Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
Processo: | 01822/21.4BEPRT |
Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
Data do Acordão: | 02/02/2024 |
Tribunal: | TAF do Porto |
Relator: | Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão |
Descritores: | ACÇÃO ADMINISTRATIVA; MÉDICO DENTISTA/ORDEM DOS MÉDICOS DENTISTAS; PENA DISCIPLINAR; LEI DA AMNISTIA - LEI Nº 38-A/2023, DE 2 DE AGOSTO; NÃO EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA POR INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE; |
Votação: | Unanimidade |
Meio Processual: | Acção Administrativa Comum |
Decisão: | Conceder provimento aos recursos. |
Aditamento: |
Parecer Ministério Publico: |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte: RELATÓRIO «AA», NIF ...80, com domicílio profissional na Avenida ..., ..., instaurou acção administrativa contra a ORDEM DOS MÉDICOS DENTISTAS, NIPC ...79, com sede na Avenida ..., ..., ..., tendente à anulação do Acórdão proferido pelo Conselho Deontológico e de Disciplina da Ordem dos Médicos Dentistas em 17/04/2021, que deliberou aplicar-lhe a pena disciplinar de multa, no montante total de 3.600,00 €, e a pena disciplinar de censura, em cumulação com as sanções acessórias de publicitação das sanções aplicadas. Por sentença proferida pelo TAF do Porto foi julgada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide. Desta vêm interpostos recursos pelo MP e pela OMD. Alegando aquele formulou as seguintes conclusões: 1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos supra referenciados, que julgou extinta a presente instância por inutilidade superveniente, atenta a aplicação da Lei de amnistia consagrada na Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto; 2. A presente ação administrativa foi instaurada por «AA» contra a Ordem dos Médicos Dentistas, por referência a decisão disciplinar em acórdão proferido no âmbito do processo disciplinar nº ...19 desta Ordem, com os seguintes pedidos: “A) Deve a presente ação administrativa ser julgada procedente, por provada e, em consequência deve o Acórdão final proferido pelo Conselho Deontológico e de Disciplina da Ordem dos Médicos Dentistas ser revogado e substituído por outro que absolva o A das acusações que lhe foram imputadas, atentos os vícios de que o Acórdão enferma. B) Caso tal não proceda, sempre deve ser declarada a nulidade insanável do processo disciplinar, atenta a violação de direitos fundamentais do arguido. C) Caso qualquer dos pedidos supra não procedam, o que por mera hipótese se coloca, sempre deverão ser substituídas as penas aplicadas ao Autor por uma pena de censura, a única que se revela conforme ao principio da adequação e proporcionalidade.”. 3. A sentença recorrida considerou aplicável aos presentes autos a amnistia consagrada no artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (doravante “Lei da Amnistia”), entendendo nesses termos amnistiadas as infrações disciplinares objeto da decisão da Ordem dos Médicos Dentistas que aplicou sanções disciplinares ao A., e declarou a extinção da presente instância por inutilidade superveniente da lide. 4. A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (“Lei da Amnistia”), estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude. 5. Desta amnistia ficam, porém, excluídas as infrações disciplinares que constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados por essa mesma lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão (artigo 6.º da citada Lei). 6. Porém, em momento algum o Tribunal a quo indagou se tais infrações podem constituir simultaneamente ilícito criminal não amnistiado para efeitos de aplicação do art.º 6º da Lei da Amnistia; 7. Na verdade, para além das referências genéricas aos normativos deontológicos e do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas aplicados na decisão disciplinar em crise, a sentença omite a descrição e análise das infrações disciplinares em causa nos autos; 8. Nem aprecia se os factos que integram tais ilícitos disciplinares constituem simultaneamente crime, e na afirmativa, que crime; obviando, nomeadamente, a que os mesmos poderão integrar a prática de crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, previsto e punido pelo art.º 150º, nºs 1 e 2, do Código Penal e/ou o crime de ofensa à integridade física simples ou de ofensa à integridade física por negligência, tal como p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 148º, nºs 1 a 3, ambos do Código Penal, em eventual concurso com a prática de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, p. e p. pelo artigo 156º, nº1, do Código Penal, por referência ao disposto no art.º 157º do mesmo diploma legal. 9. A sentença recorrida também não contém elementos que permitam apurar a idade do Autor à data da prática dos factos que constituíram a infração disciplinar, para permitir verificar se, caso a infração disciplinar constitua simultaneamente crime “amnistiável”, tal ilícito penal está efetivamente amnistiado (o que apenas aconteceria se o agente do ilícito tivesse entre 16 e 30 anos, nos termos do art.º 2.º, n.º 1, da Lei da Amnistia). 10. Acresce ainda que a sentença omite os elementos que permitam aferir se às infrações disciplinares em causa não é abstratamente aplicável sanção superior a suspensão, o que também é requisito de aplicação da Lei da Amnistia, nos termos do já citado artigo 6.º - o que deveria ser aferido em abstrato e não em função da sanção/sanções concretamente aplicadas ao A.; 11. Face ao exposto, a sentença ora em crise viola claramente o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (“Lei da Amnistia”), por ter considerado amnistiados ilícitos disciplinares sem prova de que os mesmos não constituem simultaneamente ilícito penal não amnistiado, e sem ter verificado se a sanção abstratamente aplicável a tais ilícitos é superior a sanção de suspensão. 12. Pelo que a sentença deverá ser revogada por violação da lei. Nestes termos, e nos demais de direito que suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, a douta sentença recorrida ser revogada. Porém, decidindo, farão Justiça! A OMD, em alegações, concluiu: 1ª – NO QUE TANGE A INFRACÇÕES DISCIPLINARES A LEI DA AMISITA TEM TAMBÉM UM TETO ETÁRIO IGUAL A 30 ANOS À DATA DA PRÁTICA DA INFRACÇÃO, POIS A MESMA É JUSTIFICADA PELA JUVENTUDE DOS INFRATORES A PROPÓSITO DA VINDA DO PAPA POR OCASIÃO PRECISAMENTE DA JORNADAS DA JUVENTIDE, PELO QUE SÓ PODEM ESTAR NO ESPETRO DA AMNISTIA AQUELES SUJEITOS QUE À DATA DA INFRAÇCÃO NÃO ULTRAPASSASEM, COMO É O CASO DO ARGUIDO AQUI RECORRIDO, A IDADE DE 30 ANOS. 2ª – SÓ SÃO AMNISITIÁVEIS INFRACÇÕES QUE NÃO CORRESPONDAM DE TODO A INFRACÇÕES PENAIS OU, QUE, CORRESPONDENDO A ESTE TIPO DE INFRACÇÕES, APENAS CORREPONDAM A INFRAÇCÕES PUNIVEIS COM MENOS DE UM ANO DE PRISÃO OU MENOS DE 120 DIA DE MULTA. 3º- O TRIBUNAL A QUO NÃO FEZ QUALQUER REFLEXÃO SOBRE QUALQUER UM DESTES PONTOS PARA CONCLUIR QUE AS INFRACÇÕES EM CAUSA NOS AUTOS SÃO AMNISITÁVEIS E MUITO MENOS PARA CONCLUIR PELA AMNISTIA DAS MESMAS. 5º- NÃO HÁ DÚVIDA QUE AS INFRAÇÕES EM CAUSA CABEM DENTRO DO TIPO LEGAL ABSTRATO DE INFRAÇÕES PENAIS. E AS MESMAS PODEM, SOBRETUDO EM CÚMULO, SER PUNÍVEIS COM MAIS DE 1 ANO PRISÃO OU 120 DIAS MULTA. 6º- INEXISTINDO FUNDMENTAÇÃO DA AMISITIA DECRETADA NESTE PONTO A DECISÃO É NULA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. 7º- MAS SE NULA NÃO FOR, ESTÁ INQUINADA COM ERRO DE JULGAMENTO, POIS NÃO É NECESSARIO FAZER GRANDE ESFORÇO DE FUNDAMENTAÇÃO PARA VERIFICAR QUE OS FACTOS APONTADOS AO ARGUIDO E AS INFRACÇÕES DISCIPLINARES CONSTANTES DA DECISÃO SANCIONATÓRIA PODEM CORRESPONDER A ILICITOS PENAIS NÃO AMNISITIÁVEIS PRECISAMENT POR LHES SER APLICÁVEL PENA DE PRISÃO SUPERIOR A UM ANO OU SUPERIOR A 120 DIAS DE MULTA, PELO QUE OS MESMOS NUNCA DEVERIMA TER SIDO DECLARADOS AMNISTIADOS NOS PRESENTES AUTOS. NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER MANTIDO E JULGADO PROCEDENTE NOS TERMOS SUPRA EXPOSTOS. O Autor juntou contra-alegações, concluindo: I. No que concerne à relação entre a amnistia das infrações disciplinares e a restrição etária prevista no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, dúvidas não sobejam de que a Lei da Amnistia não estipula qualquer limite de idade, ou estabelece quaisquer categorias profissionais abrangidas, englobando no seu âmbito todas as infrações disciplinares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, desde que estas não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar (Cfr. Artigo 6.º). II. Bem andou, por isso, o douto Tribunal “a quo” ao considerar que, da análise conjunta dos preceitos legais da Lei da Amnistia (artigos 2.º, n.º 2, alínea b), e 6.º), resulta claro que, no caso da amnistia das infrações disciplinares, foi afastado do âmbito de aplicação o limite de idade imposto no artigo 2.º, n.º 1, da referida Lei, aplicável aos ilícitos penais, sobretudo considerando que a Lei da Amnistia, atento o seu carácter excecional, é insuscetível de interpretação e de aplicação analógica. III. Efetivamente, as leis de amnistia, como providências de exceção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações, nem restrições, que nelas não venham expressas. IV. O advérbio “igualmente”, tal como vertido no n.º 2 do artigo 2.º da Lei da Amnistia, significa «também» ou «ainda», visando, apenas e tão-só, expressar que as sanções relativas a infrações disciplinares «também» se encontram abrangidas pela referida Lei (i.e., a par das sanções penais, e não necessariamente em condições iguais e/ou idênticas). V. O que, de resto, é corroborado pela remissão efetuada pelo artigo 2.º, n.º 2, alínea b), in fine, para o artigo 6.º [“nos termos definidos no artigo 6.º”], que encerra os pressupostos a concretamente observar para que tais infrações se considerem amnistiadas, não se efetuando, uma vez mais, menção a qualquer restrição de idade aplicável. VI. Não obstante, mesmo na parte relativa às infrações penais, a restrição etária estabelecida no artigo 2.º, n.º 1, da Lei da Amnistia, deve ser desconsiderada, por se tratar de norma inconstitucional, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da Lei Fundamental). Depois, VII. As infrações disciplinares em apreço foram cabalmente descritas e analisadas pela Ordem dos Médicos Dentistas no ato administrativo impugnado, que nunca concebeu tais factos como passíveis de integrarem factos de natureza criminal, designadamente para efeitos de participação junto das autoridades competentes. VIII. O mesmo se diga relativamente à paciente queixosa que despoletou os autos, configurando-os apenas como factos passíveis de constituírem ilícitos de natureza meramente disciplinar. IX. Nunca ao Recorrido foi, por isso, imputada a prática de qualquer ilícito de natureza criminal – o que, por si só, justifica a decisão emanada pela Mm.ª Juíza “a quo”, no sentido de que tais ilícitos não constituem ilícitos de natureza criminal. X. A tarefa de qualificação penal é reserva da jurisdição penal, sendo inadmissível, mesmo para efeitos limitados de aplicação da Lei da Amnistia, que um mesmo facto possa ser qualificado como ilícito criminal para efeitos de não ser dado por disciplinarmente amnistiado, sem ter sido – ou poder ser – qualificado como ilícito penal pelos tribunais competentes para efeitos criminais. XI. Daí que, na falta de sentença penal, outra solução não reste senão aplicar a amnistia e dar por extinto o procedimento disciplinar, sob pena de interpretação fraturante do sistema jurídico, o que acontece se uma determinada conduta for qualificada de criminosa para efeitos administrativos e não criminosa para efeitos penais. XII. Nunca os factos denunciados poderiam, assim, qualificar-se como crime, designadamente por inexistir decisão em processo penal sobre tal qualificação. Por isso, bem andou o douto Tribunal “a quo” a aplicar a amnistia e a decidir que o processo não deveria prosseguir. XIII. De qualquer forma, ainda que, por mera hipótese, se considere que a qualificação de um facto como crime, para os estritos efeitos de aplicação ou desaplicação da amnistia a estas infrações, deve ser operada pela entidade administrativa, ou pelo Tribunal “a quo”, o certo é que a conclusão a alcançar sempre seria no sentido da amnistia das infrações imputadas ao Recorrido, tal como concluído na Sentença recorrida, porquanto, em concreto, tais factos não podem sustentar qualquer responsabilidade criminal. XIV. Dos quatro ilícitos penais aludidos pela Digníssima Magistrada do Ministério Público nas suas Alegações de Recurso, apenas um apresenta natureza pública – o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo artigo 150.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal. XV. Os demais apresentam natureza semipública. XVI. Extinguindo-se, nos termos do artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, o direito de queixa no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, não tendo sido exercido este direito, nunca se poderia considerar que o Recorrido incorreu em tais crimes (por tais factos não serem, ainda que formalmente, passíveis de responsabilidade criminal), o que deve ser considerado para efeitos de aplicação da Lei da Amnistia. XVII. E o mesmo se diga relativamente ao crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo artigo 150.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, embora por razão distinta – por efeito de prescrição. XVIII. Nos termos do n.º 2 do artigo 150.º do Código Penal, este crime é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias. De acordo com o artigo 118.º do mesmo Código, o procedimento criminal, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos, extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido cinco anos (cfr. alínea c) do n.º 1). O que ocorre nos presentes autos, visto que a prática dos factos imputados ao Recorrido remonta ao ano de 2017. XIX. O que, uma vez mais, deve ser considerado para efeitos de se darem por amnistiados as infrações disciplinares imputadas ao Recorrido. XX. Sem prejuízo, de acordo com o artigo 7.º a contrario, sempre estaríamos perante ilícitos penais amnistiáveis, na medida em que, mesmo na parte relativa às infrações penais, a restrição etária estabelecida no artigo 2.º, n.º 1, da Lei da Amnistia, deve ser desconsiderada, por se tratar de norma inconstitucional, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da Lei Fundamental). XXI. Também não pode conhecer provimento o argumento de acordo com o qual, nos termos do artigo 6.º da Lei da Amnistia, é necessário aferir se às infrações disciplinares não é abstratamente aplicável sanção superior a suspensão. Este raciocínio deve ser aferido em função das sanções concretamente aplicadas ao Recorrido, i.e., tal como juridicamente enquadradas pela entidade demandada, na qualidade de entidade competente para a punição, pelo que bem andou a Mm.ª Juíza a concluir pelo preenchimento deste pressuposto. XXII. Aliás, da leitura do artigo 83.º do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas resulta que, em termos abstratos, qualquer infração disciplinar é passível de acarretar sanção disciplinar superior à de suspensão, porquanto a determinação da sanção é aferida em função do grau da culpa, dependendo, sempre por isso, de um juízo concreto. XXIII. Deste juízo concreto dependerá, por isso, também, a ponderação e a aplicação da Lei da Amnistia, devendo aludir-se às sanções concretamente aplicadas pela Ordem dos Médicos Dentistas. XXIV. Por fim, e no que concerne ao alegado pela Recorrente Ordem dos Médicos Dentistas no sentido de que apenas são amnistiáveis as infrações que não correspondam de todo a infrações penais ou que, correspondente a este tipo de infrações, apenas correspondam a infrações puníveis com menos de um ano de prisão ou menos de 120 dias de multa, donde retira esta conclusão, não vislumbra o aqui Recorrido, porquanto o artigo 6.º reporta-se a sanções aplicáveis não superiores a suspensão ou prisão disciplinar, pelo que cumpre apenas salientar que, a este respeito, também não pode, de todo, proceder o invocado. NESTES TERMOS, E nos melhores de Direito que suprirão, Deve o recurso interposto ser julgado improcedente, confirmando-se a douta Sentença recorrida. Devem ser conhecidas e declaradas as inconstitucionalidades invocadas. Cumpre apreciar e decidir. FUNDAMENTOS DE FACTO Na decisão foi fixada a seguinte factualidade: 1. O autor é médico dentista com a cédula profissional nº ...77 (facto não controvertido); 2. Em 22/01/2019, «BB» deu entrada junto do Conselho Deontológico e de Disciplina da Ordem dos Médicos Dentistas de uma participação disciplinar contra o autor (cfr. fls. 1-2 do processo administrativo incorporado a fls. 139-367 dos autos cautelares apensos nº 1285/21...., doravante PA); 3. Em 20/07/2019, foi proferido o despacho de instauração de processo disciplinar nº ...19 ao autor (cfr. despacho a fls. 12 do PA); 4. Em 17/04/2021, foi proferido Acórdão pelo Conselho Deontológico e de Disciplina da Ordem dos Médicos Dentistas que deliberou a aplicação ao autor: (i) da pena disciplinar de multa no valor de 3.600,00 €; (ii) da pena disciplinar de censura; e, (iii) da sanção acessória de publicitação das sanções aplicada (cfr. fls. 151-164 do PA); 5. Por sentença proferida em 09/07/2021 no processo cautelar nº 1285/21.... foi determinada “a suspensão dos segmentos decisórios do acto suspendendo em que se determinou a aplicação de duas sanções acessórias de publicitação da pena” (por consulta ao SITAF). DE DIREITO Está posta em causa a decisão que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide. Constitui entendimento unívoco da doutrina e obteve consagração legal o de que o objecto do recurso jurisdicional se encontra delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, por parte do recorrente, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matéria que nelas não tiver sido versada, com ressalva óbvia, dos casos que imponham o seu conhecimento oficioso. Assim, vejamos, Da impossibilidade/inutilidade superveniente da lide - Sobre esta temática, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo entende que só se verifica a inutilidade superveniente da lide quando essa inutilidade for uma inutilidade jurídica e que, por ser assim, não se pode considerar actividade inútil o prosseguimento do processo quando ele se destine a expurgar da ordem jurídica um acto ilegal e a proporcionar a tutela efectiva dos direitos daqueles a quem o mesmo atinge. A utilidade da lide correlaciona-se, assim, com a possibilidade da obtenção de efeitos úteis pelo que a sua extinção só deve ser declarada quando se conclua, com a necessária segurança, que o provimento do recurso em nada pode beneficiar o recorrente - Acórdãos de 18/1/01, Proc. 46.727, de 30/9/97, Proc. 38.858, de 23/9/99, Proc. 42.048, de 19/12/00, Proc. 46.306 e de 29/05/2002, Proc. 47.745, entre outros. Como decorre do artigo 2º/2 do CPTA, a utilidade de uma acção judicial afere-se pelo efeito jurídico que o autor pretende com ela obter. A utilidade da lide está, pois, correlacionada com a possibilidade de obtenção de efeitos úteis, pelo que a sua extinção, com base em inutilidade superveniente, só deverá ser declarada quando se possa concluir que o prosseguimento da acção não trará quaisquer consequências benéficas para o autor. Tal declaração postula e pressupõe que o julgador possa efectuar um juízo apodítico acerca da total inutilidade superveniente da lide. A inutilidade superveniente da lide tem, pois, a ver com a perda de interesse em agir, ou seja, com a perda da necessidade do processo para obter o pedido. O que equivale a dizer que tal inutilidade se dá, se e quando o efeito jurídico pretendido através do processo foi plenamente alcançado durante a instância. A inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, ocorrerá sempre que, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito ou ao objecto do respectivo processo, configurando-se como um modo anormal de extinção da instância, por cotejo com a causa dita normal, traduzida na prolação de uma sentença de mérito (cfr. Alberto dos Reis, em Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, págs. 364 e seguintes e Lebre de Freitas, em Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 512). Isto é, existe impossibilidade/inutilidade superveniente da lide sempre que se verifica uma ocorrência factual que inviabiliza a produção de efeitos jurídicos que o requerente esperava alcançar com a procedência da providência; o mesmo é dizer que a impossibilidade/inutilidade superveniente da lide se verifica quando por facto ocorrido na pendência da instância a pretensão do autor/requerente não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo. Voltando à situação vertente, conforme refere a sentença recorrida, no dia 02.08.2023 foi publicada na 1.ª série do Diário da República a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (doravante “Lei da Amnistia”), que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude. Decorrendo da alínea b) do n.º 2 do artigo 2.º dessa Lei da Amnistia que, no seu âmbito de aplicação, encontram-se também abrangidas as “Sanções relativas a infrações disciplinares (...) praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º” Assim, nos termos do artigo 6º da citada Lei: “São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.” Ora, cotejando a fundamentação de direito da sentença com os factos dados como provados, não se vislumbra qualquer suporte fáctico para a afirmação de que “Estamos, portanto, diante de uma infracção disciplinar (...) que não é passível de constituir ilícito criminal”. Na verdade, em momento algum da sentença é descrita e analisada a matéria de facto que integra as infrações disciplinares em causa para se poder concluir (ou não) que as mesmas não constituem ilícitos criminais. Com efeito, o Tribunal pode e deve, na prossecução normal dos poderes-deveres em que se analisa a sua competência para apreciação do processo disciplinar, pronunciar-se sobre a relevância criminal dos factos integradores de faltas disciplinares, para os restritos efeitos de aplicação ou desaplicação da amnistia às infrações em apreço. O Tribunal deve escrutinar os factos que fizeram incorrer o arguido (aqui Autor) em infração disciplinar para apurar se, em termos abstratos, podem constituir simultaneamente ilícito criminal (ou não) e ainda, na hipótese afirmativa, se tal ilícito criminal está (ou não) abrangido pela Lei de Amnistia, designadamente para efeitos das causas de exclusão estipuladas no artigo 7º da referida Lei. Porém, o Tribunal a quo nada disto fez, limitando-se a proferir uma decisão genérica e, por isso, infringiu o disposto no art.º 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto. Aliás, se atentarmos no teor das infrações disciplinares em causa nos presentes autos - (i) violação dolosa do artigo 8º do Código Deontológico da OMD consubstanciada na violação das leges artis, ao abster-se de realizar o CBCT previamente à colocação de implantes; (ii) violação do dever deontológico previsto no n.º 1, do artigo 19º do Código Deontológico da OMD, de requerer o consentimento escrito ao paciente antes de avançar com um tratamento considerado arriscado - facilmente se conclui que, em abstrato, poderão integrar a prática do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos previsto e punido pelo artº 150º, nºs 1 e 2, do Código Penal e/ou o crime de ofensa à integridade física simples ou de ofensa à integridade física por negligência, tal como p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 148º, nºs 1 a 3, ambos do Código Penal, em eventual concurso com a prática de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, p. e p. pelo artigo 156º, nº1, do Código Penal, por referência ao disposto no art.º 157º do mesmo diploma legal. Note-se, também, que a sentença não contém elementos que permitam apurar a idade do Autor à data da prática dos factos que constituíram a infração disciplinar, para permitir verificar se, caso a infração disciplinar constitua simultaneamente crime “amnistiável”, tal ilícito penal está efetivamente amnistiado (o que apenas aconteceria se tivesse entre 16 e 30 anos, nos termos do art.º 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto). Acresce ainda que a sentença omite os elementos que permitam aferir se às infrações disciplinares em causa não é abstratamente aplicável sanção superior a suspensão, o que também é requisito de aplicação da Lei da Amnistia, nos termos do já citado artigo 6.º - o que deveria ser aferido em abstrato e não em função da sanção/sanções concretamente aplicadas ao Autor. Assim, a sentença em crise violou o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (“Lei da Amnistia”), ao considerar amnistiados ilícitos disciplinares sem prova de que os mesmos não constituem ilícito penal não amnistiado, nem verificar se a sanção aplicável a tais ilícitos é superior a suspensão. Tudo inculca, pois, pela não manutenção o julgado. De acordo com a doutrina e a jurisprudência entende-se que há inutilidade da lide quando o objecto da acção já se realizou ou se tornou impossível. In casu, contrariamente ao entendimento sufragado pelo Tribunal recorrido, tal não pode ser afirmado. Desta forma, não se verifica a decretada inutilidade da lide, porquanto face à factualidade constante dos autos não ficou demonstrado que o prosseguimento da acção seria absolutamente inútil. Em suma, O julgamento da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide pressupõe a formulação de um juízo sobre o prosseguimento daquela e que dele resulte o convencimento de que esse prosseguimento é absolutamente inútil por não trazer benefícios a nenhuma das partes; Tal equivale a dizer que, no caso posto, não se mostra verificada a inutilidade superveniente da lide, determinante da extinção da instância, conforme emana do preceituado na alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA; A extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou por encontrar satisfação fora do esquema da providência/pretensão requerida, sendo que num e noutro caso a solução do litígio deixa de interessar; Este modo de terminar com a lide consubstancia-se naquilo a que a doutrina designa por “modo anormal de extinção da instância”, visto que a causa de extinção natural/normal é a decisão de mérito; O tribunal só pode julgar extinta a instância por essa causa (inutilidade/impossibilidade da lide) se estiver em condições de emitir um juízo apodítico acerca da ocorrência superveniente da inutilidade, já que esta modalidade de extinção da instância exige a certeza absoluta da inutilidade a declarar, o que ora não sucede; No caso concreto, não tendo perdido pertinência e utilidade a acção, nos termos do artigo 277º/e) do CPC, ex vi artigo 1° do CPTA, não pode ser declarada a extinção da lide; E de nada vale o Autor argumentar com a violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da Lei Fundamental); (Como é sabido, na definição aristotélica de igualdade, discernir casos similares e diferentes é crucial: só os casos iguais devem ser tratados de forma igual, devendo os casos diferentes ser tratados de forma desigual na proporção da sua diferença. Como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., o princípio da igualdade "exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes", o que se traduz, afinal, numa proibição do arbítrio. No mesmo sentido se afirma no Acórdão do STA de 26/09/2007, rec. 1187/06, “o princípio da igualdade traduz-se numa proibição do arbítrio, impondo, na consideração das suas dimensões igualizante e diferenciante, um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes". Este sentido vinculante do princípio da igualdade tem sido exaustivamente enunciado pelo Tribunal Constitucional, em inúmeros arestos, de que se destaca o Acórdão 186/90 - proc. n.°533/88, de 06/06/90, do qual se destaca o seguinte trecho: "O princípio constitucional da igualdade do cidadão perante a lei é um princípio estruturante do Estado de direito democrático e do sistema constitucional global..., que vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, 1.° vol., cit., p. 151, e Jorge Miranda, «Princípio da Igualdade», in Polis/Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, vol. III, Lisboa, São Paulo, Verbo, 1985, págs. 404/405. Este facto resulta da consagração pela nossa Constituição do princípio da igualdade perante a lei como um direito fundamental do cidadão e da atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional-artigo 18.°, n.°1, da Constituição. Princípio de conteúdo pluridimensional, postula várias exigências, entre as quais a de obrigar a um tratamento igual das situações de facto iguais e a um tratamento desigual das situações de facto desiguais, proibindo, inversamente, o tratamento desigual das situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais. Numa fórmula curta, a obrigação da igualdade de tratamento exige que «aquilo que é igual seja tratado igualmente, de acordo com o critério da sua igualdade, e aquilo que é desigual seja tratado desigualmente, segundo o critério da sua desigualdade». (...) O princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio. (...) E, no mesmo sentido, cfr. o Acórdão nº 39/88 (Diário da República, l Série, de 3 de março de 1988): «O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio, ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificarão razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n° 2 do artigo 13°. Esclareça-se que a «teoria da proibição do arbítrio» não é um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, antes expressa e limita a competência de controlo judicial. Trata-se de um critério de controlabilidade judicial do princípio da igualdade que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador ou da discricionariedade legislativa. A proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade.”- na mesma linha, o Acórdão do STA nº 073/08 de 13/11/2008. Ou seja, este sentido vinculativo do princípio da igualdade, exaustivamente enunciado pelo Tribunal Constitucional, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante).
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