Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01480/20.3BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/13/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:DECLARAÇÕES DE PARTE; FORÇA PROBATÓRIA; ARTIGO 466º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; ACIDENTE DE VIAÇÃO; AUTOESTRADA;
OBJECTO NA VIA; FLAT CONE; ILICITUDE; PRESUNÇÃO; NEXO DE CAUSALIDADE.
Sumário:1. As declarações de parte, este caso do autor, permitidas pelo artigo 466º do Código de Processo Civil, devem ser apreciadas com cautela, pois são declarações interessadas e por isso não isentas. E designadamente deve ser rigoroso o juízo quanto à sua coerência e devem ser complementadas, em casos de dúvida, como outros meios de prova.

2. A existência de um objecto na via, uma autoestrada, sem que se tenha provado a sua origem, permite estabelecer a ilicitude na responsabilidade civil extracontratual pelos danos resultantes de um acidente de viação aí ocorrido, imputada à concessionária, face à presunção, não ilidida, que resulta da norma constante do artigo 12º nº 1 da Lei nº 24/2007, de 18.07.

3. Tratando-se, no entanto, de um flat cone, não se pode ter por verificado o pressuposto do nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente, dado tratar-se de um objecto adequado precisamente a evitar acidentes, a ser colocado na via, para sinalizar qualquer perigo ou para delimitar a circulação do trânsito, feito em matéria plástica e flexível, prevenindo precisamente a hipótese de um veículo nele embater, de forma a não causar qualquer estrago no veículo nessa hipótese.

4. Nesta hipótese, e existindo no local sinalização a impedir a circulação a mais de 40 Km/hora, qualquer condutor medianamente, ágil a circular à velocidade máxima permitida, poderia ter evitado o acidente, em abstracto, sendo certo que no caso concreto não se provou sequer qualquer ligação objectiva entre o acidente e a existência desse objecto na via, o que exclui, tanto em abstracto como em concreto, o referido nexo de causalidade entre o facto ilícito e o evento danoso.*
* Sumário elaborado pelo relator
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RD... veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 30.12.2022, pela qual foi julgada (totalmente) improcedente a acção que intentou contra a Infraestruturas de Portugal, S.A. para efetivação de responsabilidade civil extracontratual resultante de um acidente de viação que ocorreu em 21.12.2018 na A1 quando entrava ao volante do seu veículo no nó de ligação "Santo Ovídio-Mafamude", no sentido Norte, acção na qual pediu a condenação da Ré a pagar-lhe uma indemnização de 15.031€78, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento, pelos prejuízos que sofreu com o acidente.

Invocou para tanto em síntese que o Tribunal recorrido errou no julgamento da matéria de facto quer quanto a factos provados quer quanto a factos não provados e que deveria ter condenado a Ré em vez de, como decidido, a absolver, dado verificarem-se todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, incluindo o da ilicitude, dado como não verificado na decisão ora impugnada.

A Ré contra-alegou defendendo a decisão recorrida.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

I) Concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados:

I-A) o Tribunal “a quo” julgou como não provados os seguintes factos constantes dos pontos 1) a 4):

1. O veículo do autor embateu com a parte da frente e com o pneu da frente do lado direito no meco sinalizador/flat cone existente no interior da faixa de rodagem, a cerca de 90 centímetros da delimitação de berma, que ficou preso ao referido pneu da frente do lado direito.

2. No momento do embate, o veículo do autor seguia a velocidade inferior a 30km/h.

3. O autor tentou desviar o veículo do flat cone.

4. O valor da reparação do veículo é de 6481,78€.

I-B) Por sua vez, o Tribunal “a quo” julgou provados os seguintes factos sob alíneas F), I) e N):

F) O autor conduzia o veículo na autoestrada A1, quando empreendeu uma mudança de direcção no sentido da saída "Santo Ovídio-Mafamude" e, após entrar no nó de ligação "Santo Ovídio-Mafamude", no sentido norte-A1-Ramo de ligação para "Sul-Santo Ovídio", e, ao descrever uma curva, perdeu o controlo do veículo, o qual rodopiou sobre si mesmo, colidiu uma primeira vez nas guardas laterais do lado esquerdo da faixa de rodagem com a parte traseira, de seguida com o lado esquerdo nas guardas laterais do lado direito da via – cfr. documento 3 junto com a petição inicial e prova por declarações de parte;

I) Após o embate, encontrava-se na via onde o mesmo ocorreu um flat cone – cfr. documentos 2 e 3 juntos com a petição inicial.

N) Após o embate, encontrava-se na via um meco sinalizador/flat cone, na perpendicular, distando do local da primeira colisão nas guardas laterais esquerdas em 9,80 metros e, do local da segunda colisão nas guardas laterais direitas, em 13,20 metros – cfr. documento 3 junto com a petição inicial.

II) Concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida:

II-A) Em sede de motivação, entendeu o Tribunal “a quo” o seguinte “...As declarações de parte do Autor quanto à dinâmica do acidente e à velocidade a que o mesmo seguia revelaram-se absolutamente incredíveis, pelas contradições no discurso-primeiro afirmando que o flat cone ficou à frente do carro e perante questão colocada pela sua mandatária, que o mesmo se situava atrás do carro...”.

II-B) O autor, recorrente, juntou diversos registos fotográficos com a petição inicial, como documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, respetivamente com as referências SITAF n.º007449929, n.º007449940, n.º007449943, n.º007449944 e n.º007449945, dos quais, resulta que o automóvel 47-FC-22, após o sinistro se imobilizou no sentido contrário à circulação e que o flat cone em causa se encontrava próximo da viatura e à frente do para-choque frontal da mesma.

II-C) Acresce que, as declarações prestadas pelo autor, recorrente, corroboram a localização do flat cone após o acidente:

(entre os 51m45s e os 52m55s):
Meritíssima Juíza: -mas depois o flat cone ficou onde?

Autor: mais ou menos à frente do carro ou mais para trás...

Meritíssima Juíza: mas não ficou preso no carro?

Autor: não, ele estava todo sujo de andar a rebolar...

Meritíssima Juíza: consegue dizer-me o local exato onde ficou o flat cone?

Autor: na altura ficou mais ou menos à frente do carro se calhar um metro e tal...

II-D) Ainda em sede de motivação consta, “...primeiro afirmando que “contornou” o flat cone, dizendo mais tarde, que havia embatido contra o mesmo, tendo ainda referido que não sentiu o embate e que só ouvira um barulho...”

II-E) Ora, consta das declarações prestadas pelo autor no auto de participação de acidente de viação, junto sob documento n.º3 com a petição, o seguinte “segundo declarações verbais do condutor n.º1, o acidente ocorreu da forma que passo a transcrever na íntegra: “...Vinha na A1 para sair para Santo Ovídio, quando estou a fazer a curva da saída para a mesma, encontro no lado direito da via um meco sinalizador, tentei desviar mas o carro embateu no meco, perdi o controlo completo do carro que começou a rodopiar e só parou quando embateu nos rails.”

II-F) Acrescem as declarações do autor entre os 14m15s e os 15m00s:

-autor: ao contornar (o flat cone) o carro provavelmente bateu porque ouvi um barulho e quando dou por mim já estou de marcha atrás...

-Meritíssima Juíza: não se apercebeu do flat cone?
-Autor: eu só o contornei, virei um bocadinho à esquerda e à direita só para o contornar.
-Meritíssima Juíza: mas viu o flat cone?
-Autor: sim, sim, o flat cone apareceu à frente e eu tive de me desviar...

-Meritíssima Juíza: então desviou-se e depois conte-me lá a dinâmica do acidente; -Autor: ele deve ter engatado na parte da frente do carro do lado direito porque ouvi barulho, só dei fé e o carro já estava virado ao contrário e depois tentei endireitar o carro começou a rodopiar e bateu do lado esquerdo tem tipo um passeio a fazer a divisão da tal rotunda a traseira bateu aí e ele começou a rodopiar...

II-G) Ainda em sede de motivação continua o Tribunal “a quo” “...primeiro afirmando que não colocou triângulo após o embate porque o carro ficou fora da via e não havia a preocupação de sinalizar o carro e, após, questionado sobre o local exato onde o veículo se havia imobilizado após o embate, por referência a imagem do local que lhe foi exibida pelo Tribunal, através do site Google maps, acabou por reconhecer que o veículo ficou imobilizado na via, dentro das barras de proteção da mesma e que, quando saiu do veículo, ultrapassou tais barras ficando fora da via.

II-H) O autor não tinha necessidade de faltar à verdade, por resultar dos referidos registos fotográficos juntos com a petição inicial como documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, que o automóvel sinistrado ficou parcialmente no interior da via e no interior da berma.

II-I) Entendeu ainda o Tribunal “a quo” ser implausível de após o embate o autor ter ligado os quatro piscas, vestido o colete, tirado fotos ao carro e ligado à sua mediadora de seguro e, só após e mediante indicação desta, ter ligado para a polícia, tendo o carro ficado imobilizado na via.
II-J) Relativamente a esta matéria o recorrente prestou declarações entre os 27m50s e 29m00s:
Meritíssima Juíza: então o senhor estava a dizer que mal parou, ligou os quatro piscas Autor: vesti o colete e saí do separador...entretanto fiquei ali sem saber o que fazer, parou uma carrinha das infraestruturas, para aí a 30 metros de mim...

Meritíssima Juíza: mas ia a passar?

Autor: foi ao acaso, parou a tipo 20, 30 metros de mim;

Meritíssima Juíza: antes do senhor fazer qualquer chamada telefónica?

Autor: sim... penso que era das Infraestruturas de Portugal porque o senhor era funcionário...

II-K) Das declarações prestadas pelo autor, decorre que logo após o sinistro surgiu uma carrinha das Infraestruturas de Portugal, o que é corroborado pelo auto de participação de acidente elaborado pela Guarda Nacional Republicana em que consta o seguinte: “...Esteve presente o funcionário/mecânico das Infra-estruturas de Portugal (…). Informou que o flat cone ali existente, não é propriedade dos mesmos. Por tais factos, desconheço a origem e finalidade do flat cone. Não decorria, no momento, qualquer obra, intervenção ou manutenção de via.”

II-L) Acresce que, em sede de motivação entendeu o Tribunal “a quo” ser inverosímil que após o embate no flat cone o carro tenha rodopiado duas ou três vezes circulando o automóvel a uma velocidade entre 30 a 35 quilómetros por hora, sendo a dinâmica do acidente mais compatível com a circulação do veículo do autor em excesso de velocidade do que com a colisão com um flat cone que, pela sua característica de leveza não se mostra apto a provocar um acidente do género do descrito pelo autor.

II-M) Em consequência, o Tribunal “a quo” julgou como não provados os pontos 1,2 e 3 e entendeu que “...ainda que se tenha constatado a existência de um flat cone na via após o acidente, não ficou provado que o veículo do Autor tenho colidido contra o mesmo, muito menos que essa colisão tenha sido a causa do acidente. Mais entendeu o Tribunal “a quo” não ter ficado “...demonstrada qualquer ligação entre o flat cone e o acidente, pelo que não é possível concluir que o veículo do autor colidiu com o flat cone nem, consequentemente, imputar à Ré a ocorrência do acidente, o que afasta a invocada ilicitude...”.

II-N) Salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, os documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, respetivamente com as referências SITAF n.º007449929, n.º007449940, n.º007449943, n.º007449944 e n.º007449945, anexos à petição inicial demonstram a localização do flat cone após o sinistro e o mesmo não se encontrava na via, mas na berma, à frente do para-choques frontal e o flat cone encontrava-se rebatido, perto do automóvel, o que demonstra, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, que o flat cone teve ligação e foi causa do acidente, e este facto foi obrigatoriamente verificado no local por autoridade policial competente, em cumprimento do disposto no n.º2 do artigo 12º da Lei n.º24/2007 de 18 de Julho.

II-O) Acresce que, a posição do flat cone constante do auto de participação de acidente de viação, é a posição anterior ao sinistro e indicada pelo condutor à autoridades policiais, porque conforme decorre dos documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, juntos com a petição, após o sinistro, o flat cone encontrava-se à frente do para-choques do carro que ficou em sentido contrário à circulação e não distava do local da primeira colisão nas guardas laterais esquerdas em 9,80 metros e do local da segunda colisão nas guardas laterais direitas em 13,20 metros.
II-P) Ademais, resultou provada a presença do flat cone no interior da via, uma zona de curva contra curva, e a inexistência de qualquer intervenção na via, portanto houve incumprimento do dever da Ré em manter a auto estrada em condições de segurança.

II-Q) Aliás, salvo o devido respeito por douto entendimento diverso, ainda que o Autor não tivesse embatido no flat cone e apenas se tivesse desviado dele, efetuando uma manobra perigosa, o obstáculo teria causado o acidente e a Ré incorria igualmente numa conduta ilícita.

II-R) No que concerne à reparação dos danos, o documento respeitante ao orçamento da reparação da viatura junto sob documento n.º27, com a referência SITAF n.º007449946, encontra-se carimbado pela oficina “Auto (...)” de PA..., com sede na rua (…) e consiste num orçamento elaborado pela oficina, para onde foi rebocado o veículo automóvel após o sinistro, pelo que deve ser julgado provado o ponto 4) da matéria de facto não provada.

III) A decisão que no entender do recorrente, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas:

deve ser julgado como não provado o ponto F) da matéria de facto provada, na parte “...e, ao descrever uma curva, perdeu o controlo do veículo, o qual rodopiou sobre si mesmo, colidiu uma primeira vez nas guardas laterais do lado esquerdo da faixa de rodagem com a parte traseira, de seguida com o lado esquerdo nas guardas laterais do lado direito da via...”, devido aos seguintes concretos meios probatórios: as declarações do autor entre os 14m15s e os 15m00s:

-autor: ao contornar (o flat cone) o carro provavelmente bateu porque ouvi um barulho e quando dou por mim já estou de marcha atrás...

-Meritíssima Juíza: não se apercebeu do flat cone?

-Autor: eu só o contornei, virei um bocadinho à esquerda e à direita só para o contornar.

-Meritíssima Juíza: mas viu o flat cone?

-Autor: sim, sim, o flat cone apareceu à frente e eu tive de me desviar...

-Meritíssima Juíza: então desviou-se e depois conte-me lá a dinâmica do acidente; -Autor: ele deve ter engatado na parte da frente do carro do lado direito porque ouvi barulho, só dei fé e o carro já estava virado ao contrário e depois tentei endireitar o carro começou a rodopiar e bateu do lado esquerdo tem tipo um passeio a fazer a divisão da tal rotunda a traseira bateu aí e ele começou a rodopiar...

III-A) A que acrescem os documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, respetivamente com as referências SITAF n.º007449929, n.º007449940, n.º007449943, n.º007449944 e n.º007449945, anexos à petição inicial, que demonstram a localização final do flat cone após o acidente.

III-B) Bem como as declarações prestadas pelo autor no auto de participação de acidente de viação quando declarou às autoridades policiais “segundo declarações verbais do condutor n.º1, o acidente ocorreu da forma que passo a transcrever na íntegra: “...Vinha na A1 para sair para Santo Ovídio, quando estou a fazer a curva da saída para a mesma, encontro no lado direito da via um meco sinalizador, tentei desviar mas o carro embateu no meco, perdi o controlo completo do carro que começou a rodopiar e só parou quando embateu nos rails.”

III-C) Devem ser julgados não provados os pontos I) e N), por se encontrarem em contradição com documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, respetivamente com as referências SITAF n.º007449929, n.º007449940, n.º007449943, n.º007449944 e n.º007449945, anexos à petição inicial, que consistem em registos fotográficos após o embate em que se verifica a posição final do flat cone em causa, na berma, pertíssimo do para-choques frontal do automóvel, que se imobilizou no sentido contrário ao fluxo da via.

III-D) Portanto, o flat cone, após o embate ficou fora da via sendo visível a posição do flat cone bem como parte do automóvel das autoridades policiais em particular no documento n.º20, referência SITAF n.º007449940 e o documento n.º9, referência SITAF n.º007449929 e o Tribunal “a quo” não se pronunciou nem valorou tais documentos.

III-E) Assim sendo, encontrando-se o flat cone muito próximo do automóvel, não distava do local da primeira colisão nas guardas laterais esquerdas em 9,80 metros e do local da segunda colisão nas guardas laterais direitas em 13,20 metros como se constata pelos registos fotográficos juntos aos autos como documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, respetivamente com as referências SITAF n.º007449929, n.º007449940, n.º007449943, n.º007449944 e n.º007449945, anexos à petição inicial.

III- F)Acresce que, as declarações prestadas pelo autor, recorrente, corroboram a localização do flat cone após o acidente:
(entre os 51m45s e os 52m55s):

Meritíssima Juíza: -mas depois o flat cone ficou onde?

Autor: mais ou menos à frente do carro ou mais para trás...

Meritíssima Juíza: mas não ficou preso no carro?

Autor: não, ele estava todo sujo de andar a rebolar...

Meritíssima Juíza: consegue dizer-me o local exato onde ficou o flat cone?

Autor: na altura ficou mais ou menos à frente do carro se calhar um metro e tal...

III-G) Acresce que, deve ser julgado provada a matéria constante do ponto 4) da matéria de facto não provada, no sentido que o valor da reparação do veículo é de 6.481,78€, por resultar do documento respeitante ao orçamento da reparação da viatura junto sob documento n.º27, com a referência SITAF 007449946, que se encontra carimbado e assinado pelo representante da oficina “Auto (...)” de PA..., com sede na rua (….) e consiste num orçamento elaborado pela oficina para onde foi rebocado o veículo automóvel após o sinistro.

IV) Recurso sobre a matéria de Direito:

IV-A) A decisão proferida pelo Tribunal “a quo” defende que recai sobre o lesado a alegação e prova de uma conduta ilícita por banda da concessionária, o que salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, subverte o objetivo e viola o disposto no art.º 12º, nº 1, alínea b), da Lei nº 24/2007, parece que, ainda assim, continua a incumbir ao lesado isto é, ao utente da via vítima do acidente, a alegação e prova do facto ilícito.

IV-B) Para o recorrente, utente da via, a prova da origem desse facto é de extrema dificuldade, o recorrente obteve registos fotográficos e pediu a comparência das autoridades policiais.

IV- C) Obrigar o recorrente a alegar e provar o facto ilícito, corresponde a colocar sobre ele a prova do não cumprimento pela concessionária da obrigação de velar pela segurança da auto-estrada, pervertendo o espírito do art.º12, nº 1, da Lei nº 24/2007.

IV-D) No caso em análise, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, a Ré não demonstrou o concreto evento que foi causal do acidente e dos danos, e ainda que esse evento, pela sua natureza ou outro motivo, designadamente por se tratar de caso fortuito, de força maior, de terceiro, ou de fonte externa que ela não pôde controlar ou evitar em tempo oportuno, isto é, a tempo do dano se consumar, não implicou qualquer inobservância das regras de segurança.

IV- E) Na verdade, resulta da matéria de facto provado sob ponto E), que o local do sinistro é uma zona de curva contra curva, o flat cone encontrava-se à frente do para-choques do carro, rebatido, com óleo e sujo, com a aparência de ter sido pisado, conforme, entre outros, registos fotográficos juntos sob documentos n.º20, referência SITAF n.º007449940 e documento n.º9, referência SITAF n.º007449929.

IV- F) Acresce que, das declarações prestadas pelo funcionário da Ré (condutor da carrinha que se imobilizou nos momentos seguintes ao sinistro) às autoridades policiais resulta o comprometimento da Ré, porque a preocupação de tal funcionário foi informar que o flat cone ali existente, não é propriedade dos mesmos (Infra estruturas de Portugal) e declarou desconhecer a origem e finalidade do flat cone, cfr. auto de participação de acidente elaborado pelas autoridades policiais.

IV-G) Incumbia à Ré demonstrar que adotou todas as medidas que se impunham no caso concreto e que o acidente não procedeu de culpa sua, pois agiu com a diligência devida, adotando os cuidados normais para evitar a ocorrência do dano.

IV-H) Competia-lhe esta prova, para que pudesse ilidir a presunção de incumprimento do dever de assegurar a circulação em condições de segurança (presunção de ilicitude), quer de culpa na violação desse dever.

IV-I) Assim não haveria responsabilidade, se a Ré conseguisse demonstrar que o dano ocorreria do mesmo modo ainda que tivesse adotado as medidas que se impunham no caso concreto para evitar o dano, por virtude de um facto fortuito ou de força maior.

IV-J) A Ré podia desresponsabilizar-se com a alegação de que os danos se teriam verificado devido a uma outra causa, no caso em análise a uma eventual velocidade excessiva que não resultou provada e não consta dos factos provados.

IV-K) Assim, o artigo 12, n.º1, alínea a) devia ser interpretado pelo Tribunal “a quo” com o devido respeito por douto entendimento diverso, no sentido que a Ré não logrou afastar a presunção, não demonstrou que a existência e interferência do flat cone na faixa de rodagem, com colisão no veículo, não lhe é imputável sendo atribuível a outrem ou a caso de força maior, na verdade, a Ré não estabeleceu qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento”.

IV- L) Nem a Ré provou a proveniência do objecto existente na via, uma vez que só ela dispõe dos meios técnicos que possibilitam responder a tal situação, através de adequada monitorização, “por ser a concessionária da via, com as inerentes obrigações, designadamente, as de permanentemente garantir uma via desobstruída e em adequadas condições, de molde a permitir a circulação rápida (dada a natureza da via) dos veículos em total segurança e comodidade, a qualquer hora do dia e/ou da noite”
IV-M) Não pode ficar a cargo do utilizador da autoestrada sinistrado a prova da origem do flat cone e a prova da colisão/embate no flat cone, pois que se assim fosse, subverter-se-ia a presunção legal de culpa da Ré, concessionária estabelecida no artigo 12, n.º1, alínea a) da Lei n.º24/2007 de 18 de Julho.
*

II –Matéria de facto.

Esta é a fundamentação apresentada pela decisão recorrida quanto ao julgamento da matéria de facto:

“(…)

A decisão da matéria de facto assentou no acordo das partes, na análise nos documentos constantes dos autos, conforme referido a propósito de cada concreto ponto do probatório, e na prova testemunhal e por declarações de parte, quanto aos factos D. a H. e R. a T., nos termos que se seguem.

As declarações de parte do autor quanto à dinâmica do acidente e à velocidade a que o mesmo seguia revelaram-se absolutamente incredíveis, pelas contradições no discurso – primeiro afirmando que, após o embate, o flat cone ficou à frente do carro, e, perante questão colocada pela sua mandatária, que o mesmo se situava atrás do carro; primeiro afirmando que “contornou” o flat cone, dizendo, mais tarde, que havia embatido contra o mesmo, tendo ainda referido que não sentira o embate e que só ouvira um barulho; primeiro afirmando que não colocou triângulo após o embate porque o carro ficou fora da via e não havia a preocupação de sinalizar o carro e, após, questionado sobre o local exacto onde o veículo se havia imobilizado após o embate, por referência a imagem do local que lhe foi exibida pelo Tribunal, através do site do googlemaps, acabou por reconhecer que o veículo ficou imobilizado na via, dentro das barras de protecção da mesma, e que, quando saiu do veículo, ultrapassou tais barras, ficando fora da via; pela inverosimilhança da sua afirmação no sentido em que o carro, após o embate no flatcone, tenha rodopiado duas ou três vezes circulando o autor a uma velocidade de 30/35 km/hora; por se afigurar improvável que o carro tenha sido totalmente reparado sem que o valor da reparação tenha sido pago e sem que o autor saiba sequer qual o valor da reparação, conforme afirmou, ainda que o mecânica que tenha procedido à reparação seja amigo da família, ainda mais tratando-se de um valor elevado, tendo como referência o valor peticionado nos presentes autos a esse título (€ 6.481,78); pela implausibilidade de – como afirmou o autor ter acontecido -, após o embate, ter ligado os quatro piscas, vestido o colete, tirado fotos ao carro e ligado à sua mediadora de seguro e, só após, e mediante indicação desta, ter ligado para a polícia, tendo o carro ficado imobilizado na via. Sem embargo, admitiu o mesmo que perdeu o controlo do veículo, circunstância que se mostra compatível com o duplo embate do veículo com as barreiras laterais esquerda e direita da via. Mais se consideraram as suas declarações quanto ao estado do piso e à existência de um flat cone na via após o acidente por tal factualidade se mostrar corroborada por documentação constante dos autos.

Também o depoimento da testemunha AC... não se mostrou minimamente credível porque foi pleno de confusões e incertezas, afirmando não saber se seguia atrás do veículo do autor ou noutra via paralela, tendo referido ter visto 2 ou 3 mecos no local do acidente quando só foi encontrado um, como resulta da participação de acidente de viação. Mais revelou alguma animosidade contra a ré, referindo que, frequentemente, a ré se eximia de responsabilidades idênticas às que lhe são assacadas nos presentes autos. Por tais razões, o seu depoimento não foi considerado para a formação da convicção do Tribunal.

A testemunha JS..., não obstante ser pai do autor, prestou declarações coerentes e isentas de contradições, pelo que foram consideradas para prova dos factos R., S. e T..
A testemunha VV...., cabo da GNR que elaborou o auto de participação do acidente, declarou não se recordar do acidente em causa, apenas sabendo o que consta do auto que consultara antes da audiência, pelo que o seu depoimento nada acrescentou à factualidade resultante do teor de tal documento.

As testemunhas AA…. e RG… prestaram depoimentos sérios e honestos, revelando conhecer bem o local do acidente, que descreveram com pormenor, mais explicando o modus operandi da fiscalização das estradas por parte de carrinhas UMIR, tendo ainda o primeiro instruído o processo de reclamação do autor contra a ré. Os seus depoimentos contribuíram para a prova dos factos D., E., G. e H.

Os factos não provados 1., 2. e 3. resultaram da falta de credibilidade das declarações do autor, assente nas razões acima enunciadas, não tendo o Tribunal sequer concluído pela interferência de qualquer flat cone no acidente em apreço, e sendo a dinâmica do acidente – com dois embates do veículo em ambas as laterais da via – mais compatível com a circulação do veículo do autor em excesso de velocidade do que com a colisão com um flat cone que, pela sua característica de leveza não se mostra apto a provocar um acidente do género do descrito pelo autor.

Quanto ao facto não provado 4., o valor da reparação alegado pelo autor apenas aparece num documento que o mesmo junto com a p.i., com a inexplicada referência “insp. Periód. Obrigatória”, sem que se mostre o mesmo corroborado por qualquer outro documento ou depoimento, sendo aquele manifestamente insuficiente para se concluir no sentido em que a reparação do veículo quanto aos danos ocorridos no acidente em causa se cifra em tal montante.

Relativamente aos factos não provados 5. a 8., o autor não demonstrou a sua situação económica nem carreou para os autos qualquer elemento comprovativo do seu local e do seu horário de trabalho à data do acidente.

Finalmente, quanto aos factos não provados 9. e 10., não obstante se ter demonstrado que o autor ficou privado do uso do veículo sinistrado desde a data do acidente até finais de 2020, não logrou o autor demonstrar, com a prova produzida, quaisquer transtornos associados a tal privação.”

O Recorrente fundamenta a sua discordância em relação a este julgamento da seguinte forma:

“(…)
I) Concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados:

I-A) o Tribunal “a quo” julgou como não provados os seguintes factos constantes dos pontos 1) a 4):

1. O veículo do autor embateu com a parte da frente e com o pneu da frente do lado direito no meco sinalizador/flat cone existente no interior da faixa de rodagem, a cerca de 90 centímetros da delimitação de berma, que ficou preso ao referido pneu da frente do lado direito.

2. No momento do embate, o veículo do autor seguia a velocidade inferior a 30km/h.

3. O autor tentou desviar o veículo do flat cone.

4. O valor da reparação do veículo é de 6481,78€.

I-B) Por sua vez, o Tribunal “a quo” julgou provados os seguintes factos sob alíneas F), I) e N):

F) O autor conduzia o veículo na autoestrada A1, quando empreendeu uma mudança de direcção no sentido da saída "Santo Ovídio-Mafamude" e, após entrar no nó de ligação "Santo Ovídio-Mafamude", no sentido norte-A1-Ramo de ligação para "Sul-Santo Ovídio", e, ao descrever uma curva, perdeu o controlo do veículo, o qual rodopiou sobre si mesmo, colidiu uma primeira vez nas guardas laterais do lado esquerdo da faixa de rodagem com a parte traseira, de seguida com o lado esquerdo nas guardas laterais do lado direito da via – cfr. documento 3 junto com a petição inicial e prova por declarações de parte;

I) Após o embate, encontrava-se na via onde o mesmo ocorreu um flat cone – cfr. documentos 2 e 3 juntos com a petição inicial.

N) Após o embate, encontrava-se na via um meco sinalizador/flat cone, na perpendicular, distando do local da primeira colisão nas guardas laterais esquerdas em 9,80 metros e, do local da segunda colisão nas guardas laterais direitas, em 13,20 metros – cfr. documento 3 junto com a petição inicial.

II) Concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida:

II-A) Em sede de motivação, entendeu o Tribunal “a quo” o seguinte “...As declarações de parte do Autor quanto à dinâmica do acidente e à velocidade a que o mesmo seguia revelaram-se absolutamente incredíveis, pelas contradições no discurso-primeiro afirmando que o flat cone ficou à frente do carro e perante questão colocada pela sua mandatária, que o mesmo se situava atrás do carro...”.

II-B) O autor, recorrente, juntou diversos registos fotográficos com a petição inicial, como documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, respetivamente com as referências SITAF n.º007449929, n.º007449940, n.º007449943, n.º007449944 e n.º007449945, dos quais, resulta que o automóvel 47-FC-22, após o sinistro se imobilizou no sentido contrário à circulação e que o flat cone em causa se encontrava próximo da viatura e à frente do para-choque frontal da mesma.

II-C) Acresce que, as declarações prestadas pelo autor, recorrente, corroboram a localização do flat cone após o acidente:

(entre os 51m45s e os 52m55s):

Meritíssima Juíza: -mas depois o flat cone ficou onde?

Autor: mais ou menos à frente do carro ou mais para trás...

Meritíssima Juíza: mas não ficou preso no carro?

Autor: não, ele estava todo sujo de andar a rebolar...

Meritíssima Juíza: consegue dizer-me o local exato onde ficou o flat cone?

Autor: na altura ficou mais ou menos à frente do carro se calhar um metro e tal...

II-D) Ainda em sede de motivação consta, “...primeiro afirmando que “contornou” o flat cone, dizendo mais tarde, que havia embatido contra o mesmo, tendo ainda referido que não sentiu o embate e que só ouvira um barulho...”

II-E) Ora, consta das declarações prestadas pelo autor no auto de participação de acidente de viação, junto sob documento n.º3 com a petição, o seguinte “segundo declarações verbais do condutor n.º1, o acidente ocorreu da forma que passo a transcrever na íntegra: “...Vinha na A1 para sair para Santo Ovídio, quando estou a fazer a curva da saída para a mesma, encontro no lado direito da via um meco sinalizador, tentei desviar mas o carro embateu no meco, perdi o controlo completo do carro que começou a rodopiar e só parou quando embateu nos rails.”

II-F) Acrescem as declarações do autor entre os 14m15s e os 15m00s:

-autor: ao contornar (o flat cone) o carro provavelmente bateu porque ouvi um barulho e quando dou por mim já estou de marcha atrás...

-Meritíssima Juíza: não se apercebeu do flat cone?
-Autor: eu só o contornei, virei um bocadinho à esquerda e à direita só para o contornar.
-Meritíssima Juíza: mas viu o flat cone?
-Autor: sim, sim, o flat cone apareceu à frente e eu tive de me desviar...

-Meritíssima Juíza: então desviou-se e depois conte-me lá a dinâmica do acidente; -Autor: ele deve ter engatado na parte da frente do carro do lado direito porque ouvi barulho, só dei fé e o carro já estava virado ao contrário e depois tentei endireitar o carro começou a rodopiar e bateu do lado esquerdo tem tipo um passeio a fazer a divisão da tal rotunda a traseira bateu aí e ele começou a rodopiar...

II-G) Ainda em sede de motivação continua o Tribunal “a quo” “...primeiro afirmando que não colocou triângulo após o embate porque o carro ficou fora da via e não havia a preocupação de sinalizar o carro e, após, questionado sobre o local exato onde o veículo se havia imobilizado após o embate, por referência a imagem do local que lhe foi exibida pelo Tribunal, através do site Google maps, acabou por reconhecer que o veículo ficou imobilizado na via, dentro das barras de proteção da mesma e que, quando saiu do veículo, ultrapassou tais barras ficando fora da via.

II-H) O autor não tinha necessidade de faltar à verdade, por resultar dos referidos registos fotográficos juntos com a petição inicial como documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, que o automóvel sinistrado ficou parcialmente no interior da via e no interior da berma.

II-I) Entendeu ainda o Tribunal “a quo” ser implausível de após o embate o autor ter ligado os quatro piscas, vestido o colete, tirado fotos ao carro e ligado à sua mediadora de seguro e, só após e mediante indicação desta, ter ligado para a polícia, tendo o carro ficado imobilizado na via.
II-J) Relativamente a esta matéria o recorrente prestou declarações entre os 27m50s e 29m00s:
Meritíssima Juíza: então o senhor estava a dizer que mal parou, ligou os quatro piscas Autor: vesti o colete e saí do separador...entretanto fiquei ali sem saber o que fazer, parou uma carrinha das infraestruturas, para aí a 30 metros de mim...

Meritíssima Juíza: mas ia a passar?

Autor: foi ao acaso, parou a tipo 20, 30 metros de mim;

Meritíssima Juíza: antes do senhor fazer qualquer chamada telefónica?

Autor: sim... penso que era das Infraestruturas de Portugal porque o senhor era funcionário...

II-K) Das declarações prestadas pelo autor, decorre que logo após o sinistro surgiu uma carrinha das Infraestruturas de Portugal, o que é corroborado pelo auto de participação de acidente elaborado pela Guarda Nacional Republicana em que consta o seguinte: “...Esteve presente o funcionário/mecânico das Infra-estruturas de Portugal (…). Informou que o flat cone ali existente, não é propriedade dos mesmos. Por tais factos, desconheço a origem e finalidade do flat cone. Não decorria, no momento, qualquer obra, intervenção ou manutenção de via.”

II-L) Acresce que, em sede de motivação entendeu o Tribunal “a quo” ser inverosímil que após o embate no flat cone o carro tenha rodopiado duas ou três vezes circulando o automóvel a uma velocidade entre 30 a 35 quilómetros por hora, sendo a dinâmica do acidente mais compatível com a circulação do veículo do autor em excesso de velocidade do que com a colisão com um flat cone que, pela sua característica de leveza não se mostra apto a provocar um acidente do género do descrito pelo autor.

II-M) Em consequência, o Tribunal “a quo” julgou como não provados os pontos 1,2 e 3 e entendeu que “...ainda que se tenha constatado a existência de um flat cone na via após o acidente, não ficou provado que o veículo do Autor tenho colidido contra o mesmo, muito menos que essa colisão tenha sido a causa do acidente. Mais entendeu o Tribunal “a quo” não ter ficado “...demonstrada qualquer ligação entre o flat cone e o acidente, pelo que não é possível concluir que o veículo do autor colidiu com o flat cone nem, consequentemente, imputar à Ré a ocorrência do acidente, o que afasta a invocada ilicitude...”.

II-N) Salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, os documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, respetivamente com as referências SITAF n.º007449929, n.º007449940, n.º007449943, n.º007449944 e n.º007449945, anexos à petição inicial demonstram a localização do flat cone após o sinistro e o mesmo não se encontrava na via, mas na berma, à frente do para-choques frontal e o flat cone encontrava-se rebatido, perto do automóvel, o que demonstra, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, que o flat cone teve ligação e foi causa do acidente, e este facto foi obrigatoriamente verificado no local por autoridade policial competente, em cumprimento do disposto no n.º2 do artigo 12º da Lei n.º24/2007 de 18 de Julho.

II-O) Acresce que, a posição do flat cone constante do auto de participação de acidente de viação, é a posição anterior ao sinistro e indicada pelo condutor à autoridades policiais, porque conforme decorre dos documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, juntos com a petição, após o sinistro, o flat cone encontrava-se à frente do para-choques do carro que ficou em sentido contrário à circulação e não distava do local da primeira colisão nas guardas laterais esquerdas em 9,80 metros e do local da segunda colisão nas guardas laterais direitas em 13,20 metros.
II-P) Ademais, resultou provada a presença do flat cone no interior da via, uma zona de curva contra curva, e a inexistência de qualquer intervenção na via, portanto houve incumprimento do dever da Ré em manter a auto estrada em condições de segurança.

II-Q) Aliás, salvo o devido respeito por douto entendimento diverso, ainda que o Autor não tivesse embatido no flat cone e apenas se tivesse desviado dele, efetuando uma manobra perigosa, o obstáculo teria causado o acidente e a Ré incorria igualmente numa conduta ilícita.

II-R) No que concerne à reparação dos danos, o documento respeitante ao orçamento da reparação da viatura junto sob documento n.º27, com a referência SITAF n.º007449946, encontra-se carimbado pela oficina “Auto (...)” de PA..., com sede na rua (….) e consiste num orçamento elaborado pela oficina, para onde foi rebocado o veículo automóvel após o sinistro, pelo que deve ser julgado provado o ponto 4) da matéria de facto não provada.

III) A decisão que no entender do recorrente, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas:

deve ser julgado como não provado o ponto F) da matéria de facto provada, na parte “...e, ao descrever uma curva, perdeu o controlo do veículo, o qual rodopiou sobre si mesmo, colidiu uma primeira vez nas guardas laterais do lado esquerdo da faixa de rodagem com a parte traseira, de seguida com o lado esquerdo nas guardas laterais do lado direito da via...”, devido aos seguintes concretos meios probatórios: as declarações do autor entre os 14m15s e os 15m00s:

-autor: ao contornar (o flat cone) o carro provavelmente bateu porque ouvi um barulho e quando dou por mim já estou de marcha atrás...

-Meritíssima Juíza: não se apercebeu do flat cone?

-Autor: eu só o contornei, virei um bocadinho à esquerda e à direita só para o contornar.

-Meritíssima Juíza: mas viu o flat cone?

-Autor: sim, sim, o flat cone apareceu à frente e eu tive de me desviar...

-Meritíssima Juíza: então desviou-se e depois conte-me lá a dinâmica do acidente; -Autor: ele deve ter engatado na parte da frente do carro do lado direito porque ouvi barulho, só dei fé e o carro já estava virado ao contrário e depois tentei endireitar o carro começou a rodopiar e bateu do lado esquerdo tem tipo um passeio a fazer a divisão da tal rotunda a traseira bateu aí e ele começou a rodopiar...

III-A) A que acrescem os documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, respetivamente com as referências SITAF n.º007449929, n.º007449940, n.º007449943, n.º007449944 e n.º007449945, anexos à petição inicial, que demonstram a localização final do flat cone após o acidente.

III-B) Bem como as declarações prestadas pelo autor no auto de participação de acidente de viação quando declarou às autoridades policiais “segundo declarações verbais do condutor n.º1, o acidente ocorreu da forma que passo a transcrever na íntegra: “...Vinha na A1 para sair para Santo Ovídio, quando estou a fazer a curva da saída para a mesma, encontro no lado direito da via um meco sinalizador, tentei desviar mas o carro embateu no meco, perdi o controlo completo do carro que começou a rodopiar e só parou quando embateu nos rails.”

III-C) Devem ser julgados não provados os pontos I) e N), por se encontrarem em contradição com documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, respetivamente com as referências SITAF n.º007449929, n.º007449940, n.º007449943, n.º007449944 e n.º007449945, anexos à petição inicial, que consistem em registos fotográficos após o embate em que se verifica a posição final do flat cone em causa, na berma, pertíssimo do para-choques frontal do automóvel, que se imobilizou no sentido contrário ao fluxo da via.

III-D) Portanto, o flat cone, após o embate ficou fora da via sendo visível a posição do flat cone bem como parte do automóvel das autoridades policiais em particular no documento n.º20, referência SITAF n.º007449940 e o documento n.º9, referência SITAF n.º007449929 e o Tribunal “a quo” não se pronunciou nem valorou tais documentos.

III-E) Assim sendo, encontrando-se o flat cone muito próximo do automóvel, não distava do local da primeira colisão nas guardas laterais esquerdas em 9,80 metros e do local da segunda colisão nas guardas laterais direitas em 13,20 metros como se constata pelos registos fotográficos juntos aos autos como documentos n.º9, n.º20, n.º23, n.º24 e n.º25, respetivamente com as referências SITAF n.º007449929, n.º007449940, n.º007449943, n.º007449944 e n.º007449945, anexos à petição inicial.

III- F)Acresce que, as declarações prestadas pelo autor, recorrente, corroboram a localização do flat cone após o acidente:
(entre os 51m45s e os 52m55s):

Meritíssima Juíza: -mas depois o flat cone ficou onde?

Autor: mais ou menos à frente do carro ou mais para trás...

Meritíssima Juíza: mas não ficou preso no carro?

Autor: não, ele estava todo sujo de andar a rebolar...

Meritíssima Juíza: consegue dizer-me o local exato onde ficou o flat cone?

Autor: na altura ficou mais ou menos à frente do carro se calhar um metro e tal...

III-G) Acresce que, deve ser julgado provada a matéria constante do ponto 4) da matéria de facto não provada, no sentido que o valor da reparação do veículo é de 6.481,78€, por resultar do documento respeitante ao orçamento da reparação da viatura junto sob documento n.º27, com a referência SITAF 007449946, que se encontra carimbado e assinado pelo representante da oficina “Auto (...)” de PA..., com sede na rua (….) e consiste num orçamento elaborado pela oficina para onde foi rebocado o veículo automóvel após o sinistro.

(…)”

Vejamos.

Determina o artigo 662º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 140º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Na interpretação do equivalente preceito do Código de Processo Civil anterior (o artigo 712º), foi pacífico o entendimento segundo o qual em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida (neste sentido os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 19.10.2005, processo n.º 394/05, de 19.11.2008, processo n.º 601/07, de 02.06.2010, processo n.º 0161/10 e de 21.09.2010, processo n.º 01010/09; e acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 06.05.2010, processo n.º 00205/07.3 PNF, e de 14.09.2012, processo n.º 00849/05.8 VIS).

Isto porque o Tribunal de recurso está privado da oralidade e da imediação que determinaram a decisão de primeira instância: a gravação da prova, por sua natureza, não fornece todos os elementos que foram directamente percepcionados por quem julgou em primeira instância e que ajuda na formação da convicção sobre a credibilidade do testemunho.

Como defende Antunes Varela, no Manual de Processo Civil, 2ª edição, página 657:

“Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar”.

Poderia conjecturar-se que, pela fotografia junta como documento n.º 2 da petição inicial que o veículo do autor embateu no flat cone que se encontrava na via naquele momento, face ao estado que apresenta.

Mas não se pode dizer que houve erro evidente na conclusão de que não ficou provado o embate o veículo neste objecto.

Face à motivação apresentada na decisão recorrida para o julgamento da matéria de facto nenhum erro, ao menos evidente, se pode detectar nesta parte.

Em primeiro lugar porque as declarações do próprio Autor, permitidas pelo artigo 466º do Código de Processo Civil, devem ser apreciadas com cautela, pois são declarações interessadas e por isso não isentas. E designadamente deve ser rigoroso o juízo quanto à sua coerência e devem ser complementadas, em casos de dúvida, como outros meios de prova.

No caso, a contradição nas declarações do Autor é o próprio que a transcreve, quanto à posição do flat cone”:

A gravação da audiência de julgamento entre os 51m45s e os 52m55s:

“Meritíssima Juíza: -mas depois o flat cone ficou onde?

Autor: mais ou menos à frente do carro ou mais para trás...”

Por outro lado, os documentos que o Recorrente invoca em apoio da sua tese não a corroboram.

Não há nenhum sinal evidente do embate com o flat cone. E a circunstância de estar a acerca de um metro do local onde se imobilizou o veículo não torna forçosa a conclusão de que o veículo nele embateu. Podia estar ali por coincidência ou ali ter sido colocado após o acidente.

Não há, pelo menos erro evidente nessa conclusão.

O mesmo se diga quanto ao invocado facto de o Autor se ter tentado desviar do flat cone: nenhum elemento torna forçoso esse julgamento, em concreto, as declarações do próprio Autor, só por si. A convicção do Tribunal recorrido formou-se nesse sentido e não vemos razão evidente para alterar esse julgamento. Pelo contrário, mostra-se exaustiva, clara e coerente a fundamentação desta convicção.

Do auto lavrado pela G.N.R. (documento 3, 2ª parte, junto com a petição inicial, referência 681257 do SITAF), para além das declarações do próprio Autor, que não podem, por si mesmas, afastar o juízo feito pelo Tribunal a quo, como acima se expôs, a análise feita pelo próprio militar que lavrou o auto, não permite qualquer juízo diferente.

“CAUSAS PROVÁVEIS: Não identificada”.

Quanto à velocidade a que seguia o Autor, inferior a 30Km/hora, segundo o próprio, menos ainda se mostra evidente tal facto, dos elementos de prova produzidos.

Pelo contrário, como se fundamenta na decisão recorrida, os danos verificados no veículo e sobretudo nas estruturas de cimento em que embateu, de ambos os lados da via, para além da circunstância de o veículo ter embatido com a parte da frente, o lado esquerdo e a parte detrás, mostram que foi um embate forte, incompatível, de acordo com as regras de experiência comum, com uma velocidade inferior a 30Km/hora (facto provado sob a alínea F) e documentos juntos com a petição inicial sob os números 9, 19 20 e 23)

Quanto ao valor da reparação do veículo, 6.481€78 segundo o Autor, Recorrente, a decisão também se mostra clara. Nenhum erro, menos ainda evidente, se pode detectar:

“Quanto ao facto não provado 4., o valor da reparação alegado pelo autor apenas aparece num documento que o mesmo junto com a p.i., com a inexplicada referência “insp. Periód. Obrigatória”, sem que se mostre o mesmo corroborado por qualquer outro documento ou depoimento, sendo aquele manifestamente insuficiente para se concluir no sentido em que a reparação do veículo quanto aos danos ocorridos no acidente em causa se cifra em tal montante”.

Nada há que alterar, portanto, quanto ao julgamento da matéria de facto.

Deveremos assim dar como provados os seguintes factos, constantes da decisão recorrida, e apenas estes:

A. O autor é proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Mini, modelo Mini One D, com a matrícula XX-XX-XX - cfr. documento1 junto com a petição inicial.

B. À data do sinistro, o autor residia na rua da (….), onde continua a residir – cfr. documento 1 junto com a petição inicial e acordo.

C. A ré é concessionária da A1 – acordo.

D. Em 21.12.2018, por volta das 14h30m, o sinistro em causa ocorreu na via segregada do nó de Santo Ovídio, à saída da A1, próximo do quilómetro 296,80, da união de freguesias de Mafamude e Vilar do Paraíso, concelho de Vila Nova de Gaia, distrito do Porto, local que integra o objecto da concessão – cfr. documento 3 junto com a petição inicial e prova testemunhal.

E. O local em causa contorna uma rotunda, sendo zona de curva e contracurva, com velocidade limitada a 40km/hora – cfr. documento 3 junto com a petição inicial e prova testemunhal.

F. O autor conduzia o veículo na autoestrada A1, quando empreendeu uma mudança de direcção no sentido da saída "Santo Ovídio-Mafamude" e, após entrar no nó de ligação "Santo Ovídio-Mafamude", no sentido norte-A1-Ramo de ligação para "Sul-Santo Ovídio", e, ao descrever uma curva, perdeu o controlo do veículo, o qual rodopiou sobre si mesmo, colidiu uma primeira vez nas guardas laterais do lado esquerdo da faixa de rodagem com a parte traseira, de seguida com o lado esquerdo nas guardas laterais do lado direito da via – cfr. documento 3 junto com a petição inicial e prova por declarações de parte.


G. No momento do acidente não decorria qualquer intervenção de manutenção da via no local.

H. A última passagem no local pela patrulha ocorreu pelas 09:08horas – cfr. documento 1 junto com a contestação e prova testemunhal.

I. Após o embate, encontrava-se na via onde o mesmo ocorreu um flat cone – cfr. documentos 2 e 3 juntos com a petição inicial.

J. No momento do acidente, as condições climatéricas eram de chuva e o piso encontrava-se molhado – cfr. documento 3 junto com a petição inicial .

K. No local onde ocorreu o sinistro, o piso da via é betuminoso e encontrava-se em bom estado de conservação – cfr. documento 3 junto com a petição inicial.

L. O local do acidente configura uma curva e a via tem 3,90 metros de largura e é de sentido único, sem berma – cfr. documento 3 junto com a petição inicial.

M. Após as colisões, o veículo imobilizou-se ao contrário do sentido da via, ficando a frente do veículo na direção para norte A1 e a traseira do veículo para Sul Santo Ovídio – cfr. documento 3 junto com a petição inicial.

N. Após o embate, encontrava-se na via um meco sinalizador (flat cone), na perpendicular, distando do local da primeira colisão nas guardas laterais esquerdas em 9,80 metros e, do local da segunda colisão nas guardas laterais direitas, em 13,20 metros – cfr. documento 3 junto com a petição inicial.

O. Em consequência do embate, resultaram na via danos em duas guardas, um moto guarda e três new jersey's deslocados – cfr. documento 3 junto com a petição inicial.

P. Em consequência do embate, rebentou o pneu traseiro do lado esquerdo do veículo – cfr. documento 14 junto com a petição inicial.

Q. O embate em causa causou no veículo danos no para choques frontal, nos faróis frontais e dianteiros, nas jantes, nos pneus, no para choques traseiro, na parte lateral esquerda das portas – cfr. fotografias juntas com a petição inicial como documentos 5 e seguintes.

R. O autor esteve privado da utilização do seu automóvel desde a data do sinistro até finais de 2020.

S. Após o sinistro, e enquanto esteve privado da utilização do seu automóvel, o autor passou a deslocar-se de transportes públicos ou boleia.

T. O autor não tem outro veículo nem outra forma de deslocação.

Também se impõe manter a decisão recorrida quando aos factos não provados:

1. O veículo do autor embateu com a parte da frente e com o pneu da frente do lado direito no meco sinalizador/flat cone existente no interior da faixa de rodagem, a cerca de 90 centímetros da delimitação de berma, que ficou preso ao referido pneu da frente do lado direito.

2. No momento do embate, o veículo do autor seguia a velocidade inferior a 30km/h.

3. O autor tentou desviar o veículo do flat cone.

4. O valor da reparação do veículo é de 6481,78€.

5. O autor esteve privado da utilização do seu automóvel devido à impossibilidade de proceder à reparação por não poder despender a quantia devida pela reparação.

6. À data do acidente, o autor encontrava-se a trabalhar na APPACDM de Gaia- Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental, (…).

7. O autor trabalhava na APPACDM das 8h às 16.30 até ao fim do mês de Junho de 2020.

8. A distância entre a residência do autor e o seu local de trabalho era de aproximadamente 7 quilómetros e de automóvel demorava habitualmente quinze (15) minutos a percorrer tal distância, levantando-se por volta das 7h da manhã e às 7h30m deslocava-se para o seu local de trabalho.

9. Devido à privação do uso do veículo XX-XX-XX, autor deixou de conviver com os seus amigos e familiares, não pôde auxiliar os seus pais como fazia, deixou de poder deslocar-se a locais de entretenimento e para férias ou compras, como anteriormente.

10. A privação do uso do veículo causou ao autor desgostos, tristeza, vexames, vários incómodos, transtornos e canseiras, que ainda perduram na presente data.
*
III - Enquadramento jurídico.

O Recorrente vem defender, neste capítulo que, ao contrário do decidido se verifica o s pressuposto ilicitude.

Apreciemos.

A Lei nº 24/2007, de 18.07 veio definir “direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares e estabelece, nomeadamente, as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis, sem prejuízo de regimes mais favoráveis” (artigo 1º).

O artigo 12º do referido diploma estabelece o seguinte:

“1. Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respetiva causa diga respeito a:

a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
(…)

2. Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança.

3. São excluídos do número anterior os casos de força maior, que diretamente afectem as actividades de concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de:

a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos;

b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio;

c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra.”

O legislador resolveu no artigo 12º a problemática da repartição do ónus da prova dos elementos constitutivos da obrigação de indemnizar: quando esteja em causa um sinistro numa auto-estrada concessionada, provocado, como no caso, pela existência de um objecto na via, a entidade concessionária fica onerada com uma presunção de incumprimento das obrigações de segurança que lhe cabe observar, cabendo-lhe, portanto, o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança.

Conforme já decidiu o Tribunal Constitucional, esta opção legislativa não está desprovida de fundamento material bastante, já que o legislador cometeu “o ónus em causa à parte que se encontra em melhores condições para antecipadamente poder lançar mão dos meios ou instrumentos materiais aptos à prova dos factos, quer pelo domínio material que tem sobre as auto-estradas e os meios de equipamento e de infra estruturas adequadas a conferir maior segurança na circulação rodoviária, quer pela sua capacidade económica para se socorrer desses meios” – acórdão do Tribunal Constitucional nº 596/2009; cfr. também acórdão do mesmo Tribunal com o nº 629/2009.

No mesmo acórdão citado, o Tribunal Constitucional sustenta que “o tipo de bens oferecido através da oferta da via das auto-estradas, diferentemente do que se passa com as demais estradas, pressupõe níveis elevados e especiais de segurança, traduzidos desde logo na concepção, construção, manutenção e exploração das vias segundo padrões materiais ou normativos de grande exigência, e que a sua utilização é feita em termos massivos e mediante o pagamento de uma taxa (ainda que nas SCUT esta seja assumida pelo Estado), não se vê que possa considerar-se existir qualquer violação do princípio da proporcionalidade ao atribuir-se ao concessionário da auto-estrada o ónus de demonstrar que cumpriu, em concreto relativamente a cada utilizador, a obrigação de segurança cuja pressuposta existência real se apresenta como determinante para que uma grande massa de consumidores opte pela sua utilização.”

E acrescenta que “estando-se perante especiais actividades económicas geradoras de riscos elevados de lesão de bens e direitos de terceiros, muitas vezes ínsitos ao próprio tipo de bens cuja aquisição se oferece, afigura-se como previsível que o legislador possa submeter essa actividade concreta a especial regime de responsabilidade e isso principalmente quando ela é levada a cabo em regime de concessão pública, pois dela poderá sobrar para o Estado a emergência de ter de suprir as consequências danosas para os utilizadores desses bens, mormente através do cumprimento dos deveres de prestação dos serviços de saúde e de segurança social.”

Conclui que “a norma constante do artigo 12º nº 1 da Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, na acepção segundo a qual, «em caso de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via não lhe é de todo imputável, sendo atribuível a outrem, tendo de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento», não padece de inconstitucionalidade.”

A mesma argumentação vale, como é evidente, para o caso de existência na via de um objecto que era suposto lá não estar, como é o caso do flat cone documentado no acidente dos autos.

Ora a Ré não logrou provar que o flat cone foi parar à via por razões que lhe são alheias.

Pelo que o pressuposto ilicitude se deve ter por verificado.

O que não basta para alterar o decidido.

A conclusão tirada pelo Tribunal recorrido de que “não ficou demonstrada qualquer ligação entre o flat cone e o acidente”, está correcta e afasta, por si só, a responsabilidade da Ré pela eclosão do acidente e pelos prejuízos dele resultantes.

Mas não se situa no campo da ilicitude, antes do nexo de causalidade.

Na verdade, não se pode concluir, de acordo com as regras de experiência comum que a existência de um “flat cone” na via seja apta a produzir um acidente em particular num local em que a velocidade máxima permitida é de 40 Km/hora.

Trata-se de um objecto adequado a ser colocado na via, para sinalizar qualquer perigo ou para delimitar a circulação do trânsito, feito em matéria plástica e flexível, prevenindo precisamente a hipótese de um veículo nele embater, de forma a não causar qualquer estrago no veículo nessa hipótese.

Qualquer condutor medianamente ágil, circulando à velocidade máxima permitida de 40 Km/hora, e tendo avistado o objecto, como o Autor avistou, teria controlado o veículo e ultrapassado ou se desviado do flat cone sem qualquer problema.

A existência deste objecto na via não é, portanto, sequer em abstracto, adequada a provocar um acidente como o dos autos.

Em concreto e como se concluiu em relação ao julgamento da matéria de facto, não se provou sequer que tenha havido qualquer ligação entre o flat cone e o acidente.

Pelo que se conclui não existir o pressuposto “nexo de causalidade”, o que, da mesma forma, determina a improcedência da acção, exactamente pelos mesmos fundamentos de facto, mas por diferente enquadramento jurídico.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantêm a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.
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Porto, 13.05.2022


Rogério Martins
Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre