectativas criadas no co-contratante.

Em suma, em face de tudo quanto se expôs, impõe-se concluir que a invocação de causa de nulidade do contrato de empreitada celebrado com a Autora, com fundamento no incumprimento de uma obrigação legal que, em primeira linha, recaía sobre o próprio Réu (à data, sobre a [SCom01...]), é claramente atentatória dos ditames da boa-fé. O que permite dar como verificado o segundo requisito consagrado no n° 4 do artigo 5° da LCPA e, dessa forma, afastar os efeitos da nulidade do contrato celebrado entre a Autora e o Réu (à data, pela [SCom01...]) e que constitui o objeto dos presentes autos.

Por conseguinte, procede-se ao afastamento da nulidade do contrato de empreitada em causa nestes autos, devendo o Réu ser condenado a pagar à Autora a quantia de € 21.365,00, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a data do seu vencimento (6 de dezembro de 2013) até efetivo e integral pagamento (…)”.

28. Patenteiam as conclusões alegatórias que o Recorrente discorda do juízo decisório firmado pelo Tribunal no domínio do (i) afastamento da nulidade do contrato de empreitada descrito nos autos por violação das regras constantes da Lei nº 8/2012, de 21 de fevereiro.

29. Realmente, o Recorrente considera que “(…) não existem fundamentos para que o Tribunal possa afastar o efeito anulatório, como fez a douta sentença recorrida (…)”, pois que “(…) sempre agiu de boa fé perante a recorrida, só não pagando a obrigação existente porque a lei o impede e não por vontade própria (…) Não houve um comportamento do recorrente - ou da [SCom01...] - visando induzir a recorrida em erro quanto ao cumprimento da Lei dos Compromissos (…) A recorrida pode demandar os responsáveis pela violação da lei, pelo que não fica desprotegida (…) Q - Não foi produzida prova sobre a boa ou má fé das partes quando negociaram o contrato ou as suas renovações (…)”.

30. Adiante-se, desde já, que, após exame dos argumentos esgrimido pelo Recorrente e bem vistos os contornos fácticos da situação trazida a juízo, que o presente recurso jurisdicional irá proceder.

31. Na verdade, sobre a questão convocada no patamar do possibilidade de afastamento da nulidade de contrato por violação das regras constantes da Lei nº 8/2012, de 21 de fevereiro, impera ressaltar o teor da jurisprudência emanada por T.C.A.N. em caso de contornos muito idênticos ao ora em análise, no aresto de 25.02.2022, tirado no processo nº. 01267/16.8BEPRT, onde se expendeu o seguinte: “(…)

b.1. Da Violação da Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro

Sobre as consequências para os agentes económicos resultantes da violação da LCPA, máxime da falta de prévio compromisso das despesas relativas a um determinado contrato administrativo, este TCAN já se pronunciou, ao que logramos apurar, em dois arestos.

Assim, no aresto deste TCAN, de 08-04-2016, proferido no processo n.º 02730/14.0BEPRT, sumariou-se a seguinte jurisprudência:

«1- A nulidade de Contrato de Prestação de Serviços não implica a desresponsabilização da entidade pública.

Os Serviços prestados ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, entretanto declarado nulo, não autoriza a ilação de que o mesmo equivalha a um nada, tal como se pura e simplesmente não tivesse acontecido, pelo que os serviços originariamente contratualizados, enquanto “Contrato de facto”, terão de ser remunerados.

2-Não se mostra aceitável que uma entidade pública possa beneficiar de uma qualquer prestação serviços, para depois não proceder ao correspondente pagamento, a pretexto da invalidade do contrato, da sua responsabilidade.

3 - Assim, em função do facto do nº 4 do Art.º 5º da Lei nº 8/2012 facultar ao Tribunal a possibilidade de sanar a nulidade contratual verificada, e ter sido prestado o serviço convencionado, é manifesto que ponderados os interesses em presença, sempre se mostraria desproporcionada e contrária ao princípio da boa-fé impedir que a Sociedade prestadora do serviço ficasse impedida de receber o correspondente pagamento, mormente sendo a nulidade contratual verificada imputável à entidade pública.

Com efeito, outra posição conduziria a uma vantagem abusiva e injustificada por parte da Freguesia, traduzindo-se ainda numa desproporcionada violação do princípio da boa-fé, como se a «relação contratual de facto», resultante da nulidade verificada, equivalesse a um nada.»

No caso sobre que versou o referenciado Acórdão deste TCAN, estava em causa decidir se a sentença proferida pela 1.ª Instância, que absolveu a entidade pública, no caso, a União de Freguesia de (…) do pedido de pagamento formulado pela empresa J..., Lda., relativo à prestação de serviços respeitantes ao aluguer, montagem de desmontagem de equipamento para as Festas de Grijó de 2013, de que foram emitidas as correspondentes faturas, que não vieram a ser pagas em tempo, tendo a entidade pública posteriormente, em 10 de março de 2014,emitido documento de reconhecimento dessa dívida e de pagamento em prestações mensais e sucessivas de 310,00€ e uma prestação de 326,39€, tendo apenas pago três prestações de 310,00€ cada em 30/04/2014, 26/04/2014 e 23/05/2014.

A 1.ª Instância, com base em fundamentação similar à invocada na sentença ora recorrida, considerou que não tendo sido emitido qualquer número de compromisso válido (procedimento previsto na Lei nº 8/2012), o contrato de prestação de serviços em causa e a correspondente obrigação de pagamento de retribuição seria nulo, bem como o ulterior acordo de reconhecimento da dívida e pagamento e, embora a 1.ª Instância tivesse admitido que a nulidade detetada “pode ser sanada por decisão judicial, quando, ponderados os interesses públicos e privados em presença, a nulidade do contrato ou das obrigações se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé”, nos termos do nº 4 do artº 5º da supra referida Lei, considerou que tal teria de ter sido alegado e demonstrado, para que se pudesse aferir da desproporcionalidade e violação do principio da boa-fé de tal procedimento.

O TCAN revogou essa decisão da 1.ª Instância, com base na seguinte linha argumentativa: «(…) Resulta assim do referido normativo (nº4) que a verificada nulidade poderá ser sanada por decisão judicial, quando ponderados os interesses públicos e privados em presença e a gravidade da ofensa geradora do vicio do ato procedimental em causa, se mostre que a mesma se mostra desproporcionada e/ou contrária à boa-fé.

Não resulta dos elementos disponíveis que a originária Junta de Freguesia em momento anterior à celebração do contrato, tenha invocado quaisquer dificuldades em cumprir o convencionado, mormente por razões de ordem legal.

Se mais razões não houvesse e para além do reconhecimento formal da divida, a União das Freguesias ainda chegou a pagar três das prestações a que se havia comprometido a pagar, o que desde logo reforça o reconhecimento da existência de divida.

Em bom rigor, a União das Freguesias, após realizadas as festas de 2013, e depois de ter usufruído dos serviços contratados, veio a invocar uma irregularidade formal da sua inteira responsabilidade, para não pagar as faturas decorrentes do contrato que livremente estabelecera, o que desde logo se consubstancia num manifesto «venire contra factum proprium».

Como resulta, de jurisprudência perfeitamente consolidada haverá «venire contra factum proprium» quando alguém assume uma posição jurídica em contradição com o comportamento pelo mesmo assumido anteriormente. A proibição do «venire contra factum proprium» reconduz-se à doutrina da confiança, pressupondo, como elemento subjetivo, que o confiante adira realmente ao facto gerador da confiança.

(…)

Resulta dos elementos disponíveis nos autos que a originária Junta de Freguesia criou legítima expectativa de que assumiria e cumpriria integralmente as suas obrigações.

Decorrente do que supra ficou dito, importa verificar se não se mostrarão preenchidos os requisitos que permitirão sanar a nulidade do contrato, em resultado da ponderação dos interesses públicos e privados em presença, ou perante a constatação de que a referida nulidade se mostre desproporcionada ou contrária à boa-fé, à luz do transcrito nº 4 do Artº 5º da Lei nº 8/2012.

O que se decidirá, não afastará, em qualquer caso, o referido imediatamente antes do segmento decisório da Sentença Recorrida, onde se afirma que, o decidido não invalidará a “responsabilidade civil, criminal, disciplinar e financeira dos titulares de cargos políticos, dirigentes, gestores ou responsáveis pela contabilidade que tiverem assumido o compromisso em causa, nos termos do art.º 11º, n.º 1 da LPCA.”

Em qualquer caso, e como tem vindo a ser reconhecido pela Jurisprudência, designadamente deste TCAN, mal se compreenderia que uma entidade pública pudesse beneficiar de um qualquer serviço, para depois não proceder ao correspondente pagamento, a pretexto da invalidade do contrato, da sua responsabilidade (Cfr. Acórdão nº 636/14BEVIS TCAN de 22-01-2016).

Com efeito, a nulidade do contrato não implica a desresponsabilização da entidade pública, sendo que o Estado e as pessoas coletivas de direito público respondem sempre, quer exclusivamente, no caso de culpa leve (Cfr. n.º 1 do artigo 7.º da Lei nº 67/2007), quer, em caso de dolo ou culpa grave, de forma solidária com os respetivos titulares de órgãos, funcionários e agentes, se as ações ou omissões ilícitas tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício (Cfr. artigo 8.º, n.º 3, da mesma Lei).

Acresce ainda à argumentação aduzida o explicitado no sumário do Acórdão também deste TCAN nº 949/11BEBRG, de 17/04/2015, onde se refere que “(…) Tal como relativamente aos serviços prestados ao abrigo de um contrato entretanto declarado nulo, perante a inexistência de um contrato, resultante da sua caducidade, e continuando a ser prestados os serviços anteriormente contratualizados, sem oposição, enquanto “Contrato de facto”, tais serviços terão de ser remunerados.

A inexistência de contrato, por caducidade do mesmo, não autoriza “a ilação de que o negócio jurídico seja equivalente a um nada, tal como se pura e simplesmente não tivesse acontecido.”

Tendo a aqui Recorrente prestado o serviço convencionado com a Junta de Freguesia, o que esta reconhece, não poderá esta deixar de lhe pagar o valor convencionado, independentemente da responsabilidade civil, financeira e disciplinar da Junta de Freguesia dos seus órgãos e Presidente, o que aqui não importa apurar.

Com efeito, não obstante a nulidade contratual decorrente do incumprimento do estatuído na Lei nº 8/2012, imputável à Junta de Freguesia, tendo o convencionado sido satisfeito pela aqui Recorrente, não deverá ser facultada à Junta de Freguesia a possibilidade de faltar ao correspondente pagamento, uma vez prestado o serviço.

Se é certo que a nulidade do contrato implica que deva ser restituído tudo o que tiver sido prestado (art.º 285.º, n.º 1 do C. Civil), em qualquer caso, assim não será linearmente nos contratos nos quais uma das partes beneficie de um serviço, como é o caso dos autos.

(…)

Em qualquer caso, a regra do art. 289º/1 do C. Civil, aplicada no domínio dos contratos de prestação de serviços mostra-se inadequada à sua própria teleologia, carecendo de uma restrição que permita tratar desigualmente o que é desigual, isto é, deve ser objeto de redução teleológica, (cfr. Karl Larenz, ob. cit., pp. 450/457) de molde a que, nos contratos de prestação de serviços, em que uma das partes beneficie do gozo de serviços cuja restituição em espécie não é possível, a inexistência contratual por caducidade não abranja as prestações já efetuadas.

Tendo os serviços convencionados sido prestados, ao abrigo de um contrato entretanto declarado nulo, perante a inexistência de um contrato, a relação jurídica deverá ser equiparada a um “Contrato de facto”, cujos serviços terão de ser remunerados.

Em linha com o Acórdão do Colendo STA nº 047638 de 21-09-2004, estando vedado o recurso aos princípios do instituto do enriquecimento sem causa, em função do carácter subsidiário deste (art. 474° C. Civil), mas tendo sido reconhecida a nulidade do contrato, deverá, no caso, a Junta de Freguesia, ser condenada no pagamento dos serviços prestados, enquanto «relação contratual de facto», à luz do nº 4 do Artº 5º da Lei nº 8/2012.

Como se disse, a nulidade do contrato não autoriza “a ilação de que o negócio jurídico seja equivalente a um nada, tal como se pura e simplesmente não tivesse acontecido”.

Efetivamente, da factualidade provada é possível concluir que as partes estabeleceram relações contratuais, assentes na prestação de um serviço de aluguer, montagem e desmontagem de equipamentos nas Festas de Grijó de 2013, serviço que foi efetivamente prestado.

Acresce que a Freguesia nunca pôs em causa que o serviço faturado tenha efetivamente sido prestado.

Aqui chegados, em função do facto do nº 4 do Artº 5º da Lei nº 8/2012 facultar ao Tribunal a possibilidade de sanar, por assim dizer, a nulidade verificada, e ter sido prestado o serviço convencionado, sem prejuízo de tudo quanto supra ficou dito, é manifesto que ponderados os interesses em presença, sempre se mostraria desproporcionada e contrária ao princípio da boa-fé impedir que a Sociedade prestadora do serviço ficasse impedida de receber o correspondente pagamento.

Face à verificada nulidade contratual, não imputável à Recorrente, outra posição que não aquela para que se propende, conduziria a uma vantagem abusiva e injustificada por parte da Freguesia, além de que se traduziria numa desproporcionada violação do principio da boa-fé, como se a «relação contratual de facto» resultante da nulidade verificada equivalesse a um nada.

Assim, impõe-se revogar a decisão recorrida, e a condenação da União das Freguesias, nos termos do nº 4 do Artº 5º da Lei nº 8/2012, no pagamento do remanescente do valor convencionado, de 10.246,39€, mais juros de mora à taxa legal até ao efetivo pagamento»

A mesma argumentação foi esgrimida por este TCAN em Acórdão de 03/05/2019, proferido no processo n.º 01253/15.5BEPRT, agora confirmando a decisão da 1.ª Instância que em ação movida por uma empresa contra o MUNICÍPIO ..., a reclamar o pagamento de um conjunto de faturas relativas a serviços prestados de vigilância, condenou o réu ao pagamento dos respetivos montantes, não obstante a falta de assunção válida do prévio compromisso nos termos da LCPA, estribando-se na jurisprudência firmada no Acórdão do TCAN que supra citamos. Neste Acórdão, o TCAN para além de subscrever a jurisprudência citada na decisão da 1.ª Instância, acrescentou que no caso, considerando que estava em causa a renovação de um contrato originariamente celebrado no ano de 2002, o compromisso a que reporta o art.º 3.º, al. a) da LCPA sempre haveria que reportar-se ao originário compromisso que teve a sua génese em 2002 aquando da celebração do contrato, frisando que, mesmo que assim não fosse, a invocada nulidade poderia ter as suas consequências sanadas por via do aludido artigo 5.º, n.º4 da LCPA, pelo que, sempre o Município teria de suportar as dívidas que contratualmente assumiu, à luz do referido normativo, como resultou do decidido em 1.ª Instância.

Mas salvo o devido respeito, tendo em conta o objetivo visado pela LCPA e o regime instituído pela mesma, não cremos que a jurisprudência vertida nos identificados acórdãos seja consentânea com a melhor interpretação e aplicação do regime previsto nesse diploma e no respetivo DL regulamentador.

É certo que nos termos do artigo 5.º, n.º4 a nulidade decorrente da desconformidade da realização da despesa com as prescrições impostas pela LCPA que exige a prévia assunção do compromisso, e em termos válidos, pode ser sanada por decisão judicial, conferindo-se ao Tribunal essa possibilidade, quando ponderados os interesses públicos e privados em presença, a nulidade do contrato ou da obrigação se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé.

A questão está em saber quando é que a nulidade de um contrato, ponderados os interesses públicos e privados em presença, se revela desproporcionada ou contrária à boa-fé. Mas uma ilação que consideramos ser de extrair do regime instituído pela referida LCPA é que não bastará ao Tribunal, para sanar a referida nulidade, que os serviços ou bens cujo pagamento é reclamado tenham sido prestados pelo agente económico à entidade pública adjudicante para que se esteja perante uma situação em que a nulidade do contrato ou da obrigação se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé. É que a LCPA impõe que o pagamento apenas pode ser realizado “após o fornecimento de bens e serviços ou da satisfação de outras condições” (art.º 9.º, n.º1), donde resulta que constitui condição para que se possa efetuar o pagamento de uma despesa à luz do regime da LCPA que a prestação/fornecimento de serviços ou bens já tenha sido executada, exigência que acresce à necessidade do respetivo compromisso.

Deste modo, ainda que haja compromisso válido da despesa, a entidade pública não poderá efetuar o pagamento de um bem ou serviço enquanto o mesmo não estiver efetuado. As “outras condições” a que se alude no artigo 9.º, n.º1 da LCPA, serão casos excecionais, que remetem para a hipótese das condições postas pelo Código da Contratação Pública para que os adiantamentos de preço possam ser concedidos.

Se o fornecimento do bem ou prestação do serviço constitui requisito prévio à possibilidade de pagamento por parte da entidade pública, ele não pode ser o pressuposto a considerar para que o tribunal, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 5.º, nº. 4 da LCPA sane a nulidade do contrato. Em todas as situações em que se coloque a questão da nulidade do contrato por falta de assunção prévia e válida do compromisso relativo à despesa em que o mesmo se traduz, tem de verificar-se a prestação efetiva do serviço ou o fornecimento do bem, pelo que, essa circunstância não traduz nenhuma particularidade ou especificidade que estabeleça uma diferenciação no leque de situações abrangidas pela norma, que habilite o Tribunal a considera-la como uma razão forte para obstar à nulidade do contrato determinada pela LCPA, pois então, tal nulidade seria sempre sanada.

Assim, outras razões que não o facto do serviço/fornecimento ter sido prestado efetivamente e de a entidade pública o ter aceite, condição necessária para que se coloque à entidade pública a obrigação de pagamento, terão de ser alegadas e provadas, para que o Tribunal a quo , após devida e conscienciosa ponderação, à luz dos poderes que lhe são conferidos pelo n.º4 do art.º 5.º da LCPA, possa decidir pela sanação da nulidade do contrato decorrente da violação da obrigação de efetuar o prévio e válido cabimento da respetiva despesa.

Que razões podem ser essas, é caminho que não vimos ainda trilhado pela jurisprudência mas que nos permitimos ilustrar com alguns exemplos que, a verificarem-se em concreto, poderiam, a nosso ver, justificar a sanação da nulidade do contrato por parte do julgador. Tal seria o caso de, por exemplo, se estar perante uma situação em que, cumulativamente, o montante a pagar fosse de pequena monta e a entidade pública não registasse pagamentos em atraso, tendo fundos disponíveis para efetuar o pagamento, caso em que não haveria nenhum risco de a situação irregular decorrente da falta de compromisso prévio contribuir para engrossar a lista de pagamentos em atraso ou fazer surgir um pagamento em atraso, desde que cumpridas as demais exigências, desde logo, as decorrentes da observância do procedimento pré-contratual.

Tal poderia também ser o caso, desde que alegado e provado, duma situação em que o agente económico, em face das obrigações que sobre si impendem nos termos do artigo 9.º, n.º2 da LCPA, perante a falta de indicação do número do compromisso, tivesse previamente ao fornecimento do bem ou à prestação do serviço contratado com a entidade publica, alertado aquela para a falta do compromisso e, nessa sequência, informado por aquela que a falta de envio do número de compromisso se ficou a dever a um lapso, que iria ser regularizado, com a indicação para que executasse o contrato. Numa tal situação, afigura-se-nos ser equacionável que o Tribunal a quo pondere sobre a possibilidade de sanação da nulidade do contrato, quando se apure que não obstante o exposto, o compromisso não chegou a ser validamente efetuado pela entidade pública, sendo que, num tal contexto, a nulidade do contrato poderia configurar uma consequência desproporcionada e violadora da boa-fé.

Outras situações poderiam ainda equacionar-se, como, veja-se, atendendo ao momento presente que vivemos de emergência sanitária, se estivesse perante uma necessidade urgente e inadiável de contratação de serviços ou aquisição de bens para a salvaguarda da saúde pública por parte da Administração, que a tivessem levado a contratar esses bens ou serviços à margem do cumprimento da LCPA, e da legislação da contratação publica, tudo circunstâncias especialíssimas que careciam de ser alegadas e provadas pelo autor, de molde a demonstrar não só a sua boa-fé e as razões concretas que o levaram a prestar aquele serviço/fornecimento e que a Administração o tivesse adjudicado à margem da LCPA e das regras da contratação pública.

De contrário, estará o Tribunal a avalizar a ultrapassagem das regras da contratação pública e da LCPA, dando azo a todas as ilegalidades que são suscetíveis de ocorrer quando tais regras sejam postergadas, designadamente, violação da obrigação de não engrossar o leque de pagamentos em atraso, de regras concorrenciais e do princípio da igualdade, que impõe que os procedimentos de contratação pública sigam determinados formalismos, com regras estritas previstas no CCP com vista à salvaguarda do interesse público, nomeadamente, da livre concorrência entre os agentes económicos a quem assiste o direito de concorrerem à prestação de serviço e/ou fornecimento de bens à Administração Pública num clima saudavelmente concorrencial.

No caso, nenhumas razões foram invocadas e provadas pela autora que permitissem ao Tribunal a quo ponderar e decidir-se pela sanação da nulidade do contrato, nos termos do art.º 5.º, n.º4 da LCPA. Ademais, como bem se refere na sentença recorrida «A A. devia ter sido diligente e ter procurado certificar-se do cumprimento da Lei pelo Réu antes de prestar os serviços e fornecer os bens constantes das suas faturas, porque o Réu não criou na sua esfera jurídica nenhuma expectativa ao recebimento do preço, ao não ter assumido nenhum compromisso nos termos legais.»

A este respeito, pode ler-se no parecer emitido pelo Ministério Público, que pugna pela manutenção da decisão recorrida, o seguinte: «(…) no que concerne à invocada violação do princípio da confiança, o artigo 6.º-A do anterior CPA [aqui ainda aplicável, ex vi artigo 8.º, n.º 1, do DL n.º 4/2015, de 7 de janeiro], veio acolher expressamente o princípio da boa-fé, no domínio do direito administrativo, estabelecendo que «no exercício da atividade administrativa, e em todas as suas formas e fases, a Administração e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa-fé», sendo que o respeito pela boa-fé se realiza através da ponderação dos “valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas e, em especial: a) da confiança suscitada na contra parte pela atuação em causa; b) do objetivo a alcançar com a atuação empreendida”.

Uma das mais importantes concretizações da boa-fé, constante da al. a) do n.º 2 do citado artigo 6.º-A, é justamente o princípio da proteção da confiança, que se traduz numa regra fático-jurídica fundamental que impõe que sejam asseguradas as legítimas expectativas criadas aos cidadãos, baseadas na conduta de outrem.

Postula-se, assim, a proteção dos particulares em relação à atuação administrativa que objetivamente incuta uma convicção fundada na sua efetivação.

Todavia, tal proteção não é absoluta, já que pressupõe a verificação de determinados requisitos, a saber, a existência de uma situação de confiança, traduzida na boa-fé subjetiva da pessoa lesada; a ocorrência de elementos objetivos capazes de provocarem uma crença plausível; o desenvolvimento efetivo de atividades jurídicas assentes nessa crença e, outrossim, a existência de um autor a quem se deva a entrega confiante do tutelado (FREITAS DO AMARAL, in Curso de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 137.).

Ora, como bem enfatizou a julgadora do TAF de Viseu, inexistem quaisquer expectativas da Recorrente juridicamente tuteláveis, que importe salvaguardar, atendendo a que esta não podia ignorar o regime legal vigente e, ademais, lhe era imposto que pautasse a sua conduta, para com o Recorrido Município, de acordo com as exigências procedimentais decorrentes dos já mencionados diplomas legais.

E, por esta via, é de afastar, também, a invocada desproporcionalidade da nulidade do contrato, face aos relevantes e superiores interesses públicos, ditados por uma conjuntura de grave crise económica e, daí, aos imperativos legais de controlo rigoroso da despesa pública, perante os quais terão de ceder os interesses individuais da Recorrente.»

Recorde-se que nos termos do art.º 9.º, n.º2 «Os agentes económicos que procedam ao fornecimento de bens ou serviços sem que o documento de compromisso, ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente possua a clara identificação do emitente e o correspondente número de compromisso válido e sequencial, obtido nos termos do n.º 3 do artigo 5.º da presente lei, não poderão reclamar do Estado ou das entidades públicas envolvidas o respetivo pagamento ou quaisquer direitos ao ressarcimento, sob qualquer forma». (...)”.

32. Reiterando esta linha jurisprudencial, e volvendo ao caso em apreço, cabe notar que a Autora, aqui Recorrida, na sequência de celebração de um contrato de empreitada com a [SCom01...], executou a empreitada “Requalificação de balneários, pavimentação de armazém e colocação de Portão no Estádio ...”, na sequência do que foi emitida a fatura nº. ...32, no valor de € 21.365,00, até hoje não paga.

33. Sabe-se, porém, que esse contrato não foi precedido da obrigatória prestação de compromisso, sendo, por isso, nulo [cfr. artigo 5º, nº. 3 da Lei nº. 08/2012].

34. Nos termos do nº. 4 do artigo 5º da Lei nº. 08/12, de 21 de janeiro, tal nulidade é sanável mediante decisão judicial quando, perante o confronto dos interesses em causa, a mesma se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé.

35. Escrutinados os interesses em causa - da empresa, aqui A., de receber a contrapartida do preço pelo serviço executado, com os interesses públicos, assumidos por uma empresa municipal como foi a [SCom01...], traduzido em cumprir a lei dos compromissos públicos -, temos, para nós, que não é possível afirmar que a nulidade do contrato seja desproporcional ou contrária à boa-fé.

36. Na verdade, a Recorrida não podia ignorar a vigência à data da Lei nº. 08/12, de 21 de janeiro, e, qua tale, a necessidade de certificação da emissão de compromisso por parte da Recorrente previamente à prestação dos serviços contratados, sob pena de impossibilidade de reclamação “(…) do Estado ou das entidades públicas envolvidas o respetivo pagamento ou quaisquer direitos ao ressarcimento, sob qualquer forma (…)” [cfr. artigo 9º, nº. 2 da Lei nº. 08/2012].

37. Neste enquadramento, é nosso entendimento que, para efeito de verificação dos pressupostos de proteção da boa-fé e das situações de confiança, só é de relevar a aquisição processual da adoção de comportamentos por parte da Administração tendentes a convencer que a Autora, aqui Recorrida, de garantia de recebimento da contrapartida de preço como contraprestação do serviço executado numa situação de não prestação de compromisso por parte da entidade contratante não previamente fiscalizada pelo prestador de serviços.

38. Ocorre, porém, que não se retiram da matéria de facto apurada sinais suficientemente consistentes de que o Recorrente tivesse inopinadamente destruído expectativas legitimamente constituídas pela Recorrida de garantia de recebimento da contrapartida de preço como contraprestação do serviço executado numa situação de não prestação de compromisso por parte da entidade contratante não previamente fiscalizada pelo prestador de serviços.

39. Ou seja, não existe aqui uma conduta suscetível de ter produzido na Recorrida a crença de obter uma resposta positiva às suas aspirações, o que nos transporta para evidência da não verificação dos pressupostos de proteção da boa-fé e das situações de confiança, determinante da impossibilidade judicial da sanação do contrato de empreitada descrito nos autos

40. Deste modo, não tendo sido este o caminho trilhado na sentença recorrida, impera concluir que esta não fez correta subsunção do tecido fáctico apurado nos autos ao bloco legal e jurisprudencial aplicável, não podendo, por isso, manter-se, o que determina a prejudicialidade do conhecimento do fundamento atinente ao pagamento de juros de mora aduzido no recurso jurisdicional interposto nos autos, melhor elencado na alínea s) das conclusões de recurso.

41. Consequentemente, deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional, e revogada a decisão judicial recorrida, o que se decidirá.


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V – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os Juízes da Subsecção de Contratos Públicos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em:

(i) NÃO CONHECER do recurso interposto do despacho recorrido, por falta de objeto.

(ii) CONCEDER PROVIMENTO ao recurso jurisdicional interposto da sentença recorrida, revogar a mesma, e julgar improcedente a presente ação.

Custas do recurso do despacho recorrido pelo Recorrente.

Custas do recurso da sentença recorrida pela Recorrida em ambas as instâncias.

Registe e Notifique-se.


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Porto, 30 de novembro de 2023,

Ricardo de Oliveira e Sousa

Antero Pires Salvador
Helena Maria Mesquita Ribeiro