Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00522/16.1BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:12/17/2021
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL - ACIDENTE DE VIAÇÃO - ATRAVESSAMENTO DE ANIMAL - PRESUNÇÃO DE INCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES DE SEGURANÇA
- ARTIGO 12º DA LEI Nº. 24/2007, DE 18.07 – CONTAGEM DOS JUROS DE MORA
Sumário:I- A Lei n.º 24/2007, de 18 de julho, veio definir direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares.

II- A imposição de assegurar as condições de segurança em lanço rodoviário concessionado integra uma obrigação reforçada de meios.

III- Só o “caso de força maior devidamente verificado” exonera a concessionária da sua obrigação de garantir a circulação nas autoestradas em condições de segurança, pelo que, para afastar a presunção de culpa estabelecida no mencionado art. 12º,nº. 1, al. c) da Lei nº 24/2007, terá a concessionária de provar a ocorrência de um acontecimento concreto que integre o conceito de força maior, ou seja, de um “acontecimento imprevisto e irresistível cujos efeitos se produzem independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais da concessionária”.

IV- Não conseguindo a R. a forma como o dito canídeo entrou na autoestrada, por forma a imputar a sua proveniência a terceiros ou a caracterizá-lo como um eventual caso fortuito, e que não podia ter adotado conduta diferente daquela que adotou, isto é, não logrando a R. provar factualidade de onde se possa concluir que cumpriu as exigências de diligência na sinalização e remoção dos obstáculos existentes na via e, por conseguinte, não foi ilidida a presunção de incumprimento que sobre si impendia relativamente ao aludido dever de vigilância, não tendo resultado provados factos suficientes que permitam concluir que a mesma atuou com a diligência que lhe era exigida.

V- No caso de responsabilidade por facto ilícito, o legislador criou um termo inicial específico para a mora, anterior à própria liquidação da indemnização: o devedor constitui-se em mora a partir da citação.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:AUTO-ESTRADAS (...), S.A e Outra
Recorrido 1:Z. PLC e Outra
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso da Autoestradas (...),conceder provimento ao recurso da Z. PLC.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO
AUTO-ESTRADAS (...), S.A. e Z. PLC , com os sinais dos autos, vêm intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, que, em 31.12.2020, julgou a presente ação parcialmente procedente, e, em consequência, condenou solidariamente a Ré AUTO-ESTRADAS (...), S.A. e a Interveniente A. SUCURSAL EM PORTUGAL “(…) a pagarem à Autora a quantia de € 9,440,51 (nove mil quatrocentos e quarenta Euros e cinquenta e um cêntimo), acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da citação até efetivo e integral pagamento, deduzindo-se a franquia de € 5,000,00 (cinco mil Euros), relativamente à Interveniente (…)”.
Alegando, a Recorrente AUTO-ESTRADAS (...), S.A. formulou as seguintes conclusões: “(…)
I. Apesar de - tudo o indica - o tribunal a quo ter considerado na fundamentação da sentença, ainda que de uma forma menos rigorosa e extensa do que devia, o expendido pela R. em 18° da sua contestação, certo é que não dispunha, provavelmente por lapso, de tal matéria no acervo de factos provados;
II. E a verdade é que tal matéria, não só por essencial para a defesa da R., mas também por ser nitidamente importante para a boa decisão da causa, e sob pena de clara omissão de pronúncia, devia (deve ainda), atendendo nomeadamente ao depoimento de B. transcrito nestas linhas, ser dada inequivocamente como provada e com a seguinte sugestão de redação:
- provado que “Na data do sinistro e em toda a extensão do sublanço compreendido entre os nós de Vagos e Santo André da A17 onde se integra o local do sinistro, num total de cerca de 5 kms em cada um dos sentidos de marcha, a vedação apresentava-se intacta e sem quaisquer buracos, aberturas, ruturas, anomalias ou deficiências de qualquer espécie.”;
III. A sentença também não andou bem ao relegar para os factos não provados aqueles que identifica com o n° 3, factos esses que, reportando-se, como é óbvio, a momento anterior ao da eclosão do sinistro, são confirmados pelo depoimento de António Marcolino igualmente transcrito e que, por isso, devem transitar para o rol de factos de provados e, naturalmente, considerados na decisão a proferir;
IV. Depois, e porque se trata de factos que resultaram da instrução da causa e são claro complemento de outros alegados pelas partes (no caso, a A.) quanto à dinâmica do sinistro (cfr. artigo 5° n° 2, alínea b) do C. P. C.), importa que, de harmonia, nomeadamente, com o testemunho do próprio motorista (L.) e também aqueloutro de P., condutor do veículo que o seguia, passe a integrar a factualidade provada a seguinte matéria:
- provado que “O motorista do veículo JM efetuou uma travagem brusca e imobilizou o dito veículo cerca de 300 metros após o local da colisão com o animal.”.
Segue-se que
V. O raciocínio/fundamentação da sentença (para efeitos de condenação, ainda que pela metade, da R.) é, salvo o respeito devido, muito parco e reconduz-se apenas a 2 (ou 3, com muito boa vontade) ideias, avançando tão-só e para tal com uma “meia dúzia” de linhas (e repetitivas, ainda assim) no conjunto das 19 páginas que a compõem (cfr. págs. 14 e 15);
VI. Efetivamente, lavrou-se a sentença e ditou-se a sorte desta ação com base, por um lado, na ideia de que seria suposto que a vedação “(...)garantia e impedia a entrada do animal na autoestrada” e depois que a prova produzida pela R. seria insuficiente, até porque esta R. “(.) não alegou e provou a proveniência do animal nem que o mesmo surgiu de forma incontrolável e que, por esse motivo, não lhe seria imputável o sucedido.” (vide pág. 14);
VII. No entanto, esta linha de argumentação/raciocínio/fundamentação enfrenta inequivocamente um sério problema de base (além de verdadeiramente irresolúvel, na ótica da R.), ou seja, aquele da relação existente (ou não) com a lei aplicável a esta situação;
VIII. E o resultado desse confronto não poderá ser outro senão a conclusão que nada daquilo a que ali se “agarra” para servir de fundamento à condenação (mesmo que em 50%) da R. tem a mínima consagração legal, devendo ainda lembrar-se, a este propósito e porque relevante, o brocardo latino “lex specialis derogat lege generali”;
IX. Na verdade, é patente da sentença que pouco ou nenhum caso fez do disposto no Decreto-Lei n° 87-A/2000, de 13 de maio, na redação em vigor à data do sinistro, e a verdade é que lendo desde logo as Bases XXX n° 4, XXXII n° 1 e XXXVIII n°s. 1, 2, 5 e 6, constata-se que é totalmente inexato que, contrariamente ao defendido na sentença, fosse suposto que a vedação da autoestrada devesse garantir e impedir a entrada do animal na autoestrada (embora certamente sirva para dificultar essa entrada, apesar das características/capacidades de alguns animais), mas antes, e na linha, de resto, do dado como provado na alínea BB) dos factos provados, que tinha de obedecer ao respectivo projeto (e obedece), ser implantada de acordo com ele (e foi) bem como aprovada (e também foi);
X. Depois, muito menos se deteta em parte alguma daquele diploma legal (ou de outro qualquer, mesmo que de âmbito mais “geral” ou menos “especial”) a “obrigação” (ou sequer a “recomendação”) de esta concessionária/R. dever demonstrar (e antes alegar) a proveniência do animal ou que este teria surgido “(...) de forma incontrolável e que, por esse motivo, não lhe seria imputável o sucedido”;
XI. Acresce depois dizer que a Lei n° 24/2007, de 18 de julho (também uma lei especial) apenas faz impender sobre as concessionárias de autoestradas, R. incluída, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança, operando assim uma inversão desse ónus da prova - embora em sentido contrário, no sentido de que deveria ser provado o respectivo incumprimento pelo lesado - incluído na prova da culpa da R./concessionária originariamente cometida ao lesado;
XII. Porém, não é mesmo nada exato que com essa lei se tenha estabelecido uma presunção de culpa (ou de ilicitude ou de incumprimento) em desfavor das concessionárias, pois que se assim fosse a redação do citado artigo 12° n° 1 seria seguramente outra, mais próxima daquela constante do artigo 493° n° 1 do Cód. Civil;
XIII. Com efeito, e quanto à dita presunção de culpa, nem tal decorre da referida lei, nem isso resulta do DL n° 87-A/2000, de 13 de maio, na redação aplicável, concluindo-se tão-só que com a vigência da lei citada passou a impender um ónus de prova sobre as concessionárias de autoestradas, embora restrito à demonstração do cumprimento das obrigações de segurança (e nada mais que isso). Isto para além de não se poder, de forma alguma, concluir que sempre há situações de inversão de ónus de prova se quer(quis) consagrar uma presunção legal de culpa (cfr. Cód. Civil, artigo 344° n° 1);
XIV. Por outro lado, sendo verdade que a R. se obrigou a vigiar e a patrulhar a autoestrada, assim envidando os seus melhores esforços no sentido de assegurar a circulação na autoestrada em boas condições de segurança e comodidade, daí não decorre que essa sua obrigação implica uma omnipresença em todos os locais da sua concessão como, sem margem para dúvidas, acaba por se considerar na sentença, mormente nos locais de eclosão de acidentes ou onde possam estar a deambular animais; 
XV. De modo que também por aí - repete-se - não nos parece minimamente correto que se possa considerar que incumbia à R. demonstrar a forma como o animal terá ingressado na via (e mais ainda, neste caso, com um nó consabidamente “aberto” a não mais de 400 metros do local do sinistro), sendo certo que dessa forma caminharíamos inevitavelmente na direção de uma responsabilidade objetiva, sem culpa, que também não tem previsão legal (cfr., a este único respeito e pela sua manifesta impressividade, a conclusão III do sumário do ac. do T. R. C. de 10.01.2006, in www.dgsi.pt );
XVI. O artigo 12° n° 1 da citada lei faz recair sobre as concessionárias, entre as quais a recorrente, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança, sendo que no caso dos autos é nítido e indiscutível que a R. satisfez o ónus que lhe competia, i. e., demonstrou que cumpriu com aquelas suas obrigações de segurança, particularmente, e tal como resulta desde logo da primeira parte deste recurso quanto à reapreciação da prova gravada, no que se refere à integridade da vedação e à conformidade desta com as normas em vigor;
XVII. No caso destes autos é nítido e totalmente indiscutível que a recorrente satisfez integralmente o ónus que lhe competia, i. e., demonstrou que cumpriu com aquelas suas obrigações de segurança, particularmente no que se refere à integridade da vedação, situada - importa recordar - entre nós abertos da AE (numa extensão de cerca de 10 Kms e em ambos os sentidos de trânsito);
XVIII. Ora, a definição destas obrigações de segurança passa essencial e obrigatoriamente (como é até intuitivo, aliás), num acidente com animais, pela prova de que as vedações se encontravam intactas e sem ruturas nas imediações do local do acidente (e 10 Kms entre nós não fechados, porque não o podem ser, convenhamos, é disso prova bem eloquente), que não, e bem ao contrário do que se sustenta na decisão sem qualquer base nomeadamente legal para que o possa fazer, a demonstração que a vedação impede ou pode impedir a intrusão de animais na autoestrada (basta pensar, p. x., nas “características” de alguns animais). E a verdade é que essa prova - insiste-se - foi claramente feita pela R./recorrente;
XIX. Cabe, aliás, assinalar a contradição em que de certo modo incorre a sentença, posto que apesar de ter por cumpridos (e a prova produzida a isso obrigava) os deveres que à concessionária competiam, conclui afinal que isso não chega, alvitrando ainda, e sem qualquer ligação à realidade e/ou aos textos legais relevantes, que de certo modo à concessionária competia também a prova do contrário, o mesmo é dizer p. ex. a prova “histórica” do ingresso do animal na via;
XX. Mais: além de vários “lugares-comuns”, salvo o devido respeito, completamente à deriva, é visível que o raciocínio seguido pela sentença é nitidamente especulativo, pois que parte claramente do princípio (e sem ter a mínima base de facto para que o pudesse fazer) que o animal só poderia ter ingressado na AE devido a uma qualquer anomalia/falha (na vedação - será?), sem considerar qualquer outra possibilidade/explicação perfeitamente plausível para a presença do animal na via (e a verdade é que essas possibilidades/explicações existem, não se podendo concluir automaticamente que o animal acedeu à via porque p. ex. as vedações apresentavam deficiências ou então que ocorreu uma qualquer anomalia, seja ela qual for);
XXI. De outra parte, a R. também demonstrou, sem qualquer espécie de dúvida ou reserva, que desconhecia a presença do animal na via apesar do cumprimento integral (e permanente, no sentido de estar sempre no terreno, embora não esteja, como é evidente, em todo o lado ao mesmo tempo) da sua missão de vigilância;
XXII. De modo que, e não podendo a R./recorrente (nem tal lhe sendo exigível) ser omnipresente, não se vislumbra como podia (ou pode) ser responsabilizada pela eclosão deste acidente, tanto mais que nos parece pacífico e totalmente indiscutível que as obrigações a seu cargo são claramente obrigações de meios. E não, portanto, obrigações de resultado, como é claríssimo acaba por concluir - sem o dizer, no entanto - a sentença da 1a instância;
XXIII. De resto, não sendo possível à recorrente (especialmente, como bem se percebe, numa autoestrada como esta, com nós abertos) evitar em absoluto que os animais ingressem na via e, face ao que ficou provado, nada mais lhe devendo ser exigível em termos de conduta e de prova, parece claro que se impunha (e isso ainda sucede) a sua absolvição, já que esta demonstrou que cumpriu em concreto (e não apenas “genericamente”, portanto) com todas as suas obrigações, concretamente com aquelas de segurança;
XXIV. A não ser assim - i. e., a situarmo-nos num plano em que acaba por se colocar (mesmo que de forma pouco esclarecida) a sentença em matéria de exigência probatória (p. ex. de ter de se provar por onde o animal entrou na AE ou que era suposto que as vedações impedissem o acesso do animal à via) -, cairíamos necessariamente no âmbito da responsabilidade objetiva, na prova impossível (e não apenas extremamente difícil ou na chamada probatio diabolica) para a concessionária que não se vê onde esteja prevista, nomeadamente na lei citada (cfr. também e a este propósito o já mencionado ac. da RC de 10.01.2006, www.dgsi.pt e ainda Carneiro da Frada, “Sobre a responsabilidade das concessionárias por acidentes ocorridos em autoestradas”, in R. O. A., ano 65, setembro de 205, págs. 407 - 433, mas também do mesmo autor, agora com a colaboração de Diogo A. Costa Gonçalves, o mais recente “Diligência e prova de cumprimento das obrigações da concessionária em acidentes de viação ocorridos em autoestradas”, págs. 155 - 202, integrado na publicação do Instituto Jurídico da F. D. U. C. intitulada “Responsabilidade Civil. Cinquenta Anos em Portugal, Quinze Anos no Brasil” - consultável no endereço https://www.uc.pt/fduc/ij/publicacoes/pdfs/coloquios/Livro RC - ebook.pdf);
XXV. Finalmente, e por força necessariamente do que antecede, sempre se dirá que é patente que nada há a apontar à R./concessionária no que tange a uma putativa violação do disposto no artigo 487° n° 2 do Cód. Civil, bem como inexiste qualquer violação de disposições legais do RRCEEP (Lei n° 67/2007, de 31 de dezembro), mormente dos artigos 7°, 9° ou 10° daquele diploma legal.
Não obstante,
XXVI. Apesar de a sentença não ter tomado em consideração factos que, sem dúvida, permitiriam avaliar de uma forma mais integrada e mais ponderosa um dos elementos mais importantes a considerar quando é de acidentes de viação que se trata (em autoestrada ou fora dela), ou seja, a velocidade do veículo na altura do sinistro e a sua conformidade com as regras estradais, cuja prova incumbia à A., tal como a esta A. incumbia demonstrar que a “condução” do veículo não contribuiu fosse de que maneira fosse para o sinistro, certo é que talvez houvesse uma margem segura - com base na travagem brusca e nos cerca de 300 metros que “levou” a imobilizar o veículo - para tirar a ilação de que a velocidade afinal não era aquela quantificada - pouco credivelmente, diga-se - pelo motorista (isso conclui-se, aliás, muito facilmente do endereço eletrónico http://www.imtip.pt/sites/IMTT/Portugues/EnsinoConducao/ManuaisEnsinoConducao/Documents/Fichas/FT DistanciasdeSeguranca.pdf que nos “conduz” para uma velocidade superior inclusivamente a 150 Kms/hora);
XXVII. Vale isto por dizer que não se prova, que (melhor dito) a A. não prova (bem pelo contrário, aliás) que o motorista não teve nenhuma responsabilidade na deflagração do sinistro, tudo apontando para a necessidade de ter sido igualmente tirada a ilação que o veículo circulava em excesso de velocidade;
XXVIII. Seja, porém, como for, e apenas com a incontornável culpa do motorista do veículo seguro na A. por circular, sem motivo válido ou legítimo, em manifesta transgressão ao disposto no artigo 13° n° 3 do C. E. como - bem nesta parte - se entendeu na sentença, a conduta do motorista já era/é “mais que suficiente”, na linha, aliás, de Antunes Varela (“Das Obrigações em Geral, Vol. II, 4a edição, Almedina, Coimbra, 1990, pág. 92) para classificar de culposa a conduta daquele motorista e tirar daí as devidas consequências, o que não aconteceu ou, mais rigorosamente, não aconteceu da forma que devia (apenas lançando mão, como se pode ver, do que se dispõe no n° 1 do artigo 570° do Cód. Civil);
XXIX. Efetivamente, a sentença ficou-se apenas pela metade e decidiu, por assim dizer, de uma forma “salomónica”, esquecendo, salvo o respeito devido, a sua própria fundamentação que condenou a R. (ainda que na proporção de 50%, é certo) com base numa presunção de culpa (cfr. pág. 15) que entendeu que incide sobre a R., e esquecendo também que em tal caso haveria de ser excluída a obrigação de indemnizar, tal como se prevê, sem margem para dúvidas, no n° 2 do artigo 570° do Cód. Civil de que a sentença pura e simplesmente “não fez caso” algum;
XXX. Em suma: a sentença violou, salvo o devido respeito, para além do artigo 5° n° 2, alínea b) do C. P. C., o disposto naquele artigo 12° n° 1 da Lei n° 24/2007, de 18 de julho, mas igualmente o que se dispõe pelo menos nas Bases XXX n° 4, XXXII n° 1, XXXVIII n°s. 1, 2, 5 e 6 do Decreto-Lei n° 87-A/2000, de 13 de maio, na redação aplicável do DL n° 105/2015, de 16 de junho, os artigos 483° e 487° n° 2 e sobretudo o no artigo 570° n° 2 do C. C. e ainda os artigos 4°, 7° n° 1, 9° n° 1 e 10° n°s. 1, 2 e 3 da RRCEEP (Lei n° 67/2007, de 31 de dezembro), razão pela qual deve ser revogada e substituída por outra douta decisão que absolva a R./recorrente do pedido formulado pela A (…)”.
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A interveniente A. SUCURSAL EM PORTUGAL declarou aderir a este recurso jurisdicional.
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Quanto ao seu recurso, concluiu a Recorrente Z. PLC nos seguintes termos: “(…)
1. A ora Apelante não se pode conformar com a douta sentença, no que respeita à divisão de responsabilidades na ocorrência do acidente e consequente absolvição das RR em 50% do valor peticionado nos autos, bem como a data de inicio da contagem dos juros.
2. Entendeu o Tribunal a quo, e bem, no modesto entender da ora recorrente que o acidente ocorreu devido à falta de cumprimento dos deveres de vigilância da Ré, pois caso estes tivessem sido cumpridos o acidente nunca teria ocorrido, pois o animal em que o veículo seguro JM embateu, não poderia ter acedido à via e faixa de rodagem.
3. Considerou, ainda, o douto Tribunal a quo, e bem, que a Ré não iludiu a presunção de culpa e de ilicitude que sobre si impendia, concluindo ainda que se encontra verificado o nexo de causalidade entre o facto ilícito (da Ré) e os danos sofridos pela Autora.
4. No entanto o douto Tribunal a quo acaba concluindo que a conduta do condutor do veículo seguro JM não pode ser considerada isenta de contribuir para a verificação do acidente.
5. No modesto entender da ora recorrente, não pode ser imputada qualquer culpa à conduta do condutor do veículo seguro JM.
6. Não se provou nos autos que o condutor circulava na faixa da esquerda em contravenção ao Código da Estrada, pelo que não se pode retirar a ilação que se lá circulava é porque o fazia irregularmente.
7. Tendo sido julgado e decidido que a Ré não ilidiu a sua presunção e culpa e de incumprimento dos seus deveres, não poderá presumir-se, ainda e após este facto, a culpa do condutor do veículo.
8. Verificada a inversão do ónus da prova, em virtude do estabelecido no art. 12 da Lei 24/2007, incumbia á Ré a prova sobre os factos objetivos que levaram à produção do acidente por culpa de outrem (nomeadamente do condutor).
9. Dos factos dados como provados na douta Sentença de que ora se recorre, não pode ser assacado qualquer vestígio de censura ou negligencia à conduta do condutor do veículo seguro JM.
10. Nenhuma responsabilidade pode ser assacada ao condutor do veículo JM motivo pelo qual devem as RR ser condenadas na totalidade do pedido efetuado nos autos.
11. O douto tribunal a quo quanto à condenação em juros, refere que a Autora pede juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento, condenando as RR no pagamento de juros de mora á taxa de 4% desde a data da citação até integral pagamento.
12. No entanto, na petição Inicial a Autora pediu a condenação em juros de mora à taxa legal, da Ré, desde 30 de março de 2016 até integral pagamento.
13. No ponto x) da douta Sentença resultou provado que em 30.03.2016 a Autora solicitou à Ré o pagamento das quantias peticionadas nos autos e esta recusou o seu pagamento.
14. Resultando provado que a A. interpelou extrajudicialmente a Ré no dia 30-3-2016 e esta recusou o cumprimento, desde essa data que a mesma se constituiu em mora devendo ser condenada ao pagamento dos juros de mora à taxa legal de 4% desde 30-3-2016 até efetivo e integral pagamento, conforme peticionado em sede de petição inicial (…)”.
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Notificada da interposição do recurso jurisdicional por parte da Autoestradas (...), a Recorrida Z. PLC não contra-alegou.
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A Autoestradas (...) e a A. SUCURSAL EM PORTUGAL produziram contra-alegações quanto ao recurso apresentado por Z. PLC , defendendo a improcedência do mesmo.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão dos três recursos interpostos nos autos, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito a que se alude no nº.1 do artigo 146º do C.P.T.A.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, e concatenadas as conclusões dos recursos interpostos nos autos, as questões essenciais a dirimir são as de saber se a decisão judicial recorrida incorreu em:
(i) Recurso jurisdicional interposto pela Autoestradas (...). e A. SUCURSAL EM PORTUGAL: (i.1) Erro[s] de julgamento de facto; e (i.2) Erro de julgamento de direito, por ofensa do “(…) artigo 5° n° 2, alínea b) do C. P. C., o disposto naquele artigo 12° n° 1 da Lei n° 24/2007, de 18 de julho, mas igualmente o que se dispõe pelo menos nas Bases XXX n° 4, XXXII n° 1, XXXVIII n°s. 1, 2, 5 e 6 do Decreto-Lei n° 87-A/2000, de 13 de maio, na redação aplicável do DL n° 105/2015, de 16 de junho, os artigos 483° e 487° n° 2 e sobretudo o no artigo 570° n° 2 do C. C. e ainda os artigos 4°, 7° n° 1, 9° n° 1 e 10° n°s. 1, 2 e 3 da RRCEEP (Lei n° 67/2007, de 31 de dezembro) (…)”.
(ii) Recurso interposto por Z. PLC : Erro de julgamento de direito quanto à decidida “(…) divisão de responsabilidades na ocorrência do acidente e consequente absolvição das RR em 50% do valor peticionado nos autos, bem como a data de inicio da contagem dos juros (…)”.
Assim sendo, estas serão, por razões de precedência lógica, as questões a apreciar e decidir.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO
O quadro fáctico [positivo, negativo e respetiva motivação] apurado na decisão recorrida foi o seguinte: “(…)
A) No exercício da sua atividade, a Autora celebrou um contrato de seguro com P., Lda., titulado pela apólice n.° 005416095, referente ao veículo com a matrícula JM, no qual foi transferida a responsabilidade civil pela circulação do indicado veículo para a Autora, bem como a cobertura facultativa de choque, colisão ou capotamento;
B) No dia 07.02.2016, entre as 20:30 e as 22:00h, o veículo a que se reporta a alínea anterior, circulava na A17, junto ao Km 98,650;
C) Aquela via concessionada à Ré, encontra-se dividida em duas hemifaixas de rodagem em cada um dos sentidos, separadas por um separador central, destinando-se as referidas hemifaixas ao trânsito de veículos em cada um dos sentidos;
D) O veículo JM era conduzido por L. e circulava pela esquerda da hemifaixa de rodagem, no sentido norte/sul;
E) A uma velocidade não superior a 120Km/h;
F) Junto ao referido Km 98,650, súbita e repentinamente surgiu um animal de raça canina de médio porte e de cor preta, a atravessar a faixa de rodagem;
G) Surpreendido por tão súbito aparecimento o condutor do JM tentou desviar-se e imobilizar o veículo, no entanto não conseguiu evitar o embate;
H) O qual ocorreu entre a frente da viatura e o animal;
I) Provocando danos ao veículo JM e a morte do animal;
J) Do embate entre o veículo JM e o cão resultou a projeção de alguns destroços do veículo seguro para a via;
K) Em consequência, o veículo de matricula PF que circulava, imediatamente, atrás do veículo JM, acabou por embater com a roda direita num desses destroços o que provocou o corte do pneumático;
L) Ambos os veículos imobilizaram-se perto do local do embate, na berma direita atento o sentido de marcha dos mesmos;
M) A GNR do destacamento de trânsito de Aveiro deslocou-se ao local, tendo registado a ocorrência;
N) Ao local deslocou-se ainda uma equipa da Ré que confirmou a ocorrência, bem como uma equipa dos Bombeiros de Vagos que procederam à limpeza da via;
O) Em consequência do acidente acima descrito o segurado da Autora participou-lhe a ocorrência do mesmo solicitando a sua cobertura no âmbito do contrato de seguro;
P) Da mesma forma o proprietário do veículo PF participou o sinistro à Autora reclamando o reembolso das despesas suportadas com a compra de um novo pneumático danificado em consequência do acidente;
Q) Em consequência deste acidente o veículo JM sofreu diversos danos a nível da parte frontal, mecânica e chapa;
R) Junto da oficina reparadora, antes da desmontagem, apurou-se que a reparação do veículo orçava em €18 515,25;
S) Sendo que após a desmontagem verificou-se a existência de outro dano em peça, cuja reparação importava em €269,83;
T) A Autora pagou à oficina o valor da reparação no montante de €18 788,08;
U) E reembolsou a proprietária do veículo PF das despesas com a substituição do pneumático danificado, despendendo a quantia de €92,94;
V) Pagou ainda a quantia de €54,77 de despesas de peritagem e obtenção de auto de ocorrência;
X) Em 30.03.2016, a Autora solicitou à Ré o pagamento das referidas quantias, no entanto, esta recusou proceder ao seu pagamento;
Z) A concessão da Ré, denominada A17, tem as características (perfil) de autoestrada (AE), mas era à data dos factos, uma AE sem barreiras físicas de portagens.
AA) Os nós desta autoestrada permitem a sua ligação a estradas nacionais ou municipais, vias estas que não são, como também é sabido, habitualmente vedadas;
BB) As vedações desta autoestrada, designadamente as que são situadas nas imediações do local do sinistro, merecem a prévia aprovação do Estado Português (concedente), no que se refere às suas características e à respectiva extensão;
CC) A Ré efetua patrulhamentos permanentes e regulares à concessão, em regime de turno, durante 24 horas de cada dia, todos os dias do ano;
DD) Sempre que a Ré tem conhecimento de quaisquer animais (ou outros fatores) que possam colocar em risco a segurança e a normal circulação automóvel na sua concessão, atua de forma imediata e diligente por forma a expulsar rapidamente esses animais da via.
EE) À data do sinistro havia (e há) um nó muito próximo do local apontado como tendo sido o da eclosão do sinistro, ou seja, o denominado nó de Ponto de Vagos/Santo André cujo eixo (centro) se situa, agora como então, ao PK 98+250;
FF) As ditas barreiras físicas também não existiam, à data do sinistro, no citado nó de Ponte de Vagos/Santo André.
GG) À data do acidente descrito supra, a Ré tinha transferido, até ao limite de 30 milhões de Euros por sinistro, para a Interveniente, a sua responsabilidade civil pelos eventuais danos causados a terceiros em virtude da sua atividade, nos termos do contrato de seguro titulado pela apólice PA14CP0031;
HH) Nos termos das referidas condições particulares, foi convencionado que, na anuidade de 30.11.2015 a 29.11.2016 e por cada sinistro participado, a Ré suportaria uma franquia de €5 000,00.
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Factos não provados
1.° Que o condutor do veículo JM circulava a uma velocidade não superiora 110Km/h;
Que aquela autoestrada é patrulhada pela GNR/BT, 24 sobre 24 horas;
Que a GNR/BT não comunicou à Ré qualquer deficiência nas condições de circulação no local ou qualquer situação que pusesse em perigo a segurança dos utentes da autoestrada.
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Quanto à matéria de facto dada como provada nos presentes autos (expurgada a matéria de direito e/ou conclusiva) e considerada relevante para a decisão da causa controvertida, segundo as várias soluções plausíveis das questões de direito suscitadas, o Tribunal formou a sua convicção, conforme se passará a explicar.
A factualidade vertida em a), resulta do documento n.° 1, junto com a petição inicial, corroborada pelo depoimento das testemunhas A. e L..
Os factos vertidos nas alíneas b) a x), resultam da documentação junta aos autos (mais concretamente, aquela que foi junta com a petição inicial, nomeadamente no que respeita ao documento n.° 2, de onde se retira com clareza a factualidade vertida em d)), conjugada com o depoimento das testemunhas L. e L. (respetivamente, condutor do veículo sinistrado e o proprietário - que também seguia no veículo no momento do acidente - e por este motivo tinham conhecimento das circunstâncias em que ocorreu o acidente, as quais relataram, tendo ainda o indicado L. confirmado o pagamento efetuado pela Autora dos prejuízos causados ao seu veículo); do depoimento da testemunha P. (condutor do veículo que seguia imediatamente atrás do veículo segurado pela Autora e que, por isso, também soube relatar as condições em que verificou o acidente, bem como a existência de mais animais na via); do depoimento da testemunha A. (agente da GNR e que elaborou o auto de participação junto com a petição inicial, também se mostrou relevante para apurar a factualidade relativa às circunstâncias do acidente, pois apesar do mesmo já não se recordar da situação dos autos, confirmou o teor daquele auto e da informação que aí fez constar); e da indicada testemunha A. (que confirmou os pagamentos efetuados pela Autora), cujos depoimentos foram prestados com objetividade, espontaneidade e imparcialidade e revelaram conhecimento direto dos factos.
Também se revelou importante para a formação da convicção do Tribunal no que respeita a esta factualidade e ainda quanto à factualidade vertida nas alíneas z) a ff), o depoimento das testemunhas A. (operadora da central de comunicações da Ré, que recebeu a comunicação da existência de animais na via e posteriormente do acidente e que diligenciou no sentido de enviar para o local a equipa que se encontrava de serviço na A29, pois a patrulha da A17 não estava disponível, pois encontrava-se a assistir um outro acidente com vários veículos); J. (oficial de assistência e vigilância da Ré, que se encontrava a fazer o patrulhamento da A29 e que se deslocou ao local do acidente); B. (oficial de conservação, que confirmou que dias depois efetuou a verificação das vedações e que estaria tudo bem, sem quaisquer ruturas); e, A. (encarregado de assistência rodoviária da Ré, que confirmou, além do mais, a obrigatoriedade daquele tipo de vedação na concessão), e que também se mostraram, em geral, coerentes e credíveis.
A factualidade vertida em gg) e hh) foi aceite pela Ré e Interveniente e resulta ainda do teor do documento n.° 1, junto com as contestações apresentadas por ambas.
Quanto à factualidade não provada (1° a 3.°), resulta de não ter sido apresentada prova documental ou testemunhal suficiente para criar a convicção do Tribunal da sua existência. (…)”.
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III.2 - DO DIREITO
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Assente a factualidade que antecede, cumpre, agora, apreciar as questões suscitadas no recurso jurisdicionais em análise.
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Do[s] imputado[s] erro[s] de julgamento de facto
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A primeira questão decidenda consubstancia-se em saber se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto nos pontos indicados pela Recorrente Autoestradas (...).
Vejamos.
A lei processual, para facultar a reapreciação da decisão matéria de facto, exige, desde logo, o cumprimento do ónus processual preconizado no artigo 640º do CPC.
De facto, e no que concerne à sua legal admissibilidade, ressuma com evidência do preceituado no nº. 2 do artigo 640º do CPC que, “sob pena de imediata rejeição do recurso”, deve o Recorrente “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Destaca-se, nesta problemática, o Acórdão produzido por este Tribunal Central Administrativo Norte de 04.12.2015, no processo nº. 418/12.6BEPRT, cujo teor ora parcialmente se transcreve:”(…)
Como resulta do art.º 640, nºs. 1, b) e 2, a), do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar (dá-se aqui uma “ênfase redundante” nas palavras de Cardona Ferreira in Guia de Recursos em Processo Civil, 5º edição, pág. 167), os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, sendo que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Tem por objectivo responsabilizar as partes (princípio da auto-responsabilidade das partes), vedando-lhes a impugnação a decisão da matéria de facto como uma mera manifestação de inconformismo infundado – cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 3ª edição, 2010, Almedina, p. 159 – bem como garantir, para além do contraditório, a cooperação processual entre as partes e o Tribunal.
Cfr. Ac. RL, de 26-03-2015, proc. nº 183/13.0TBPTS.L1-2 [destaque nosso]:
«(…) o art. 640.º do CPC fixa o ónus de alegação a cargo do recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto.
Desse ónus, consta, designadamente, a especificação obrigatória dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação nele realizada e da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art. 640.º, n.º 1, do CPC).
O estabelecimento desse ónus de alegação destina-se, fundamentalmente, a proporcionar o efetivo contraditório da parte contrária e, por outro lado, a facilitar a compreensão e decisão da impugnação pela Relação, que pode modificar a decisão de facto, nos termos do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC.
O incumprimento de tal ónus de alegação implica, sem mais, a rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto (art. 640.º, n.º 1, do CPC).».
Conforme se sumaria no Ac. deste TCAN, de 22-05-2015, proc. nº 132/10.7BEPNF [destaque nosso]:
I) – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente: (i) sob pena de rejeição, especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; (ii) sob pena de imediata rejeição na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados.
De igual forma no Ac. deste TCAN, de 28-02-2014, proc. nº 00048/10.7BEBRG [destaque nosso]:
I. Resulta do art. 685.º-B do CPC que quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto o recorrente deve, obrigatoriamente, especificar, sob pena de rejeição do recurso, não só os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, como os concretos meios de prova constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizado, que impunham decisão diversa sobre a matéria de facto impugnada.
Igualmente no Ac. deste TCAN, de 22-10-2015, proc. nº 1369/04.3BEPRT, se lembra [destaque nosso]:
«Como já salientámos em casos idênticos (v. Acórdão do TCAN, de 22.05.2015, P. 1224/06.2BEPRT), as competências dos Tribunais Centrais Administrativos em sede de intervenção na decisão da matéria de facto encontram-se reguladas, por força da remissão do artigo 140.º do CPTA, nos artigos 640.º e 662.º do CPC/2013, que acolheram um regime que, de um lado, assume a alteração da matéria de facto como função normal da 2.ª instância e, do outro, não permite recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas admite a possibilidade de revisão de “concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente” (v. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 2014, 130). Neste contexto, recai sobre o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o ónus de especificar, por um lado, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e, por outro, os concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, quanto a cada um dos factos que entende que deviam ter sido dados como provados ou não provados, incluindo a indicação exata das passagens da gravação, no caso de depoimentos gravados (artigo 640.º do CPC) (…)”.
Em reforço deste entendimento, ressalte-se o expendido no Acórdão deste T.C.A.N. de 17.01.2020 [processo n.º 141/09.9BEPNF], consultável em www.dgsi.pt:
“(…) Sintetizando, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes António Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., 2017, pág. 155 sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente: a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
O cumprimento dos referidos ónus tem, como adverte Abrantes Geraldes, a justificá-lo a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da Relação, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão e, bem assim o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações.
É que só na medida em que se conhece especificamente o que se impugna e qual a lógica de raciocínio expandido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a parte contrária a poder contrariá-lo em sede de contra-alegações.
A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos referidos princípios de autorresponsabilização, de cooperação, lealdade e boa-fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo”(…)”.
Deste modo, à luz de tudo o quanto se vem de expender, haverá que se entender que a lei processual, para facultar a reapreciação da decisão matéria da facto, exige que o Tribunal Superior seja confrontado com (i) os concretos pontos que, no entender do Recorrente, se mostram como incorretamente julgados; (i.1) a indicação do meio probatório que impõe decisão diversa da recorrida; (i.2) a definição da decisão que, no entender daquele, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; e a (i.3) expressa de indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
Cientes do que se vem de expor, importa agora analisar a situação sob apreciação aferindo do cumprimento do ónus processual supra sintetizados, e, mostrando-se necessário, do acerto da matéria de facto sob impugnação.
E, nesse domínio, dir-se-á que a Recorrente faz expressa referência aos pontos de facto que, no seu entender, se mostram como incorretamente julgados, motivando, na exigência de lei, tal entendimento, ou seja, com definição do meio probatório que impõe decisão diversa da recorrida, que define objetivamente, e com expressa de indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
O que serve para concluir que a Recorrente cumpre adequadamente o ónus de impugnação preconizado no nº. 2 do artigo 640º do C.P.C, nada obstando, por isso, à reapreciação da matéria de facto impugnada no recurso quanto àqueles concretos factos e com base nos referidos elementos probatórios.
Importa, por isso, aferir do acerto [ou desacerto] da matéria de facto sob impugnação.
Do preceituado no nº.1 do artigo 662º do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA, ressuma com evidência que este Tribunal Superior deve alterar a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuser decisão diversa.
Na interpretação desta normação de lei ordinária, decidiu-se no aresto do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02.11.2017, o seguinte:
“(…) o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade. Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem. (...)
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. (...).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância. Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação. Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos não apreensíveis na gravação dos depoimentos.
Em suma, na reapreciação das provas em segunda instância não se procura uma nova convicção diferente da formulada em primeira instância, mas verificar se a convicção expressa no tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que consta da gravação com os demais elementos constantes dos autos, que a decisão não corresponde a um erro de julgamento (…)”.
Posição que se acolheu no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 27.11.2020, tirado no processo nº. 01291/14.5BEAVR:
“(…) Nesse domínio, impõe-se precisar que da conjugação do regime jurídico previsto nos arts. 637º, n.º 2, 640º, n.ºs 1 e 2, al. a), 641º, n.º 2, al. b) e 662º do CPC ex vi art. 1º do CPA, é pacífico o entendimento que perante o direito positivo processual vigente, sempre que esteja em causa a impugnação do julgamento da matéria de facto em relação a facticidade cuja prova ou não prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos ao princípio da livre apreciação, a 2.ª Instância tem de efetuar um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, considerando os meios de prova indicados pelo apelante no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da 1ª Instância, formando a sua convicção autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e recorrendo a presunções judiciais ou naturais, embora esteja naturalmente limitado pelos princípios da imediação e da oralidade, “devendo alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência” Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 273 e 274; Acs. STJ de 14/01/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.S1; RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BRGC.C1, in base de dados da DGSI..
No entanto, para que ao tribunal ad quem seja consentido alterar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, nos termos do art. 662º, n.º 1 do CPC, não basta que a prova indicada pelo apelante, conectada com a restante prova constante dos autos, a que o tribunal ad quem, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda dever socorrer-se, consinta esse julgamento de facto diverso, mas antes que o determine, isto é, que o “imponha”.
Essa exigência legal fixada pelo mencionado n.º 1 do art. 662º decorre da circunstância de se manterem em vigor no atual CPC os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova.
Deste modo, apesar de serem de rejeitar as teses que defendem que a modificação da decisão de matéria de facto apenas está reservada para os casos de “erro manifesto” e, bem assim aquelas que sustentam não ser permitido à 2.ª Instância contrariar o juízo formulado pela 1ª Instância relativamente a meios de prova que são objeto do princípio da livre apreciação da prova, importa ter presente que os princípios da livre apreciação da prova, da imediação, da oralidade e da concentração se mantêm vigorantes e que como decorrência dos mesmos e da consideração que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, não se pode aniquilar, em absoluto, a livre apreciação da prova que assiste ao juiz da 1ª Instância, sequer desconsiderar totalmente os princípios da imediação, da oralidade e da concentração da prova, que tornam percetíveis a esse julgador, que intermediou na produção da prova, determinadas realidades relevantes para a formação da sua convicção, que fogem à perceção do julgador do tribunal ad quem através da mera audição da gravação áudio dos depoimentos pessoais prestados em audiência final. Como tal, os poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, isto é, quando depois de proceder à audição efetiva da prova gravada e à análise da restante prova produzida que entenda pertinente, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
Deriva do que se vem dizendo que após a 2.ª Instância ter feito esse seu julgamento autónomo em relação à matéria de facto impugnada pela apelante, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso” Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609 (…)”.
Reiterando esta linha jurisprudencial, tem-se, portanto, por assente que, perante a impugnação do tecido fáctico fixado em 1ª instância, impede sobre o Tribunal Superior a realização de um novo julgamento, encontrando-se a alteração da tecido fáctico fixado em 1ª instância apenas reservada para as situações em que a prova produzida imponha decisão diversa, o que não sucede quando o Tribunal ad quem, apreciada essa prova, propende antes para uma diferente convicção, contudo, não imposta pela prova produzida.
Realmente, inexistindo uma convicção inevitável quanto à prova produzida, o Tribunal Superior terá que conceder na prevalência da decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
Cientes destes considerandos de enquadramento, importa, então, analisar a situação sob apreciação aferindo do acerto da matéria de facto sob impugnação.
Efetivamente, veio a Recorrente pugnar pela alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma permitiria que se desse como demonstrados factos omitidos no elenco dos provados, importando por isso proceder à alteração do probatório coligido nos autos por forma a que sejam aditados os seguintes factos:
(i) Na data do sinistro e em toda a extensão do sublanço compreendido entre os nós de Vagos e Santo André da A17 onde se integra o local do sinistro, num total de cerca de 5 kms em cada um dos sentidos de marcha, a vedação apresentava-se intacta e sem quaisquer buracos, aberturas, ruturas, anomalias ou deficiências de qualquer espécie;
(ii) A GNR/BT não comunicou à Ré qualquer deficiência nas condições de circulação no local ou qualquer situação que pusesse em perigo a segurança dos utentes da autoestrada;
(iii) O motorista do veículo JM efetuou uma travagem brusca e imobilizou o dito veículo cerca de 300 metros após o local da colisão com o animal.
Contudo, e com reporte, desde logo, para o ponto (iii) supra, não se deteta a existência de qualquer erro de julgamento de facto, visto tratar-se de materialidade não alegada pelas partes nos seus articulados iniciais e, bem assim, não extraível do acervo documental junto com os mesmos.
Quanto à possibilidade de tal factualidade poderia ser aditada nos termos do artigo 662º do CPC, saliente-se que a aquisição processual da distância [300 metros] de imobilização do veículo automóvel em relação ao local de colisão não se basta com a mera prestação testemunhal nesse sentido por parte do condutor que seguia o veículo sinistrado, carecendo de efetiva comprovação instrutória, apenas atingível com a segurança exigida com o registo da medição entre o local de embate e o local de imobilização do veículo, que inexiste no caso versado nos autos.
Realmente, compulsados os elementos postos à disposição deste Tribunal, ademais e especialmente, o auto de participação de viação, facilmente se apreende a inexistência de tal registo, o que obstaculiza a aquisição de tal materialidade no âmbito da dinâmica do sinistro descrito nos autos.
Por sua vez, e já no que tange ao tecido fáctico contido nos pontos (i) e (ii) supra, temos, para nós, que é o mesmo inócuo e insuficiente para - de per se, conjugados um com o outro, ou conjuntamente com os demais provados - alteraram a decisão da causa.
Com efeito, a materialidade pretendida aditar - (i)Na data do sinistro e em toda a extensão do sublanço compreendido entre os nós de Vagos e Santo André da A17 onde se integra o local do sinistro, num total de cerca de 5 kms em cada um dos sentidos de marcha, a vedação apresentava-se intacta e sem quaisquer buracos, aberturas, ruturas, anomalias ou deficiências de qualquer espécie” e (ii) “A GNR/BT não comunicou à Ré qualquer deficiência nas condições de circulação no local ou qualquer situação que pusesse em perigo a segurança dos utentes da autoestrada” -, ainda que aditada, seria inócua para alterar a decisão de mérito proferida, que repousa, com direto reporte à Recorrente Autoestradas (...), no circunstancialismo decorrente de não se mostrar elidida a presunção de culpa de incumprimento das obrigações de segurança que impedia sobre esta relativamente a acidente de viação decorrente de atravessamento de canídeo ocorrido no dia 07.02.2016, na A17.
Efetivamente, nada ali nos permite concluir no sentido da elisão da referida presunção de culpa, ou seja, o sentido (i) do apuramento da responsabilidade exclusiva ou concorrencial do condutor na verificação do acidente; (ii) da determinação das circunstâncias que determinaram a presença do animal na via, nomeadamente a sua proveniência, por forma a imputar a sua proveniência a terceiros ou a caracterizá-lo como um caso fortuito; e, bem assim, do (iii) real cumprimento da obrigação por parte da Ré de assegurar das condições de circulação em segurança – que, como veremos mais pormenorizadamente de seguida, não se basta com a aquisição processual da realização por parte das Rés de diligências de mero pendor genérico, como sejam, as materializadas no probatório e as agora pretendidas aditar.
E nesta impossibilidade de “apropriação” da alegação da Recorrente com recurso ao aditamento do quadro fáctico pretendido reside o “punctum saliens” distintivo da falta de préstimo à boa decisão de causa.
Nestes termos, e com os fundamentos acima expendidos, improcede o invocado erro de julgamento de facto.
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Do[s] imputado[s] erro[s] de julgamento de direito, por ofensa do “(…) artigo 5° n° 2, alínea b) do C. P. C., o disposto naquele artigo 12° n° 1 da Lei n° 24/2007, de 18 de julho, mas igualmente o que se dispõe pelo menos nas Bases XXX n° 4, XXXII n° 1, XXXVIII n°s. 1, 2, 5 e 6 do Decreto-Lei n° 87-A/2000, de 13 de maio, na redação aplicável do DL n° 105/2015, de 16 de junho, os artigos 483° e 487° n° 2 e sobretudo o no artigo 570° n° 2 do C. C. e ainda os artigos 4°, 7° n° 1, 9° n° 1 e 10° n°s. 1, 2 e 3 da RRCEEP (Lei n° 67/2007, de 31 de dezembro) (…)” e quanto à decidida “(…) divisão de responsabilidades na ocorrência do acidente e consequente absolvição das RR em 50% do valor peticionado nos autos, bem como a data de inicio da contagem dos juros (…)”.
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A Autora intentou a presente ação administrativa visando a efetivação de responsabilidade extracontratual da Ré Autoestradas (...) por facto ilícito e culposo, brevitatis causae, por danos havidos num veículo automóvel propriedade do seu segurado decorrente de atravessamento de animal na faixa onde circulava, cuja ocorrência imputa àquela, por violação dos deveres de fiscalização, conservação e vigilância das condições de circulação da via concessionada.
O T.A.F. de Aveiro, como sabemos, julgou esta ação parcialmente procedente, consequentemente, condenando “(…) solidariamente a Ré e a Interveniente a pagarem à Autora a quantia de €9 440,51 (nove mil quatrocentos e quarenta Euros e cinquenta e um cêntimo), acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da citação até efetivo e integral pagamento, deduzindo-se a franquia de €5 000,00 (cinco mil Euros), relativamente à Interveniente (…)”.
Escrutinada a constelação argumentativa espraiada na fundamentação de direito da sentença recorrida, é para nós absolutamente cristalino que, no mais essencial, o juízo de procedência parcial da pretensão deduzida pela Autora junto do T.A.F. de Aveiro escorou-se no entendimento de que o acidente dos autos é de imputar, por um lado, à Ré Autoestradas (...) - por violação dos deveres de fiscalização, conservação e vigilância das condições de circulação da via concessionada -, e, por outro, ao segurado da Autora - por incumprimento das regras de circulação - como Autores da contravenção causal do sinistro.

Vêm agora as Recorrentes, por intermédio do recurso sub juditio, colocar em crise a decisão judicial assim promanada.
Realmente, patenteiam as conclusões alegatórias que a Recorrente Autoestradas (...). e A. SUCURSAL EM PORTUGAL insurgem-se quanto ao assim fundamentado e decidido, o que estriba, no mais essencial, na tripla crença de que (i) não se podem caracterizar as obrigações das concessionárias como sendo [obrigações] de resultado, mas antes [obrigações] de meios, sendo certo que, contrariamente ao que se entendeu na sentença recorrida, não subsistem razões bastantes para afirmar uma deficiente demonstração do cumprimento de todas as obrigações que sobre ela impendiam na prevenção do dano e a correspondente ilisão da presunção legal de incumprimento; (ii) a incontornável culpa do motorista do veículo seguro na A. por circular, sem motivo válido ou legítimo, em manifesta transgressão ao disposto no artigo 13º nº 3 do C.E., é mais do que razão suficiente para considerar que este contribuiu decisivamente para a eclosão do acidente, não sendo, por isso, “dividir o mal pelas aldeias” a resposta mais adequada ao caso dos autos; e ainda que (iii) baseando-se a responsabilidade concorrencial do lesado numa simples presunção de culpa, não tem lugar o dever de indemnizar por parte da Ré, nos termos do artigo 570º, nº.2 do CC.
Por sua vez, a Recorrente Z. PLC censura a sentença recorrida, no mais essencial, por manter a firme convicção de que não pode ser imputada qualquer culpa à conduta do condutor do veículo seguro JM, pois que não se provou que o mesmo circulava irregularmente na faixa da esquerda em contravenção ao Código da Estrada, insurgindo-se ainda quanto à data de início de contagem de juros definida na sentença recorrida.
Vejamos, sublinhando, desde já, que os dois esteios argumentativos invocados conexionam-se, pelo que serão objeto de análise conjunta.
Assim, e entrando no conhecimento da primeira questão decidenda, importa que se comece por salientar que, à data do acidente em causa nos autos [07.02.2016], vigorava já o regime jurídico dos direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas e outros tipo de rodovias ali determinadas, aprovado pela Lei nº 24/2007, de 18 de julho [cf. respetivo art.º 14º].
Tal diploma, independentemente da existência de portagens e do pagamento de taxa pela utilização da autoestrada concessionada, e considerando também os itinerários principais e os itinerários complementares, estabeleceu as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis para os utentes, sem prejuízo de regimes mais favoráveis estabelecidos ou a estabelecer [respetivo art.º 1º].
Nos termos do art.º 12º da citada Lei nº 24/2007, “1- Nas autoestradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respetiva causa diga respeito a: a) Objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem; b) Atravessamento de animais; c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança. 3 - São excluídos do número anterior os casos de força maior, que diretamente afetem as atividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de: a) Condições climatéricas manifestamente excecionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos; b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio; c) Tumulto, subversão, atos de terrorismo, rebelião ou guerra”.
Desta previsão legal resulta que a concessionária de autoestrada em que se verifique um sinistro rodoviário causado por objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem, atravessamento de animais e líquidos na via, neste último caso quando não resultantes de condições climatéricas anormais, está onerada com uma presunção de incumprimento das obrigações de segurança que lhe cabe observar.
Esta presunção, porque presume o incumprimento de um certo dever, constitui, simultaneamente, uma presunção da ilicitude de certo facto e uma presunção de culpa, na medida em que revela a inobservância do especial dever de diligência que onera a concessionária [artigo 487º, nº 2, do Código Civil].
Cientes destes considerandos de enquadramento legal, e volvendo ao caso recursivo em análise, cabe notar que se mostra provado, de entre outro tecido fáctico, que a Ré é concessionária da A17, na qual se verificou, entre as 20h30 e as 22h00, do dia 07.02.2016, um acidente de viação decorrente do atravessamento de um canídeo em que foi interveniente o veículo automóvel de matrícula JM.
Ora, é ponto assente [até porque as partes não discutem tal questão] que a manutenção e fiscalização da segurança rodoviária competem aos concessionários, nas vias concessionadas, o que serve para dizer que era sobre a Ré Autoestradas (...), aqui Recorrente, que impendia a obrigação de manutenção da via pública em condições de segurança de circulação.
Na verdade, enquanto concessionária, são impostas à Ré, aqui Recorrente, múltiplas obrigações no sentido de manter padrões de qualidade rodoviária elevados, bem como o dever de assegurar boas condições de segurança.
E se assim é, em face da factualidade apurada nos autos, resulta claro que a Ré, aqui Recorrente, incumpriu a sua função de regulação e controlo, incorrendo, por omissão, na prática de um ato ilícito por omissão, de modo que, verificado está o pressuposto relacionado com a ilicitude.
Esta ilicitude, porém, só é relevante se estiver associada a uma conduta censurável, isto é, estiver associada à culpa, o que significa que a violação das referidas normas, dos princípios gerais ou do dever geral de cuidado não é, por si só, suficiente para fazer nascer a obrigação de indemnizar já que esta só nascerá quando essa violação for culposa, isto é, quando decorrer de um comportamento que podia e devia ter sido evitado e que só não o foi por razões merecedoras de censura.
E isto porque “agir com culpa significa atuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.” [A. Varela, “Das Obrigações em Geral, 3.ª ed., vol. I, pg. 571]
A qual “(…) deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor”, “ sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de atos jurídicos ilícitos” [v. artigo 10º da Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro].
A culpa será aferida, pois, pela diligência exigível a um funcionário ou agente típico, ou seja, um funcionário ou agente zeloso que atua com respeito pela lei, sendo que, sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de atos jurídicos ilícitos.
Não se podendo, pois, falar de autonomização da ilicitude relativamente à culpa em sede de responsabilidade civil extracontratual, importa analisar se o comportamento da Ré infringiu as normas legais ou regulamentares e as regras de cuidado a que devia obediência e, ocorrendo essa infração, se ela se deveu a razões juridicamente reprováveis.
Examinado o probatório coligido, verifica-se que, em substância, ocorreu a colisão do veículo automóvel visado nos autos que circulava contra um cão que se atravessou na via onde aquele circulava pela esquerda da hemifaixa da rodagem.
No quadro em apreço, é evidente que, no plano naturalístico, a causa direta do acidente descrito nos autos foi o aparecimento súbito, na faixa de rodagem, do apontado canídeo.
De facto, não é o facto do condutor do veículo sinistrado circular pela esquerda da hemifaixa da rodagem que nos impele a concluir, por si só, que este é [em parte ou em todo] responsável pela produção do sinistro descrito nos autos.
Realmente, não se ignora que a conduta assim apurada é sintomática da prática de uma contraordenação rodoviária prevista no artigo 13º do Código da Estrada.
Contudo, o fito desta previsão legal não é o de evitar a produção de acidentes rodoviários decorrentes do atravessamento de animais na faixa de rodagem, mas antes de garantir a fluidez do trânsito rodoviário.
Pelo que, não relevando no âmbito da prevenção deste tipo de acidentes, é de manifesta evidência que a simples verificação da referida contraordenação não constitui justificação racional para conferir eventual coautoria da contravenção causal do sinistro nos autos ao condutor do veículo segurado, exigindo-se ainda a demonstração do respetivo nexo ligante.
Sucede, porém, que a matéria de facto dada como provada não legitima a referência a qualquer elemento nesse sentido.
Destarte, o acidente dos autos é de imputar unicamente à Ré Autoestradas (...) como autora exclusiva da contravenção causal do sinistro, permanecendo, por isso, intocável, a presunção de culpa da Ré estabelecida por força do estatuído no nº. 3 do art. 10º da Lei 67/2007.
Cumpre, todavia, apurar se terá a Recorrente Autoestradas (...) logrado ilidir tal presunção de culpa.
Neste domínio, ressalte-se que a Ré, aqui Recorrente, tratar-se a imposição de assegurar as condições de circulação em segurança no lanço concessionado de uma obrigação de meios, que não uma obrigação de resultados.
Mas será mesmo assim?
Esta questão, não sem algumas dificuldades, foi já também objeto de pronúncia pelos Tribunais Superiores.
Na verdade, e conforme já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça [Acórdão de 14/03/2013, P. 201/06.8TBFAL.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt], não se trata de uma mera obrigação de meios, mas antes de uma obrigação reforçada de meios.
Afirma o aresto que “(…) Sem embargo aquele dever de cuidado que incide sobre condutores de veículos, importa não olvidar também que à permissão genérica de, em tais rodovias, se poder conduzir, em regra, até à velocidade máxima de 120 km/h subjaz o cumprimento da obrigação de assegurar a manutenção das condições de segurança estruturais e operacionais que permitam a condução segura à velocidade consentida, integrando o sinalagma do pagamento de uma taxa de portagem. (…) São os concessionários que dispõem de maior facilidade de identificação dos perigos ou de apuramento das circunstâncias que rodeiam acidentes devido a obstáculos existentes na via, tarefa que naturalmente é dificultada ou praticamente impossibilitada aos utentes e terceiros. (…)”.
Baseia-se assim o Supremo Tribunal de Justiça no nível de exigência no cumprimento das obrigações de segurança para apontar a existência de uma obrigação reforçada de meios, não considerando legítima a argumentação pela concessionária da impossibilidade de prever todos e quaisquer acidentes.
Deverá aqui operar uma avaliação razoável das circunstâncias concretas apuradas.
Procurando fixar o padrão de diligência exigível a uma concessionária pela especificidade das situações elencadas no nº 1 do artigo 12º da Lei nº 24/2007, observaremos que o funcionamento da presunção aí estabelecida apenas é afastado nas circunstâncias especificadas nos n.º 2 e 3 do mesmo, ou seja, em “casos de força maior, que diretamente afetem as atividades da concessão e não sejam imputáveis ao concessionário, resultantes de: a) Condições climatéricas manifestamente excecionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos; b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio; c) Tumulto, subversão, atos de terrorismo, rebelião ou guerra”.
Com o propósito de esclarecer o teor da expressão “caso de força maior” em matéria de acidentes de viação decorrentes do atravessamento de animais na faixa de rodagem, convoca-se para a questão decidenda o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.10.2033, tirado no processo nº. 04A1299: “(…)
O aparecimento de um cão de elevado porte na faixa de rodagem da autoestrada constitui reconhecido perigo para quem ali circula. Cabe à Brisa evitar essa (e outras) fonte de perigos, essa anormalidade. Não pode pôr-se a cargo do automobilista a prova da negligência da Brisa ou da origem do cão porque não foi a prestação dele que falhou nem ele tem a direção efetiva, o poder de facto sobre a autoestrada (como um todo, incluindo vedações, ramais de acesso e áreas de repouso e serviço.
Como acima ficou dito, só o «caso de força maior devidamente verificado» exonera o devedor (a concessionária) da sua obrigação de garantir a circulação em condições de segurança e, na hipótese de inexecução, do dever de reparar os prejuízos causados.
Isto significa, no essencial, que «não será suficiente (ao devedor, a Brisa) mostrar que foi diligente ou que não foi negligente: terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que não lhe deixou realizar o cumprimento».
Essa prova só terá sido produzida quando se conhecer, em concreto, o modo de intromissão do animal. A causa ignorada não exonera o devedor, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente (…)”.
Em reforço deste entendimento, ressalte-se o expendido no teor do aresto do S.T.J., de 09.09.2008, tirado no processo 08P1856, em que se afirma: “(…)
Para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, deveria pois a R. provar, em concreto, que o canídeo surgiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na autoestrada, negligente ou intencionalmente, por outrem.
Isto é, sempre que há um acidente devido a um cão (ou outro animal) que se introduziu numa autoestrada, presume-se o incumprimento da concessionária. Esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via, não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem (…)”.
Bem como o teor do jurisprudência firmada no Acórdão da Relação do Porto, 11.01.2011, proc. Nº 4196/08.5TBSTS.P1, em que se refere: “(…)
Em causa estão, (…), certas vias especiais, destinadas ao trânsito rápido, proporcionando a quem as utiliza uma expectativa de circulação em segurança a velocidades até 120 kms/hora, sem que lhe seja exigível um estado de alerta permanente perante a possibilidade de repentino surgimento de obstáculos na via, provocando perigo de despiste, tais como animais a atravessá-la.
Quando, apesar da existência de vedações, um cão se introduz na autoestrada, existe, em princípio, um incumprimento concreto por parte da concessionária, porquanto, nos termos do contrato que celebrou com o Estado, ela se comprometeu, além do mais, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas autoestradas.
E tal presunção de incumprimento subsistirá sempre que, como no caso vertente, seja ignorada a razão da introdução do animal na via. É manifesto que a entrada de um cão na autoestrada pode acontecer por qualquer meio, incluindo ser aí largado por um utente.
Mas, enquanto não for conhecida a efetiva razão do sucedido, é a favor do lesado/utente, e não da concessionária que a respetiva dúvida terá de resolver-se, de acordo com o preceituado no n.º 1 do art.º 12º da Lei n° 24/2007, conjugado com o n.º 1 do art.º 350.º do C.Civil”.
Posição que se acolheu no recentíssimo aresto deste Tribunal Central Administrativo Norte de 17.04.2020, no Procº. n.º processo nº. 01952/15.1BEPRT: “(…)
A presença de um qualquer animal, nomeadamente de um cão, numa autoestrada é sempre um fator de grande risco, já que aos veículos é permitido, em regra, atingir a velocidade de 120 Km/h, ainda que no local em questão o limite fosse de 100km/h, quando é certo que a Recorrente também não demonstrou que a autoestrada estava efetivamente vedada em condições de segurança, ou seja, que tivesse procedido à instalação de mecanismos que permitissem evitar situações como a dos autos.
Não sendo conhecida a efetiva razão determinante do inusitado atravessamento do animal na faixa de rodagem, é a favor do lesado, e não da concessionária, que a respetiva dúvida terá de resolver-se, de acordo com o preceituado no n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, conjugado com o n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil (cfr. neste sentido o Acórdão do TRP, de 04.07.2013, P. 3238/11.1TBGMR.P1).
(…)
Como se sumariou no Acórdão deste TCAN, de 03.05.2007, no Processo n.º 00814/04.2BEBRG, “(…) a ilisão de uma presunção "juris tantum" só é feita mediante a prova do contrário, não sendo bastante a mera contraprova, pelo que o "non liquet" prejudica a pessoa/parte contra quem funciona a presunção.
Sobre o R. impende o ónus de provar a adoção de todas as providências que, segundo a experiência comum e as regras técnicas aplicáveis, fossem suscetíveis de evitar o perigo, prevenindo o dano, o qual não se teria ficado a dever a culpa da sua parte, ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
Para se ter como ilidida a presunção de culpa do R. não basta a simples prova, em abstrato, de que o mesmo desenvolve ou dispõe de funcionários ou dum corpo técnico que têm por função proceder à fiscalização e reparação das vias sob sua jurisdição, pois tem de ser demonstrado quais são as providências desencadeadas em relação à via pública em questão, a fim de que o Tribunal possa aferir se aquele «organizou os seus serviços de modo a assegurar um eficiente sistema de prevenção e vigilância de anomalias previsíveis», exercendo uma «adequada e contínua fiscalização».
Aliás, se dúvidas houvesse, já o Tribunal Constitucional se pronunciou relativamente à interpretação do artigo 12.º/1 da Lei n.º 24/2007, no sentido da sua não inconstitucionalidade, afirmando que “na aceção segundo a qual em caso de acidente rodoviário em autoestradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem, tendo de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento” (Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 596/2009 e n.º 629/2009) (…)”.
Reiterando toda esta linha jurisprudencial, e cotejando o tecido fáctico coligido nos autos, entendemos ser forçosa a conclusão de que não foi ilidida a presunção de culpa que impendia sobre a Ré Autoestradas (...) no que concerne à produção do sinistro dos autos.
Na verdade, não conseguiu a R. provar a forma como o dito animal entrou na autoestrada, por forma a imputar a sua proveniência a terceiros ou a um caso fortuito e que não podia ter adotado conduta diferente daquela que adotou, isto é, não logrou a R. provar factualidade de onde se possa concluir que cumpriu as exigências de diligência na sinalização e remoção dos obstáculos existentes na via, e, por conseguinte, não foi ilidida a presunção de incumprimento que sobre si impendia relativamente ao aludido dever de vigilância.
Por conseguinte, falece o esgrimido pela Recorrente Autoestradas (...) no domínio em análise, decaindo igualmente todo o argumentário reportado à decidida divisão da responsabilidade na ocorrência do acidente.
Realmente, sendo o acidente descrito nos autos de imputar unicamente à Ré Autoestradas (...) como autora exclusiva da contravenção causal do sinistro, não há como viabilizar a alegação de que (i) a incontornável culpa do motorista do veículo seguro na A. por circular, sem motivo válido ou legítimo, em manifesta transgressão ao disposto no artigo 13º nº 3 do C. E., é mais do que razão suficiente para considerar que este contribuiu decisivamente para a eclosão do acidente, não sendo, por isso, “dividir o mal pelas aldeias” a resposta mais adequada ao caso dos autos, ou mesmo (ii) que não tem lugar o dever de indemnizar por parte da Ré, nos termos do artigo 570º, nº.2 do CC, por se basear a responsabilidade concorrencial do lesado numa simples presunção de culpa.
O que se traduz na total improcedência do recurso deduzido pela Autoestradas (...) [e A.].
Já quanto ao recurso interposto pela Recorrente Z., é de assumir a obtenção de “triunfo pleno”, já que, contrariamente ao assumido na sentença recorrida, não é possível imputar ao condutor do veículo segurado a coautoria da contravenção causal do sinistro nos autos.
Pelo que deve ser alterada a decisão recorrida na parte em que opera a redução na proporção de 50% da indemnização a atribuir nos termos do disposto no artigo 570.°, n.° 1 e 572 °, ambos do Código Civil, sendo esta antes definida na proporção de 100% a suportar solidariamente pela Ré Autoestradas (...) e pela Interveniente A. SUCURSAL EM PORTUGAL.
Em tais termos, fixamos a indemnização a atribuir ao A. no montante de € 18, 881,02, deduzido, naturalmente, o valor da franquia de € 5,000,00 relativo à Interveniente A..
Derradeiramente, e ainda quanto ao recurso interposto pela Z., cumpre conhecer do pedido condenatório das RR. no pagamento dos juros de mora vencidos a contar da data da interpelação para pagamento [30.03.2016].
Vejamos.
Como afirmava Antunes Varela [no domínio da versão originária do Código Civil], “no caso da obrigação de indemnizar, há ou pode haver duas indemnizações diferentes, sucessivas, que se somam a favor do credor: uma é a indemnização cujo objeto se pretende liquidar, proveniente de um primeiro facto constitutivo de responsabilidade, que tanto pode ser a mora ou falta de cumprimento da obrigação, como um facto lícito ou ilícito extracontratual ou até uma cláusula de um contrato de seguro; a outra é a indemnização pela mora no cumprimento da obrigação de indemnizar, depois de esta ter sido liquidada", in Revista de Legislação e Jurisprudência, 102-89.
No primeiro caso, trata-se de reparar os danos que o facto causa ao lesado e o critério legal para calcular a indemnização, por equivalente, assenta na teoria da diferença: deve atender-se à diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos [artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil].
Isto é, deve apurar-se a diferença entre a situação real e a situação hipotética atuais do património do lesado. Este critério, assente na comparação da situação do património do lesado, não é obviamente aplicável aos danos não patrimoniais, com ressalva do momento atendível ["data mais recente"] para aferir o cálculo da indemnização, como decorre do princípio geral previsto no artigo 562.º; a fixação do montante da indemnização por esses danos está prevista no artigo 496.º, n.º 3, do Código Civil. [Neste sentido, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª ed., 364 e Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 11.ª ed. 326.]
No segundo caso, visa-se reparar o atraso no cumprimento da obrigação de indemnização por equivalente, correspondendo a indemnização aos juros a contar do dia da constituição em mora [artigo 806.º, n.º 1, do Código Civil].
Neste caso, privativo das prestações pecuniárias, como o é, no fundo, aquela primeira indemnização depois da respetiva liquidação, utiliza-se uma forma abstrata de apuramento dos danos, estabelecendo-se uma indemnização a forfait, com recurso às taxas legais de juros de mora.
Porém, no caso de responsabilidade por facto ilícito [ou pelo risco (e, como é entendido, também por facto lícito)], o legislador criou um termo inicial específico para a mora, anterior à própria liquidação da indemnização: o devedor constitui-se em mora a partir da citação – cfr. artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil - ou seja, em vez de se proceder à avaliação do dano real sofrido com a mora, presume-se que, por estar privado do montante da indemnização, o lesado sofre um prejuízo que corresponde aos juros contados desde a citação [Cfr. Maria da Graça Trigo, Incumprimento da obrigação de indemnizar, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Mário Júlio Brito de Almeida Costa, 997 e 999 e Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2015].

Assim, in casu, não são devidos juros de mora vencidos desde a data da interpelação do R. para pagamento, mas antes desde a citação até integral pagamento, como, aliás, bem se realizou na sentença recorrida.
Mercê do exposto, impõe-se (i) desatender os recursos interpostos pela Autoestradas (...). e A. SUCURSAL EM PORTUGAL e (ii) julgar parcialmente procedente o recurso interposto por Z. PLC , nessa medida, impondo-se a substituição da condenação determinada no dispositivo da sentença recorrida pela condenação solidária daquelas a pagar a esta o montante de € 18, 881,02, deduzido, naturalmente, valor da franquia de € 5,000,00 relativo à Interveniente A., tudo acrescido de juros de mora desde a data de citação até efetivo pagamento.
Ao que se provirá em sede de dispositivo.
* *
IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em:
(i) NEGAR PROVIMENTO recursos interpostos pela Autoestradas (...). e A. SUCURSAL EM PORTUGAL;
(ii) CONCEDER PROVIMENTO ao recurso deduzido por Z. PLC , e, consequentemente, determinar a condenação solidária da Autoestradas (...). e A. SUCURSAL EM PORTUGAL a pagar à Z. PLC o montante de € 18, 881,02, deduzido valor da franquia de € 5, 000,00 relativo à Interveniente A., tudo acrescido de juros de mora desde a data de citação até efetivo pagamento.
Custas dos recurso interpostos pela Autoestradas (...). e A. SUCURSAL EM PORTUGAL pelas Recorrentes.
Custas do recurso deduzido Z. PLC , pela Recorrente e Recorridas, na proporção de 1/3 e 2/3, respetivamente.
Registe e Notifique-se.
* *
Porto, 17 de dezembro de 2021,

Ricardo de Oliveira e Sousa
João Beato
Luís Migueis Garcia