Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
440/19.1T8SCD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: RECONVENÇÃO
FACTO JURÍDICO QUE SERVE DE FUNDAMENTO À ACÇÃO
BENFEITORIAS
DESPESAS
COMPENSAÇÃO
MESMO EFEITO JURÍDICO
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 266.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I) A admissibilidade da reconvenção com o fundamento de que o pedido do réu emerge do mesmo facto jurídico que serve de fundamento à acção exige que o pedido reconvencional se funde na mesma causa de pedir, total ou parcialmente, que o pedido do autor.

II) Se a causa de pedir do pedido do autor é um contrato, o mesmo contrato tem de constituir a causa de pedir do pedido reconvencional.

III) A admissibilidade da reconvenção com o fundamento de que através da mesma se pretende exercer o direito a benfeitorias ou despesas exige que estas tenham sido efectuadas em coisa que é objecto de um pedido de entrega por parte do autor.

IV) A admissibilidade da reconvenção com o fundamento de que através da mesma se pretende exercer o direito à compensação exige que o reconvinte reconheça que o reconvindo é titular de um crédito sobre si; negando a existência de qualquer crédito do reconvindo, não pode admitir-se a reconvenção com aquele fundamento.

V) A admissibilidade da reconvenção com o fundamento de que através do pedido reconvencional o réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter exige que ambos os pedidos se sustentem/alicerçem no mesmo direito.

VI) Formulando o autor um pedido de condenação do réu a pagar-lhe determinadas quantias com fundamento em contratos de mútuo nulos por falta de falta de forma e inerente obrigação de restituição das quantias mutuadas, não é admissível o pedido reconvencional do réu fundado na realização de obras num edifício, a suportar em partes iguais por ambas as partes, que só o réu custeou; uso exclusivo do imóvel pelo autor, de 2007 a 2009; despesas de electricidade no referido imóvel, responsabilidade de ambos, pagas apenas por si; apropriação pelo autor do imobilizado da sociedade constituída por ambas as partes; apropriação pelo autor de um estojo de moedas, que correspondeu ao pagamento da venda de um automóvel de ambos e pagamento pelo réu de dívidas da responsabilidade de ambos.

Decisão Texto Integral:

           

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A... , intentou a acção declarativa de condenação, de que provém o presente apenso, contra B... , já ambos identificados nos autos, pedindo a condenação deste no pagamento do montante de 22.945,00€, acrescida de juros de mora.

Para tal, alega a existência de empréstimos parcelares que fez ao réu, motivados pelas necessidades deste em reunir o valor pecuniário necessário para a aquisição da sua quota no prédio de prédio, ou prédios, que A. e R. decidiram adquirir em partes iguais, para instalar um estabelecimento comercial e de que são ainda comproprietários.

Mais alega que, não obstante as interpelações feitas ao réu para que este lhe devolvesse as quantias mutuadas, o mesmo não o fez.

Contestando, o réu além de negar ser devedor da peticionada quantia, deduziu pedido reconvencional contra o A. pedindo a condenação deste no pagamento da quantia global de € 179.537,69 acrescida de juros de mora.

Fundamenta este pedido no seguinte:

- a realização de obras no imóvel adquirido que haviam de ser suportadas em partes iguais por A. e R., como o acordaram, sendo a quota do A, de 5.469,55€ ainda em dívida (art.º 35.º a 40.º da reconvenção);

-  o uso do imóvel pelo A., em exclusivo, desde abril de 2007 até dezembro de 2009, sendo, sendo o valor locativo da sua quota de 500,00€ mensais, perfazendo 38.250,00€ (art.º 43.º a 49.º da reconvenção);

- o pagamento, pelo R. de despesas de fornecimento de eletricidade entre 2001 a 2007, no valor de 1.367,50€, de responsabilidade do A. (art.º 48.º e 49.º da reconvenção);

- a apropriação, pelo A., da totalidade do imobilizado da sociedade, no valor de 197.925,72€, sendo a sua quota de apenas 98.962,86€ (art.º 50.º a 53.º da reconvenção);

- a apropriação, pelo A., de um estojo de moedas com a integralidade do preço recebido pela venda de um automóvel de ambos, no valor de 6.000,000, sendo a quota do A. de apenas 3.000,00€ (art.º 57.º e 58.º da reconvenção) e;

- o pagamento, pelo R. de dívidas da responsabilidade de ambos, sendo a parte do A. de 9.166, 13€ (art.º 59 e 60.º da reconvenção).

Conclusos os autos ao M.mo Juiz, cf. despacho aqui junto de fl.s 105 a 106 v.º, não foi admitida a reconvenção deduzida, por não ser legalmente admissível, nos termos que se passam a reproduzir:

Nos termos do art.º 266.º do Código de Processo Civil, o Réu pode em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor quanto ocorram os seguintes factores de conexão:

a) quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;

b) quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;

c) quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;

d) quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

(14) No caso dos autos, o facto jurídico que serve de fundamento à ação é a existência de um contrato/empréstimo, pelo A. ao R. de quantia pecuniária que o R. não devolveu apesar de interpelado para o efeito. E, dentro deste quatro relacional contratual, a fonte da obrigação de restituir (cf. supra, em (3)) emerge, no caso, da nulidade do negócio jurídico subjacente, nos termos do art.º 289.º, n.º 1, do Código Civil.

(15) Vistos os fundamentos causais do pedido reconvencional, é notório que nenhum deles emerge daquele facto jurídico (contrato/empréstimo).

(16) Ainda assim, parte do valor peticionado em reconvenção advém de alegadas obras na coisa comum, que o R. qualifica como benfeitorias.

(17) Todavia, não visa o A. por este processo a entrega da coisa onde as benfeitorias foram alegadamente feitas e é só nestes casos que a realização de benfeitorias pode ser fundamento do pedido reconvencional.

(18) Apesar de pedir, como o A., que lhe seja reconhecido um crédito, o R. não reconhece ser devedor de qualquer quantia ao A. para, com o pedido de reconhecimento, compensar o crédito daquele nem, tão pouco, para haver o excedente nessa compensação.

(19) Finalmente, apesar de o R. pretender, com o pedido de condenação em pagamento de quantia certa, o mesmo resultado (interesse) que o A., não visa seguramente o mesmo efeito jurídico: o reconhecimento da existência de um contrato - ou do mesmo contrato - de mútuo nulo e, por via dessa nulidade, a restituição da quantia mutuada com fundamento no citado art.º 289.º, n.º 1, do Código Civil.

(20) Ou, visto de outro modo, a reconvenção seria admissível se, por exemplo, pedindo o A. a restituição do capital e juros por incumprimento do R., este opusesse, em reconvenção, a nulidade do contrato por vício de forma e, em consequência, a existência apenas de um dever de restituição com fundamento na invalidade (do citado art.º 289.º, n.º 1, do Código Civil) em vez do incumprimento, com as inerentes consequências em termos de juros devidos.

(21) Vale tudo isto para dizer, por conseguinte, que no caso dos autos não se verifica nenhum dos elementos de conexão que legitimem o R. a deduzir, contra o A., o pedido reconvencional nos termos em que o fez.

(22) Assim, e pelo exposto, não admito a reconvenção.

(23) Pagará o R. reconvinte as custas devidas, nos termos do art.º 6.º, n.º 1, e tabela Anexa I, do Regulamento das Custas Processuais, art.ºs 296.º, n.º 1 e 3 e 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Inconformado com a mesma, interpôs recurso, o réu A... , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 111), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

(…)

Contra-alegando, o autor, pugna pela manutenção da decisão recorrida, aderindo aos fundamentos nesta expendidos.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado no artigo 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a admissibilidade da reconvenção deduzida.

A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório que antecede.

Admissibilidade da reconvenção deduzida.

Alega o réu, ora recorrente que deve ser admitida a reconvenção por si deduzida, por os pedidos assim formulados emergirem do facto jurídico que serve de fundamento à acção, o qual, no seu entender “é a existência de um prédio de que as partes são comproprietárias e todas as relações e, designadamente, dívidas/créditos inerentes à propriedade e posse do mesmo prédio, detido, reitere-se, em compropriedade” – cf. conclusão 3.ª.

Acrescentando na conclusão 6.ª que “pretende o reconhecimento de um crédito, designa e obviamente para obter a compensação” e na 7.ª que “o pedido do réu tende a conseguir em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter”.

Como resulta do relatório que antecede, os pedidos reconvencionais deduzidos, reconduzem-se a que se reconheça a existência de um crédito a favor do réu, resultante da realização de obras no edifício, a suportar em partes iguais por ambas as partes, que só o réu custeou; uso exclusivo do imóvel pelo autor, de 2007 a 2009; despesas de eletricidade, no referido imóvel, responsabilidade de ambos, pagas apenas por si; apropriação pelo autor do imobilizado da sociedade constituída por ambas as partes; apropriação pelo autor de um estojo de moedas, que correspondeu ao pagamento da venda de um automóvel de ambos e pagamento pelo réu de dívidas da responsabilidade de ambos.

Como decorre do disposto no artigo 266.º, n.os 1 e 2, pode o réu, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor, quando:

- o pedido emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa (al. a);

- o réu se propõe tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;

- o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor (al. c) e;

- quando pretende obter em seu benefício o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter (al. d).

Embora de forma genérica, o réu, em recurso, refere-se a todas estas possibilidades de admissibilidade da reconvenção, pelo que, de seguida, relativamente a cada uma delas, se analisará a sua pretensão.

Em primeiro lugar, no que se refere à hipótese prevista na alínea a) do n.º 2 do citado artigo 266.º, alega o recorrente que o facto jurídico a ter em conta é “a compropriedade do imóvel”.

Com o devido respeito, assim não sucede.

O autor alicerça o seu direito em contratos de mútuo, nulos, por falta de falta de forma e inerente obrigação de restituição das quantias mutuadas.

Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, Vol. 1.º, 4.ª Edição, Almedina, a pág. 531, em anotação ao artigo 266.º do CPC, a previsão da sua alínea a), pressupõe que o pedido reconvencional se funde na mesma causa de pedir, total ou parcialmente, que o pedido do autor. No caso de ser um contrato a fundar o pedido, deve tratar-se do mesmo contrato.

Segundo Mariana França Gouveia, in A Causa de Pedir na Ação Declarativa, pág.s 269/70 “… a causa de pedir, para efeitos de admissibilidade de reconvenção, deve ser definida através do facto principal comum a ambas as contra pretensões.

(…)

Os factos alegados devem ser selecionados através das normas jurídicas alegadas, assim se determinando quais são os principais. Estabelecidos estes, se um deles for principal para a ação e para a reconvenção, haverá identidade de causa de pedir e, logo, estará preenchido o requisito do artigo 274.º, n.º 2, al. a)”.

Concluindo que se o autor e o réu alegam o mesmo contrato como facto constitutivo das suas pretensões, verificada esta coincidência, entende-se que a causa de pedir da acção e da reconvenção é a mesma.

Ora, analisando os pedidos reconvencionais deduzidos, forçoso é concluir que nada têm que ver com a causa de pedir formulada na acção, pelo que falece este pressuposto de admissibilidade da reconvenção.

Por outro lado, dada a desconexão existente entre ambas as pretensões – da acção e da reconvenção – não fica o réu inibido de, em futura acção, discutir o seu alegado direito, uma vez que os pedidos reconvencionais não se revestem de qualquer dependência, prejudicialidade ou subsidiariedade relativamente ao pedido formulado por via da presente acção.

Em segundo lugar, refere o réu que realizou e custeou obras no imóvel de que ambos são comproprietários.

Ora, a hipótese da alínea b), no que se refere às benfeitorias realizadas, só se aplica quando efectuadas em coisa que é objecto de um pedido de entrega.

Não é isso que constitui o objecto da presente acção, daí a inaplicabilidade desta alínea.

Em terceiro lugar, alega o réu que pretende obter o direito à compensação com o crédito reclamado pelo autor ou o pagamento do valor em que o seu crédito excede o do autor.

Lendo a contestação apresentada pelo réu, este alega que nada deve ao autor. Não reconhece o crédito por este invocado, afirmando já lhe ter pago tudo o que lhe devia e é o autor que lhe deve as quantias peticionadas em reconvenção.

Peticionando, em consequência, a improcedência da acção e a procedência do pedido reconvencional.

A compensação de créditos pode operar nos termos previstos no artigo 847.º do Código Civil e implica que haja uma reciprocidade de créditos entre as pessoas envolvidas; isto é, o uso da figura da compensação pressupõe que a pessoa que dela pretende lançar mão reconheça a preexistência de um crédito por parte daquele contra quem a pretende usar, contra quem pretende compensar um crédito. Só se pode compensar um crédito com outro crédito, desde que, como é óbvio, exista um crédito e um contra-crédito.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 09 de Setembro de 2010, Processo n.º 652/07.0TVPRT.P1.S1, disponível no respectivo sítio do itij “… quem pretende liberar-se de uma obrigação com recurso à compensação tem necessariamente de admitir a preexistência de um crédito por parte daquele a quem se acha juridicamente vinculado e tornar essa compensação efectiva através de uma declaração deste último.

Ora, o recurso à compensação, enquanto excepção dilatória, postula, como sucede no direito substantivo, o reconhecimento de um crédito, a confrontar com um contra-crédito, pelo que o reconvinte não pode alegar a compensação se nega a existência do crédito invocado pelo reconvindo”.

Saliente-se que in casu nem sequer se trata de dedução condicional de pedido reconvencional. Pura e simplesmente, o réu nega a existência do contra-crédito sobre o qual pretende reconvir.

 Assim, igualmente, com este fundamento não é admissível a reconvenção.

Por último e em quarto lugar, alega o réu que “tende a conseguir em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter”.

A alínea d) do artigo 266.º do CPC, permite a dedução da reconvenção no caso de esta tender ao mesmo efeito jurídico a que tende o pedido do autor, pelo menos, parcialmente.

Pressuposto deste requisito de admissibilidade é, pois, que se esteja no domínio do mesmo efeito jurídico o que implica que ambos os pedidos se sustentem/alicerçem no mesmo direito.

Ora, como já referido, o direito do autor funda-se no contrato de mútuo e restituição das quantias mutuadas e os direitos formulados em via da reconvenção, nada têm que ver com o pedido/direito que o autor pretende lhe seja reconhecido.

Assim, igualmente, falece este pressuposto de admissibilidade da reconvenção deduzida.

Pelo que, é de concluir que, tal como decidido em 1.ª instância, não se verificam os pressupostos para que a reconvenção deduzida fosse, processualmente, admissível.

Consequentemente, improcede o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 15 de Dezembro de 2021.