Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00482/19.7BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/03/2023
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:LEGITIMIDADE POPULAR
Sumário:

I – A legitimidade ativa na ação popular não é aferida de modo concreto e casuístico, mas antes em termos gerais e abstratos, bastando, para o autor ser considerado parte legítima, que esteja inserido em determinadas categorias de sujeitos e que atue para promover a legalidade e tutelar bens constitucionalmente protegidos.

II- Apresentando-se distintivo que a Autora é uma associação de direito privado com sede no concelho ... que “(…) tem como fim estatutário “(…) constituir, basicamente, um elemento impulsionador e de apoio à autarquia local para o integral desenvolvimento de ..., pretendendo a defesa do ambiente, do património natural e construído do concelho ..., bem como a conservação da natureza.”, e respeitando a “causa petendi” dos autos à impugnação de um contrato para a atribuição da concessão de Exploração de Depósito Minerais de Lítio e Minerais Associados numa área situada no concelho ..., deve entender-se que o direito de ação exercido nos autos encontra-se circunscrito à uma das áreas de intervenção principal da Autora [meio ambiente] e de acordo com a respetiva incidência geográfica.

III- O que nos transporta para evidência do preenchimento dos princípios da especialidade e da territorialidade, determinante da verificação de que a Autora goza de legitimidade processual ativa, aferida na vertente da proteção de interesses difusos, para intervir em juízo.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte - Secção de Contencioso Administrativo, subsecção de Contratos Públicos:

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I – RELATÓRIO

1. ASSOCIAÇÃO DE DEFESA AMBIENTAL ..., Autora nos presentes autos de AÇÃO ADMINISTRATIVA em que são Réus o MINISTÉRIO DO AMBIENTE E DA TRANSIÇÃO ENERGÉTICA e a [SCom01...], S.A., vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença promanada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, que julgou verificada a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, e, em consequência, absolveu os Réus, aqui Recorridos, da instância.

2. Alegando, a Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)

8.1. A lei de que se socorreu o Tribunal a quo para decidir pela ilegitimidade da Autora não impõe como condição de legitimidade a alegação de lesão atual, como parece entender o Tribunal a quo, mas sim a defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos -- n° 2 do artigo 9° - ou a expressa inclusão “nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários da defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate” - alínea c) do artigo 3.° da Lei 83/95, de 31 de agosto - Lei da Participação e Procedimental e Ação Popular (LPPAP).

8.2. Interpretou e aplicou erradamente a própria lei de que se socorreu para decretar a ilegitimidade da Autora.

8.3. A jurisprudência em que se estriba o Tribunal a quo para fundamentar a sua decisão não encontra apoio nem na Jurisprudência do STA, nem na doutrina, vivendo em profunda solidão jurisprudencial e doutrinal.

8.4 Nesta ação sindica-se efetivamente a validade do contrato, por se entender que da sua execução poderão resultar sérios danos para o ambiente, interesse difuso para cuja defesa estatutariamente compete à Autora defender, sendo esta, em síntese, a configuração dela feita pela Autora.

8.5. O Tribunal a quo desconsidera completamente essa configuração e pressupõe que a Autora configura a ação exclusivamente com base em lesões já causadas ao ambiente, pelo que, por entender que a Autora não alegou factos caracterizadores dessa lesão.

8.6. O Tribunal a quo devia olhar para a concreta configuração da ação feita pela Autora - quod est in actis - para aferir a sua legitimidade com base no critério do interesse em agir, consagrado pelo CPTA.

8.7. O Tribunal a quo na sua sentença, ora recorrida, não atribui qualquer relevância à invalidade do contrato e à relação deste com a defesa do meio ambiente, centrando-se exclusivamente na questão da lesão atual do meio ambiente.

8.8. O Tribunal a quo, pese embora as várias notícias sobre manifestações, os eventuais danos ao ambiente que poderão resultar da exploração do lítio feita com base no contrato aqui referido, bem como os debates e entrevistas televisivos e radiofónicos sobre esse mesmo tema, erradamente entende não é facto notório o justo e sério receio de essa exploração nos termos e nas condições contratualmente estabelecidas poder vir a causar danos ambientais.

8.9. O Tribunal a quo, para a aferição da legitimidade, para além de não ter dado importância ao facto de também a lesão poder ser futura, postergou o critério legalmente consagrado pelo CPTA, o do interesse em agir', para fazer essa aferição com base no clássico critério civilista da titularidade (pessoal e direita) do direito e interesse objeto da relação material controvertida, vertido na norma do artigo 30.° do Cód. Proc. Civil.

8.10. O Tribunal a quo, ao fundamentar a sua decisão de ilegitimidade na inexistência de alegação de concreta lesão ou dano para o ambiente, aplicou erradamente, o critério civilista acima referido quando decidiu aferir a legitimidade não com base na titularidade do direito ou interesse e da relação jurídica, mas sim na falta de alegação de lesão sofrida.

8.11. O Tribunal a quo desrespeitou a norma dos artigos 1.° e 35.° do CPTA que atribui às normas do CPC um estatuto de normas de aplicação subsidiária e também as normas do CPTA que elegem como critério de aferição da legitimidade o interesse em agir, o que o levou a interpretar e aplicar erradamente a lei quando julgou a legitimidade.

8.12. O Tribunal a quo não teve em conta que, com a reforma do CPTA em 2015, o artigo 77°-A alíneas g) e h), reconheceu também com base no critério interesse em agir, legitimidade às pessoas coletivas para arguir a validade e a execução de contratos administrativos que causem ou possam causar com a sua execução danos aos interesses por elas protegidos ou que defendem.

8.13. No contencioso dos contratos públicos é reconhecida legitimidade para a defesa da legalidade objetiva, independentemente das atribuições que esses entes devam prosseguir, o que amplia os requisitos necessários para a atribuição e o reconhecimento da legitimidade consagrados na norma da al. b) do artigo 3.° da Lei 83/95 de 31 de agosto.

8.14. Em sede de direito processual administrativo e do processo impugnatório, pese embora a lei processual administrativa remeta para a lei processual civil a regulação de várias matérias jurídico processuais administrativas, o ponto é que confere natureza subsidiária à lei processual civil, ressalvando assim e sempre as situações por ela própria disciplinada — cfr. os artigos 1.° e 35.° do CPTA,

8.15. Integram óbvia e necessariamente essa ressalva todo o artigo 9.° do CPTA e no caso dos autos mais diretamente o seu n.° 2, e também com os artigos 55.°, 68.°, 73.°, 77° e 77°-A, quando neles inclui pessoas e entidades mencionadas naquele n° 2 do artigo 9.°, ou, até mesmo, pessoas coletiva relativamente a interesses que lhes cumpra defender - al. g) -, o que significa que no processo administrativo a lei confere legitimidade para a causa a titulares de interesses - e não da relação jurídica controvertida, mesmo que não sejam pessoais e diretos.

8.16. O artigo 77°-A, que trata exatamente da legitimidade nas ações relativas à validade e execução de contratos, na sua alínea g) confere legitimidade a todas as pessoas coletivas para impugnar a validade e a execução de contratos sempre que da sua execução cause ou possa causar danos aos interesses por elas defendidos,, e na sua alínea h) inclui as entidades indicadas no n° 2 do acima citado artigo 9.B.

8.17. Com base nessa disposição legal, as pessoas coletivas passam a estar habilitadas a defender a legalidade de contratos administrativos, legitimidade objetiva essa que lhes é conferida por lei e com base no critério de interesse em agir e não na titularidade da relação jurídica controvertida.

8.18. O artigo 77°-A, alíneas g) e h), atribuiu às pessoas singulares e coletivas legitimidade para a defesa da legalidade objetiva nas ações relativas à validade e execução de contratos, ampliando assim as os requisitos de reconhecimento e atribuição de legitimidade consagradas na Lei 83/95, de 31 de agosto, e pondo fim, pelo menos, em sede da contratação pública — validade e execução dos contratos —, à doutrina e à jurisprudência que defendem essa inclusão expressa nas atribuições da pessoa coletiva como condição de reconhecimento da sua legitimidade.

8.19. O critério da titularidade direta e pessoal que informa a disposição do artigo 30.° do CPC e que foi utilizado pelo Tribunal a quo não só é manifestamente insuficiente para responder à questão da legitimidade que a tutela dos interesses difuso coloca nas ações administrativas impugnatórias ou condenatórias, como por força das disposições dos artigos 1.° e 35.° do CPTA não deve ser o adotado para esse efeito.

8.20. O Tribunal a quo também fundamenta a sua decisão, ora recorrida, no facto de nesta ação estar em causa “a defesa da legalidade objetiva e já não a defesa do interesse difuso da proteção do ambiente” fundamento esse que não pode ser acolhido, por na base da tutela do interesse difuso estar sempre a “reivindicação” do respeito pela legalidade objetiva, que se entende estar a ser violada, legalidade objetiva essa que dá sentido e efeito útil às ações impugnatórias e condenatórias.

8.21. A defesa dessa legalidade pode ser constituída em interesse difuso, sem prejuízo de ser objeto do pedido nas ações em que se discute a defesa de outros interesses difusos, como se alegou acima em 6.2.

8.22. A citada norma do artigo 77°-A vem confirmar a tese segundo a qual na ação popular a legitimidade não é - nem deve ser - aferida pela titularidade da relação material controvertida, como acontece no processo civil, mas sim pelo interesse em agir que as entidades indicadas na Constituição e na lei têm nessa relação apesar de nela não figurarem como titular de direitos ou de interesses.

8.23. Essa norma do CPTA (revisão de 2015 ) veio a alargar para o domínio da ações relativas a contrato (a qualquer contrato) público o critério da aferição da legitimidade, centrando-o no interesse em agir, independentemente de se ser titular ou não da relação jurídica material, e atribuindo ipso facto a legitimidade para a defesa da legalidade a todos os sujeitos - pessoas coletivas ou singulares - que, não sendo titulares da relação contratual, tenham interesse objetivo em defender a legalidade da validade e da execução do contrato.

8.24. Quer se considere que na ação não foram alegados factos caracterizadores de lesão aos direitos e interesses invocados pela Autora como entende o Tribunal a quo, quer se considere que na ação também se discute a validade e a execução do contrato administrativo nela referenciado e sua relação com o sério e justo receito de lesão efetiva do ambiente que poderá resultar da sua validade e execução, como defende a Autor, aplicou erradamente o critério civilista por si adotado e desconsiderou com violação da lei o critério eleito pelo CPTA, o do interesse em agir, para a aferição da legitimidade nessa ação - artigos 9.° n.° 2 e 77°-A, n.° 1 al. g) d h).

8.25. Em qualquer dos casos, o Tribunal a quo interpretou e aplicou erradamente a lei, violando as disposições acima indicadas do CPTA.(…)”.


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3. Notificados que foram para o efeito, os Recorridos não produziram contra-alegações.

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4. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.

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5. O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior emitiu parecer no sentido da improcedência do presente recurso.

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6. Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.

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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR

7. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.

8. Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir resume-se a saber se a decisão judicial recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance descritos no ponto I) do presente Acórdão, “(…) aplicou erradamente o critério civilista por si adotado e desconsiderou com violação da lei o critério eleito pelo CPTA, o do interesse em agir, para a aferição da legitimidade nessa ação – artigos 9.º n.º 2 e 77º-A, n.º 1 al. g) d h) (…)”.

9. É na resolução de tal questão que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.


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III – FUNDAMENTAÇÃO

III.1 – DE FACTO

10. O Tribunal a quo não fixou factos, em face do que aqui se impõe estabelecer a matéria de facto, rectius, ocorrências processuais, mais relevante à decisão a proferir:

A. Em 21.11.2019, a associação “ASSOCIAÇÃO DE DEFESA AMBIENTAL ...” intentou a presente ação no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela [cfr. fls. 1 e seguintes dos autos -suporte digital -, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].

B. Nela demandou o (i) Ministério do Ambiente e da Transição Energética e a (ii) [SCom01...], S.A [idem];

C. E formulou o seguinte petitório: “(…)

Termos em que, e nos mais de direito, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e decretada a anulabilidade do Contrato para a Atribuição da Concessão de Exploração de Depósito Minerais de Lítio e Minerais Associados, Contrato esse que tem o número de Cadastro C-152 e a denominação de “...”, numa Área Situada no Concelho ..., à [SCom01...], S.A., fazendo cessar todos os seus efeitos a partir da data da anulação, com todas as legais consequências (…)” [idem].

D. Em 15.07.2019, o T.A.F. de Mirandela promanou decisão judicial a julgar procedente a suscitada exceção de legitimidade processual ativa da Autora [cfr. fls. 268 e seguintes dos autos – suporte digital – cujo teor se dá por integralmente reproduzido];

E. A ponderação de direito convocada para arrimar o juízo de procedência da exceção de legitimidade processual ativa da Autora foi a seguinte:”(…)

Da invocada exceção de ilegitimidade ativa:

Como vimos, a 2ª Ré vem invocar, na sua contestação, que a Autora não tem legitimidade ativa para intentar a presente ação.

Segundo sustenta, a Autora tem como fim estatutário impulsionar o integral desenvolvimento do Concelho ..., apoiando a autarquia local nas áreas do ambiente, património e conservação da natureza. Não tem assim a Autora por objetivo a defesa do meio ambiente e da saúde pública.

Por outro lado, sustenta a Ré a Autora não invoca qualquer lesão para o meio ambiente e saúde pública que fundamente o recurso a juízo. Apenas suscita questões de legalidade a nível procedimental e nenhuma questão que se possa incluir na tutela dos interesses difusos.

Em sentido contrário, invoca a Autora que do art. 2.° do seu pacto constitutivo decorre, sem margens para dúvidas, que esta tem como fim estatutário a defesa do meio ambiente, do património natural e construído do Concelho ..., constituindo-se como elemento impulsionador e de apoio da autarquia local na defesa do ambiente e do património natural e construído.

Por outro lado, invoca que a Autora explicitou que é no território da sua sede que se irão operar os efeitos do contrato celebrado e que este diz respeito à concessão de exploração de depósitos minerais volfrâmio, estanho e lítio, numa área de 843 Ha.

O próprio contrato de exploração que a Autora junta impõe à sociedade a obrigação de elaborar e obter a aprovação de um Estudo de Impacto Ambiental, o que não pode ter outro significado que não o reconhecimento pelas partes de que o contrato em causa terá um enorme impacto no meio ambiente onde serão feitos os trabalhos de exploração dos minérios em causa.

Invoca ainda, no plano do direito, que se socorreu dos diplomas relativos ao aproveitamento dos recursos geológicos, cuja exploração colide, em qualquer situação, de forma pública e notória com a proteção do meio ambiente.

Segundo sustenta, não se exigia à Autora a alegação de factos adicionais que explicitassem a projeção de tudo quanto se alegou na p.i. no interesse da comunidade.

Vejamos então se procede a invocada exceção.

Na esteira do art. 52.°, n.° 3, da CRP, prevê o art. 9.°, n.° 2, do CPTA, o seguinte:

“Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais.”

A este respeito, prescreve o art. 2.°, n.° 2, da Lei n.° 83/95, de 31 de agosto, para a qual remete o citado art. 9.°, n.° 2, do CPTA, o seguinte:

“São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse direto na demanda.”

Tais preceitos procedem ao alargamento da legitimidade processual ativa, permitindo o recurso à via judicial com vista à defesa de interesses difusos, independentemente da verificação de um interesse individual ou direto na demanda por parte do autor (cfr., entre muitos outros, o Ac. do Pleno do STA de 29.06.2004, proc. n.° 01334/03, e o Ac. do STA de 13.02.2014, proc. n.° 0989/11, in www.dgsi.pt).

Segundo o art. 3.° do mesmo diploma, “Constituem requisitos da legitimidade ativa das associações e fundações:

a) A personalidade jurídica;

b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate;

c) Não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.”

Posto o quadro legal aplicável, vejamos então desde logo da procedência do argumento da 2ª Ré, no sentido de que a Autora não tem por objetivo estatutário a defesa do meio ambiente e da saúde pública.

Compulsados os autos, constata-se que a Autora tem como fim estatutário “constituir, basicamente, um elemento impulsionador e de apoio à autarquia local para o integral desenvolvimento de ..., pretendendo a defesa do ambiente, do património natural e construído do Concelho ..., bem como a conservação da natureza.” (cfr. art. 3.°, n.° 1, dos Estatutos da Autora, juntos como doc. ... da p.i.).

Prevê ainda a al. a) do n.° 2 do art. 3.° dos Estatutos que, com vista à realização dos seus fins, a Autora promove, entre outros, os objetivos de proteger, promover e divulgar o património ambiental, cultural e social da freguesia ... e Concelho ... (cfr. estatutos juntos como doc. ... da p.i.).

Ora, do art. 3.°, n.° 1, dos estatutos da Autora decorre que esta pretende, entre outros, a defesa do ambiente. Ainda que, nos termos deste mesmo preceito, o faça enquanto elemento impulsionador e de apoio à autarquia local, a Autora não deixa de ter por objeto estatutário a defesa dos interesses em causa, entre os quais o ambiente.

A defesa do ambiente constitui assim um interesse inserido no objetivo estatutário da Autora, que lhe permite defender tal interesse ao abrigo do art. 2.°, n.° 1, da Lei n.° 83/95, de 31 de agosto.


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Questão diferente é a de saber se tal legitimidade se verifica em concreto, na presente ação, tal como configurada na p.i., na medida em que vem alegado pela 2.a Ré que a Autora não invoca qualquer lesão para o meio ambiente e saúde pública que fundamente o recurso a juízo, mas apenas suscita questões de legalidade a nível procedimental.

Vejamos então.

O alargamento da legitimidade ativa com vista à proteção de interesses difusos opera em processos “destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos'’”, como sejam o ambiente e a saúde pública (art. 9.°, n.° 2, do CPTA).

Tal decorre ainda do preceito contido no art. 3.°, al. b), do CPTA, ao exigir que as associações e fundações incluam nas suas atribuições ou objetivos estatutários a defesa dos interesses “em causa no tipo de ação de que se trate”.

Ou seja, decorre da lei que a legitimidade ativa das associações com vista à tutela de interesses difusos, no âmbito da ação popular, apenas se verifica em processos que visem a proteção desses mesmos valores, com fundamento na existência de uma lesão ou de uma ameaça de lesão aos mesmos, mas já não para ações que visem a mera defesa da legalidade objetiva.

Neste sentido, vejam-se as seguintes doutas palavras do Tribunal Central Administrativo Sul, que dispensam quaisquer considerações adicionais:

“Tal como já antes decidido, assim, não resulta da alegação do Autor que em consequência de tal ameaça ou violação do interesse difuso urbanístico, seja afetada a qualidade de vida dos residentes ou que estes sejam afetados, por o Autor se limitar a enunciar os direitos difusos, desprovidos de qualquer caracterização, assim como os preceitos legais que considera infringidos.

Embora o Autor enuncie os preceitos que considera ser postergados, em nenhum momento caracteriza de facto a situação, de modo a fazer corresponder a realidade existente ao âmbito da previsão das normas legais ou regulamentares alegadamente violadas.

Nada decorre da alegação do Autor que permita caracterizar de facto a situação em causa, de forma a poder extrair a lesão aos direitos e interesses invocados.

Decorre que toda a ação e sua respectiva causa de pedir se encontra fundamentada e estruturada com base em pretensas violações de normas urbanísticas que disciplinam o licenciamento urbanístico de obras particulares, sem uma alegação que permita projetar o alegado interesse difuso na coletividade.

A mera alegação do Autor como cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos e defensor da tutela da legalidade urbanística, mostra-se, pois, insuficiente para a titularidade de um interesse difuso, pois que não invoca nenhuma razão que permita a intervenção da ação popular, que tem incidência na tutela de interesses difusos.

Não se vislumbra naquelas alegações qualquer interesse de toda a comunidade que legitime, sequer, a intervenção uti cives do Autor, pois que a intervenção uti singuli está afastada por via da ação popular.

Em conformidade com o exposto entende-se que atenta a particular conformação e natureza da ação popular, a que subjaz a defesa de interesses públicos, ainda que exercida por um particular, tem de considerar-se que não caracterizado um interesse difuso que legitime o direito que a ação popular postula.

(...)

A pretensão do Autor, enquanto particular, visando a defesa do que caracterizam como sendo uma violação das regras de legalidade urbanística, perpetuada pelos Contrainteressados e mantida pelo Município, sem mais, isto é, desacompanhada de outra alegação de facto, não permite que se qualifique o interesse em presença como difuso, para efeitos de legitimidade popular.” (in Ac. do TCAS de 14.06.2018, proc. n.° 12174/15, in www.dgsi.pl. No mesmo sentido, veja-se o Ac. do TCAS de 23.01.2014, proc. n.° 10452/13, in www.dgsi.pt).

Neste sentido, veja-se ainda o seguinte acórdão deste mesmo tribunal superior:

“É certo que face às alegações do A. e ora Recorrente, o que o mesmo pretenderá é, precisamente, exercer uma ação popular corretiva, pois pretende impugnar deliberações da Assembleia de Freguesia que diz ilegalmente tomadas porque não cumpriram as regras e os procedimentos exigidos por lei. Acontece, porém, que para a ação popular corretiva são partes legitimas apenas os cidadãos eleitores, enquanto pessoas singulares. De fora desta ação popular corretiva ficam, portanto, as pessoas coletivas, associações ou fundações.

(...)

Através desta ação o A. não alega que vise a salvaguarda de nenhum dos valores ou bens que vêm referidos no art.° 9.°, n.° 2, do CPTA. Diversamente, o A. afirma visar apenas a defesa da legalidade, dizendo que a Assembleia de Freguesia deliberou ilegalmente, assim pondo em causa o (bom) uso dos dinheiros públicos. Ademais, apreciadas as atribuições e fins deste movimento, dali não consta a indicação de que a mesma vise a defesa da legalidade objetiva. (...) Em suma, a defesa pura e simples da legalidade objetiva frente às atuações públicas não será um fim estatutariamente previsto como sendo um fim a prosseguir por este movimento.” (in Ac. do TCAS de 19.12.2017, proc. n.° 12174/15, in www.dgsi.pt. Vejam-se ainda, a respeito da falta de legitimidade para a defesa da legalidade objetiva, o Ac. do TCAN de 02.03.2018, proc. n.° 00562/15.8BEBRG, e o Ac. do TCAN de 20.05.2016, proc. n.° 00580/15.6BEBRG, in www.dgsi.pt).

Salienta-se ainda que, no douto Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que vem citado pela própria Autora na réplica, esse tribunal superior refere o seguinte, com vista à fundamentação da legitimidade ativa que, naquele caso concreto, considerou verificada:

“A ação foi instaurada ao abrigo da Lei n° 83/95, de 31/08, que trata do direito de participação procedimental e de ação popular que, com alegado, no art.° 3° da petição, visar proteger o ambiente urbano, o equilíbrio do território municipal e a qualidade de vida dos habitantes da cidade do Porto, em particular dos que residem na Foz do Douro, sendo que ao longo da petição, os recorrentes procuraram demonstrar a concreta afetação desses valores através da descrição de factos e da invocação de diversas ilegalidades no âmbito da gestão urbanística.” (assinalado nosso, Ac. do STA de 13.02.2014, proc. n.° 0989/11, in www.dgsi.pt).

Ora, compulsada a p.i., constata-se que efetivamente não vem concretizada pela Autora qualquer lesão ou ameaça de lesão ao interesse ambiental para cuja defesa esta se encontra legitimada.

A Autora imputa ao contrato impugnado nos autos inúmeras ilegalidades atinentes à atribuição da concessão de exploração de lítio à 2.a Ré, mas não invoca nem concretiza, em momento algum da p.i., a verificação de qualquer lesão ou ameaça para o ambiente.

A respeito de tal valor, limita-se a Autora a afirmar, em termos genéricos e sem concretização de factualidade relevante, que “no caso da presente ação estão em causa o meio ambiente e a saúde pública com os correspetivos direitos” (cfr. art. 1.2. da p.i.).

Ora, se não é concretizada na p.i. qualquer lesão ou ameaça do interesse difuso que constitui a proteção do ambiente, então não pode considerar-se que na presente ação está em causa tal interesse, nos termos e para os efeitos do art. 3.°, al. b), da Lei n.° 83/95, de 31 de agosto, e do art. 9.°, n.° 2, do CPTA.

Ao contrário do que pretende a Autora, não basta que o contrato em crise vise uma atividade que exige a declaração de impacte ambiental ou que os diplomas que regulam o aproveitamento dos recursos geológicos se rejam por princípios de minimização dos impactos negativos da exploração e de preservação do ambiente.

Na verdade, o tribunal está impedido de deduzir, de tais circunstâncias, a ameaça de tais valores, cabendo ao autor alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, nos termos do art. 5.°, n.° 1, do CPC.

Nem pode a existência de um “enorme impacto no meio ambiente onde serão feitos os trabalhos de exploração dos minérios em causa”, invocada pela Autora no art. 2.15 da réplica, ser reconduzida a um facto notório em termos processuais, nos termos e para os efeitos do art. 412.°, n.° 1, do CPC.

Desde logo, está em causa factualidade meramente conclusiva, desprovida da devida concretização.

Por outro lado, tal factualidade não reveste a natureza exigida pela lei para que se possa considerar factualidade notória. É que os factos notórios, que dispensam a respetiva alegação, têm vindo a ser descritos pela jurisprudência como aqueles factos conhecidos pela generalidade das pessoas regularmente informadas, com um caráter de certeza, o que não se verifica no caso concreto.

Recorrendo às doutas palavras do Tribunal da Relação do Porto a este respeito, citando Alberto dos Reis:

“Segundo o ensinamento do Professor Alberto dos Reis, que se mantém inteiramente válido, sendo um facto notório, por definição, um facto conhecido, não basta qualquer conhecimento, “(..) é indispensável um conhecimento de tal modo extenso, isto é, elevado a tal grau de difusão que o facto apareça, por assim dizer, revestido de carácter de certeza”, não podendo qualificar-se de “(..) notório um facto unicamente conhecido pelo juiz ou por um círculo restrito ou particular de pessoas”. Prosseguindo, o autor classifica os factos notórios em duas grandes categorias: a) acontecimentos de que todos se aperceberam diretamente (uma guerra, um ciclone, um eclipse total, um terramoto, etc.); b) factos que adquirem o carácter de notórios por via indireta, isto é, mediante raciocínios, formados sobre factos observados pela generalidade dos cidadãos”, para depois concluir, que se quanto aos primeiros não pode haver dúvidas, já quanto aos segundos, “o juiz só deve considerá-los notórios se adquirir a convicção de que o facto originário foi percebido pela generalidade dos portugueses e de que o raciocínio necessário para chegar ao facto derivado estava ao alcance do homem de cultura média” [Código de Processo Civil anotado, vol. III, 4ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 259 a 262].” (cfr. Ac. do TRP de 18.11.2019, proc. n.° 1512/19.8T8MAI.P1, in www.dgsi.pl. Veja-se ainda o Ac. do STJ de 01.04.2014, proc. n.° 330/09.6TVLSB.OL1.S1, disponível no mesmo sítio eletrónico).

Face ao que vem exposto e considerando a configuração da ação efetuada pela Autora, há que concluir que está em causa nos presentes autos a defesa da legalidade objetiva e já não a defesa do interesse difuso da proteção do ambiente, motivo pelo qual se verifica a falta de legitimidade da Autora.

Assim, procede totalmente a exceção dilatória de falta de legitimidade ativa que vem invocada pela 2.a Ré, devendo, consequentemente, os Réus ser absolvidos da instância, ao abrigo dos arts. 89.°, n.° 4, al. c), do CPTA, e do art. 278.°, n.° 1, al. d), do CPC (…)” [idem];

F. Sobre esta decisão judicial sobreveio, em 19.05.2020, o presente recurso jurisdicional [cfr. fls. 294 e seguintes dos autos – suporte digital – cujo teor se dá por integralmente reproduzido].


*

IV- DO MÉRITO DA INSTÂNCIA DE RECURSO

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11. O dissídio subsistente nos presentes autos traduz-se em determinar se a sentença recorrida incorreu [ou não] em erro de julgamento de direito quanto à decidida procedência da exceção de ilegitimidade processual da Autora, aqui Recorrente.

12. Realmente, a Autora intentou a presente ação popular visando a anulação do contrato para a atribuição da concessão de exploração de depósito minerais de lítio e minerais associados, tendo arrimado tal pretensão jurisdicional no entendimento que o apontado contrato enferma de diversos vícios de violação de lei, todos melhor elencados no relatório da sentença recorrida [“(…) 1) vício de violação de lei, por violação do art. 11.º do Decreto-lei n.º 88/90, de 16 de março, na medida em que a lei apenas admite a transmissão do direito de prospeção e de pesquisa; 2) vício de violação de lei, por violação dos arts. 21.º, al. c), e 26.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 54/2015, de 22 de junho, e do art. 15.º, al. c), do Decreto-lei n.º 90/90, de 16 de março, na medida em que a [SCom01...], Lda., transferiu para a Ré um direito de que não é titular: o direito de prospeção e de pesquisa de lítio; 3) vício de violação de lei, por violação dos arts. 11.º e art. 16.º do Decreto-lei n.º 88/90, de 16 de março, e dos arts. 21.º, al. c), e 26.º Decreto-lei n.º 54/2015, de 22 de junho, desde logo na medida em que a Ré não é nenhuma das sociedades cuja constituição tinha sido comunicada à DGEG, inexistindo qualquer procedimento de concessão de exploração do lítio à [SCom01...], Lda. (…)”],

13. Todavia, o T.A.F. de Mirandela entendeu que a Autora carecia de legitimidade processual para intervir nos autos, e, consequentemente, absolveu os Réus da instância.

14. Escrutinado o teor da motivação de direito vertida na sentença recorrida – devidamente transcrita no alínea G) do probatório coligido nos autos -, logo se observa que o juízo da procedência da apontada matéria excetiva estribou-se no entendimento de que a Autora, não obstante ter como objeto estatutário a defesa do interesses invocados no libelo inicial, não invocou qualquer lesão para o meio ambiente e saúde pública que fundamente o recurso a juízo, tendo apenas suscitado questões de legalidade a nível procedimental, sendo, por isso, de concluir que “(…) que está em causa nos presentes autos a defesa da legalidade objetiva e já não a defesa do interesse difuso da proteção do ambiente, motivo pelo qual se verifica a falta de legitimidade da Autora (…)”.

15. Ora, a Recorrente insurge-se contra o assim decidido por entender, no mais essencial, que “ Quer se considere que na ação não foram alegados factos caracterizadores de lesão aos direitos e interesses invocados pela Autora como entende o Tribunal a quo, quer se considere que na ação também se discute a validade e a execução do contrato administrativo nela referenciado e sua relação com o sério e justo receito de lesão efetiva do ambiente que poderá resultar da sua validade e execução, como defende a Autor, aplicou erradamente o critério civilista por si adotado e desconsiderou com violação da lei o critério eleito pelo CPTA, o do interesse em agir, para a aferição da legitimidade nessa ação – artigos 9.º n.º 2 e 77º-A, n.º 1 al. g) d h) (…)”.

16. Vejamos, sublinhando, desde já, que o “objeto confesso” dos presentes autos prende-se com a eventual [in]validade de um contrato administrativo, sendo, por isso, de convocar a normação que deriva do artigo 77º-A do CPTA, que dispõe sobre a legitimidade processual ativa no âmbito da propositura de ações relativas a contratos.

17. Nos termos da ora normação convocada, a legitimidade da Autora para propor a presente ação dependerá da circunstância (i) de ser parte na relação contratual [alínea a)]; (ii) de ter sido prejudicada pelo facto de não ter sido adotado o procedimento pré-contratual legalmente exigido [alínea c)]; (iii) de ter impugnado um ato administrativo relativo ao respetivo procedimento com a invocação que a invalidade decorre das ilegalidades cometidas no âmbito desse procedimento [alínea d)]; (iv) de ter participado no procedimento que precedeu a celebração do contrato, invocando agora que o clausulado não corresponde aos termos da adjudicação [alínea e)]; (v) de alegar que o clausulado do contrato não corresponde aos termos inicialmente estabelecidos e que justificadamente o tinham levado a não participar no procedimento pré-contratual, embora preenchesse os requisitos necessários para o efeito [alínea f)]; (vi) de ser uma pessoa singular ou coletiva titular ou defensora de direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos aos quais a execução do contrato cause ou possa causar prejuízos [alínea g)]; ou ainda por (vii) por eventualmente se integrar no leque das pessoas e entidades nos termos do n.º 2 do artigo 9.º do C.P.T.A.

18. Pois bem, escrutinado o libelo inicial, logo se constata que a Autora invoca a seu favor o facto de ser uma associação de direito privado sem fins lucrativos, que tem como fim estatutário a defesa do meio ambiente, interesse que considera, a par da saúde pública, estar em causa na presente ação administrativa, gozando, por isso, de “(…) legitimidade processual ativa para propor a presente ação popular administrativa (…)”, nos termos do disposto nos “(…) artigos 9º, n.º 2, 55º n.º 1, al. f), 77-A, al. h) do n.º 1, todos do C.P.T.A (…)”

19. Ante o exposto, é de manifesta evidência que a Autora não invoca a seu favor legitimidade processual que deriva das eventuais circunstâncias de (i) ter sido parte na relação contratual; de (ii) ter impugnado um ato destacável do procedimento concursal visado nos autos e/ou (iii) mesmo de ter participado no mesmo; (iv) que o clausulado do contrato diverge dos termos inicialmente estabelecidos que justificadamente o tinham levado a não participar no procedimento pré-contratual, o que afasta a previsão das alíneas a), c), d), e) e f) do nº.1 do artigo 77-A do C.P.T.A.

20. Contrariamente ao pensamento preconizado pela Recorrente, é de excluir também a regra de legitimidade autónoma vertida na alínea g) do nº. 1 do artigo 77º-A do C.P.T.A., já que a mesma não tem aplicação em matéria de propositura de ações populares, como é o caso da presente ação.

21. De facto, conforme ensinam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha [in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, ano 2017, 4ª Edição, página 556, ponto 6], a regra de legitimidade autónoma vertida na alínea g) do nº.1 do artigo 77º-A do C.P.T.A. “(…) não abarca, nem o caso em que as partes contratantes pretendem obter a anulação do contrato [previsto na alínea a)], nem o exercício da ação popular [contemplada na alínea h)], nem as situações de legitimidade dos particulares ou potenciais participantes no procedimento pré-contratual [alíneas c), d) e e)]] (…)” [destaque nosso].

22. Logo, não estão reunidas as condições para se integrar a posição processual da Autora no campo de aplicação da normação vertida na alínea g) do nº.1 do artigo 77º-A do CPTA, situação que tem um verdadeiro efeito de implosão em relação à validação da tese da Recorrente no domínio em análise.

23. Resta-nos, pois, a questão de saber se a Autora é [ou não] suscetível de ser integrada no leque das entidades referidas no do n.º 2 do artigo 9.º do C.P.T.A, o que, aliás, está em consonância com a normação invocada no libelo inicial, unicamente dirigida ao estatuído na alínea h) do nº.1 do artigo 77º-A do CPTA.

24. Assim, e entrando no conhecimento de tal questão, importa que se comece por sublinhar que o disposto na alínea h) do nº.1 do artigo 77º-A do CPTA limita-se a dar aplicação do critério de legitimidade consagrado no nº.2 do artigo 9º do C.P.T.A [neste sentido, veja-se o ponto 3) da página 552 da obra supra citada.

25. Ora, é o seguinte o teor do nº. 2 do artigo 9º do C.P.T.A: “(…) 2 - Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais (…)”.

26. Na interpretação desta normação, deve-se necessariamente convocar os contributos jurisprudenciais emanados a seu propósito.

27. Assim, impera ressaltar o teor da jurisprudência emanada por este Tribunal Central Administrativo Norte, no aresto de 20.12.2020, tirado no processo nº. 02177/22.5BELSB, onde se expendeu o seguinte: ”(…)

Para o que nos interessa ao caso, importa considerar que quando o artigo 9.º, n.º2 do CPTA, circunscreve o exercício dos poderes de propositura e intervenção previstos “nos termos da lei” está a remeter para os artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 83/95, de 31/08 (doravante LAP), diploma que regula, em termos gerais, o direito de participação procedimental e de ação popular (sem prejuízo de outros diplomas que contêm previsão especifica sobre a matéria) - cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA - In “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 5.ª Edição revista, Almedina, 2021 pp. 96.

Note-se que o direito de ação popular está consagrado constitucionalmente no artigo 52.º, n.º 3 da CRP, ao prever que «todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa» têm o direito de ação popular, para «promover a prevenção, cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural», assim como para «assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais».

No que concerne à LAP, o n.º 1 do seu artigo 1.º estipula que «a presente lei define os casos e os termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição» e o n.º 2 enumera os interesses protegidos pela lei da ação popular, como sendo, designadamente, a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.

Considerando que nos termos do artigo 12.º da LAP « A ação popular pode revestir qualquer das formas de processo previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos», torna-se claro que a ação popular não é um meio processual mas antes uma forma de legitimação que permite o despotelar dos diversos tipos de ações ou de providências cautelares que se tornem necessárias à defesa dos interesses difusos, em sentido próprio ou estrito, assim como “as situações de tutela de interesses individuais homogéneos”.

Por sua vez os artigos 2.º e 3.º da LAP, densificam o critério da legitimidade, que apenas aparece genericamente formulado no CPTA Cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos Anotado, Volume I, Almedina, 2004, pp.156 e 157)., estipulando que são titulares do direito de ação popular, dispondo de legitimidade ativa para defesa de interesses difusos, os «cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos» e as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, desde que preencham os requisitos mencionados no artigo 3.º da LAP, e ainda as autarquias locais, « em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respetiva circunscrição».

O artigo 3.ºda LAP, com a epígrafe “ Legitimidade ativa das associações e fundações” determina que constituem requisitos da legitimidade ativa das associações e fundações: «a) A personalidade jurídica; b)O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate; c) Não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas profissionais liberais».

3.4. Como se entoa, no que concerne às associações e fundações, a sua legitimidade - cfr. n.º2 do art.º 9 do CPTA e artigos 2.º e 3.º da LAP-, assenta, essencialmente, nos princípios da especialidade e da territorialidade, ou seja « o direito de ação encontra-se circunscrito à área da sua intervenção principal (ambiente, património natural, património construído, conservação da natureza, património cultural, promoção da qualidade de vida) e de acordo com a respetiva incidência geográfica, que poderá ser de âmbito nacional, regional ou local [...]” Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO CADILHA, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª Edição, Almedina, 2021, pp. 97 e 98; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, in Manual de Processo Administrativo, 2.º edição reimpressa, Almedina, 2016, pp. 215 e 216 e MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos Anotado, Volume I, Almedina, 2004, p. 162; na jurisprudência, vide, entre outros, os Acórdãos do TCAN, de 20/05/2016, proc. n.º 00580/15.6BEBRG, e do TCAS, de 19/12/2017, proc. n.º 12174/15, acessíveis na base de dados da dgsi.

Neste âmbito, veja-se a seguinte jurisprudência :

- o Acórdão do STA, de 13/10/1998, proferido no processo n.º 98A910, que recusou à associação de pais, com competência para intervirem no âmbito da organização do sistema educativo, a legitimidade para a propositura de uma ação na defesa do ambiente;

-o Acórdão do STA, de 17/05/2007, proferido no processo n.º107/07, que negou legitimidade à a Associação de Mulheres em Ação, tendo como escopo “ a eliminação da discriminação e a promoção da igualdade entre homens e mulheres”, para impugnar, com fundamento na defesa da saúde pública, um ato administrativo que permitiu a colocação no mercado de um determinado medicamento;

(…)

3.5. Dir-se-á assim que relativamente à ação popular, o legislador consagrou um conceito de legitimidade ativa difusa, indireta ou impessoal, uma vez que a legitimidade ativa na ação popular não é aferida de modo concreto e casuístico, mas antes em termos gerais e abstratos, bastando, para o autor ser considerado parte legítima, que esteja inserido em determinadas categorias de sujeitos, e que atue para promover a legalidade e tutelar bens constitucionalmente protegidos Cfr. Ac. do TRG, de 07-12-2016, proc. n.º 192/16.7T8VPA.G1, acessível em www.dgsi.pt..

Em síntese, a ação popular traduz um alargamento da legitimidade processual ativa dos cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa, constituindo o seu objeto, antes de mais, na defesa de interesses difusos, sendo de precisar que a enumeração constante do n.º 2 do artigo 9.º do CPTA é meramente exemplificativa, como resulta, também, da previsão normativa do n.º3 do artigo 52.º da CRP (…)”.

28. Acompanhando e acolhendo a interpretação assim declarada por este Tribunal Superior, tem-se, portanto, por assente, que a legitimidade ativa na ação popular não é aferida de modo concreto e casuístico, mas antes em termos gerais e abstratos, bastando, para o autor ser considerado parte legítima, que esteja inserido em determinadas categorias de sujeitos e que atue para promover a legalidade e tutelar bens constitucionalmente protegidos.

29. Perante este quadro, entendemos ser forçosa a conclusão que a Autora é parte legítima nos presentes autos.

30. Na verdade, e como bem evidenciado na sentença recorrida, a Autora é uma associação de direito privado com sede no Concelho ... que “(…) tem como fim estatutário “(…) constituir, basicamente, um elemento impulsionador e de apoio à autarquia local para o integral desenvolvimento de ..., pretendendo a defesa do ambiente, do património natural e construído do Concelho ..., bem como a conservação da natureza.” (cfr. art. 3.º, n.º 1, dos Estatutos da Autora, juntos como doc. ... da p.i.) (…)”.

31. Desta feita, e conforme se extrai inequivocamente do libelo inicial, na exata medida que “(…) no caso da presente ação estão em causa o meio ambiente e a saúde pública com os correspetivos direitos (…)”, visando a mesma a desintegração jurídica do “(…) Contrato para a Atribuição da Concessão de Exploração de Depósito Minerais de Lítio e Minerais Associados, contrato esse que tem o número de cadastro C-152 e a denominação de “...”, numa área situada no Concelho ... (…)”, imediatamente se conclui que o direito de ação exercido nos autos encontra-se circunscrito à uma das áreas de intervenção principal da Autora [meio ambiente] e de acordo com a respetiva incidência geográfica.

32. O que nos transporta para evidência do preenchimento dos princípios da especialidade e da territorialidade, determinante da verificação de que a Autora goza de legitimidade processual ativa, aferida na vertente da proteção de interesses difusos, para intervir em juízo.

33. Assim deriva, naturalmente, que se impõe conceder provimento ao presente recurso, devendo ser revogado a decisão judicial recorrida e determinada a baixa dos autos à 1ª instância, para que aí prossigam os seus ulteriores trâmites processuais se nada mais obstar.

Ao que se provirá no dispositivo.

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IV – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os Juízes da Subsecção de Contratos Públicos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “ sub judice”, revogar a decisão judicial recorrida e determinar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela para prosseguimento dos mesmos, se a tal nada mais obstar.

Custas pelo Recorrido.

Registe e Notifique-se.


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Porto, 03 de novembro de 2023,

[Ricardo de Oliveira e Sousa]

[Luís Migueis Garcia]

[Helena Maria Mesquita Ribeiro]