Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1024/20.7T8GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: EXTINÇÃO DO POSTO DE TRABALHO
INDEMNIZAÇÃO
ACORDO SOBRE O MONTANTE DA INDEMNIZAÇÃO
PAGAMENTO DA INDEMNIZAÇÃO ACORDADA
IMPUGNAÇÃO DO DESPEDIMENTO
ABUSO DE DIREITO
OBJETO DO LITÍGIO
TEMAS DA PROVA
DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 04/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DA GUARDA DO TRIBUNAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 334.º DO CÓDIGO CIVIL.
ART. 384.º DO CÓDIGO DO TRABALHO DE 2009.
Sumário: I) É passível de incorrer em abuso de direito o trabalhador que instaura uma acção de impugnação da regularidade e licitude do despedimento em que venha a demonstrar-se a seguinte matéria alegada pelo empregador: em reunião com o empregador em que participou pessoalmente, o trabalhador aceitou expressamente a extinção do seu posto de trabalho, tendo igualmente aceite a compensação acordada para o efeito; por via disso, o empregador jamais equacionou que o trabalhador pudesse arguir a ilicitude do seu despedimento com fundamento naquela extinção do posto de trabalho; foi pago ao trabalhador a compensação devida pela extinção do posto de trabalho que com o mesmo foi acordada.

II) Na identificação do objecto do litígio e fixação dos temas da prova a que se proceda, deve seleccionar-se para a matéria de facto aquela que seja relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.

III) Na decisão sobre a matéria de facto deve continuar a respeitar-se a regra de que deve ser tida em consideração e emitir-se pronúncia sobre toda a matéria de facto que for processualmente atendível e que releve para a correcta decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito

IV) Assim, a acção referida em I) não pode ser julgada no despacho saneador e sem que ao empregador seja conferida a possibilidade processual de em audiência de julgamento provar aquela matéria de facto por si alegada.

Decisão Texto Integral:




Acordam na 6.ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório


A autora propôs contra a ré, mediante apresentação do correspondente formulário legal a presente acção de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, peticionando que seja declarado irregular ou ilícito, com as legais consequências, o despedimento da mesma decidido e executado pela ré.
A ré apresentou articulado motivador do despedimento em que sustenta ter despedido licitamente a autora, por extinção do seu posto de trabalho, razão pela qual deveria a acção improceder.
Respondeu a autora, concluindo esse articulado da seguinte forma:
NESTES TERMOS, e nos MELHORES DE DIREITO, deve ser declarada a ilicitude do despedimento por extinção do posto de trabalho da A. e, em consequência, ser a R. condenada a:
- Pagamento de € 3.359,14, de salários em falta, até 30 de Junho de 2020;
- Pagamento de € 635,00 de subsídio de férias e férias não gozadas, do ano de 2020,
Pagamento de € 29,36 pela impossibilidade de usufruir do direito a um crédito de horas correspondente a dois dias de trabalho por semana, sem prejuízo da retribuição, durante o prazo de aviso prévio;
Pagamento de € 576,19 por não lhe ter sido facultada a formação contínua, que tinha direito a receber;
- Pagamento de € 3.810,60 por despedimento ilícito,
- Pagamento de todos os salários desde 1 de Julho de 2020 até ao transito em julgado dos presentes autos,
- Pagamento de danos patrimoniais em valor não inferior a € 1.000,00;
O que perfaz o valor de € 9.410,29;
- A tudo isto acrescem os valores vincendos e juros de mora à taxa legal, sobre cada uma das prestações, e a partir do seu vencimento.”.
Alegou, em resumo, que é ilícita a decisão da ré despedir a autora com fundamento em extinção do posto de trabalho, sendo que do contrato de trabalho e da sua concreta forma de cessação emergiram para si os direitos de crédito correspondentes aos montantes pecuniários a cujo pagamento se peticiona a condenação da ré.
No despacho saneador foi proferida a decisão do seguinte teor:
De acordo com o artigo 98º-I, nº 4, alínea a), do Código de Processo do Trabalho:
“4 – Frustrada a tentativa de conciliação, na audiência de partes o juiz:
a) Procede à notificação imediata do empregador para, no prazo de 15 dias, apresentar articulado para motivar o despedimento, juntar o procedimento disciplinar ou os documentos comprovativos do cumprimento das formalidades exigidas, apresentar o rol de testemunhas e requerer quaisquer outras provas”.
Em consonância com esta disposição, o artigo 98º-J, nº 3, alínea a), do Código de Processo do Trabalho prevê a declaração judicial de ilicitude do despedimento se o Empregador, além do mais, não juntar o procedimento disciplinar ou os documentos comprovativos do cumprimento das formalidades exigidas.
No caso de despedimento por extinção do posto de trabalho, as formalidades legalmente exigidas constam dos artigos 368º e segs do Código do Trabalho, havendo, contudo, que atentar ainda na norma do artigo 384º do mesmo Código, que consagra específicos fundamentos de ilicitude desta modalidade de despedimento.
Efetivamente, o Tribunal apenas deverá decretar a ilicitude do despedimento, por omissão de comprovação do cumprimento de formalidades que a lei qualifique de essenciais, no sentido de, em caso de incumprimento, gerarem a ilicitude do despedimento.
Determina o artigo 384º do Código do Trabalho:
“O despedimento por extinção de posto de trabalho é ainda ilícito se o empregador:
a) Não cumprir os requisitos do nº 1 do artigo 368º;
b) Não observar o disposto no nº 2 do artigo 368º;
c)         Não tiver feito as comunicações previstas no artigo 369º;
d) Não tiver posto à disposição do trabalhador despedido, até ao termo do prazo de aviso prévio, a compensação por ele devida a que se refere o artigo 366º, por remissão do artigo 372º, e os créditos vencidos ou exigíveis em virtude da cessação do contrato de trabalho”.
Em face desta disposição, o despedimento será ilícito se não estiverem verificados os requisitos substantivos do despedimento (artigo 368º, nos 1 e 2, do Código do Trabalho), não tiverem sido operadas as comunicações aludidas no artigo seguinte ou não tenha sido posta à disposição do trabalhador a compensação devida e os créditos vencidos ou exigíveis por efeito da cessação do contrato de trabalho (nº 5 do artigo 368º do Código do Trabalho).
Não sendo a violação de outras exigências causa de ilicitude do despedimento, diremos que, por exemplo, a omissão de comprovação no processo judicial, pelo Empregador, à Autoridade para as Condições do Trabalho, prevista no artigo 371º, nº 3, do Código do Trabalho, não constitui fundamento de declaração da ilicitude do despedimento.
Nesta lógica impõe-se sublinhar que a omissão de junção da decisão de despedimento também não determina a declaração judicial de ilicitude do despedimento.
Efetivamente, contrariamente ao estabelecido a respeito do procedimento disciplinar de despedimento por facto imputável ao trabalhador, em relação ao qual o legislador consagrou a sua invalidade se a comunicação, ao trabalhador, da decisão de despedimento e dos seus fundamentos não tiver sido feita por escrito [artigo 382º, alínea d), do Código do Trabalho], inexiste idêntica norma incidente sobre o procedimento de despedimento por extinção do posto de trabalho.
No presente caso, verifica-se que, no que respeita ao procedimento de despedimento, o Empregador não juntou a comunicação a que alude o artigo 369º do Código do Trabalho, tendo apresentado apenas a decisão de despedimento comunicada à Trabalhadora.
Admitindo-se, por facilidade de exposição, que aquela omissão resulta suprida pela junção da comunicação operada pela Trabalhadora aquando da apresentação do formulário previsto nos artigos 98º-C e 98º-D do Código do Trabalho, verifica-se que a decisão de despedimento tem o seguinte teor:
“Assunto: decisão extinção do posto de trabalho – comunicação prevista no art. 371º do Código do Trabalho
Exma Senhora
Conforme a nossa conversa na passada semana, considerando o já exposto na anterior carta, e reunidos que estão os fundamentos da extinção do seu posto de trabalho, aceite por si, vimos por esta forma comunicar-lhe a decisão do seu despedimento.
Aproveitamos para enviar por escrito o acerto que contas acordado, em anexo”.
É patente o incumprimento das exigências formuladas no artigo 371º, nº 2, do Código do Trabalho, segundo o qual:
“2 – A decisão de despedimento é proferida por escrito, dela constando:
a) Motivo da extinção do posto de trabalho;
b) Confirmação dos requisitos previstos no nº 1 do artigo 368º;
c)         Prova da aplicação dos critérios de determinação do posto de trabalho a extinguir, caso se tenha verificado oposição a esta;
d) Montante, forma, momento e lugar do pagamento da compensação e dos créditos vencidos e dos exigíveis por efeito da cessação do contrato de trabalho;
e) Data da cessação do contrato”.
A lei não autoriza a simples remissão para a comunicação operada nos termos do artigo 369º do Código do Trabalho, autonomizando a decisão de despedimento, como, aliás, ressalta da alínea b) do nº 2 do artigo 371º, que impõe a confirmação dos requisitos imperiosamente transmitidos em momento anterior.
Ora, aparentemente, apesar de a decisão de despedimento não cumprir as exigências legais, o despedimento não seria declarado ilícito com esse fundamento.
Sucede, porém, que se impõe atentar numa outra disposição, mormente no artigo 387º, nº 3, do Código do Trabalho, segundo o qual:
“3 – Na ação de apreciação judicial do despedimento, o empregador apenas pode invocar factos e fundamentos constantes de decisão de despedimento comunicada ao trabalhador”.
Esta disposição é aplicável independentemente da modalidade de despedimento.
O ónus da prova da observância dos requisitos formais e substanciais da cessação do contrato de trabalho por extinção de posto de trabalho impende sobre o empregador, como se decidiu nos ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA DE 27/06/2012 e DE 25/10/2017, in http://www.dgsi.pt.
Por outro lado, “a instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova” (artigo 410º do Código de Processo Civil).
Conjugando estas normas e procedendo à necessária integração do caso concreto, haverá de se concluir que, sendo a decisão de despedimento omissa quanto aos factos que fundamentaram o despedimento, o Empregador está, ab initio, impossibilitado de provar as razões de caráter substancial que justificaram a extinção do posto de trabalho.
Assim, independentemente da produção de prova e decisão sobre as restantes questões controversas, impõe-se a imediata declaração de ilicitude do despedimento.
Atento o valor da retribuição, situado no mínimo legal, e a circunstância de a ilicitude do despedimento se enquadrar na alínea b) do artigo 381º do Código do Trabalho, isto é, por o Empregador não ter logrado provar os motivos justificativos do despedimento, mas ponderando ainda a pouco significativa antiguidade da Trabalhadora, fixa-se a indemnização em 35 dias de retribuição base.
Pelo exposto decide o Tribunal:
I.
Declarar ilícito o despedimento da Trabalhadora A…, promovido pelo Empregador «B…, Lda» e, em consequência, condenar o Empregador a pagar à Trabalhadora:
i. Uma indemnização correspondente a 35 (trinta e cinco) dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fração de antiguidade, sem prejuízo do disposto nos nos 2 e 3 do artigo 391º do Código do Trabalho;
ii. As retribuições que a Trabalhadora deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial que declare a ilicitude do despedimento, sem prejuízo da dedução das importâncias aludidas no artigo 390º, nº 2, alínea c), do Código do Trabalho.
II. As custas serão determinadas a final.
Não se conformando com o assim decidido, apelou a ré, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:
(…)
Contra-alegou a autora, pugnando pela improcedência da apelação

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência da apelação.
Colhidos os vistos legais, importa decidir

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II - Principais questões a decidir

Considerando que é pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC – aplicável “ex-vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho – CPT), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:
1ª) se o tribunal recorrido podia ter decretado no despacho saneador, sem produção de prova, a ilicitude do despedimento, com todas as consequências legalmente associadas a tal ilicitude;
2ª) se a autora recebeu e não devolveu o valor da compensação devida pela extinção do posto de trabalho, presumindo-se que aceitou o seu despedimento fundado naquela extinção, com a consequente impossibilidade legal, que devia ter sido declarada pelo tribunal recorrido na decisão recorrida, de impugnar tal despedimento através desta acção;
3ª) se a ré está processualmente impedida de demonstrar neste processo os motivos subjacentes à decisão de despedir a autora com fundamento em extinção do posto de trabalho desta, com a consequente ilicitude do despedimento.

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III – Fundamentação

A) De facto

Factos provados

Os factos com relevo para esta decisão são os que resultam do antecedente relatório.

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B) De direito


Primeira questão: se o tribunal recorrido podia ter decretado no despacho saneador, sem produção de prova, a ilicitude do despedimento, com todas as consequências legalmente associadas a tal ilicitude.

No articulado motivador do despedimento vem alegado, designadamente, que: em reunião com a ré em que participou pessoalmente, a autora aceitou expressamente a extinção do seu posto de trabalho, tendo igualmente aceite a compensação acordada para o efeito (arts. 17º a 20º); por via disso, a ré jamais equacionou que a autora pudesse arguir a ilicitude do seu despedimento com fundamento naquela extinção do posto de trabalho (art. 23º); foi pago à autora a compensação devida pela extinção do posto de trabalho que com a mesma foi acordada (arts. 26º a 31º).
A trabalhadora impugnou essas alegações da ré (arts. 51º e ss da resposta ao articulado motivador).
Ora, na identificação do objecto do litígio e fixação dos temas da prova a que se proceda (art. 596º do CPC), deve seleccionar-se para a matéria de facto aquela que seja relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito[1].
Outrossim, na decisão sobre a matéria de facto deve continuar a respeitar-se a regra de que deve ser tida em consideração e emitir-se pronúncia sobre toda a matéria de facto que for processualmente atendível e que releve para a correcta decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito[2].
Nos termos do artigo 334º CC é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico dum direito, sendo hoje pacífico que o abuso de direito é de conhecimento oficioso (v.g. acórdãos do STJ de 12/7/2018, proferido no processo 2069/14.1T8PRT.P1.S1, de 11/12/2012, proferido no processo 116/07.2TBMCN.P1.S1).
Agir de boa-fé é, tanto no contexto do artigo 334º como no do artigo 762º/2, ambos do CC, actuar com diligência, zelo e lealdade face aos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, numa linha de correcção e probidade, visando não prejudicar os legítimos interesses da outra parte, é proceder de modo a não procurar alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar.
Os bons costumes são um conjunto de regras de convivência que num dado ambiente e em certo momento as pessoas honestas e correctas aceitam como contrárias à imoralidade ou indecoro social.
Esta complexa figura do abuso de direito é uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais, de janelas por onde podem circular lufadas de ar fresco, com que o julgador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido (Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, pp. 63 ss; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª, pp. 60 ss; P. Lima / A. Varela, CC Anotado, I, 4ª, p. 299).
Segundo Manuel de Andrade existirá tal abuso quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito (loc. cit.).
A doutrina do abuso de direito é inspirada numa consideração de justiça - pode ser que as normas gerais, ao serem aplicadas a um caso específico, não sirvam perfeitamente a justiça...” – Pereira Coelho, Obrigações (Aditamentos), p. 27.
Em sintonia com esta doutrina, refere Vaz Serra (BMJ nº 85) que haverá abuso de direito quando este, em princípio legítimo, é, em determinado caso, exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, e a consequência é a do titular do direito ser tratado como se o não tivesse. Se os direitos concedidos pela lei, tendo em vista determinados fins, fossem exercidos para finalidades diversas não se pode dizer que se trata de verdadeiro exercício de um direito, mas de falta de direito.
Pode, por isso, entender-se juridicamente por exercício abusivo do direito “Um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica - por não contrariar a estrutura formal-definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde - e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício.” – Castanheira Neves, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, edição copiografada, Coimbra, 1968/69, p. 391.
Ou, mais simplesmente, há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem.
Por sua vez, Antunes Varela esclareceu que o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo e que se designa por abuso de direito o exercício de um poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em absoluta contradição seja com o fim (económico ou social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu conhecimento (RLJ 114º, p. 75) e, por outro lado, não se esqueceu de salientar que a condenação do abuso de direito, a ajuizar pelos termos do dito artigo 334º, “...aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo.” (RLJ 128º, p. 241).
O abuso de direito abrange, assim, o exercício de qualquer direito de forma anormal quanto à sua intensidade ou à sua execução de forma a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiro e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício por parte do seu titular e as consequências que outrem tem de suportar.
Além disso, é preciso ter presente que o actual CC consagrou a concepção objectivista do abuso de direito e, por isso, não é necessário a consciência malévola, a consciência de se excederem, com o abuso de direito, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que sejam excedidos esses limites, muito embora a intenção com que o titular do direito tenha agido não deixa de contribuir para a questão de saber se há ou não abuso de direito.
Uma das modalidades em que se materializa e manifesta o abuso de direito reconduz-se ao denominado venire contra factum proprium que, como é sabido, tem sempre por pressupostos uma situação objectiva de confiança – uma conduta de alguém que possa ser entendida como posição vinculante em relação à situação futura – o investimento na confiança pela contraparte e a boa-fé desta (cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo IV, 2005, p. 275, Da Boa Fé no Direito Civil, p. 45, ROA, 58º, 1998, p. 964; Baptista Machado, Tutela da Confiança e Venire contra factum proprium», Obra dispersa, vol. I, p. 416, e RLJ, n.º 3726 e seguintes).
Assim, o enquadramento objectivo da situação de confiança, em termos de relevância, afere-se pelo necessário para convencer uma pessoa normal e razoável, colocada na posição do confiante (arts. 236º/1 e 237º do CC), enquanto, como elemento subjectivo, releva a real adesão do confiante ao facto gerador da confiança (Baptista Machado, Obra Dispersa, I, pp. 415 e ss.).
Para lá da existência das sucessivas condutas contraditórias, que o venire sempre exige, é ainda necessário que a primeira conduta tenha criado na outra parte uma situação de confiança, confiança essa que deve apresentar-se como justificada e que, com base nela, o confiante tenha tomado posições ou decisões de que lhe surgirão danos se a confiança legítima vier a frustrar-se, apesar de ter agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 30/3/2006, proferido no âmbito da revista 3921/05, “Para que o venire se verifique não basta a existência de condutas contraditórias. É necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que com base nessa situação de confiança a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis, isto é, que tenha investido nessa situação de confiança e que esse investimento não possa ser desfeito sem prejuízos inadmissíveis.” – cfr. no mesmo sentido, acórdão do STJ de 26/9/2012, proferido no âmbito da revista 889/03.1TTLSB.L1.S1.
Assim, são quatro os elementos caracterizadores do venire: comportamento inicial de uma das partes, geração de expectativa na contraparte, investimento pela contraparte na expectativa gerada e comportamento subsequente contraditório com o inicial.
Em face de tudo quanto vem de expor-se, admite este tribunal que se a ré lograsse provar a matéria de facto aduzida no primeiro parágrafo da abordagem da questão ora em consideração poderia suscitar-se, mesmo oficiosamente, o problema de saber se a autora incorreu ou não em abuso de direito ao deduzir a presente impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, seja por manifesta violação da boa-fé a que estava vinculada, seja por incorrer do denominado venire.
A concluir-se eventualmente nesse sentido, suscitar-se-ia outro problema, o de saber que efeitos adviriam desse abuso para as pretensões da autora deduzidas nestes autos.
Tudo a significar que sem produção de prova sobre aqueles factos e sem decisão fáctica sobre os mesmos não podia o tribunal recorrido decretar imediatamente, no despacho saneador, uma decisão a declarar a ilicitude do despedimento e a condenar a ré a pagar à autora a arbitrada indemnização e as retribuições intercalares.
Concluindo: relativamente às temáticas enunciadas no antecedente parágrafo, os autos também devem prosseguir para a fase de julgamento a fim de que também seja apreciada e decida aquela matéria de facto e, em função do assim decidido, seja equacionada a questão do eventual abuso de direito da autora e dos seus reflexos sobre as pretensões deduzidas pela mesma no âmbito desta acção.
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O decidido a respeito desta questão prejudica o conhecimento das demais.
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IV- DECISÃO


Acordam os juízes que integram esta sexta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de: i) anular a decisão recorrida, na parte em que declarou a ilicitude do despedimento e condenou a ré a pagar à autora a arbitrada indemnização e as retribuições intercalares; ii) ordenar que os autos também prossigam para a fase de julgamento a fim de que também seja apreciada e decida a questão do eventual abuso de direito da autora e dos seus reflexos sobre as pretensões deduzidas pela mesma no âmbito desta acção.
Custas pelo vencido a final
Coimbra, 23/4/2021.
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(Jorge Manuel Loureiro)



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(Paula Maria Roberto)


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(Ramalho Pinto)



[1] Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/7/2017, proferido no processo 114815/16.8YIPRT.G1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 6/10/2015 proferido no processo 1848/11.6TBCSC.L1-1
[2] Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2013, p. 166; Abrantes Geraldes, Sentença Cível, 2014, p. 18; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/5/2014, proferido no processo 1168/13.1TBGRD.C1.