Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
632/21.3T8LRA-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRAZO PEREMPTÓRIO
Data do Acordão: 01/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 188.º, N.º 1, DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO).
Sumário: É peremptório o prazo fixado no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE.
Decisão Texto Integral:





            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A., já identificada nos autos, foi declarada insolvente por decisão, proferida em 23/06/2021, a requerimento da CCAM de ... , CRL.

Na predita decisão, não foi, para além do mais, declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência, com o fundamento em que dos autos não resultavam elementos que o justificassem.

Nos presente apenso, foi dispensada a realização da assembleia de apreciação do relatório e o relatório a que se refere o artigo 155.º do CIRE foi junto aos autos no dia 28 de Agosto de 2021.

No decurso dos autos, cf. requerimento de fl.s 2 a 8, entrado em juízo no dia 23 de Setembro de 2021, o AI, apresentou parecer, requerendo a qualificação da insolvência como culposa, devendo ser afectado pela requerida qualificação, o seu gerente, B., imputando-lhe a prática de actos que, no seu entender, fundamentam o seu pedido, como melhor ali consta.

Conclusos os autos ao M.mo Juiz a quo, o mesmo, cf. despacho de fl.s 23 e v.º, não declarou aberto o incidente e qualificação da insolvência, em resumo, com o fundamento em que o prazo de 15 dias a que se alude no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, é um prazo peremptório.

Pelo que tendo tal prazo terminado no dia 06 de Setembro de 2021, já não se pode exercer o direito de requerer o incidente de qualificação da insolvência em data posterior.

Inconformada com a mesma, dela interpôs recurso a Massa Insolvente de A. , L.da, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos do apenso respectivo e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 47), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

(…)

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se o prazo fixado no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, tem natureza peremptória ou meramente ordenadora do processo.

A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório que antecede.

Se o prazo fixado no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, tem natureza peremptória ou meramente ordenadora do processo.

Como resulta do relatório que antecede, ao passo que o M.mo Juiz a quo considerou que o prazo em causa reveste natureza de prazo peremptório, cujo decurso extingue o direito à prática do acto, a recorrente pugna que se trata de um prazo meramente ordenador cujo decurso não extingue a prática do acto correspondente.

Como resulta do teor da decisão recorrida e das alegações da recorrente, a questão em apreço não tem vindo a ser tratada uniformemente, existindo decisões de sentido contrário, a nível dos Tribunais da Relação e o único Aresto do STJ, que se conhece, proferido em 13 de Julho de 2017, Processo n.º 2037/14.3T8VNG-E.P1.S2, disponível no respectivo sítio do itij, decidiu no sentido de que se trata de prazo meramente ordenador, cujo decurso não extingue o direito da prática do acto correspondente.

Antes da entrada em vigor da Lei 16/2012, de 20/04, dúvidas inexistiam de que o prazo em questão era meramente ordenador do processo, porquanto nos termos do disposto no artigo 36.º, n.º 1, al. i), do CIRE, logo na sentença que declarava a insolvência, o juiz declarava aberto o incidente de qualificação.

Após a entrada em vigor da referida Lei e como se refere no Acórdão desta Relação, de 10 de Março de 2015, Processo n.º 631/13.9TBGRD-L.C1, disponível no respectivo sítio do itij, que se passa a seguir, como resulta do disposto no artigo 36.º, n.º 1, al. i), do CIRE, a abertura do incidente de qualificação da insolvência deixou de ser automática/obrigatória, apenas passando o juiz a declarar aberto tal incidente, desde que disponha de elementos que o justifiquem.

Ou seja, o incidente de qualificação da insolvência deixou de ter carácter obrigatório/automático.

Aliás, tal intenção consta da exposição de motivos da Proposta de Lei que antecedeu a supra citada Lei n.º 16/2012, onde se refere a transformação do actual incidente de qualificação da insolvência “de carácter obrigatório num incidente cuja tramitação só terá de ser iniciada nas situações em que haja indícios carreados para o processo de que a insolvência foi criada de forma culposa”.

No seguimento do que o artigo 36.º, n.º 1, al. i), do CIRE, na sua actual redacção, dispõe que, na sentença que declarar a insolência, o juiz: “Caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente de qualificação, com carácter pleno ou limitado …”.

Por seu lado, estipula o seu artigo 188.º, n.º 1, que:

“Até 15 dias após a realização da assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação de insolvência, nos 10 dias subsequentes”.

Conjugando estes dois preceitos, tem, pois, de se concluir duas coisas:

- a primeira é que o incidente de qualificação deixou de ter carácter obrigatório e;

- a segunda é a de que só pode ser aberto, oficiosamente pelo juiz, na sentença que declara a insolvência, nos termos do artigo 36.º, n.º 1, i) ou posteriormente, no caso previsto no artigo 188.º, n.º 1, mediante a análise da alegação para tal carreada aos autos pelo administrador ou qualquer interessado.

Declarado, em qualquer dos momentos, aberto o incidente de qualificação, nos termos do n.º 3 do citado artigo 188.º, e se a proposta de abertura não provier do administrador, deve este, apresentar parecer fundamentado sobre os factos relevantes, devendo formular uma proposta e, sendo caso disso, a identificação das pessoas que devem ser afectadas pela qualificação da insolvência como culposa.

Parecer este, saliente-se, como resulta da parte inicial deste preceito, que só é apresentado já depois de aberto o incidente de qualificação e, por isso, é um acto que o administrador, obrigatoriamente, tem de cumprir, porque inserido nos seus deveres funcionais da administração da insolvência, podendo (e devendo) ser apresentado ainda que decorrido o prazo para fixado na lei e devendo, no caso de não ser apresentado, o juiz providenciar para o que o seja.

No entanto, assim já não se verifica relativamente ao requerimento/alegação a que se reporta o n.º 1 do artigo 188.º, que, na prática se equipara à propositura de uma acção, à alegação inicial com vista à pretensão de reconhecimento de um direito, traduzindo-se na prática de um acto que está nas mãos/na disponibilidade do administrador ou qualquer interessado exercer ou não.

Isto é; não se trata de um acto que o administrador esteja obrigado a fazer, mas que só fará se entender que existem factos que relevem para a qualificação da insolvência e que, para tal, deva dar conhecimento ao juiz do processo para que este afira da sua relevância, com vista á qualificação da insolvência.

A diferença entre o parecer a que se alude no n.º 3 e a alegação a que se refere o n.º 1, do citado artigo 188.º, é a de que o parecer é um acto obrigatório, a praticar já depois de declarado aberto o incidente de qualificação, ao passo que aquela alegação pode ou não ser exercida, carecendo o juiz de elementos – decorrido que esteja decorrido o prazo fixado no n.º 1 – para saber se existem ou não elementos que o exigissem, o que equivale a dizer que não se pode concluir que o administrador tenha omitido qualquer acto, uma vez que a apresentação da referida alegação não tem carácter obrigatório, dependendo da iniciativa do administrador ou qualquer interessado.

Por outro lado, salvo o devido respeito, não se pode considerar que o juiz possa, oficiosamente, declarar aberto o incidente de qualificação, em face dos factos alegados pelo administrador ou qualquer interessado, narrados em requerimento trazido a juízo depois de expirado o prazo referido no n.º 1 do citado artigo 188.º

Reitera-se que se trata de acto cuja prática a lei atribui à iniciativa dos interessados ou do administrador, pelo que a assim ser, teria de se conferir o mesmo tratamento ao administrador ou a um dos interessados.

Depois, porque a lei fixa o prazo em que tal acto deve ser praticado.

Aliás, a preposição com que se inicia a redacção do n.º 1 citado “Até 15 dias”, indicia isso mesmo. O legislador quis que tal alegação, a ser apresentada, tenha de o ser até 15 dias contados desde a realização do acto que despoleta a respectiva contagem e não posteriormente.

De resto, saliente-se que no Parecer apresentado pela Ordem dos Advogados aquando da discussão da Proposta de Lei, se refere que o prazo de 15 dias era insuficiente porque “muitas vezes, nem os credores nem o administrador de insolvência dispõem de informações relevantes para efeitos de qualificação da insolvência dentro do prazo actualmente previsto.

Sugere-se por isso que se preveja a possibilidade de (re)abrir o referido incidente durante todo o processo, desde que o interessado prove que apenas teve conhecimento do(s) facto(s) após decorrido o prazo previsto artigo 188.º, n.º 1, do CIRE. Note-se que, por exemplo, os actos resolúveis, nos termos do artigo 120.º e seguintes do CIRE por vezes chegam ao conhecimento do administrador de insolvência e/ou credores depois de decorrido o referido prazo, podendo tais actos justificar a eventual qualificação da insolvência como culposa”.

De igual forma no Parecer apresentado pela CIP-Confederação Empresarial de Portugal, se chamou a atenção para que “em processos de maior dimensão, já foi necessário recorrer a consultoras especializadas, para apurar e auditar contas e procedimentos, e que esses trabalhos demoram meses, resulta impossível conciliar e realizar tais actividades com o prazo legal estabelecido”.

Acrescentando, que “é de relevar a dificuldade que qualquer credor tem em aceder aos documentos ou à “vida” da empresa, em momento anterior à insolvência, pelo que, também por esta situação, não se vê como é que o prazo legal cumpre a sua função”.

O facto é que, não obstante estas pertinentes observações, o legislador veio a consagrar a solução de que a alegação a que se reporta o n.º 1 do artigo 188.º, do CIRE, tem de ser apresentada “Até 15 dias”, após a realização do acto que despoleta o início da contagem do prazo.

São opções legislativas que o julgador não pode questionar nem, muito menos, postergar.

E a assim não se considerar, colocar-se-ia o problema de saber até quando poderiam ser apresentadas as referidas alegações, uma vez que no actual regime o juiz, não declarando aberto o incidente na sentença que declara a insolvência, não dispõe de elementos que lhe permitam aferir se o administrador incumpriu ou não incumpriu o dever de as apresentar, relembrando-se que, ao contrário do parecer a que se alude no n.º 3, não constitui um acto de prática obrigatória.

Por último, a referência que a recorrente faz ao princípio do inquisitório consagrado no artigo 11.º do CIRE também não colhe.

Efectivamente, como decorre do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do CPC, o juiz não pode oficiosamente determinar a abertura de quaisquer acções ou incidentes, cabendo aos interessados formular ao Tribunal a resolução do respectivo conflito de interesses.

Ao invés, como decorre do artigo 11.º do CIRE, o princípio do inquisitório apenas confere ao juiz que funde a sua decisão em factos que não foram alegados pelas partes.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda in CIRE Anotado, 3.ª Edição, a pág. 119, em anotação ao artigo 11.º do CIRE, “no que respeita ao processo de insolvência, na sua fase inicial declarativa, o princípio do inquisitório só opera quando o juiz seja chamado a decidir questão controvertida entre as partes”.

Ora, como acima já referido, a alegação a que se reporta o n.º 1 do artigo 188.º do CIRE, traduz-se na petição da qualificação da insolvência e, neste momento processual, a respectiva iniciativa processual só está conferida ao administrador ou a qualquer interessado, e não ao juiz que só o poderá fazer, oficiosamente, na sentença que decreta a insolvência, nos termos e condições previstos no artigo 36.º, n.º 1, al. i), do CIRE e não em momento ulterior, designadamente, no prazo a que se refere o artigo 188.º, n.º 1, do CIRE.

É a própria lei que determina os momentos e os protagonistas no que se refere à possibilidade de requererem/determinarem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, nos termos acima referidos, do que resulta que o juiz só o pode determinar, oficiosamente, na sentença que declara a insolvência e em momento ulterior, tal faculdade está apenas atribuída ao administrador ou a qualquer interessado, mediante a alegação a que se refere o artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, que deve obedecer ao termos e ao prazo nele assinalados.

Pelo que, não sofre a decisão recorrida dos vícios que lhe assaca a recorrente, a qual, é assim, de manter.

Consequentemente, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela massa insolvente, aqui apelante.

Coimbra, 11 de Janeiro de 2022.