Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
345/18.3JALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
LIMITES DA CONDENAÇÃO
Data do Acordão: 05/05/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 609.º DO CPC
Sumário: A limitação quantitativa da condenação, referida no n.º 1 do artigo 609.º do CPC, reporta-se ao valor global do pedido e não a cada um dos valores parcelares que o integram.
Decisão Texto Integral:




Acordam, em conferência, na 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

No processo comum supra identificado, após a realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu:

- ABSOLVER o arguido C. da prática de um crime de uso e porte de arma sob efeito de álcool, p. e p. pelo artigo 88.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro

- ABSOLVER o arguido C. da prática de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artigo 200.º, n.º1 e n.º 2, do Código Penal

- CONDENAR o arguido C. pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 200 dias de multa;

- CONDENAR o arguido C. pela prática, em autoria material, de um crime de ofensas à integridade física por negligência agravado, p. e p. pelos artigos 15.º, al. a) e 148.º, n.º 1, ambos do Código Penal e, artigo 86.º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 120 dias de multa;

- Em cúmulo das condenações supra referidas condenar o arguido na pena única de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);

- Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido por A. e, em consequência, condenar C. no pagamento ao demandante do montante de € 4.050,00 (quatro mil e cinquenta euros), acrescido de juros moratórios à taxa anual legal de 4%, que são devidos desde a presente data quanto à quantia de € 3.300,00 (três mil e trezentos euros) e desde a notificação – 10/11/2019 - sobre o valor indemnizatório de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) tudo sem prejuízo de futura alteração dessa taxa de juro, absolvendo o demandado do demais peticionado.

- Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido por Centro Hospitalar de (...), EPE e, em consequência, condenar C. no pagamento ao demandante do montante de € 61,00 (sessenta e um euros), acrescido de juros moratórios à taxa anual legal de 4%, que são devidos desde a notificação – 10/11/2019 - sem prejuízo de futura alteração dessa taxa de juro.


*

O arguido discordou da decisão proferida, na parte em que foi condenado no pagamento ao demandante A. da quantia de € 4.050,00 e respectivos juros, e dela interpôs o presente recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

·· Deve ser considerada nula a sentença na parte que condena o arguido no pagamento de € 150 a título de despesas de deslocação, por falta de pedido;

·· Deve o arguido ser absolvido do pedido de indemnização por danos não patrimoniais por falta de prova atendendo a que constam dos factos não provados todos os elementos que eventualmente conduziriam a uma condenação do arguido;

·· Não concorda o arguido ser condenado no pagamento de juros moratórios à taxa anual legal de 4% desde a notificação quando efetivamente consta do pedido deduzido pelo assistente “desde a data da sentença”, resultando clara divergência entre o pedido e a condenação;

·· Foram violados os artºs 609º e 615º, n.º 1, alinea e), ambos do CPC;

·· Foram violados os artºs 483º e 496º do CC.

Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra consentânea com o ora alegado.


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Ao recurso interposto não respondeu o demandante.
E, sendo o recurso restrito à questão cível, também o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo não respondeu.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que “estando o recurso admitido exclusivamente confinado à matéria cível, competirá a composição do litígio aos interessados, representados por mandatários judiciais, não carecendo legalmente de qualquer intervenção processual do Ministério Público, que não tem, assim, que tomar posição, por falta de interesse em agir.”.

Os autos tiveram os vistos legais.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

Da decisão recorrida consta o seguinte, (por transcrição):

Da prova produzida, resultaram os seguintes

a) Factos Provados

1. No dia 07-04-2018, pelas 19h:20m, em frente à mercearia “Casa (...)”, sita na Rua (...), n.º 5 (...), o arguido C. tinha na sua posse um revólver, com o n.º (...), da marca Astra, calibre .32 Smith & Wesson Long, com um cano de alma estriada de 10 cm de comprimento e tambor de seis câmaras, municiamento manual no tambor, com accionamento por pressão no gatilho, este acciona o percutor, que por impacto no fulminante, provoca o lançamento de munições de calibre .32.

2. O aludido revólver encontrava-se municiado com pelo menos uma munição de calibre .32.

3. O arguido dirigiu-se ao assistente A., empunhando o aludido revólver, convicto de que o mesmo não se encontrava municiado, apontou-o para o chão, e carregou no gatilho, disparando um tiro, que atingiu o assistente na sua perna direita com uma bala.

4. No momento em que se deu o referido disparo, o arguido encontrava-se a cerca de 50 cm de distância do assistente.

5. A direcção do tiro, na parte inferior da perna direita do assistente, foi da frente para trás, de cima para baixo e de dentro para fora.

6. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido resultaram para o assistente A., para além de dor física nas zonas atingidas, mais concretamente: dois ferimentos circulares com crosta no terço inferior da perna direita; o mais superior, compatível com orifício de entrada, na face medial a 15 cm do calcanhar direito, tinha uma crosta que media 1cmX8mm e estava rodeado de equimose vermelha com 13mmX9mm; o outro, compatível com orifício de saída, mais baixo, apenas a 8 cm do calcanhar direito, era horizontal, a crosta media 1cmX3mm e a orla equimótica 18mmX12mm; o trajecto foi da frente para trás, de cima para baixo e da direita para a esquerda; acentuado edema do tornozelo direito, perna direita e pé direito abaixo do ferimento, lesões que lhe demandaram 41 dias para a cura, com 41 dias de afectação da capacidade de trabalho geral e profissional e sem consequências permanentes.

7. O assistente foi de imediato assistido pelos Bombeiros Voluntários de (...), que se encontravam nas proximidades aquando do disparo.

8. Após, o arguido ausentou-se do local, levando consigo o referido revólver.

9. O arguido ao manusear o revolver junto ao assistente sem que soubesse fazê-lo e sem se acautelar que o mesmo estava efectivamente desmuniciado, agiu com total falta de atenção prudência, zelo e de cuidado, que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para evitar um resultado não previu, mas que podia e devia ter previsto, dando, pois, causa ao referido disparo, que provocou as lesões corporais descritas.

10. O arguido não é possuidor de licença que lhe permita deter a referida arma e munição.

11. Por outro lado, a aludida arma não se encontra registada e manifestada em nome do arguido.

12. O arguido actuou da forma descrita, bem sabendo que ao deter a arma e a munição descritas, sem ser titular de licença de uso e porte de arma e sem ter registado e manifestado a referida arma em seu nome, agia contra o direito, o que representou mentalmente e quis realizar.

13. O arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

14. O arguido não possui condenações averbadas no seu certificado de registo criminal.

15. C. nasceu em (...) e é o sétimo de uma fratria de oito irmãos. O seu desenvolvimento decorreu no seio de uma família humilde, sendo que o pai trabalhou como pedreiro da construção civil e a mãe era doméstica, garantindo assim e desta forma a subsistência da família, mas com elevadas limitações.

16. O arguido estudou até ao 2º ano de escolaridade, tendo desistido com 12 anos de idade não só por desinteresse e desmotivação, mas também para ir trabalhar e dessa forma ajudar financeiramente o agregado familiar. Iniciou o seu percurso laboral na área da construção civil, tendo passado por diversas empresas e firmas, sempre em busca de melhores condições profissionais, económicas ou sociais.

17. C. contraiu matrimónio com 19 anos de idade e deste relacionamento tem uma filha, atualmente com 25 anos de idade.

18. À data dos factos que deram origem ao presente processo, C. encontrava-se a residir com o cônjuge na morada constante dos autos, situação que se mantém. Trata-se de casa própria que foi sendo construída pelo casal ao longo dos anos de casamento, sita num terreno cedido pelos sogros e que é contínuo à residência destes. Trata-se de um imóvel de dois pisos, com satisfatórias condições de habitabilidade. Continua a beneficiar de obras de recuperação e melhoramentos realizadas pelo arguido. A casa está integrada numa zona rural, rodeada por outras habitações ocupadas por elementos da família alargada, sita numa aldeia tranquila e pacata, sem qualquer registo de problemáticas sociais.

19. O agregado familiar é composto pelo casal. A filha é autónoma e a convivência entre ambos é marcada por divergências.

20. C. desde há alguns anos que não tem qualquer vínculo laboral; trabalha em regime de biscates, na área da construção civil e na limpeza de matas. Aufere cerca de 600€ mensais, valor oscilante, dependendo do trabalho realizado.

21. O cônjuge está laboralmente ativo como operário fabril e aufere o Salário Mínimo Nacional (SMN). A economia familiar é assegurada pelo cônjuge, com o apoio de familiares (pai). Todo o valor resultante do trabalho do arguido é gasto por este, em proveito próprio, não dando qualquer satisfação.

22. O casal faz criação de galinhas, patos, coelhos e porco para consumo próprio. C. já realizou dois tratamentos para a problemática dos consumos abusivos de álcool, tendo voltado a recair. Pese embora esta problemática, não há referência a problemas susceptíveis de condicionar o seu processo de socialização. Apresenta uma postura de desculpabilização relativamente aos consumos abusivos de álcool, demonstrando alguma resistência quando confrontado com as consequências dos mesmos. Nos tempos livres gosta de estar com os amigos em locais públicos (cafés e bares).

23. O assistente foi, na sequência do sucedido, assistido no Centro Hospitalar de (...), assistência que importou a quanta de € 61,00, que não foi paga.

24. Em consequência do descrito o assistente foi acompanhado no Centro de Saúde de (...), (...) nos dias 10/04/2018; 20/04/2018; 23/04/2018; 26/04/2018; 30/04/2018; 08/05/2018; 11/05/2018; 14/05/2018 e 18/05/2018, que dista cerca de 30 Km da sua residência.

25. Durante 41 dias andou de canadianas.

26. Deslocou-se ainda ao INML em (...).

27. Em 2018 a companheira a do assistente trabalhava como operária fabril e auferia €600,00 mensais, que foram o único sustento da família composta pelo casal e pelos dois filhos menores.

28. À data dos factos o assistente encontrava-se integrado num contrato emprego inserção + do centro de emprego na Junta de Freguesia de (...), com termo previsto para o dia 14/05/2018.

29. Não auferiu de baixa médica, ficando privado do rendimento mensal de cerca de €450,00.

30. Deixou ainda de auferir o subsidio de alimentação, no valor diário de €4,77.

31. Deixou de efetuar pesquisa activa de emprego.

32. Ainda sente dores, o que dificulta a sua locomoção.

33. A arma referida em 1 não pertencia ao arguido e este não a conhecia.

b) Factos Não Provados

i. Em 3 o arguido tenha dito “ora tás a ver isto”

ii. O arguido efectuou um disparo na direcção das pernas do assistente.

ii. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1 e 3 o arguido era possuidor de uma taxa de álcool no sangue (T.A.S.) de pelo menos 1,986 gramas por litro.

iii. O arguido actuou com a intenção de deter em sua posse, usar e portar as referidas arma e munição da forma descrita, instrumentos letais de agressão, o que quis, bem sabendo que havia ingerido bebidas alcoólicas e se encontrava com uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida em sede criminal (1,2 g/l) e conhecendo as consequências do uso e porte de arma sob efeito de álcool, bem como a ilicitude da sua conduta.

iv. E, ciente de tal circunstância, o arguido ainda assim quis efectuar um disparo com o referido revólver nas circunstâncias de tempo e lugar acima referidas, bem sabendo que face à quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas não estava em condições de o deter, portar e usar em segurança.

v. Apesar de ser notório a qualquer cidadão médio e comum, como o foi ao arguido, que o assistente, na sequência do referido disparo, necessitaria de cuidados médicos urgentes, o arguido desinteressou-se do assistente, que assim se encontrava devido ao comportamento do arguido, abandonando o local, sem prestar socorro, sem providenciar pelo chamamento de auxílio médico ou verificar se alguém o fazia, deixando o assistente entregue à sua sorte, o que quis.

vi. O arguido, não obstante saber que o ofendido tinha sofrido ferimentos na sua perna direita, que a sua integridade física estava em perigo e que necessitaria de socorro médico urgente, o que era notório para qualquer cidadão médio, quis e conseguiu deixar, contudo, o assistente sem ajuda, caído no chão, sem pedir ou se certificar que alguém chamava socorro médico, deixando-o abandonado à sua sorte, abandonando o local indiferente ao destino da vítima, sem providenciar por ajuda.

vii. O arguido actuou da forma descrita, bem sabendo que detinha a munição descrita, o que representou mentalmente e quis realizar.

viii. O arguido previu que podia disparar a arma.

ix. Em combustível o assistente despendeu €160,00.

x. Em medicação para as dores despendeu €24,17.

xi. O assistente tem medo de se cruzar com o arguido.

xii. O arguido, quando encontra o assistente, ri-se para ele, com uma postura intimidante.

xiii. O facto de a situação ser comentada pela população faz com o assistente se sinta rebaixado e diminuído.

xiv. Anda nervoso e angustiado desde a data dos factos, sem conseguir dormir e em estado de ansiedade.


***

APRECIANDO

O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que os recorrentes extraem das respectivas motivações, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso ([1]).

O recurso vem restrito à matéria da indemnização civil, sendo tal limitação legal – art. 403º, n.º 1 do CPP – e, tal como vem sintetizado pelo recorrente, as questões suscitadas são:

- nulidade da sentença, por condenação além do pedido;

- os danos patrimoniais – a condenação a título de despesas de deslocação;

- a indemnização arbitrada a título de danos não patrimoniais;

- os juros moratórios.


*

A-

Ao definir o objecto do recurso, começa o recorrente por dizer que tendo sido condenado no pagamento do montante de € 4.050, acrescido de juros moratórios à taxa anual legal de 4% desde a notificação do PI (quando o demandante apenas pede a partir da data da sentença), a condenação vai para além do pedido formulado pelo demandante/assistente, pelo que, entende o recorrente, a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Civil.

Desde já avançamos que não assiste razão ao recorrente.

Com efeito,

Dispõe o artigo 609º, n.º 1, do CPC, que «A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir

Como decidiu o STJ, por Ac. de 8-2-2018 (no proc. n.º 633/15.0T8VCT.G1.S1 disponível in www.dgsi.pt):

“A nulidade por condenação além do pedido e em objecto diverso do pedido, e ainda por exceder o âmbito da pronúncia, prevista no art. 615º, n.º 1, alínea e), do CPC, a verificar-se, resultará do desrespeito pelo princípio do n.º 1, do art. 609º, do CPC, segundo o qual a sentença não pode exceder os limites quantitativos e qualitativos do pedido.

Tal nulidade deriva, assim, da conformidade com o princípio da coincidência entre o teor da sentença e o objecto do litígio (a pretensão formulada pelo autor, que se identifica pela providência concretamente solicitada pelo mesmo e pelo direito que será objecto dessa tutela), o qual, por sua vez, constitui um corolário do princípio do dispositivo (art. 3º, nº 1, do CPC).”

Na situação dos autos, o assistente/demandante deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado no valor global de € 5.854,17 acrescido de juros de mora, sendo € 854,17 por danos patrimoniais e, € 5.000,00 por danos não patrimoniais.

Ora, tendo o demandado, ora recorrente, sido condenado a pagar a indemnização global de € 4.050,00 (sendo € 3.300, a título de danos não patrimoniais e € 750,00 por danos patrimoniais), acrescido de juros de mora, é manifesto que não se verifica a condenação ultra petitium, já que a obrigação de indemnização a que o recorrente se encontra vinculado, ainda que os danos sejam distintos, por ser diversa a sua natureza, é una, proveniente do mesmo facto ilícito.

A limitação quantitativa da condenação, a que alude o n.º 1 do artigo 609º do CPC, reporta-se ao valor global e não ao das concretas parcelas que integram o valor total do pedido.

“Ainda que os danos revistam uma natureza diferenciada – como por exemplo, a decorrente da fundamental dicotomia entre dano patrimonial e não patrimonial – e, por isso, o cálculo da respectiva indemnização obedeça a parâmetros distintos, os seus beneficiários não ficam investidos em vários direitos de crédito – tantos quantas as parcelas em que, para a determinação do quantum indemnizatório, há que desdobrar o cálculo do dano – mas num único direito de crédito.

É justamente isto que explica, v.g., que os limites da condenação, ditados pelo princípio da disponibilidade objectiva, se entendem referidos ao pedido global e não às parcelas em que, para a determinação do quantum indemnizatório, há que desdobrar o cálculo do dano”. – Ac. RC de 21-3-2013, proc. n.º 793/07.4TBAND.C1

Nos termos expostos, deveremos concluir que não se verifica a pontada nulidade da sentença, consistente em condenação superior do que foi pedido, pois, o tribunal a quo decidiu dentro dos limites traçados pelo n.º 1 do artigo 609.º do CPC.


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B-

Alega o recorrente que não compreende como pode ter sido condenado no pagamento de € 150, com a justificação “considerando a distância em causa, o número de deslocações efectuadas, considero justo e adequado fixar em € 150, o montante devido a título de despesas de deslocação”, rúbrica que não foi peticionada pelo assistente demandante.

Acrescentando que:

Este valor não é devido, porquanto, o assistente pediu a condenação a título de despesa com combustível no valor de €160, facto que não logrou provar. Decidiu indevidamente o tribunal “a quo” quando fixa a quantia indemnizatória no valor de €150 a título de despesa de deslocação (sem qualquer prova documental), pedido este que não foi feito sequer pelo assistente/demandante.

Vejamos,

Consta do art. 17º do PIC:

“Devido ao facto da consulta de 10-04-2018 e dos referidos curativos de enfermagem (nos dias: 20-04-2018; 23-04-2018; 26-04-2018; 30-04-2018; 08-05-2018; 11-05-2018; 14-05-2018 e 18-05-2018), bem como as consultas posteriores terem sido efectuados no Centro de Saúde (…), em (…), que se situa a cerca de 25 Kms da sua residência, o Demandante teve de pedir a um colega de trabalho (Sr. …) para o transportar, no seu veículo ligeiro de passageiros, marca Renault, matrícula (…), mediante o pagamento das despesas com o combustível, que se cifrou em € 160,00, pois circulou nesses dias mais de 500 Kms no total (Docs. 3 a 11).”

Na sequência do que, foi dado como provado na sentença recorrida:

24. Em consequência do descrito o assistente foi acompanhado no Centro de Saúde de (...), (...) nos dias 10/04/2018; 20/04/2018; 23/04/2018; 26/04/2018; 30/04/2018; 08/05/2018; 11/05/2018; 14/05/2018 e 18/05/2018, que dista cerca de 30 Km da sua residência.

E, foi dado como não provado que:

ix. Em combustível o assistente despendeu €160,00.

Constando na fundamentação da decisão de facto que “os recibos de combustível de fls. 269 a 271 não coincidem, na generalidade, com as datas das consultas”.

 

Contrariamente ao defendido pelo recorrente, entendemos que todo o enunciado do art. 17º do PIC se reporta às despesas de deslocação que o demandante teve de suportar, quer para consultas, quer para curativos de enfermagem.

E daí que, embora tenha sido dado como não provado que em combustível o assistente despendeu €160,00, após indicar quais os pressupostos necessários à determinação e fixação da indemnização por danos decorrentes de factos ilícitos, bem decidiu a sentença recorrida ao considerar que:

«Resulta provado que o demandante se deslocou a (...) nos dias 10/04/2018; 20/04/2018; 23/04/2018; 26/04/2018; 30/04/2018; 08/05/2018; 11/05/2018; 14/05/2018 e 18/05/2018 para ir ao Centro de Saúde, que dista cerca de 25 Km da sua residência e deslocou-se ainda ao INML em (...).

Ora, considerando a distância em causa e o número de deslocações efectuadas considero justo e adequado fixar em €150,00, o montante devido a título de despesas de deslocação.».

Deste modo, tendo o assistente/demandante peticionado o pagamento das despesas de deslocação para consultas e para tratamentos, entendemos que inexistem razões para alterar o decidido.


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C-

Outra incompreensão vem apontada pelo recorrente, agora, quanto à condenação em indemnização a título de danos não patrimoniais.

Diz o recorrente:

A indemnização por danos não patrimoniais é indevida atendendo aos factos provados e sobretudo aos não provados, ainda porque as lesões tão minuciosamente descritas na douta sentença, referem sem qualquer margem de dúvida, que não tiveram consequências permanentes.

Com efeito, foi dado como não provado:

xi. O assistente tem medo de se cruzar com o arguido.

xii. O arguido, quando encontra o assistente, ri-se para ele, com uma postura intimidante.

xiii. O facto de a situação ser comentada pela população faz com o assistente se sinta rebaixado e diminuído.

xiv. Anda nervoso e angustiado desde a data dos factos, sem conseguir dormir e em estado de ansiedade.

Mas, foi dado como assente:

3. O arguido dirigiu-se ao assistente A., empunhando o aludido revólver, convicto de que o mesmo não se encontrava municiado, apontou-o para o chão, e carregou no gatilho, disparando um tiro, que atingiu o assistente na sua perna direita com uma bala.

4. No momento em que se deu o referido disparo, o arguido encontrava-se a cerca de 50 cm de distância do assistente.

5. A direcção do tiro, na parte inferior da perna direita do assistente, foi da frente para trás, de cima para baixo e de dentro para fora.

6. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido resultaram para o assistente A., para além de dor física nas zonas atingidas, mais concretamente: dois ferimentos circulares com crosta no terço inferior da perna direita; o mais superior, compatível com orifício de entrada, na face medial a 15 cm do calcanhar direito, tinha uma crosta que media 1cmX8mm e estava rodeado de equimose vermelha com 13mmX9mm; o outro, compatível com orifício de saída, mais baixo, apenas a 8 cm do calcanhar direito, era horizontal, a crosta media 1cmX3mm e a orla equimótica 18mmX12mm; o trajecto foi da frente para trás, de cima para baixo e da direita para a esquerda; acentuado edema do tornozelo direito, perna direita e pé direito abaixo do ferimento, lesões que lhe demandaram 41 dias para a cura, com 41 dias de afectação da capacidade de trabalho geral e profissional e sem consequências permanentes.

25. Durante 41 dias andou de canadianas.

32. Ainda sente dores, o que dificulta a sua locomoção.

E, perante os factos dados como provados, acima transcritos, apenas se nos oferece dizer que o quantum indemnizatório fixado (€ 3.300,00), a título de danos morais, apenas peca por defeito.

Nos termos das disposições conjugadas nos artigos 129º do CP e 71º e segs. do CPP, a indemnização atribuída no âmbito do processo penal tem a natureza de indemnização civil, e é regulada pela lei civil.

Para que alguém se constitua na obrigação de indemnizar exige-se o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil: o facto, a ilicitude, o nexo de imputação ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (arts. 483º e 563º do CC).

Ainda, conforme o disposto no artigo 496º, n.º 1 do CC, na fixação da indemnização devem atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo o montante fixado equitativamente, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494º do mesmo Código, quais sejam o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

No que respeita aos danos não patrimoniais ou morais, a indemnização reveste uma natureza mista pois ela pretende reparar, de algum modo, mais do que indemnizar os danos sofridos pelos lesados e também não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico, a conduta do agente ([2]).

Assim, a indemnização por danos não patrimoniais, embora não possa anular o mal causado, visa proporcionar uma compensação moral pelo prejuízo causado.

Os juízos de equidade a que a Lei faz apelo não se confundem com arbitrariedade, antes se exigindo do julgador a ponderação de todos os elementos resultantes da matéria de facto provada.

Como salienta Antunes Varela ([3]) “o montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”.

Ora, da factualidade provada resulta que a conduta ilícita do arguido foi causa adequada da produção dos danos sofridos pelo demandante; são tais danos merecedores de tutela jurídica e, por conseguinte, indemnizáveis.

Pelo que, improcede, também nesta parte, a argumentação do recorrente.


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D-

No que respeita aos juros moratórios, alega o recorrente:

“Pede o demandante no seu PI que “o arguido para além do valor de indemnização seja condenado no pagamento de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento”

Ora na douta sentença,

O arguido foi condenado no pagamento de juros moratórios a contar da data da notificação (16/11/2019) à taxa de 4%

Não compreende o arguido, salvo o devido respeito, a condenação em juros de mora à taxa legal desde a notificação do PI, quando o assistente/demandante apenas pede a condenação desde a data da sentença.”

A este propósito, consta da sentença recorrida:

«Peticiona ainda o demandante o pagamento de juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento.

Aqui em causa estão, naturalmente, os juros de mora.

Estes são os juros devidos em consequência do não cumprimento tempestivo, mas ainda possível, de uma obrigação, por facto imputável ao devedor, e podem resultar do acordo das partes ou, supletivamente, da lei. Por força do n.º 3 do artº 805º, nos casos de crédito ilíquido, a mora não existe enquanto não se tornar líquido e, em caso de responsabilidade por facto ilícito ou de responsabilidade objectiva a citação constitui o momento da constituição em mora. Tal obrigação existe independentemente de se provar a ocorrência de prejuízos emergentes da falta de disponibilidade do capital devido.

Por isso tem o demandante direito a receber aquelas quantias indemnizatórias acrescidas de juros moratórios à taxa anual de 4% - sem prejuízo de futura alteração dessa taxa de juro -, que são devidos desde a presente data quanto aos danos não patrimoniais, pois que estes valores indemnizatórios já estão quantificados por referência à data actual, mas desde a notificação - 16/11/2019 - sobre o valor indemnizatório fixado a título de danos patrimoniais (assim, Cf. artºs 559º e 805º, n.º 3 do Código Civil, Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril e Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2002, de 09 de Maio de 2002, cuja linha argumentativa é de manter.)».

Daí que no Dispositivo da sentença se tenha determinado que para além do pagamento ao demandante da quantia de € 4.050,00, acrescem juros moratórios, à taxa anual legal de 4%, que são devidos desde a presente data (da sentença) quanto à quantia de € 3.300,00 (danos não patrimoniais) e, desde a notificação do PIC (em 10/11/2019) - sobre o valor indemnizatório de € 750,00 (danos patrimoniais).

Ora,

Conforme o disposto no artigo 805º, n.º 2, al. b) do CC “há mora do devedor, independentemente de interpelação, se a obrigação provier de facto ilícito”. Mas, como estabelece o n.º 3 “Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido (…); tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação (…)”.

Portanto, «Em caso de responsabilidade civil por facto ilícito, ou pelo risco, sendo o crédito ilíquido, o devedor constituiu-se em mora a partir da interpelação feita mediante citação para a acção judicial em que se peça a sua condenação a pagar». Está aqui subjacente um juízo de equidade no sentido de que o lesado deve ser compensado pela demora no cumprimento resultante da duração do processo, pois, como geralmente acontece tal demora é provocada pelos próprios responsáveis civis.

O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2002, de 9 de Maio (DR n.º 146, Série I-A, de 27-6-2002) decidiu que “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.

Mostra-se, assim, justificado na sentença, a razão por que em relação aos danos patrimoniais, no valor de € 750,00, os juros moratórios são contados desde a notificação do PIC.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça.


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Coimbra, 5-5-2021

Texto processado em computador e integralmente revisto pela relatora e assinado eletronicamente - artigo 94º, n.º 2 do CPP

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)


[1] - Ac. do Plenário do STJ, de 19-10-95, in DR I-A Série de 28-12-95.
[2] - Prof. A. Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª ed., vol. I, pág. 488.
[3] - in ob. citada, pág. 486.