Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4224/19.9T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: BENS COMUNS DO CASAL
COMPENSAÇÃO POR OCUPAÇÃO EXCLUSIVA
MEIO PROCESSUAL ADEQUADO
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 546.º, N.º 2, E 1133.º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 1689.º E 1697.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Mesmo estando pendente inventário para partilha dos bens comuns do casal após divórcio, o processo comum de declaração é o meio processual próprio para a autora pedir contra o seu ex-cônjuge uma compensação pecuniária mensal, até à homologação da partilha dos bens comuns, por este a impedir de usar um bem imóvel comum, ocupado exclusivamente pelo mesmo.

II – Em tal caso, ainda que a mesma pretensão tenha sido deduzida no âmbito do processo de inventário, este não é o meio processual adequado para o efeito.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 4224/19.9T8VIS

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

AA, com residência em Quinta ..., ..., ..., ..., ... – ..., e em ... 5, 1216, ..., ..., propôs a presente acção declarativa com processo comum contra BB, residente na Quinta ..., ..., ..., pedindo:
1. Se fixasse uma compensação a favor dela, autora, pela privação do imóvel [fracção autónoma situado na Quinta ..., ...], bem comum do extinto casal, desde o mês de Março/2018 (data em que o réu se apossou do imóvel), até à homologação da partilha dos bens comuns do extinto casal;
2. Caso assim se não entendesse, se fixasse em termos equitativos uma indemnização pelo enriquecimento sem causa do réu.

Para o efeito alegou em síntese:
· Que ela e o réu foram casados entre si, mas que se divorciaram por sentença proferida em 10/01/2018, transitada em julgado em 14/02/2018;
· Que adquiriram, enquanto casados, uma fracção autónoma situado na Quinta ..., ...;
· Que os bens comuns do casal ainda não foram partilhados, não obstante se encontrar pendente inventário para partilha dos bens comuns;
· Que o réu passou a viver na fracção autónoma a partir de Março de 2018 e, desde então, tem impedido a autora de a usar, bem como ao recheio da mesma; 
· Que deve ser fixada a favor dela, autora, uma quantia não inferior a 300 euros por mês por estar privada de usar o imóvel que é bem comum.

O réu contestou, pedindo se julgasse improcedente a acção. Na sua defesa, alegou, em síntese, que nunca impediu a autora de usar a fracção autónoma.

O processo prosseguiu os seus termos e, no despacho saneador, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo absolveu o réu da instância, com fundamento em erro na forma do processo.

O tribunal a quo justificou a decisão dizendo:
· Que existiam bens comuns do casal;
· Que a pretensão visada com a presente acção foi apresentada também pela autora no âmbito do processo de inventário instaurado para partilha dos bens comuns da autora e do réu;
· Que o meio adequado para a autora efectivar o seu direito era o processo de inventário e não a acção de processo comum;
· Que o erro na forma do processo não podia ser corrigido, uma vez que o tribunal onda a acção havia sido proposta era materialmente incompetente para conhecer do inventário, uma vez que o divórcio foi decretado no âmbito de processo que correu termos no Tribunal de Família e Menores.

A autora não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse e substituísse a decisão recorrida por decisão que ordenasse o regular prosseguimento dos autos até final.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram em síntese os seguintes:
1. A recorrente deu entrada da acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge em 14 de Setembro de 2017, tendo o divórcio sido decretado por sentença proferida no dia 10 de Janeiro de 2018, transitada em julgado em 14 de Fevereiro de 2018.
2. No mês de Março de 2018 (já depois do divórcio entre as partes ter sido decretado), o recorrido passou a residir e a usufruir de forma exclusiva do imóvel bem comum do extinto casal, tendo inclusive trocado as fechaduras do mesmo, assim como de todo o mobiliário aí existente, ficando a recorrente privada de usar tais bens (imóvel e móveis).
3. Daí que a recorrente tenha intentado a presente acção, requerendo a condenação do recorrido no pagamento de uma compensação pela privação do imóvel, bem comum do extinto casal, desde o mês de Março de 2018 (data em que o recorrido se apossou do imóvel) até à homologação da partilha dos bens.
4. Neste seguimento, as relações entre os cônjuges cessam com a dissolução do casamento, designadamente através do divórcio (artigo 1688.º e 1788.º do Código Civil), produzindo os seus efeitos a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença; porém, a lei faz retroagir os efeitos do divórcio à data da propositura da acção, no que às relações patrimoniais entre os cônjuges diz respeito (artigo 1789.º, nº 1 in fine do Código Civil).
5. Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se à partilha dos bens do casal (artigo 1689.º do Código Civil), seja por acordo ou por intermédio do processo de inventário (artigo 1133.º CPC); sendo certo que, na partilha, cada cônjuge receberá os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns, conferindo previamente o que dever a este património comum.
6. O inventário pós divórcio tem por finalidade colocar um fim na comunhão de bens derivada do casamento, procedendo-se à partilha dos bens; quer isto dizer, pretende-se alcançar uma justa composição dos quinhões, liquidação do património próprio e comum e subsequente partilha, tendo sempre em consideração a data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges.
7. Quer dizer, o património a partilhar através do processo de inventário só engloba os bens/verbas existentes na data da propositura da acção de divórcio e não os contraídos/adquiridos posteriormente, apenas aqueles devendo ser objecto da partilha no inventário.
8. A este propósito, vejamos o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo nº 4931/10.1TBLRA.C1, datado de 08/01/2011, que nos diz o seguinte: “Com a retroação – que significa que a composição da comunhão se deve considerar fixada no dia da propositura da ação e não do dia do transito em julgado da decisão e que a partilha deve ser feita como se a comunhão tivesse sido dissolvida no dia da instauração da ação ou na data em que cessou a coabitação – quer-se evitar o prejuízo de um dos cônjuges pelos atos de insensatez, prodigalidade ou de pura vingança que o outro venha a praticar desde a proposição da ação sobre valores do património comum (ensinamento de Pires Lima / Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Coimbra Editora 1992, Vol. Iv, pág. 561”.
9. Pelo que a dívida que a recorrente peticiona nos presentes autos ao recorrido foi contraída já depois de terem cessado as relações patrimoniais entre os cônjuges (o que ocorreu no momento da propositura da acção de divórcio em Setembro de 2017) e já depois de dissolvido o casamento por sentença transitada em julgado em Fevereiro de 2018.
10. Assim sendo, estamos perante uma dívida que não faz parte do património comum, que não integra a comunhão objecto de partilhas no processo de inventário; dívida essa que se reporta ao património próprio de cada um, sem a intervenção do património comum (apesar deste estar na sua base, uma vez que o crédito que agora se reclama deriva do uso em exclusivo e consequente privação de um bem comum do extinto casal).
11. Estamos perante uma dívida da inteira responsabilidade do recorrido face à recorrente, à qual não tem aplicação o disposto no artigo 1697.º do CC, uma vez que não estamos a tratar de nenhum assunto de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges e/ou de apenas um deles em que haja necessidade de compensar na liquidação e/ou partilha dos patrimónios (comum e próprios).
12. Por se tratar de um crédito/dívida que surgiu já depois de cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges e de dissolvido o casamento por divórcio decretado por sentença transitada em julgado – e não de uma compensação - tal crédito não integra a massa a partilhar através do processo de inventário, não integra o passivo comum, nem integra as eventuais operações de compensação; estamos perante um crédito ao qual se aplica o direito das Obrigações.
13.  “Os créditos de compensação não se confundem com outros créditos entre os cônjuges por responsabilidade civil ou que nasçam de outros factos jurídicos negociais – mútuos, locações, etc. -, seguindo os primeiros o regime geral da responsabilidade civil e os segundos o regime geral dos negócios que lhe dão origem.” [Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito da Família”, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora 2008, pág. 432].
14. Este crédito da recorrente sobre o recorrido, porque surge já depois de terem cessado as relações patrimoniais entre os cônjuges e inclusive já depois de ter sido decretado o divórcio entre as partes, não tem de ser, necessária e obrigatoriamente, relacionado/reclamado no inventário pós divórcio, considerando que a reclamação de tal crédito ultrapassa as funções desse processo especial e as inerentes operações de partilha, não existindo outra forma para a recorrente reclamar o seu crédito se não o recurso à acção declarativa com processo comum – é este o entendimento da jurisprudência citada supra.
15. Para além disso, a mera existência de um processo de inventário a correr termos não pode privar as partes do direito geral de acção, nomeadamente de recorrerem aos meios comuns para fazerem valer um seu direito, como ocorre na presente situação.
16. A recorrente tem toda a liberdade de recorrer aos meios processuais e judiciais comuns para fazer valer esse seu direito/crédito, não estando adstrita ao processo de inventário para exercer esse seu direito de crédito contra o Recorrido, nem estando obrigada a esperar pela partilha dos bens.
17. Deste modo, não ocorre na situação sub judice um originário erro na forma do processo, uma vez que não existe qualquer correspondência entre o pedido formulado pela recorrente e o fim para que, segundo a lei, o processo especial de inventário foi previsto, uma vez que a recorrente não peticionou nos presentes autos a partilha dos bens, na sequência do divórcio decretado entre as partes; isto é, nunca o efeito jurídico pretendido pela recorrente com a presente cação passa pela partilha dos bens comuns e por uma eventual operação de compensação.
18. Por isso, a recorrente, sendo titular de um crédito sobre o recorrido (e não de uma compensação), é inteiramente livre de socorrer-se dos meios judiciais comuns para fazer valer o seu direito e estes meios mostrar-se os adequados, idóneos e aptos a conhecer da causa de pedir e do pedido daquela.
19. Logo, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, é a competente para conhecer desta questão, não ocorrendo qualquer erro na forma de processo, e, por isso, deve a acção prosseguir a sua tramitação normal.
20. Por outro lado, existem patentes ganhos ao nível da justiça material, uma vez que, a resolução antecipada desta questão permite libertar o processo de inventário para a discussão de outros assuntos, simplificando e abreviando a tramitação do mesmo.
21. Evita ainda a prática de actos inúteis, uma vez que, caso esta questão fosse incluída no processo de inventário, corre-se o risco de as partes serem posteriormente remetidas para os meios comuns, obrigando a instaurar uma nova acção declarativa com processo comum – tudo isto será de evitar, se este crédito for discutido e decidido na presente acção.
22. Por último, a sentença de que agora se recorre incorre num erro de julgamento, uma vez que o processo comum – e não o processo de inventário – é o meio adequado para a efectivação do direito que a recorrente visa alcançar pela presente acção.
23. Quanto a este ponto, vejamos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 02/07/2015, relatado por Ana Luísa Geraldes, o qual refere o seguinte: “3. O erro de julgamento tanto pode começar na interpretação e subsunção dos factos e do direito, como estender-se à sua própria qualificação, o que, em qualquer das circunstâncias, afecta e vicia a decisão proferida pelas consequências que acarreta, em resultado de um desacerto, de um equívoco ou de uma inexacta qualificação jurídica ou, como enuncia a lei, de um erro.”
24. Portanto, ao decidir pela existência de um originário erro da forma de processo, salvo o devido respeito, o tribunal a quo enveredou por uma errónea aplicação de tal figura jurídica (prevista no artigo 193.º do CPC), bem como por uma errada interpretação dos artigos 1688.º, 1689.º, 1697.º, 1788.º, 1789.º, nº 1 todos do Código Civil e os artigos 546.º e 1082.º, ambos do CPC (normas violadas), violando ainda o princípio da especialidade das formas processuais – é aqui que reside o mencionado erro de julgamento.

O réu respondeu, sustentando a manutenção da decisão recorrida.

Para o efeito alegou em síntese:
1. Para além das dívidas comuns do casal a terceiros, é na partilha que cada um dos cônjuges confere o que deve ao património comum e o que tem a haver do património comum, créditos sobre o património comum ou em benefício deste que, nos termos dos arts. 1689.º, n.º 3 e 1697.º, n.º 1 do CC, são ‘pagos’/compensados pela meação do cônjuge devedor no património comum.
2. Sintetizando com Lopes Cardoso, [é] na partilha a oportunidade de aplicar, em concreto, as regras do pagamento do passivo, a que já se fez referência (CCiv., art. 1689.º, n.º 2 e 3), a saber: a) são pagas, em primeiro lugar as dívidas comuns («comunicáveis» diz a lei) até ao valor do património comum; b) Só a seguir é que são pagas outras dívidas; c) Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum (Partilhas Litigiosas vol. III, p. 358 e s.).
3. Ao propor acção declarativa sob a forma de processo comum ordinário, quando a forma de processo adequada à sua pretensão, determinada pelo pedido e tendo em consideração a respectiva causa de pedir, seria a forma de processo especial, a apelante incorreu em erro na forma de processo, que constitui nulidade, de conhecimento oficioso do tribunal, conforme decorre do art.º 196.º do mesmo diploma.


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Síntese da questão suscitada pelo recurso:

Saber se, ao absolver o réu da instância, com fundamento em erro na forma do processo, a decisão recorrida violou o artigo 193.º do CPC, os artigos 1688.º, 1689.º, 1697.º, 1788.º, 1789.º, n.º 1, todos do Código Civil, e os artigos 546.º e 1082.º, ambos do CPC.


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Os factos relevantes para a decisão são constituídos pelos narrados na petição e pelos pedidos deduzidos.

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Resolução das questões suscitadas pelo recurso:

O tribunal a quo entendeu que o processo comum de declaração não era o processo próprio para a autora pedir a fixação, a seu favor, de uma compensação em dinheiro pela privação a que está sujeita, por acção do réu, do uso de um imóvel comum do casal, com base na seguinte justificação:  
· Que existiam bens comuns do casal;
· Que a pretensão visada com a presente acção também foi apresentada pela autora no âmbito do processo de inventário instaurado para partilha dos bens comuns da autora e do réu;
· Que o meio adequado para a autora efectivar o seu direito era o processo de inventário e não a acção de processo comum;
· Que o erro na forma do processo não podia ser corrigido, uma vez que o tribunal onda a acção havia sido proposta era materialmente incompetente para conhecer do inventário, uma vez que o divórcio foi decretado no âmbito de processo que correu termos no Tribunal de Família e Menores.

A recorrente imputa à decisão recorrida a violação dos preceitos acima indicados e pede a revogação da decisão com base, em síntese, na seguinte linha argumentativa:
· Que o crédito que a autora reclama surgiu já depois de cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges e de dissolvido o casamento por divórcio decretado por sentença transitada em julgado, pelo que tal crédito não integra a massa a partilhar através do processo de inventário, não integra o passivo comum, nem integra as eventuais operações de compensação; estamos perante um crédito ao qual se aplica o direito das Obrigações;
· Que a existência de um processo de inventário a correr termos não pode privar as partes do direito geral de acção, nomeadamente do direito de recorrerem aos meios comuns para fazerem valer um seu direito, como ocorre na presente situação;
· Que existem ganhos patentes ao nível da justiça material, uma vez que a resolução antecipada desta questão permite libertar o processo de inventário para discussão de outros assuntos, simplificando e abreviando a tramitação do mesmo.

Apreciação do tribunal:

Em primeiro lugar, cabe dizer que não faz sentido acusar a decisão recorrida de errar na interpretação dos artigos 1688.º, 1689.º, 1697.º, 1788.º e 1789.º, n.º 1, todos do Código Civil, e dos artigos 546.º e 1082 do CPC. Com efeito, resulta das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC que só tem sentido imputar à decisão recorrida erros de interpretação em relação aos preceitos que ela interpretou e que serviram de fundamento jurídico ao que foi decidido, situação em que não se encontram os preceitos acima indicados. Em matéria de lei que serviu de fundamento à decisão esta apontou expressamente os artigos 193.º, 196.º, 278.º, n.º 1, alínea e) e 3, 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea b), todos do CPC.

Em segundo lugar, cabe dizer que alguns das alegações usadas pela recorrente nem têm relação com a questão que a decisão sob recurso decidiu nem com as razões do que foi decidido.

A questão que a decisão recorrida decidiu foi a de saber se o processo comum de declaração era o próprio para a autora exigir judicialmente ao réu uma compensação pecuniária mensal baseada no facto de ele, réu, impedir a autora de usar um bem comum do casal.

Como resulta do exposto acima, o tribunal a quo respondeu negativamente a esta questão dizendo, em síntese, o seguinte: uma vez que existiam bens comuns, entre os quais figurava aquele que a autora alegava que estava impedida de usar por acção do réu, e que a pretensão visada com a acção já havia sido apresentada no processo de inventário que a autora havia requerido para partilha dos bens comuns, o meio adequado para a efectivação do direito era o processo de inventário, já instaurado, e não a acção de processo declarativo comum.

Sendo estas as razões da decisão recorrida, é bom de ver que nenhuma relação tem com elas as seguintes alegações de recurso:
· Que o património a partilhar através do processo do inventário só engloba bens/verbas existentes na data da propositura da acção de divórcio e não os contraídos/adquiridos posteriormente;
· Que a dívida que a recorrente pede nos presentes autos foi contraída depois de terem cessado as relações patrimoniais entre os cônjuges e já depois de dissolvido o casamento por sentença transitada em julgado.

A decisão recorrida incorreu em erro, mas por outras razões. Vejamos.

A resposta à questão de saber se o processo comum de declaração era o próprio para a autora exigir judicialmente ao réu uma compensação pecuniária mensal baseada no facto de ele, réu, impedir a autora de usar um bem comum do casal, não passava por saber, como está implícito na decisão recorrida, se existiam bens comuns a partilhar entre a autora e o réu e/ou se o pedido deduzido na presente acção já havia sido deduzido no processo de inventário requerido pela ora autora. Nenhuma destas circunstâncias servia aos olhos da lei para aferir da propriedade do processo usado pela autora.

A resposta à questão da propriedade de um processo para o autor fazer valer o seu direito é dada, num primeiro momento, pelo n.º 2 do artigo 546.º do CPC. Nos termos deste preceito, o processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponde processo especial.

Socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis a propósito do artigo 469.º do CPC, cujo teor é igual ao do n.º 2 do artigo 546.º: “Vê-se, pois, que o campo de aplicação do processo comum se determina não directamente, mas por exclusão de partes: depois de nos certificarmos de que para um determinado caso concreto não há na lei processo especial, é que podemos tranquilamente concluir que esse caso entra na órbita do processo comum. Sendo assim, o problema que se põe, a averiguar se deve adoptar-se, em certo caso, o processo comum ou processo especial é sempre este: estabelece a lei algum processo especial que seja aplicável ao caso? Se estabelece, é esse o processo que deve empregar-se; se não, cai-se no processo comum” [Código de Processo Civil anotado, Volume II, Coimbra Editora, Limitada, páginas 285 e 286].

Segue-se do exposto que a questão que se colocava, no caso, era a seguinte: a lei, entenda-se Código de Processo Civil, determinava que a pretensão da autora fosse deduzida no processo de inventário para partilha dos bens comuns?

A resposta a esta questão era negativa.

O processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal está previsto no artigo 1133.º do CPC, sendo inequivocamente um processo especial. A sua função é a de partilhar bens comuns do casal (alínea d) do artigo 1082.º do Código Civil).

Apesar de ser esta a função do inventário resulta, no entanto, do n.º 1 do artigo 1689.º do Código Civil que a partilha dos bens comuns compreende várias operações, sendo uma delas a conferência das dívidas dos cônjuges ao património comum. Precise-se que estas dívidas são as previstas no n.º 2 do artigo 1697.º do Código Civil, ou seja, as que têm origem no facto de terem respondido bens comuns por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges.

Como é bom de ver, a conferência em questão só terá lugar se tais dívidas forem relacionadas ou reclamadas. E, assim, havendo inventário para partilha dos bens comuns, se os cônjuges pretenderem que cada um deles confira o que deve ao património comum, o inventário é inequivocamente o processo próprio para os cônjuges reclamarem tais dívidas.

Sucede que a dívida que está em causa na presente acção não é uma dívida de um dos cônjuges ao património comum, é dívida de um dos cônjuges ao outro. E dívida cujo facto que lhe deu origem – segundo a alegação da autora – ocorreu já depois da dissolução do casamento, ou seja, já depois de cessadas as relações patrimoniais entre a autora e o réu. Trata-se, assim, de uma dívida que, segundo o n.º 1 do artigo 1689.º do Código Civil, combinado com o n.º 2 do artigo 1697.º do mesmo diploma, não releva para as operações de partilha dos bens comuns.

E não relevando para tais operações, só se poderia afirmar que o processo próprio para a reclamar era o inventário se resultasse expressa ou implicitamente da lei que, havendo inventário para partilha dos bens comuns, cada um dos cônjuges só podia reclamar os seus créditos contra o outro no processo de inventário.

Esta regra não existe. É certo que também não existe a regra contrária, ou seja, que os cônjuges não podem reclamar, no processo de inventário, os créditos de cada um sobre o outro.  

Mais: o n.º 2 do artigo 1689.º e o n.º 1 do artigo 1697.º, ambos do Código Civil, apontam no sentido de que, em relação a uma certa categoria de créditos - mais concretamente aqueles com origem no facto de um dos cônjuges ter satisfeito além do que lhe competia fazer por dívidas das responsabilidades de ambos os cônjuges – o cônjuge pode reclamar, no processo de inventário, o seu crédito contra o outro. Trata-se, no entanto, de uma faculdade. Se a não exercer não fica inibido de exigir o seu cumprimento através dos meios judiciais comuns. E o mesmo se pode dizer em relação aos créditos de um dos cônjuges sobre o outro com uma origem diferente da prevista no n.º 1 do artigo 1697.º do CC, como sucede com o crédito em causa nos presentes autos.

Segue-se do exposto que não há regra, no Código Civil ou no Código de Processo Civil, que determine que, havendo inventário para partilha dos bens comuns, a compensação pecuniária que a autora está a exigir ao réu através da presente acção deve ser deduzida no processo de inventário. E, não havendo, a conclusão a retirar é a de que era permitido à autora exigir judicialmente tal compensação através do processo comum de declaração. Cita-se em abono desta interpretação da lei, o acórdão do STJ proferido em 3-10-2019, no processo n.º 1517/13.2TJLSB.L1.S2, publicado em www.dgsi.pt.

Em suma: ao julgar que o processo comum de declaração não era o processo próprio para a autora deduzir a sua pretensão, a decisão recorrida incorreu em erro.


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência:
1. Revoga-se a decisão recorrida e substitui-se a mesma por decisão a julgar que o processo comum de declaração é o próprio para a autora deduzir a sua pretensão contra o réu;
2. Ordena-se o prosseguimento do processo.

Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrida ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas.

Coimbra, 24 de Maio de 2022