Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00513/18.8BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:04/29/2021
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Paulo Moura
Descritores:CASO JULGADO; CAUSA DE PEDIR; FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO; DIVERSA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS MESMOS FACTOS; TUTELA JUDICIAL EFETIVA.
Sumário:I - A causa de pedir corresponde ao facto material (simples ou complexo) a que o autor pretende ver atribuída uma regulação jurídica, não sendo alterada a causa de pedir, caso seja apresentada uma nova ou diversa qualificação jurídica sobre a mesma situação de facto anteriormente julgada com trânsito em julgado.

II – Apresentada uma segunda ação, em que apenas difere da primeira ação a argumentação jurídica, ocorre caso julgado, uma vez que o caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objeto apreciado na primeira ação.

III – A verificação de caso julgado não contende com o princípio da tutela jurisdicional efetiva, na medida em que a parte já teve total oportunidade de acesso aos tribunais na primeira ação.

IV - A Administração Tributária não tinha qualquer obrigação de apreciação de uma matéria que já tinha sido objeto de apreciação por um tribunal e da qual se havia firmado caso julgado.
Recorrente:N., SA
Recorrido 1:Autoridade Tributária e Aduaneira
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
*

N., S.A., interpõe recurso do Despacho Saneador-Sentença que julgou verificada a exceção de caso julgado.

Formula nas respetivas alegações as seguintes conclusões que se reproduzem:

A. O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu nos autos da ação administrativa n.º 513/18.8BEVIS, que julgou improcedente a referida acção, absolvendo a Autoridade Tributária dos pedidos de anulação do ato de rejeição do pedido de revisão de ato tributário apresentado e de condenação à prática do ato devido de admissão e apreciação do mérito do pedido em causa aí formulados.
B. Entende a Recorrente que a sentença recorrida incorre em erro de julgamento quanto à interpretação e aplicação do acervo normativo aplicável.
C. No pedido de revisão a Recorrente solicita a anulação do acto tributário com base na inconstitucionalidade da norma que conduziu à emissão do acto: a alínea b) do n.º 8 do artigo 69º do Código do IRC.
D. No pedido de pronúncia arbitral invocou-se a manifesta desproporcionalidade decorrente da interpretação feita pela AT da norma em vigor.
E. A operatividade da excepção do caso julgado pressupõe que exista a repetição de uma causa, depois da primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário, implicando que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, o que acontece quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
F. O Tribunal não estará em condições contradizer ou reproduzir uma decisão anterior quando a questão a apreciar - ainda que assentando nos mesmos pressupostos de facto - assente em pressupostos de direito distintos dos que estiveram na base da decisão anterior.
G. Isto porque, ainda que se esteja perante a mesma factualidade, a convocação de um acervo normativo distinto implicará uma diferente valoração dos mesmos factos, de tal modo que terá de concluir-se estarem em causa objectos diferentes.
H. A causa de pedir, como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se na factualidade alegada pelo demandante como fundamento do efeito prático-jurídico visado, com a significação resultante do quadro normativo a que o tribunal deva atender.
I. Uma coisa é dizer que uma norma foi mal interpretada pela AT e que daí resultaram consequências violadoras de princípios inconstitucionais: caso em que a apreciação da questão assentará na formulação juízos acerca da actuação da AT, e não acerca da validade de quaisquer normas.
J. Outra coisa completamente diferente é dizer que uma norma é inconstitucional: caso em que a decisão do Tribunal assentará necessariamente num juízo valorativo acerca da norma em causa e da sua conformidade com os princípios constitucionais invocados.
K. Com efeito que estas causas de pedir implicam por parte do Tribunal a formulação de juízos cognoscitivo-valorativos completamente distintos, não se podendo concluir haver a repetição de uma causa.
L. Assim, afigura-se forçoso concluir que não se formou caso julgado material quanto à questão da inconstitucionalidade alínea b) do n.º 8 do artigo 69º do Código do IRC.
M. Ademais, a interpretação do n.º 4 do artigo 581.º do CPC no sentido de que para efeitos da existência do caso julgado não relevam eventuais divergências ao nível do direito aplicável é inconstitucional por violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º CRP).
N. Do princípio da legalidade não decorre qualquer impedimento à apreciação por parte da AT do pedido de revisão oficiosa dos actos de liquidação contestados, por inconstitucionalidade da alínea b) do n.º 8 do artigo 69.º do CIRC, mas apenas – quanto muito - a necessidade de decidir a lide desfavoravelmente ao contribuinte, considerando o tributo conforme à Constituição, razão pela qual não se verifica por essa via qualquer falta de propriedade ou idoneidade do expediente utilizado.
O. É hoje doutrinal e jurisprudencialmente pacífico o entendimento segundo o qual, existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da AT, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação do contribuinte, o erro em questão é imputável àqueles serviços.
P. Uma vez recebido o pedido, a Administração terá de sobre ele se pronunciar, nos termos do princípio da decisão previsto no artigo 56º da LGT, devendo, no caso de se verificarem os pressupostos da revisão, proceder à mesma, por imposição dos princípios da justiça e do respeito pelos direitos e interesses legítimos dos administrados, plasmados nos artigos 266º, n.º 1, da Constituição e 55º da LGT.
Termos em que deve ser por V. Exas. dado provimento ao presente recurso, com a anulação da sentença recorrida.

A Autoridade Tributária e Aduaneira contra-alegou, tendo oferecido as seguintes conclusões:

A. O presente recurso, por não preencher os pressupostos consagrados no n.º 1 do artigo 151.º do CPTA, deve ser liminarmente rejeitado.
B. A decisão recorrida não é merecedora de qualquer reparo, sendo a sua interpretação e conclusão as únicas juridicamente possíveis, atento o quadro legal vigente, inexistindo assim qualquer erro de julgamento que inquine a sua validade.
C. Ao invés, são as alegações de recurso que padecem de erro manifesto nos pressupostos de direito.
D. Como decorre do disposto no n.º 4 do artigo 13.º do RJAT, o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Recorrente, porque assenta nos mesmos fundamentos, analisados e decididos pelo CAAD no âmbito do P. 10/2017, não pode ser apreciado sob pena de violação do caso julgado.
E. Como resulta dos autos existe uma identidade de pedidos do P.P.A e do pedido de revisão oficiosa, tendo o CAAD apreciado a alegada violação do princípio da proporcionalidade do artigo 69.º do CIRC.
F. A interpretação do n.º 4 do artigo 581.º só pode ser a efetuada pelo Tribunal a quo.
G. Designadamente, nas ações de condenação à prática de ato devido, como a dos autos, o objeto do processo é a pretensão material que a Autora pretende fazer valer na ação e não o ato de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta diretamente da pronúncia condenatória, sendo, por isso, irrelevantes os vícios que lhe são imputados.
H. É inegável a inexistência de qualquer violação do artigo 20.º da CRP.
I. Ainda que assim não fosse, como é, sempre teria o pedido de revisão oficiosa que ser rejeitado com fundamento na sua intempestividade e idoneidade.
J. O pedido de revisão oficiosa porque apresentado fora do prazo consagrado para a reclamação graciosa só podia ter como fundamento o erro imputável aos serviços.
K. Estando a Recorrida vinculada ao princípio da legalidade não podia deixar de aplicar uma norma legal com fundamento em inconstitucionalidade, sobretudo, como sucede nos autos, quando existe decisão transitada em julgado que já apreciou tal pedido e julgou a sua legalidade.
L. E, como tal, nunca a aplicação da norma em causa poderia configurar um erro imputável ao serviço.
M. Andou bem a decisão recorrida quando decidiu pela improcedência total da ação e pela absolvição da Recorrida dos pedidos.
N. Conclui-se, assim, pela total improcedência da argumentação expendida pela Recorrente, e pela inexistência de qualquer erro de julgamento que inquine a bem elaborada decisão recorrida.
Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso e mantida a decisão recorrida.

O recurso havia sido dirigido ao Supremo Tribunal Administrativo, que por Decisão Sumária, se julgou hierarquicamente incompetente, deferindo a competência ao Tribunal Central Administrativo.

O Ministério Público emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.

Foram dispensados os vistos legais, nos termos do n.º 4 do artigo 657.º do Código de Processo Civil, com a concordância da Exma. Desembargadora Adjunta e do Exmo. Desembargador Adjunto.
**
Delimitação do Objeto do Recurso – Questões a Decidir.

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respetivas conclusões [vide artigos 635.º, n.º 4 e 639.º CPC, ex vi alínea e) do artigo 2.º, e artigo 281.º do CPPT] são as de saber se ocorre ou não caso julgado em relação ao processo que a Autora teve intentado junto do Tribunal Arbitral.
**

Relativamente à matéria de facto, o tribunal, deu por assente o seguinte:

II Fundamentação
II I Factos provados

Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, consideram-se provados os seguintes factos:
A) Em 10 de março de 2016 foi emitida a liquidação de IRC n.º 2016 8910032789, respeitante ao ano de 2011 e à sociedade N., S.A., cfr. liquidação constante de fls. 33 do processo administrativo (PA) inserido no SITAF, aqui dado por reproduzido o mesmo se dizendo dos demais elementos infra referidos;

B) Contra a referida liquidação foi interposta reclamação graciosa autuada sob o n.º 2720201604003446, vide fls. 811 e ss. do processo administrativo;

C) Do indeferimento daquela reclamação foi interposto recurso hierárquico autuado sob o n.º 2720201610000360, cfr. resulta de fls. 909 e ss. do processo;

D) Na sequência do indeferimento do recurso hierárquico foi deduzido pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao processo n.º 10/2017-T junto do Centro de Arbitragem Administrativa, vide posição das partes e ainda o documento imediatamente seguinte à contestação;

E) As questões submetidas à apreciação do Tribunal no pedido de pronúncia eram: a. Caducidade do direito à entrega da declaração de substituição; b. Da violação do princípio da proporcionalidade e do princípio da tributação do rendimento real c. Das tributações autónomas de ajudas de custo, cfr. o segundo documento a seguir à contestação contendo 50 fls.;

F) Foi proferida decisão de improcedência total no processo 10/2017-T, idem anterior;

G) No que respeita ao fato «E.b» o Tribunal Arbitral pronunciou-se nos seguintes termos:
“Entendem as Requerentes que a aplicação, ao caso concreto, das normas ínsitas nos nºs 8 e 9 do artigo 69.º do Código do IRC viola os princípios constitucionais da proporcionalidade e da tributação pelo rendimento real, previstos na Constituição.
(…)
Analisada a redação das supratranscritas disposições, verifica-se que todas – artigo 69.º, n.ºs 4, 8 e 9 do CIRC - têm carácter imperativo, não sendo concedida à administração fiscal qualquer margem de discricionariedade na sua aplicação uma vez que o n.º 8 do referido artigo elenca e determina, de forma expressa e inequívoca, os casos em que o regime especial de tributação dos grupos de sociedades cessa a sua aplicação, remetendo, nomeadamente, para as situações referidas nas alíneas a), b), d) ou g) do n.º 4 do artigo 69.º, relativamente à sociedade dominante.
Este entendimento foi acolhido pelo Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 03/12/2014 (proc. nº 0256/12), no qual considerou o seguinte: (…)
É certo que toda a atuação da Requerida AT encontra-se sujeita ao princípio da legalidade tributária, por força do artigo 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, do artigo 8.º da LGT e do artigo 3.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo.
No caso concreto que resulta da aplicação das normas previstas no artigo 69.º, n.ºs 8 e 9 do CIRC não se verifica qualquer margem para a aplicação do princípio da proporcionalidade de modo a obstar à aplicação da norma, ou a temperá-la por efeito desse princípio.
Dito por outras palavras, a AT não dispõe de margem de discricionariedade na aplicação das normas previstas no artigo 69.º, n.ºs 8 e 9 do CIRC não podendo, por isso, considerar a aplicação do princípio da proporcionalidade na atividade ordinária de mera aplicação deste preceito porquanto a convocação deste princípio não é permitida pelo legislador ordinário (o que não invalida, naturalmente, que possa ponderar a validade constitucional da norma em apreço à luz do princípio da proporcionalidade que decorre da Constituição, como de seguida se analisará).
Com efeito, a aplicação do disposto no artigo 69.º, n.ºs 8 e 9 do CIRC implica que a Requerida AT se deva limitar a verificar as condições objetivas de aplicação da lei, in casu, às Requerentes.
A Requerida AT apenas podia atuar em conformidade com o princípio da proporcionalidade se pudesse adotar, de entre as medidas necessárias e adequadas para atingir esses fins, aquelas que impliquem menos gravames, sacrifícios ou perturbações à posição jurídica dos administrados.
Ora, neste caso, não existe um leque de medidas a adotar.
Apenas uma consequência é (era, na redação aplicável) associada à verificação do incumprimento dos requisitos previstos no artigo 69.º, n.ºs 8 e 9 do CIRC: a cessação da aplicação do regime especial de tributação dos grupos de sociedades.
O regime previsto nos n.ºs 8 e 9 do artigo 69.º do CIRC – em particular resultante da alínea c) do n.º 4 do artigo 69.º, como ocorre no caso sub judice - determina a imposição de uma sanção – a cessação da aplicação do regime especial de tributação dos grupos de sociedades – que não permite qualquer margem de apreciação por parte da administração fiscal.
Pode discutir-se se, no caso concreto, as consequências fiscais são ou não excessivas.
Pode até convocar-se o princípio da proporcionalidade que resulta da Constituição e a consequente análise deste, à luz do regime legal que resulta do disposto no artigo 69.º, n.ºs 8 e 9 do CIRC por forma a ajuizar da conformidade constitucional deste preceito.
Acontece que esse regime legal, previsto no CIRC, visa justamente efetivar e potenciar a igualdade dos contribuintes perante a lei fiscal.
A imposição da sanção foi elaborada pelo legislador, em termos gerais e abstratos, estatuindo que a verificação do incumprimento das condições previstas tem, como consequência, a cessação da aplicação do regime especial e a inerente aplicação das normas gerais de tributação a cada sociedade.
A não ser assim, e se acaso a lei permitisse a aplicação, a casos concretos, de alguma ponderação, teria de se encontrar o critério ou os critérios que autorizariam a administração fiscal a desaplicar a lei ou a aplica-la de forma ponderada, o que colocaria necessariamente em crise o princípio da legalidade tributária.
Dito de outra forma, a cessação da aplicação do regime especial de tributação dos grupos de sociedades pode decorrer do incumprimento, por uma ou várias sociedades menos relevantes, financeiramente, no contexto do grupo ou do incumprimento por uma ou várias sociedades muito relevantes financeiramente.
Aqui, pode discutir-se, de jure condendo, se o legislador não podia ter criado um sistema gradativo ou progressivo que permitisse a desaplicação parcial da sanção que resulta dos n.ºs 8 e 9 do artigo 69.º do CIRC – a cessação da aplicação do regime especial de tributação dos grupos de sociedades. Mas, neste cenário, e de jure condendo, é legítimo perguntar qual seria o critério gradativo ou proporcional que permitiria determinar a cessação do regime especial de tributação dos grupos de sociedades ou ponderar a sua desaplicação parcial, como parecem defender as Requerentes que não colocasse em causa a ideia de generalidade e abstração que caracteriza as normas fiscais.
Independentemente da resposta à questão anterior, certo é que essa não foi a opção do legislador fiscal.
O legislador fiscal, ao determinar regras claras e objetivas para a cessação da aplicação do regime especial de tributação dos grupos de sociedades, como aquelas que constam do artigo 69.º, n.ºs 4; 8 e 9 do CIRC, facilmente compreensíveis e até antecipáveis no contexto do planeamento fiscal, não ofendeu o princípio da proporcionalidade que se extrai da Constituição.
Por outro lado, entendem ainda as Requerentes que a aplicação da cessação do regime especial de tributação dos grupos de sociedades deve igualmente ser apreciado face ao princípio da tributação do rendimento real.
Entende-se que este princípio não é ofendido.
É que, como é mencionado no acórdão do Tribunal Constitucional nº 139/2016, citando o acórdão do mesmo Tribunal nº 753/14 «ainda que, em tese geral, o princípio da capacidade contributiva implique que deva ser considerado como tributável apenas o rendimento líquido, com a consequente exclusão de todos os gastos necessários à produção ou obtenção do rendimento, o certo é que não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – como admite a doutrina – «uma certa margem de liberdade para limitar a certo montante, ou mesmo excluir, certas deduções específicas, que, embora relativas a despesas necessárias à obtenção do correspondente rendimento, se revelem de difícil apuramento» (Casalta Nabais, ob. cit., pág. 521) [a obra em causa é O Dever Fundamental de Pagar Impostos]. O ponto é que tais limitações ou exclusões tenham um fundamento racional adequado e se apliquem à generalidade dos rendimentos em causa.
Trata-se de opções de política fiscal que assentam numa ideia de praticabilidade, que exige ao legislador a elaboração de leis cuja aplicação e execução seja eficaz e económica ou eficiente, e que conduzam a resultados consonantes com os objetivos pretendidos. Com essa finalidade, com que se pretende também assegurar os princípios materiais da igualdade e da justiça fiscal, é constitucionalmente justificável que o legislador possa recorrer não apenas às referidas presunções legais, mas também a técnicas de tipificação e de simplificação, que permitam disciplinar certos aspetos do direito dos impostos segundo critérios de normalidade, afastando as situações atípicas ou anormais (idem, págs. 622-623). […]
Como se deixou exposto num outro momento, o artigo 104.º, n.º 2, não institui um critério absoluto e rigoroso de tributação das empresas segundo o lucro real, apontando antes para uma aproximação tendencial entre a matéria coletável e os lucros efetivamente auferidos, sem excluir o recurso a rendimentos presumidos e a métodos indiciários”. (sublinhado nosso).
Ainda quanto ao princípio constitucional da tributação pelo rendimento real, refira-se que em nada este sai beliscado, no caso dos autos, pois que a norma constitucional introduz um elemento moderador, o advérbio «fundamentalmente» - cfr. Acórdão do STA proferido no proc. 0959/06, em 15-02-2007.
Pode assim concluir-se que a opção tomada pelo legislador no CIRC e, em particular, no artigo 69.º, encontra inscrição na margem de conformação do legislador fiscal, sendo insuscetível de fundar autónoma censura constitucional uma vez que tem o propósito de criar regras jurídicas precisas e rigorosas, adequadas ao princípio da certeza e segurança jurídica que devem igualmente nortear o legislador fiscal, e que, como tal, podem facilmente ser interpretadas e cumpridas pelo contribuinte o que, no caso em apreço, não terá sucedido.
Face a todo o exposto, nesta parte, o pedido arbitral não deve proceder. (…)”, idem F);

H) Contra esta decisão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional que decidiu não conhecer do seu objeto, vide acórdão proferido no proc.º 6/2018 e que confirmou a decisão sumária n.º 692/2007, vide os dois documentos imediatamente antecedentes do PA, sendo o primeiro de três e o segundo de nove folhas;

I) Em 14 de fevereiro de 2018 a N., S.A., apresentou pedido de revisão oficiosa da liquidação de IRC n.º 2016 8310033116, com fundamento na inconstitucionalidade da alínea b) n.º 8 do art.º 69.º do CIRC, cfr. petição constante de fls. 3 e ss. do procedimento administrativo;

J) A petição referida no facto precedente deu origem ao PRO n.º 27202018020000261, instaurado no SF de Viseu, vide petição constante de fls. 1 e ss. do PA;

K) Em 16 de Agosto de 2018 o pedido foi liminarmente rejeitado com o fundamento de que “a apresentação de um pedido junto do Tribunal Arbitral para apreciar um ato tributário de liquidação de IRC impede a AT de proceder por via administrativa à sua revisão sendo essa a verdadeira ratio legis do n° 4 do artigo 13° do RJAT - impedir que seja apreciada por via administrativa a legalidade de um ato tributário que seja objeto de pronúncia arbitral. Assim, por maioria de razão, está vedada à Administração Tributária a revisão oficiosa do ato tributário de liquidação - atrás identificado - objeto de decisão pelo Tribunal Arbitrário [pretenderia dizer Arbitral], nos termos do artigo 78° da LGT, atento a identidade do objeto visado”, cfr. despacho de fls. 45 e proposta de decisão para efeitos de audição prévia de fls. 36 e ss. do PA;

II II Factos não provados Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa.
A convicção do Tribunal baseou-se nos documentos, na sua apreciação crítica e fazendo uso das regras da experiência comum, mencionados em cada uma das alíneas dos fatos provados.
Nestes autos as Partes não divergem quanto aos factos. A divergência situa-se na apreciação/qualificação jurídica.
**
Apreciação jurídica do recurso.

A Autora alega que não se verifica caso julgado material na medida em que agora apresenta argumentos que anteriormente não deduziu, como seja, a invocação da inconstitucionalidade da norma aplicada pela Administração Tributária, que foi a alínea b) do n.º 8 do artigo 69.º do Código do IRC.

Refere que estão aqui em apreço razões de direito que divergem das que serviram de base ao pedido efetuado diante do Tribunal Arbitral, desde logo, porque agora foi invocado clara e diretamente a inconstitucionalidade das normas usadas pela Administração Tributária para não aplicar o regime especial de tributação de grupos de sociedades (RETGS).

Esclarece que, segundo o Tribunal Constitucional, no pedido efetuado diante do Tribunal Arbitral não foi verdadeiramente invocada a constitucionalidade de qualquer norma, pelo que não tendo sido apreciado tal pedido, não ocorre caso julgado.

Mais refere que, ainda que assentando nos mesmos pressupostos de facto, agora a situação assenta em pressupostos de direito distintos dos que estiveram na base da decisão anterior, o que implicará uma diferente valoração dos mesmos factos, de tal modo que terá de concluir-se estarem em causa objetos diferentes, por isso não haverá identidade da causa de pedir.

Entende, ainda, que a interpretação que o Tribunal recorrido faz do n.º 4 do artigo 581.º do Código de Processo Civil, é inconstitucional por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição, uma vez que não se pode considerar haver repetição da causa, pelo que tem o direito a ver a sua nova questão a ser apreciada pelo Tribunal.

Por fim, alega que, ao contrário do decidido pelo Tribunal, não existe qualquer impedimento para a Administração Tributária apreciar o pedido de revisão do ato tributário, por inconstitucionalidade da alínea b) do n.º 8 do artigo 69.º do Código do IRC; quando muito de decidir a lide em desfavor do contribuinte, mas tendo de se pronunciar sobre o pedido.

Apreciando.
Conforme reconhece a Recorrente, esteve em análise no Tribunal Arbitral a tributação em sede de IRC do ano de 2011, a qual agora pretende novamente sindicar através da dedução de um prévio pedido de revisão do ato tributário de liquidação, daquele mesmo ano de 2011, que a afetou, ao abrigo do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT). Esse pedido de revisão foi indeferido, baseando-se na identidade do objeto com os termos do processo que correu no Tribunal Arbitral e que transitou em julgado.
Para melhor análise da situação transcrevem-se os preceitos do atual Código de Processo Civil que se referem ao instituto do caso julgado.
Artigo 580.º (Conceitos de litispendência e caso julgado)
1 - As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado.
2 - Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
3 - É irrelevante a pendência da causa perante jurisdição estrangeira, salvo se outra for a solução estabelecida em convenções internacionais.

Artigo 581.º (Requisitos da litispendência e do caso julgado)
1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.

Estes artigos, tiveram os correspondentes homólogos no anterior Código de Processo Civil, que eram os artigos 497.º e 498.º, que tinham a mesma redação.

No seguimento do que acima se deu por assente na alínea G) da matéria de facto, na primeira ação, o tribunal pronunciou-se sobre a constitucionalidade das normas ínsitas nos números 4, 8 e 9 do artigo 69.º do Código do IRC, sendo que a Autora agora pretende nova pronúncia sobre a constitucionalidade da norma constante da alínea b) do n.º 8 do artigo 69.º do Código do IRC, para o efeito invocando que não está em apreciação a mesma causa de pedir.
É entendimento uniforme que a causa de pedir se consubstancia na alegação de factos enquadrados juridicamente e que a alegação jurídica apresentada pelo autor não configura a causa de pedir. Por isso, uma nova visão jurídica dos mesmos factos não pode nunca ser considerada uma diferente causa de pedir, pois está sempre em questão o mesmo objeto impugnatório (ato tributário de IRC do mesmo período – ano de 2011) e não outro, ao contrário do que alega a Recorrente. Ou seja, está sempre em causa o mesmo facto jurídico e não algum outro facto jurídico, que possa configurar uma diferente causa de pedir. A natureza factual não se alterou nada entre o primeiro e o segundo processo.
Ora, quer no primeiro processo, quer neste, o que está sempre em questão é a aplicação da mesma norma [que é a alínea b) do n.º 8 do artigo 69.º do Código do IRC] ao mesmo facto tributário. Portanto, não ocorre qualquer alteração da factualidade, nem da integração jurídica que ao caso cabe. Significa isto que a parte teve sempre a possibilidade de alegar toda a panóplia de invalidades que entendesse invocar, quer diante dos factos, quer perante o direito aplicável. Se, porventura, não invocou a inconstitucionalidade da norma que ao caso foi aplicável, tal jamais pode ser efetuado em nova ação. Isto porque, a parte é obrigada a invocar, desde logo e para todo o sempre, o regime jurídico que entende ser o aplicável ou o que não deveria ter sido aplicado, ainda que o aplicado enferme de suposta inconstitucionalidade, pois que um vício deste tipo é sempre uma alegação jurídica e nunca um erro sobre os pressupostos de facto.

O facto de o tribunal não estar vinculado ao direito alegado pelas partes, também é um fator a assinalar para que fique impedida a invocação de outra argumentação jurídica sobre a mesma factualidade.
Aliás, a jurisprudência e a doutrina são unânimes no entendimento de que uma nova versão jurídica dos mesmos factos não é admissível, por isso não é possível lançar mão de uma nova demanda invocando apenas diferente argumentação jurídica, como é o caso da aqui presente.

Veja-se, ainda, sobre o assunto os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/04/2018, proferido no processo n.º 1486/15.4T8PDL.L1.S1, assim como de 14/12/2016, proferido no processo n.º 219/14.7TVPRT-C.P1.S1 (ambos em www.dgsi.pt, tal como os que de seguida vão ser transcritos).
Acórdão do STJ de 24/04/2013, proferido no processo n.º 7770/07.3TBVFR.P1.S1, cujo sumário segue:
1. A figura da excepção de caso julgado – que a reforma de 1995/96 qualificou expressamente ( art. 494º, al. i) como dilatória – tem que ver com um fenómeno de identidade entre relações jurídicas, sendo a mesma relação submetida sucessivamente a apreciação jurisdicional, ignorando-se ou desvalorizando-se o facto de esse mesma relação já ter sido, enquanto objecto processual perfeitamente individualizado nos seus aspectos subjectivos e objectivos, anteriormente apreciada jurisdicionalmente, mediante decisão que transitou em julgado.
2. Ocorre identidade de pedido quando o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor em ambas as acções é substancialmente o mesmo – no caso, a obtenção de uma redução do preço já efectivamente pago, com vista ao restabelecimento do equilíbrio das prestações subjacente à vontade real dos contraentes – e que ressaltaria e estaria subjacente a determinada cláusula de contrato promessa, já exaurido com a celebração do contrato de compra e venda, e não incluída no clausulado deste contrato definitivo, ulteriormente celebrado.
3. A essencial identidade e individualidade da causa de pedir não é afectada, nem por via da alteração da qualificação jurídica dos factos concretos em que se fundamenta a pretensão, nem por qualquer alteração ou ampliação factual que não afecte o núcleo essencial da causa de pedir que suporta ambas as acções.
4. Há identidade de causa de pedir quando o substrato factual de ambas as acções é precisamente idêntico, radicando a única diferença entre ambas no modo como – de um ponto de vista estritamente normativo, situado exclusivamente no plano da subsunção ou qualificação jurídica desses mesmos factos imutáveis – se procede ao respectivo enquadramento jurídico – reportando-o, na primeira acção, à pretensa actuação de uma cláusula de correcção do preço, inserida em contrato promessa já exaurido e, na segunda, referenciando essa mesma factualidade concreta, já inteiramente alegada na acção anterior, ao plano extracontratual do enriquecimento sem causa.

Acórdão do STJ de 01/10/2019, proferido no processo n.º 20427/16.5T8LSB.L1.S1, cujo sumário contém o seguinte teor:
I - Para que se verifique a exceção do caso julgado é necessária a identidade de partes, do pedido e da causa de pedir.
II - O caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objeto apreciado, porque o que releva é a identidade da causa de pedir (isto é, dos factos com relevância jurídica) e não de qualificações jurídicas.
III - O facto de o recorrente ter qualificado juridicamente os factos alegados, invocando a responsabilidade contratual, de forma diferente da qualificação jurídica efetuada em outro processo (na decisão proferida nesse outro processo considerou-se que se estava em presença de responsabilidade extracontratual), não faz alterar a causa de pedir nem afasta a exceção do caso julgado, porquanto a causa de pedir, é o ato ou facto jurídico donde o autor pretende ter derivado o direito a tutelar e não a valoração jurídica que ele entende atribuir-lhe.

Veja-se, ainda, sobre o assunto o que referem os melhores processualistas.
Rui Pinto, na sua obra, “Exceção e autoridade de caso julgado. Algumas notas provisórias”, publicado na Julgar Online, novembro de 2018, págs. 9, 10 e 13, refere, em: http://julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/
Também não relevam as diferenças ao nível da qualificação jurídica dos factos invocados. Há identidade de causas de pedir mesmo que a qualificação jurídica seja diversa, tanto se a primeira decisão foi de procedência, como se foi de improcedência. (…)
Isto é assim, porquanto a qualificação jurídica dos factos não integra a causa de pedir. A causa de pedir integra os “factos com relevância jurídica”, mas não as “qualificações jurídicas que podem ser atribuídas”, escreve TEIXEIRA DE SOUSA.
É certo que o autor tem o ónus de alegar como causa de pedir um facto jurídico (n.º 4 do presente artigo) de onde retira a sua pretensão. Como tal, tem de dar uma qualificação jurídica aos eventos da vida que alega, i.e., tem de os subsumir a normas substantivas. Mas, visto que o tribunal não está vinculado à qualificação do autor, nos termos do artigo 5.º, n.º 3 – e daí a possibilidade de improcedência do pedido por razões de direito –, o autor sujeita-se a que, em caso de improcedência [mas também em caso de procedência], não possa colocar outra ação com nova qualificação jurídica.
(…)
IV. Por seu lado, o pedido é o efeito jurídico que a parte ativa pretende obter pela decisão do tribunal e que ela retira materialmente da causa de pedir que invoca, “pedido” é sinónimo de ação na terminologia do artigo 10.º – uma espécie de ação e a espécie de “efeito jurídico” pretendido (cf. artigo 581.º, n.º 3).
Esse efeito jurídico tem por objeto certo e determinado bem jurídico a que se refere a causa de pedir. Em termos simples, o pedido tem por objeto imediato determinado efeito jurídico que se retira da causa de pedir e por objeto mediato o bem jurídico a que se refere a causa de pedir. Donde, há identidade de pedido quando em causas diferentes a parte ativa pretende uma sentença com idêntico efeito jurídico para um mesmo e determinado bem jurídico.

Teixeira de Sousa, in “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ, n.º 325, abril de 1983, págs. 49 a 229, escreve a págs. 78/79:
“cc. Consumpção prejudicial
(…)
Existe uma situação de prejudicialidade entre objectos da sentença quando do primeiro objecto consta um facto – merecedor ou não de qualificação jurídica – antecedente necessário da apreciação do objecto subsequente: quando o facto é juridicamente qualificável – facto tipificado – a consumpção prejudicial equivale a uma dependência de factos-tipos; quando o facto não é juridicamente qualificável – facto probatório ou facto indiciário – a consumpção prejudicial significa uma dependência de um facto-tipo perante o facto concreto.
Assim, sempre que possível, a qualificação jurídica integra o objecto prejudicial e não pode ser afastada em posterior apreciação jurisdicional, já que naquele objecto o tribunal decidiu em função de uma qualificação necessariamente presente na subsunção do facto concreto ao facto-tipo. Com efeito, a exclusão da qualificação do objecto prejudicial é contraditória com a vinculação do tribunal a julgar segundo a lei, com a possibilidade de recurso sobre a decisão de mérito fundada em erro de interpretação, aplicação ou determinação da norma utilizável e com o valor substantivo do objeto de sentença. Deste modo, a qualificação jurídica dos fundamentos da sentença, porque antecedente da atribuição da consequência legal na respectiva decisão, é juridicamente vinculativa.”
O mesmo autor, Miguel Teixeira de Sousa, em Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 2.ª ed., 1997, a págs. 576, escreve: «4. Relações de concurso
a. O concurso objectivo verifica-se quando vários objectos processuais se referem a um mesmo efeito jurídico. Quanto à relevância do caso julgado nas situações de concurso objectivo, importa distinguir entre as hipóteses em que os vários objectos concorrentes se referem aos mesmos factos e aqueles em que os objectos, apesar de concorrentes, se fundamentam em factos diversos.
O caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objecto apreciado, porque o que releva é a identidade da causa de pedir (isto é, dos factos com relevância jurídica) e não das qualificações jurídicas que podem ser atribuídas a esse fundamento (artºs 497º, nº 1 e 498º, nº 4). Assim, quando o objecto for susceptível de comportar várias qualificações jurídicas – como sucede quando um mesmo facto preenche simultaneamente a previsão da responsabilidade contratual e extracontratual -, o caso julgado, ainda que referido a uma única dessas qualificações, abrange-as a todas elas, porque o tribunal deve apreciar a procedência da causa segundo todas essas qualificações.
Nesta hipótese, a excepção de caso julgado impede que um efeito jurídico pretendido ou obtido com fundamento numa qualificação jurídica possa ser requerido com base numa outra qualificação dos mesmos factos. Por exemplo: se o autor não conseguir obter a condenação do demandado com fundamento na responsabilidade contratual, a excepção de caso julgado impede a reapreciação da mesma situação perspectivada como responsabilidade delitual.

No mesmo sentido José Lebre de Feitas, CPC anotado, 2.º vol. Coimbra Editora, 2001, anotação ao então artigo 498.º do CPC, refere a págs. 325:
A qualificação jurídica dada aos factos na primeira acção nunca é elementos identificador do caso julgado, estando vedada nova acção em que aos mesmos factos se atribua uma nova qualificação (trata-se de um corolário de a causa de pedir ser sempre um facto concreto, e não o facto abstractamente descrito na lei).

Por sua vez, Alberto dos Reis, CPC anotado, Coimbra Editora, 4.ª reimpressão, 1985, vol. III, em anotação ao então artigo 502.º, refere na pág. 127:
«Temos várias vezes acentuado que a causa de pedir nada tem que ver com a qualificação jurídica do facto ou factos submetidos à apreciação do tribunal; a causa de pedir está no facto oferecido pela parte, a não na valoração jurídica que ela entenda atribuir-lhe.
Essa valoração é simples apreciação ou ponto de vista mental; se a parte ou o tribunal modificar a qualificação ou valoração, nem por isso se dirá que houve mudança da causa de pedir.
Isto equivale a dizer com Chiovenda: a causa pretendi não é a norma abstracta de lei invocada pela parte, mas o facto que se alega com expressão da vontade concreta da regra legal; de sorte que a simples mudança de ponto de vista jurídico, isto é, a invocação de norma legal diversa, não significa diversidade de causa de pedir. Essa mudança é lícita à parte e ao juiz; quando muda somente o ponto de vista jurídico, não se evita a excepção de caso julgado (Chiovenda, Instituciones cit., tomo I.º, págs. 370 e 371).»

Com o mesmo entendimento escreve Artur Anselmo de Castro in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, pág. 394:
Efeitos do caso julgado
Preclusão de todos os meios de defesa: tanto os que não chegaram a ser deduzidos como os que poderiam ter sido deduzidos com base no direito do réu, v.g. ser ele o proprietário do prédio reivindicado, regra que se exprime pela máxima: - o caso julgado “cobre o deduzido e o deduzível”.
Idem de todas as possíveis razões do autor – impossibilidade de invocar outros factos instrumentais, ou outras razões de direito não produzidas nem consideradas oficiosamente no processo anterior (ANDRADE ibid, pág. 323 e 324).

Resumindo, podemos dizer que a causa de pedir corresponde ao facto material (simples ou complexo) a que o autor pretende ver atribuída uma regulação jurídica, não sendo alterada a causa de pedir, caso seja apresentada uma nova ou diversa qualificação jurídica sobre a mesma situação de facto anteriormente julgada com trânsito em julgado. A fundamentação jurídica, tem antes a ver com o pedido, pois em ambas as ações pretende-se obter o mesmo efeito jurídico, que é a anulação do mesmo ato tributário – artigo 581.º, n.º 3 do CPC.
O enquadramento jurídico alegado pelo autor, oficiosamente apreciado (ou nem sequer cogitado), não pode voltar a ser reapreciado numa segunda ação, ainda que sejam apresentados novos argumentos de direito ou qualificação jurídica diversa dos mesmos factos, uma vez que o caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objeto apreciado [Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, 1997, pág. 576].

Esta conclusão vale também para as decisões dos Tribunais Arbitrais, pois que, conforme refere Rui Pinto, na sua obra, “Exceção e autoridade de caso julgado. Algumas notas provisórias”, publicado na Julgar Online, novembro de 2018, a págs. 46: http://julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/
2. Exceção e autoridade de caso julgado na arbitragem.
O que apurámos até agora vigora, sem diferenças, em sede de arbitragem. A circunstância de a arbitragem apresentar uma legitimação e um procedimento específicos em nada tange tanto a eficácia negativa e positiva do caso julgado. Em termos simples: como foi expressamente reconhecido pelo Ac. do TC 506/96/Proc. 137/93 (FERNANDA PALMA) o recurso à arbitragem consubstancia o exercício do direito de ação em tribunais constitucionalmente reconhecidos (cf. artigos 202.º, n.º 4, e 209.º, n.º 2, da Constituição), pelo que a eficácia das respetivas decisões rege-se pelos mesmos princípios e regras de exceção de caso julgado e de autoridade de caso julgado decorrentes dos princípios da segurança jurídica, instrumentalidade ao direito material e proibição de decisões contraditórias.

Em face do exposto, verifica-se que em ambos os processos, não está em questão, uma diferente causa de pedir, uma vez que a causa de pedir reporta-se sempre aos factos alegados e nunca ao seu enquadramento jurídico.
Assim, conclui-se estarmos diante de uma situação de caso julgado, pelo que esta segunda ação não é admissível.
*
Entende, ainda, a Recorrente que a interpretação que o Tribunal recorrido faz do n.º 4 do artigo 581.º do Código de Processo Civil, é inconstitucional por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição, uma vez que não se pode considerar haver repetição da causa, pelo que tem o direito a ver a sua nova questão a ser apreciada pelo Tribunal.

Acerca da tutela judicial efetiva, já se pronunciou o Tribunal Constitucional diversas vezes, no sentido de que esta garantia é assegurada pela colocação à disposição dos interessados de todos os meios necessários para acederem aos tribunais, assim como o não estabelecimento de obstáculos, criação de exigências desproporcionadas ou de formalidades descabidas, que impeçam o acesso ao direito.

Este entendimento tem sido sufragado pelo Tribunal Constitucional, conforme se pode ver por exemplo pelo Acórdão n.º 46/2014 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 29, de 11 de fevereiro de 2014 – processo n.º 564/13), do qual se destaca:
«A jurisprudência do Tribunal Constitucional encontra-se consolidada na consideração de que o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente:
(a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (cf. Acórdão n.º 440/94).».

Relativamente à tutela judicial efetiva citemos GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2003, 7.ª ed., escreve a págs. 491:
Em termos gerais – e como vem reiteradamente afirmado o Tribunal Constitucional na senda do ensinamento de Manuel de Andrade -, o direito de acesso aos tribunais reconduz-se fundamentalmente ao direito a uma solução jurídica de actos e relações jurídicas controvertidas, a que se deve chegar num prazo razoável e com garantias de imparcialidade e independência possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de causas e outras» (cfr. Ac. TC 86/88, DR, II, 22/8/88). Significa isto que o direito à tutela jurisdicional efectiva se concretiza fundamentalmente através de um processo jurisdicional equitativo – due process – cujas dimensões básicas serão estudadas no Capítulo dedicado à protecção dos direitos fundamentais (vide infra).
Mais refere o insigne autor que o direito de acesso aos tribunais como direito a uma proteção jurisdicional adequada, deve estar assegurada pela abertura da via judiciária de forma a assegurar a eficácia da proteção pretendida. Ou seja, não devem ser colocados entraves desmesurados ou desproporcionados ao acesso aos tribunais, que acabem por impedir o acesso à via judiciária. Diz, ainda, que os interessados têm o direito a verem analisada a sua questão em termos de direito material ou do fundo da causa e a obter uma decisão fundada no direito, embora dependente da observância de certos requisitos ou pressupostos legalmente consagrados. Refere, igualmente, que a tutela judicial efetiva também se caracteriza pela execução das decisões dos tribunais (págs. 499/503).

Ora, a interpretação do n.º 4 do artigo 581.º do Código de Processo Civil, não pode nunca violar a tutela judicial efetiva, uma vez que a parte já teve a oportunidade de intentar uma primeira ação sobre o mesmo objeto processual, onde foram asseguradas todas as garantias constitucionais de acesso à justiça. A tutela judicial efetiva não significa perpetuar a litigância sobre uma mesma situação já apreciada por um Tribunal, com decisão transitada em julgado. Aliás, o trânsito em julgado também assegura a garantia constitucional do estado de direito e da segurança jurídica.

Face ao exposto, com a verificação do caso julgado não ocorre qualquer violação do regime da tutela judicial efetiva.
*
Por fim, alega a Recorrente que, ao contrário do decidido pelo Tribunal, não existe qualquer impedimento para a Administração Tributária apreciar o pedido de revisão do ato tributário, por inconstitucionalidade da alínea b) do n.º 8 do artigo 69.º do Código do IRC; quando muito de decidir a lide em desfavor do contribuinte, mas tendo de se pronunciar sobre o pedido.

Conforme é sabido, tem consagração Constitucional que as decisões dos tribunais impõem-se a todos os cidadãos, assim como à própria administração pública, conforme se pode ver pelo disposto no n.º 2 do artigo 205.º, da Constituição que estabelece: Artigo 205.º (Decisões dos tribunais)
2. As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.

Tendo em conta que o facto tributário relativo ao ano de 2011, em sede de IRC já havia sido apreciado por um tribunal, que julgou o ato tributário conforme a lei e a constituição, não podia a Administração Tributária voltar a apreciar a mesma situação, sob pena de violação do caso julgado.

Pretender ver apreciado a mesma situação, no caso o mesmo facto tributário, que teve decisão transitada em julgado, não é possível, mesmo com recurso ao regime de revisão do ato tributário, pois que a Administração Tributária estaria sempre a colocar em questão a segurança jurídica e a estabilidade que é devida.
Conforme tem referido a jurisprudência e a doutrina, a estabilidade do caso julgado visa assegurar a segurança jurídica e a paz social.
Veja-se, a título de exemplo o que escreveu Antunes Varela, no Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 1985. Coimbra Editora, na pág. 703, 704 e 705:
O caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada.
«230. Fundamentos da força do caso julgado.
Não são difíceis de descortinar as razões que justificam a força excepcional atribuída à decisão transitada em julgado. (…)
A situação seria, porém, insustentável se, mesmo depois de esgotada a possibilidade de interposição de recurso contra a decisão, a parte vencedora não pudesse contar definitivamente com os bens que a última decisão lhe reconhecer. Se assim fosse, os tribunais falharia clamorosamente na sua função de órgão de pacificação jurídica, de instrumentos de paz social.
O caso julgado, tornando a decisão em princípio imodificável, visa exactamente aos particulares o mínimo de certeza do Direito ou de segurança jurídica indispensável à vida de relação.
A finalidade do processo não se esgota, com efeito, na definição concreta do direito, de acordo com os padrões substanciais definidos nas normas jurídicas. Abrange também a segurança e a paz social, essenciais à vida de toda a sociedade civil.

Também para Manuel de Andrade, o caso julgado material: «Consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão.» Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 304.

Na mesma senda, mas com o respetivo enquadramento constitucional pode ver-se GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2003, 7.ª ed. reimpressão, que escreve a págs. 264:
3. Protecção da segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais
O principio da segurança jurídica não é apenas um elemento essencial do princípio do estado de direito relativamente a actos normativos. As ideias nucleares da segurança jurídica desenvolvem-se em torno de dois conceitos: (1) estabilidade ou eficácia ex post da segurança jurídica dado que as decisões dos poderes públicos uma vez adoptadas, na forma e procedimento legalmente exigidos, não devem ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável a alteração das mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes; (2) previsibilidade ou eficácia ex ante do princípio da segurança jurídica que, fundamentalmente, se reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos. Neste momento, interessa-nos sobretudo a segurança jurídica sob o ponto de vista da estabilidade dado que a eficácia ex ante foi abordada no número anterior.

A segurança jurídica no âmbito dos actos jurisdicionais aponta para o caso julgado. O instituto de caso julgado assenta na estabilidade definitiva das decisões judiciais, quer porque está excluída a possibilidade de recurso ou a reapreciação de questões já decididas e incidentes sobre a relação processual dentro do mesmo processo – caso julgado formal -, quer porque a relação material controvertida («questão de mérito» «questão de fundo») é decidida em termos definitivos e irretratáveis, impondo-se a todos os tribunais e a todas as autoridades – caso julgado material. (Cfr. Código de Processo Civil, arts. 497.º/1, 672.º e 673.º).

Embora o princípio da intangibilidade do caso julgado não esteja previsto expressis verbis, na Constituição, ele decorre de vários preceitos do texto constitucional (CRP, arts. 29.º/4, 282.º/3 e é considerado como subprincípio inerente ao princípio do Estado de direito na sua dimensão de princípio garantidos de certeza jurídica. As excepções ao caso julgado deverão ter, por isso, um fundamento material inequívoco (exs: «revisão de sentença», no caso de condenação injusta ou «erro judiciário»; aplicabilidade retroactiva do TC declarativa da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com força obrigatória geral).

Em face do exposto, conclui-se que não impendia sobre a Administração Tributária qualquer obrigação de apreciação de uma matéria que já tinha sido objeto de apreciação por um tribunal e da qual se havia firmado caso julgado.
**
Nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do Código de Processo Civil, elabora-se o seguinte sumário:

I - A causa de pedir corresponde ao facto material (simples ou complexo) a que o autor pretende ver atribuída uma regulação jurídica, não sendo alterada a causa de pedir, caso seja apresentada uma nova ou diversa qualificação jurídica sobre a mesma situação de facto anteriormente julgada com trânsito em julgado.

II – Apresentada uma segunda ação, em que apenas difere da primeira ação a argumentação jurídica, ocorre caso julgado, uma vez que o caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objeto apreciado na primeira ação.

III – A verificação de caso julgado não contende com o princípio da tutela jurisdicional efetiva, na medida em que a parte já teve total oportunidade de acesso aos tribunais na primeira ação.

IV - A Administração Tributária não tinha qualquer obrigação de apreciação de uma matéria que já tinha sido objeto de apreciação por um tribunal e da qual se havia firmado caso julgado.
*
*
Decisão

Termos em que, acordam em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
*
*
Custas a cargo da Recorrente.
*
*
Porto, 29 de abril de 2021.

Paulo Moura
Manuel Escudeiro dos Santos
Bárbara Tavares Teles