Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00476/18.0BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/29/2022
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:ACIDENTE RODOVIÁRIO; AUTO-ESTRADA; CIRCULAÇÃO DA VIA DO MEIO; INFRACÇÃO; 14.º, N.º1, DO CÓDIGO DA ESTRADA:
APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 114/94, DE 03.05, NA REDACÇÃO DADA PELA LEI N.º 72/2013; CONCORRÊNCIA DE CULPAS; ARTIGO 342º, N.º2, DO CÓDIGO CIVIL, E ARTIGOS 264º, 487º E 516º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:1. Face ao disposto no artigo 14.º, n.º1, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03.05, na redacção dada pela Lei n.º 72/2013, circular na via central ou mais à esquerda de uma auto-estrada não constitui, só por si, infracção; a infracção traduz-se em circular numa dessas vias quando se pode circular na via mais à direita.

2. Tendo-se provado apenas que o veículo sinistrado circulava na via central, mas não se provando que no momento do acidente pudesse circular mais à direita, não foi feita prova da infracção que implicaria a culpa concorrente da lesada.

3. A falta desta prova resolve-se contra a Ré concessionária da auto-estrada, a quem cabia provar a infracção do condutor do veículo sinistrado - artigo 342º, n.º2, do Código Civil, e artigos 264º, 487º e 516º, estes do Código de Processo Civil, acima referidos
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

A GI--- veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, de 12.10.2022, pela qual foi julgada apenas parcialmente procedente a acção administrativa comum que intentou contra a Brisa Concessão Rodoviária, S.A. para condenação da Ré a pagar-lhe a importância 8.218,92 euros, importância que pagou como obrigação assumida por contrato de seguro que teve por objecto o veículo com a matrícula XX-XX-XX e em virtude dos estragos que sofreu este veículo num acidente ocorrido na A1, devido à existência de um pneu na via.

Invocou para tanto, em síntese, que, ao contrário do decidido, não há lugar a repartição de culpas pela eclosão do acidente em causa, pois não pode não pode ser imputada qualquer culpa à conduta do condutor do veículo seguro, sendo certo que, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo não se provou nos autos que o condutor circulava na faixa central em contravenção ao Código da Estrada.

A Brisa contra-alegou defendendo a improcedência do recurso; defendeu ainda, para além da improcedência do recurso que “deve a douta Sentença ora recorrida ser alterada, absolvendo-se da condenação parcial a Ré Brisa Concessão, S.A., porque nada se provou quanto à ilicitude e culpa da mesma, para que de relevante e em termos justificativos se possa vir a condenar no pedido formulado”. Juntou parecer jurídico.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
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Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1. A ora Apelante não se pode conformar com a sentença, no que respeita à divisão de responsabilidades na ocorrência do acidente e consequente absolvição das Rés em 40% do valor peticionado nos autos.

2. Entendeu o Tribunal a quo, e bem, no modesto entender da ora Recorrente que o acidente ocorreu devido à falta de cumprimento dos deveres de vigilância da Ré, pois caso estes tivessem sido cumpridos o acidente nunca teria ocorrido, pois nunca se verificaria a presença do lancil de pedra na via.

3. Considerou, ainda, o Tribunal a quo, e bem, que a Ré não iludiu a presunção de culpa e de ilicitude que sobre si impendia, concluindo ainda que se encontra verificado o nexo de causalidade entre o facto ilícito (da Ré) e os danos sofridos pela Autora.

4. No entanto o Tribunal a quo acaba concluindo que a conduta do condutor do veículo seguro não pode ser considerada isenta de contribuir para a verificação do acidente.

5. No modesto entender da ora Recorrente, não pode ser imputada qualquer culpa à conduta do condutor do veículo seguro.

6. Não se provou nos autos que o condutor circulava na faixa central em contravenção ao Código da Estrada, pelo que não se pode retirar a ilação que se lá circulava é porque o fazia irregularmente.

7. Tendo sido julgado e decidido que a Ré não ilidiu a sua presunção e culpa e de incumprimento dos seus deveres, não poderá presumir-se, ainda e após este facto, a culpa do condutor do veículo.

8. Verificada a inversão do ónus da prova, em virtude do estabelecido no artigo 12º da Lei 24/2007, incumbia à Ré a prova sobre os factos objectivos que levaram à produção do acidente por culpa de outrem (nomeadamente do condutor).

9. Dos factos dados como provados na sentença de que ora se recorre, não pode ser assacado qualquer vestígio de censura ou negligencia à conduta do condutor do veículo seguro.

10. Nenhuma responsabilidade pode ser assacada ao condutor do veículo seguro motivo pelo qual devem as Rés ser condenadas na totalidade do pedido efectuado nos autos.
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II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

A. A Autora exerce, devidamente autorizada, a indústria de seguros em diversos ramos.

B. No exercício da sua actividade, a Autora celebrou com AS---, SA um contrato de Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel e contratou as coberturas facultativas nomeadamente a de “Choque, colisão e capotamento” relativo ao veículo de matrícula XX-XX-XX - documento n.º 1 da petição inicial.

C. A AS---, segurada da ora Autora, era, à data de 04.10.2017, legítima proprietária do veículo de matrícula XX-XX-XX - documento n.º 2 da petição inicial.

D. No dia 04.10.2017, pelas 20:15 horas, na A1, sentido Sul/Norte, km 282,500, no concelho de (...), ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente o veículo de matricula XX-XX-XX, segurado na Autora, conduzido por RF... no momento do acidente – motivação da matéria de facto.

E. O referido local caracteriza-se por ser uma recta em patamar – cfr. documento n.º 3 da petição inicial; motivação da matéria de facto.

F. O local caracteriza-se ainda por ser uma auto-estrada com três hemi-faixas de rodagem para cada sentido de marcha divididas por um separador central - motivação da matéria de facto.

G. O veículo de matrícula XX-XX-XX circulava na A 1, sentido Sul/Norte, na via central e, quando passava ao KM 282,500 o condutor do veículo foi surpreendido pela existência de um objecto escuro de média dimensão em plena faixa de rodagem, e não lhe sendo possível evitar o embate, veio a embater no referido objecto - motivação da matéria de facto.

H. Após o embate o condutor do veículo de matrícula XX-XX-XX imobilizou o veículo na berma alguns metros após a ocorrência do embate, tendo verificado que da parte inferior do veículo estava a sair liquido e existiam danos bem visíveis - motivação da matéria de facto.

I. O objecto que existia na faixa de rodagem era um pneu de grandes dimensões - motivação da matéria de facto.

J. No local já existiam outros veículos imobilizados que haviam embatido no pneu - motivação da matéria de facto.

K. A GNR deslocou-se ao local e tomou conta da ocorrência, conforme documento n.º 3 da petição inicial que se dá por integralmente reproduzido.

L. Em sequência do sinistro dos presentes autos, o veículo de matrícula XX-XX-XX, sofreu diversos danos, tendo sido retirado do local pelo reboque - conforme doc. n.ºs 5 e 6 da petição inicial; matéria de facto.

M. A reparação foi orçada em 10.921€72, tendo sido paga pela segurada da Autora - conforme documentos n.ºs 7 e 8 da petição inicial; motivação da matéria de facto.

N. A Autora procedeu ao reembolso para com a AS--- do valor despendido com a reparação do veículo XX-XX-XX, deduzido do IVA suportado, no valor total de 8.218€92 - Cfr documento 9 da petição inicial; motivação da matéria de facto.

O. No dia 04.10.2017, cerca das 20h17m, o Centro de Coordenação Operacional da Ré BCR, recebeu uma comunicação, informando da colisão de várias viaturas com um obstáculo que se encontraria na via, ao Km 282,500, da Al, no sentido Sul/Norte - cfr. documento n.° 2 da petição inicial; motivação da matéria de facto.

P. O operador da central de comunicações, accionou às 20h:29m:24s, o painel de mensagem variável (PM 1130), existente ao Km 280,890, naquele sentido de trânsito (S/N) da Al, com o intuito de avisar os utentes para a existência de um acidente na via e com a seguinte mensagem: Acidente a 2 Km Seja Prudente" - cfr. documento n.° 3 da petição inicial; motivação da matéria de facto.

Q. A referida Central de Comunicações do C.C.O. da Ré, deu também indicações ao mecânico de serviço (Sr. MN....) para se deslocar para o local em questão, a fim de sinalizar e retirar o alegado obstáculo da área concessionada, bem como, prestar assistências às viaturas imobilizadas no local, chegando este ao local às 20:53 - cfr. documento n.° 2 da petição inicial; motivação da matéria de facto.

R. O mecânico da BO--- MN.... que se encontrava em patrulhamento no local, às 20h:54m, constatou antes de chegar junto, nomeadamente, da viatura automóvel com a matrícula XX-XX-XX (QI), a existência de um rasto de pneumático depositado na linha continua da berma direita da autoestrada Al, ao Km 282,500, no sentido Sul/Norte – cfr. documentos, n.ºs 2 e 4 da petição inicial; motivação da matéria de facto.

S. O CCO, enviou também para o Km. 282,500, da Al, no sentido Sul/Norte o Oficial de Mecânica JV...., em acção de socorro e protecção, às viaturas imobilizadas na berma direita da Al, ao Km 282,500, no sentido Sul/Norte, chegando ao local às 21:14 minutos - cfr. documento n.° 2 da petição inicial; motivação da matéria de facto.

T. A aludida Central de Comunicações reportou também a ocorrência à GNRBT de (...), que chegou ao local onde as viaturas automóveis estavam imobilizadas, às 20h:53m - cfr. documento n.°2, já junto com a presente.

U. O Oficial de Mecânica da BO--- MN.... retirou um rasto de pneumático depositado na linha continua da berma direita, ao Km 282,500, atento o sentido de marcha do aludido veículo (Sul/Norte) – cfr. documentos, n.ºs 2 e 4 da petição inicial; motivação da matéria de facto.

V. A GNR/BT procede ao patrulhamento da A1, 24h sobre 24h horas – motivação da matéria de facto.

W. A Ré BCR tem ao seu dispor meios efectivos de fiscalização que são compostas por veículos automóveis da BO---, que constantemente, 24 horas sobre 24 horas, circulam pela A1, a fiscalizar, a verificar e a solucionar eventuais problemas que surjam e a prestar assistência aos demais utentes dessas mesmas autoestradas – motivação da matéria de facto.

X. Nada foi detectado nos regulares patrulhamentos da BO---, quanto à existência de um pneu ou fragmentos de uma tela pneumática depositada nas vias, ao Km 282,500, da Al, no sentido Sul/Norte, nomeadamente, no patrulhamento efetuado pelo Oficial de Mecânica MN.... no local às 19h:40m - cfr. documento n.° 6 da contestação; motivação da matéria de facto.

Y. Nem nada lhe foi comunicado nesse sentido pelos patrulhamentos regulares e permanentes que a GNR-BT efetua à referida autoestrada – motivação da matéria de facto.
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III - Enquadramento jurídico.

1. Questão prévia: as contra-alegações como matéria de recurso autónomo da Brisa.

Nas suas contra-alegações a Brisa, ao invés de, como é da natureza das contra-alegações, contradizer os fundamentos do recurso, no caso a discordância da Recorrente quanto à repartição de culpas pela eclosão do acidente, aproveita esta peça processual para atacar autonomamente a sentença, defendendo que nenhuma responsabilidade lhe deve ser assacada por falta de prova de ilicitude e de culpa da sua parte.

O que seria matéria própria de recurso autónomo se o tivesse interposto em tempo. O que não fez.

Nessa vertente, as contra-alegações não serão consideradas, por extravasarem claramente o direito a contra-alegar, ou seja, a exercer o contraditório no recurso da outra parte.

2. O mérito do recurso da Seguradora.

Tendo em conta o teor das conclusões das alegações apresentadas pela Recorrente, apenas importa averiguar no presente recurso se a responsabilidade pela eclosão do acidente é exclusiva da Brisa ou deve ser repartida na proporção decidida, entre Autora e Ré.

Nem sequer a proporção da responsabilidade é suscitada no recurso: apenas e tão só a alternativa entre o decidido, a repartição de culpas em 40% para o condutor do veículo sinistrado e 60% para a Ré, e a responsabilidade exclusiva da Ré. Ou seja, a alternativa entre a Ré pagar o total da indemnização devida pelos prejuízos resultantes do acidente ou apenas 60% desse valor.

É dito a este propósito, na decisão recorrida, de essencial:

“O condutor do veículo em questão (e por efeito a Autora que se encontra sub rogada no direito ao ressarcimento dos danos) tem, com efeito e também, culpa na ocorrência do acidente, na medida em que está provado que seguia pela via de trânsito do meio, ao invés de seguir pela mais à direita, como lhe é imposto pelo código da estrada. Na verdade, a Autora não logrou alegar/provar que o condutor do veículo circulava na via de trânsito central apenas momentaneamente, devido à existência de outros veículos. Impunha-se-lhe, por isso, que seguisse de acordo com o estabelecido na lei (artigo 13.º do CE – Dl n.º 114/94, de 03 de Maio, na redacção dada pela lei n.º 72/2013), o que não o fez.

E, com isso, tem também culpa no acidente, pois de facto, se o autor colidiu com o objeto foi porque seguia na via central, pois caso tivesse tomado a via da direita, como se lhe impunha, o sinistro poderia não ter ocorrido nos termos em que se verificou (sem prejuízo de ser comum a deslocação dos objectos depositados nas vias, após sucessivos embates).

Segundo se lê no art.º 570.º, n.º 1, do CC, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

É o que in casu, sucede, havendo que repartir as culpas entre o autor e a ré Brisa.

Conforme se escreveu no Ac. do TCA Norte, proferido no processo 00318/11.7BECBR, datado de 20.05.2016, “ O artigo 570º, nº 2, do Código Civil não impede, sem mais, o concurso de culpa efectiva com a culpa presumida, pois apenas quando os danos se devem totalmente a culpa do lesado, porque o seu acto foi a causa adequada, suficiente e única do evento, não restando qualquer possibilidade de imputação dele também ao réu, é que a responsabilidade baseada numa simples presunção de culpa exclui o dever de indemnizar.”

Assim, verifica-se concorrência de culpa efectiva entre a Ré e o condutor do veículo, insusceptível in casu de afastar a responsabilidade da Brisa.

Refira-se, aliás, que a culpa acaba por ser maioritariamente imputável à Brisa, embora se deva dizer que o grau de culpa do autor não pode de modo algum ser desprezado, visto que foi a existência de um obstáculo da via, cuja presença é sempre inusitada e imprópria, causadora do acidente, já que não é suposto a existência destes obstáculos na via de circulação em causa, que constituem sempre um perigo assinalável.

Em todo o caso, reforce-se que o artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 estabelece (também) uma presunção de ilicitude, que não é afastada pela aplicação do regime contido no artigo 570.º do CC.

Em face do expendido acima, convivendo culpas do condutor e da Ré, entende-se como equitativo, ponderado e ajustado fixar em 40% a culpa do condutor do veículo (e por força disso da Autora), e em 60% a culpa da Brisa, com a consequente redução do montante indemnizatório com base nessas proporções.

Importa ainda cuidar que em sede de audiência de julgamento (ou seja, de forma extemporânea, visto que tal alegação tinha de constar em sede de contestação, por se tratar de matéria exceptiva (artigos 571.º e 572.º do CPC), não tendo ademais as partes demandadas invocado matéria factual essencial na sua petição inicial, com vista a demonstração da previsão contida no artigo 503.º, n.º 3 do CC, pelo que não foi contemplada nos temas de prova nem pode se carreada para a factualidade provada/não provada), o Ilustre Mandatário da Ré invocou que o condutor conduzia por conta da sua entidade patronal, devendo daí extrair-se as respectivas consequências legais.

Tal alegação, além de extemporânea, e, portanto, merecedora de indeferimento, não colhe qualquer razão.

Com efeito, como sabe, o Assento do STJ de 14/4/83, publicado in BMJ 326-302, pondo termo à controvérsia levantada na jurisprudência e doutrina sobre se a presunção de culpa estabelecida no nº 3 do art. 503º do Código Civil vigorava apenas no domínio da responsabilidade objectiva do dono do veículo, e nas relações entre ele e o condutor, ou se estendia às relações entre o condutor por conta de outrem e o lesado, abrangendo toda a responsabilidade proveniente do acidente, fixou a seguinte doutrina com força obrigatória geral:

"A primeira parte do nº 3 do art. 503º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização".

Em todo o caso, o artigo 503.º n.º 3 do Código Civil, estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, isto é, do comissário, presunção válida mesmo entre ele e os titulares do direito à indemnização.

Por assim ser o artigo 503.º, n.º 3, do CC, não tem a virtualidade de alterar o ora decidido, dado que a relação material controvertida não é estabelecida entre o comitente e comissário, nem é a Ré titular de qualquer direito de indemnização (não é lesada) perante a Autora (nem perante os alegados comissário e o comitente), visto que nenhuma indemnização peticiona nos autos.

Não tem aplicação ao caso em presença o artigo 503.º, n.º 3 do CC.

Conforme se escreveu no Ac. do STA, proferido no proc. 0827/10, datado de 07.02.2012, “IV – A primeira parte do nº 3 do artº 503º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar (comissário), aplicável nas relações entre ele, como lesante e o titular do direito a indemnização.
V – Sendo a A. da presente acção, o próprio comitente e não existindo terceiros lesados com o acidente dos autos, nem se estando aqui no âmbito das relações internas entre comitente e comissário, torna-se completamente deslocada a invocação do artº 503º do CC e, nomeadamente da presunção de culpa prevista no seu nº 3.”

Nenhum facto se encontra provado que permita a aplicação ao caso do disposto no artigo 503º, n.º3, do Código Civil, de danos provocados em acidentes com veículos conduzidos por intermédio de comissário.

Nem consequentemente, configurar, nesse contexto, a eventual concorrência de culpa da lesada, a dona do veículo sinistrado (e, como se diz na decisão recorrida, a Autora por sub-rogação), o que poderia implicar a redução da indemnização, nos termos das disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 3, do artigo 503º, do artigo 505º e dos n.ºs 1 e 2, do artigo 570º, todos do Código Civil.

Sendo certo que o Tribunal está vinculado, por regra, aos factos atempadamente articulados pelas partes, mas é livre ao proceder ao respectivo enquadramento jurídico, trate-se ou não de matéria de excepção – n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil.

Mas também, ao contrário do decidido, não se pode reduzir a indemnização com base na concorrência de culpa da lesada, por o seu veículo circular, conduzido por interposta pessoa, na via central, ao abrigo do disposto no n.º1 do artigo 570º do Código Civil.

Na verdade, não era à Autora que cabia alegar e provar que o condutor do veículo circulava na via de trânsito central “apenas momentaneamente, devido à existência de outros veículos”.

Cabe ao autor o ónus da alegação e prova dos factos que integram a causa de pedir, ou seja, em que fundamenta o seu pedido e cabe ao demandado alegar e provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito arrogado pelo autor bem como a matéria de impugnação – artigo 342º, n.º2, do Código Civil, e artigos 264º, 487º e 516º, estes do Código de Processo Civil.

Era por isso à Ré que cabia provar que o veículo sinistrado podia no momento do acidente estar a circular na via mais à direita porque nessa conduta é que, no caso, se traduziria a culpa do condutor do veículo sinistrado, face ao disposto no artigo 14.º, n.º1, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03.05, na redacção dada pela Lei n.º 72/2013.

Como dispõe este preceito:

“Sempre que, no mesmo sentido, sejam possíveis duas ou mais filas de trânsito, este deve fazer-se pela via de trânsito mais à direita, podendo, no entanto, utilizar-se outra se não houver lugar naquela e, bem assim, para ultrapassar ou mudar de direcção.”

A infracção não se traduz no facto, só por si, de se circular, momentaneamente ou não, na via central ou na via mais à esquerda. A infracção traduz-se em circular numa dessas vias quando se pode circular na via mais à direita.

Como se provou apenas que o veículo sinistrado circulava na via central, mas não se provou que no momento do acidente pudesse circular mais à direita, não foi feita prova da infracção que implicaria a culpa concorrente da lesada.

A falta desta prova resolve-se contra a Ré, a quem cabia provar a infracção do condutor do veículo sinistrado - artigo 342º, n.º2, do Código Civil, e artigos 264º, 487º e 516º, estes do Código de Processo Civil, acima referidos.

Do que se expôs resulta que, ao contrário do decidido, a Autora tem direito à totalidade da indemnização pedida, sem qualquer redução, diferentemente do que foi decidido.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que:

1. Revogam a decisão recorrida.

2. Julgam a acção totalmente procedente, condenando a Ré nos termos peticionados.

Custas em ambas as instâncias pela Ré, Recorrida.
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Porto, 29.04.2022

Rogério Martins
Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre