Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
80640/20.8YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CANTANHEDE DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Legislação Nacional: ARTIGO 428.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I) Em caso de cumprimento defeituoso do contrato de empreitada o dono da obra pode invocar a excepção de não cumprimento do contrato para suspender o pagamento da retribuição correspondente e proporcional à dimensão ou extensão dos defeitos.
II) Cumpre defeituosamente o contrato de empreitada de pintura de paredes interiores de um edifício afecto a uma clínica médica o empreiteiro que não procedeu à prévia regularização das superfícies a pintar.
Decisão Texto Integral:








Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A..., LDA, requereu um procedimento injuntivo posteriormente convertido em acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, a correr termos no Juízo Local Cível de Cantanhede, Comarca de Coimbra, contra B..., LDA, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 6.080,00 acrescidos de juros vencidos no valor de 392,97 e € 40,00 de cobrança.
Alega ter celebrado com a Ré dois contratos de empreitada, nos termos dos quais em 04.02.2019 se obrigou a executar trabalhos de construção civil numa moradia sita na Quinta da ..., em ..., pelo valor orçamentado de € 25.800,00, acrescido de IVA, e, bem assim, num edifício denominado Clínica da Rua ..., em ..., pelo valor orçamentado de € 27.450,00, mais IVA; a este orçamento veio a ser aditado em 28/09/2019 um outro, especificamente para determinadas partes do edifício, de € 6.475,00, acrescido de IVA, igualmente aceite pela Ré; realizados todos os trabalhos acordados/contratados, a Ré recusa-se a pagar parte da factura nº 119/2785 de 31.10.2019, relativa à moradia, correspondente ao montante de € 2.580,00, e parte da factura nº 119/3210 de 31.12.2019, relativa ao aditamento, correspondente ao montante de € 3.500,00.

Na oposição que deduziu a Ré centrou a sua defesa no facto de ter recusado o pagamento da quantia de € 3.500,00 atinente à factura nº 119/3210 por virtude de defeitos na execução dos trabalhados acordados no aditamento de 28.09.2019 que a A. se comprometeu a reparar, mais exactamente no que concerne à “preparação do suporte com tratamento de buracos e fissuras”.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença na qual se julgou a acção parcialmente procedente e se condenou a Ré a quantia de € 6.120,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde 23.07.2020 sobre € 6.080,00, e desde a citação sobre €40,00 até integral pagamento.

Inconformada, deste veredicto, recorreu a Ré, recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre agora decidir.

*

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação e delimitam o objecto recursivo, a Ré ora apelante levanta as seguintes questões:

Reapreciação da matéria de facto;
Oponibilidade da excepção de não cumprimento do contrato.

Contra-alegou a A., batendo-se pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.

Conhecendo.

Reapreciação da matéria de facto.

Pretende a recorrente que o tribunal modifique a base factual da decisão recorrida através da inclusão no acervo fáctico provado do facto dado como não provado na decisão recorrida e do aditamento de dois novos factos.
É o seguinte o teor daquele facto dado como não provado:
“De acordo com o aditamento referido em L) cabia à requerente regularizar as deficiências referidas em O) aquando da pintura”.

Para a inversão desta resposta a apelante convoca desde logo o teor do aditamento constituído pelo doc. nº 3 junto com a oposição que se acha a fls.10-11 dos autos. De acordo com o dito aditamento – sendo que a autoria e conteúdo do documento que o corporiza não foram impugnados pela A. – no aí designado subponto 1.1 do ponto 1, intitulado “Caixa de Escadas e Hall’s dos Elevadores” aparece o seguinte item: “Preparação do suporte com tratamento de buracos e/ou fissuras com argamassa Altek extra-fina”.
Ora, perante a não impugnação do conteúdo do documento e da respectiva autoria, esta matéria só podia ser considerada como plenamente provada, não sendo admissível prova testemunhal ou outra em sentido contrário, ex vi dos art.ºs 374, nº 1, 376, nºs 1 e 2 e 393, nº 2, todos do C. Civil.
Assim sendo, nunca se poderia aceitar a afirmação contida na motivação recorrida de que não foi produzida prova suficiente para a prova do facto em questão.
Surgindo até como totalmente irrelevante a convocação do depoimento da testemunha C..., depoimento no qual, aliás, é confirmada a previsão contratual da regularização das superfícies – antes da aplicação da tinta – com a dita argamassa extrafina, (ainda que alertando para a necessidade de prévia eliminação dos “ressaltos” das mesmas superfícies). Também a testemunha Eng. D..., que está ao serviço da A. e elaborou o aditamento em apreço, reconheceu que o mencionado trabalho foi contratado (ainda que tenha feito notar que o reboco estava pior do que se supunha).
Seja como for, nenhuma dúvida pode haver de que o trabalho em causa foi assumido pela A. no aditamento, impondo-se dar o facto em causa como provado.

Quer também a recorrente que se acrescentem aos factos provados dois novos factos para neles ficar a constar o teor de dois mails: o enviado pela Ré à A. em 25.12.2019 (doc. nº 5 junto com a oposição) e o enviado pela A. à Ré em 15.01.2020 (doc. nº 7 junto com a oposição).
Compulsados os teores dos documentos em causa, que também não foram impugnados pela parte contra quem foram apresentados, constata-se que o primeiro corporiza uma reclamação pelo cumprimento defeituoso da obra relativa ao aditamento de fls. 10-11, enquanto o segundo sinaliza a aceitação pela A. da retenção pela Ré do valor de € 3.500 pela parte atinente aos “trabalhos das escadas”.
Quer um quer outro revestem inegável interesse para a caracterização da conduta contratual das partes que os emitem.
Pelo que se concorda com a sua inserção no acervo fáctico.
Em suma, na procedência da impugnação de facto levada a cabo pela apelante, é a seguinte a factualidade que se tem por definitivamente provada:

A) A requerente é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à entre outros a realização de trabalhos de pinturas de edifícios.
B) No âmbito desta sua actividade foi solicitado pelo legal representante da Ré, a apresentação de orçamento para a realização de trabalhos de repintura de uma moradia sita na Rua ..., ..., Quinta da ..., em ....
C) A A. apresentou orçamento com a referência 21/19, de 04/02/2019 que constitui o doc. nº 1 junto em audiência, no valor de 25.800,00€, acrescidos de IVA em regime de autoliquidação, constando do mesmo a descrição dos trabalhos a realizar e materiais aplicar, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
D) O legal representante da Ré aceitou o orçamento e adjudicou os trabalhos e fornecimentos contantes do mesmo à requerente em 14/03/2019.
E) Trabalhos e fornecimentos que a requerente realizou.
F) A Ré não procedeu ao pagamento integral do seu preço, permanecendo em dívida com o montante de 2.580,00€ relativo a parte do valor da factura n.º 119/2785, de 31/10/2019, de 12.900€, que constitui o documento nº 5, pag. 2 junto pela autora.
G) Factura que foi devidamente enviada à Ré, que a recebeu.
H) Foi igualmente solicitado pelo legal representante da Ré a apresentação de orçamento para a realização de pinturas de um edifício que se encontrava em construção designado por “ Clínica na Rua ...”, em ....
I) A Autora apresentou o orçamento com a referência 22/19, de 4/2/2019, que constitui o documento nº 2 junto com a oposição, no valor de € 27.540,00, acrescidos de IVA em regime de autoliquidação, contendo o mesmo a descrição dos trabalhos a realizar e materiais a aplicar, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
J) O legal representante da Ré aceitou o orçamento e adjudicou os trabalhos constantes do mesmo à A. em 14/03/2019.
K) Trabalhos esses que a A. realizou.
L) No decorrer dos trabalhos foi ainda adjudicado à A. pelo legal representante da Ré a realização de trabalhos de pintura não contemplados no orçamento inicial e constantes do aditamento 1 àquele, de 29/08/2019, que constitui o documento nº 3 junto com a oposição, que totalizavam o montante de € 6.475,00, acrescidos de IVA em regime de autoliquidação, constando do referido aditamento a descrição dos trabalhos a realizar e materiais aplicar no que respeita à “Caixa de Escadas e Hall´s dos elevadores” e “Pintura de paredes e tectos”, aí se contemplando, além do mais, “a preparação do suporte com tratamento de buracos e/ou fissuras com argamassa Altek extrafina”.
M) Realizados os trabalhos descritos naquele aditamento 1, a A. emitiu e remeteu à Ré, que a recebeu, a factura n.º 119/3210, de 31/12/2019, que constitui o documento nº 10, junto pela A., representando 10% dos trabalhos mencionados no orçamento com a referência 22/19 e a totalidade dos trabalhos mencionados no seu aditamento 1, importando a referida factura o montante de € 9.229,00.
N) A Ré, embora tenha recebido a mencionada factura, permanece ainda em dívida relativamente à mesma o montante de € 3.500,00.
O) As paredes da caixa de escadas apresentam remendos e as imperfeições que provêm de irregularidades do suporte, resultantes de deficiências do reboco, o qual foi realizado por terceiros contratados pela Ré.
P) Por carta registada com aviso de recepção, que recebeu em 13/07/2020, a A. solicitou à Ré o pagamento de parte das duas referidas facturas (n.º 119/2785 e n.º 119/3210) cuja soma ascende a quantia de € 6.080,00, no prazo de 10 dias.
Q) De acordo com o aditamento referido em L) cabia à A. regularizar as deficiências referidas em O) aquando da pintura.
R) Em 25.12.2019 a Ré enviou à A. o mail de fls.13, reclamando a eliminação dos imperfeições nos rebocos das paredes a cuja pintura se reporta o aditamento de fls. 10-11.
S) Em 15.01.2020 os Serviços de Recursos Humanos e Contabilísticos da Autora enviaram um email assinado por E..., onde consta que “relativamente ao pagamento aceitamos o pagamento do valor de 5729 € ficando retido o valor de 3500 € referente às escadas até resolução das mesmas pela parte técnica, na qual será enviada uma resposta durante o dia de hoje. Quando esta situação estiver resolvida efetuará o pagamento do restante valor”.

*

A excepção de não cumprimento.

Entende a apelante que se verifica o condicionalismo de que o art.º 428 do C.Civil faz depender a oponibilidade da excepção de não cumprimento do contrato no tocante ao pagamento da retribuição acordada no aditamento de Setembro de 2019 quanto aos trabalhos aí incluídos mas não realizados pela Autora.
Concretamente computa a recorrente em € 3.500 o valor dos trabalhos cuja liquidação considera não ser devida até à respectiva realização.
Vejamos.

Não é controvertido nos autos que entre a A. e a Ré foram celebrados dois contratos de empreitada, inserindo-se o valor que é objecto da insurgência recursiva da apelante no aditamento acordado num desses contratos.
Mais precisamente, deflui da materialidade provada que tendo a Ré solicitado à A. um orçamento para a realização de pinturas num edifício que se encontrava em construção designado por “ Clínica da Rua ...”, a A. apresentou em 04.20.2019 o referido orçamento no valor de € 27.540,00, mais IVA. Posteriormente veio a ser solicitado um aditamento a esse orçamento para trabalhos suplementares, o qual foi apresentado em 29.08.2019, pelo valor de € 6.475,00, igualmente aceite pela Ré.
É neste orçamento que a Ré se recusa a satisfazer o valor de € 3.500,00 como sendo o proporcional aos trabalhos de preparação do suporte com tratamento de buracos e/ou fissuras com argamassa extra-fina Altek que a A. não levou a cabo.
O contrato de empreitada é de natureza bilateral e sinalagmática, cabendo ao empreiteiro realizar certa obra e ao dono desta o pagamento da retribuição acordada (art.º 1207 do CC).
O empreiteiro cumpre a respectiva obrigação quando realiza a prestação a que está adstrito.
Diante da materialidade definitivamente provada em L), O) e Q), ficou demonstrado que, como empreiteira, a Autora não realizou a prestação que lhe competia no tocante ao trabalho de preparação do suporte da pintura com a dita argamassa extra-fina Altek, sendo que as paredes da caixa apresentam remendos e imperfeições do suporte resultantes de deficiências do reboco.
Tratou-se, por conseguinte, de um incumprimento do convencionado que também se traduziu num cumprimento defeituoso da prestação. Além do mais, para o padrão de um homem normal ou médio, o não tratamento adequado de uma superfície (o chamado suporte) irregular (com ressaltos) da parede interior de um edifício antes da sua pintura, conduz em regra, à exclusão ou redução do valor corrente da própria pintura. Integra, pois, um vício da obra. É que, mesmo que não convencionados no contrato, há itens do programa ou processo de execução que o empreiteiro está obrigado a desenvolver no âmbito da autonomia técnica de que disfruta tendo em vista o resultado a que se vinculou, itens em função dos quais tem de suportar o inerente risco económico. Cfr. Cura Mariano, ob. e ed. infra citadas, p. 41-42. Por força da sua autonomia técnica, também recai sobre o empreiteiro o encargo de suportar um custo da obra eventualmente superior ao acordado.
Impendia, por conseguinte, sobre a Autora, como empreiteira, a obrigação de realizar a obra em conformidade com o convencionado e sem vícios que excluíssem ou reduzissem o valor da coisa, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato – art.º 1208 do CC.
A prestação do dono da obra é correlativa ou correspectiva da do empreiteiro, sendo esta que precede a daquele.
Com vem sendo entendido, havendo cumprimento defeituoso da obrigação do empreiteiro, funciona a chamada exceptio non rite adimpleti contractus, podendo o dono da obra suspender o pagamento da retribuição – que posteriormente lhe seria exigível – correspondente à dimensão ou extensão dos defeitos. Como escreve Cura Mariano (Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, Almedina, 2ª Edição, p. 168) “(…) nos casos em que o preço não tenha de ser integralmente pago em momento anterior ao da entrega da obra, o dono da obra pode suspender o pagamento de uma parte, proporcional à desvalorização provocada pela existência dos defeitos, enquanto estes não tenham sido eliminados, ou não tenha sido realizada nova obra, ou o dono da obra não tenha sido indemnizado dos prejuízos sofridos”.
Ou seja, no caso vertente, para reclamar a totalidade do montante orçamentado após a recepção da obra pela Ré, a A. tinha que a entregar com as paredes devidamente regularizadas com a dita argamassa extra-fina e depois disso pintadas.
Não o tendo feito, pode a Ré legitimamente opor-lhe a chamada exceptio non rite adimpleti contractus que se destina justamente a salvaguardar o contraente que a ela recorre do cumprimento defeituoso do outro.
Esta excepção decorre do princípio da boa no cumprimento dos contratos (art.º 762, nº 2, do CC), destinando-se a permitir que o contraente credor da prestação se prevaleça de um prazo simultâneo ou subsequente para não se ver confrontado com o incumprimento do outro. É um meio puramente defensivo ou coercivo, de cariz temporário, apresentando-se como uma excepção substantiva de natureza dilatória (Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 4ª Ed., p. 487).
Deflui dos autos – cfr. o facto provado em S - que a A. aceitou a proporcionalidade da retenção pela Ré do valor de € 3.500 no tocante à pintura na zona das escadas (aquela que está em causa).
Claro que a eliminação dos defeitos que está em falta pela Autora pressuporá a repintura das superfícies não tratadas pela Autora, mas isso é uma consequência inexorável dos defeitos, cuja denúncia consta do mail de 25 de Dezembro de 2019 e do facto provado em R).
Donde a procedência do recurso, com a revogação parcial da sentença no que concerne à condenação da Ré no pagamento da aludida parcela de € 3.500,00 em relação à qual opera a excepção de não cumprimento nos termos acima explanados.

Pelo exposto, na procedência da apelação, revogando em parte a sentença recorrida, julgam a acção parcialmente procedente por provada condenando a Ré a pagar à A. a quantia de € 2.620,00, acrescida de juros de mora desde 23.07.2020 quanto a € 2.580,00 e desde a citação quanto à quantia de € 40,00 até efectivo pagamento. Do mais peticionado vai a Ré absolvida em função do funcionamento da excepção de não cumprimento nos termos acima explanados.
Custas na proporção do decaimento.

(…)

Coimbra, 15 de Dezembro de 2021

(Freitas Neto – Relator)
(Paulo Brandão)
(Carlos Barreira)