Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
233/20.3YLPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: AÇÃO ESPECIAL DE DESPEJO
PAGAMENTO DE CAUÇÃO PELO INQUILINO
BNA
APOIO JUDICIÁRIO AO INQUILINO
Data do Acordão: 04/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – J. L. CÍVEL DE COIMBRA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 15º-F, Nº 3, DA LEI Nº 6/2006, DE 27/02; 10º, Nº 2 DA PORTARIA Nº 9/2013, DE 10/01.
Sumário: I - O estatuído no artº 10º, nº 2 da Portaria n.º 9/2013, de 10.1, quando preceitua que o inquilino deve proceder ao pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, nos termos do n.º 3 do artigo 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27.02, independentemente de lhe ter sido concedido apoio judiciário, não é interpretativo deste segmento normativo, antes tendo de se concluir que o contraria de um modo inconciliável.

II - Destarte, quer porque aquela Lei prevalece hierarquicamente sobre esta Portaria, quer porque, lógica a valorativamente deve ser dada prioridade à Lei, urge efetivar-se uma interpretação abrogante do preceituado na Portaria, cujo teor, assim, deve ter-se por inatendível, prevalecendo o estatuído na Lei.

Decisão Texto Integral:




ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

M... instaurou no BNA  contra  J... e outra,  procedimento especial de despejo.

No seguimento do processo foi proferido o seguinte despacho:

«Considerando que, na sequência do despacho de 23-9-2020, o requerido não veio proceder à junção aos autos do documento comprovativo do pagamento da caução, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 15º-F, n.ºs 3 do RAU, com os fundamentos constantes desse despacho, para o qual se remete, tem-se a oposição por não deduzida – art. 15º-F, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27-02.

Remeta ao BNA, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 15º-E, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 6/2006, de 27-02.»

               2.

  Inconformado recorreu o requerido.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª – A oposição ao despejo, no caso de a resolução do contrato de arrendamento se fundar na falta de pagamento de rendas, depende da junção de documento comprovativo do pagamento de caução no valor das rendas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas (art.º 15º-F, n.º 3 da Lei 6/2006).

 2ª – Porém, nos termos do mesmo preceito legal, o Requerido que beneficiar de apoio judiciário, fica isento da prestação da referida caução.

3ª – O legislador ordinário, in casu a Assembleia da República, deixou a definição dos concretos termos em que tal isenção se concretizaria para um diploma legal regulamentador, mais concretamente uma Portaria (art.º 15º-F, n.º 3 in fine, da Lei 6/2006).

4ª Em cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 15º-F, in fine foi publicada a Portaria n.º 9/2013, de 10 de Janeiro, a qual dispõe no seu artigo 10º, n.º 2: “O documento comprovativo do pagamento referido no número anterior (pagamento de caução) deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário”.

5ª – Ora, em face do seu teor, é manifesto que a Portaria 9/2013, ilegalmente, contraria, em absoluto, os fins a que se destinava, quais eram, os de regular os termos em que é concedida a isenção de prestação de caução pelo beneficiário de apoio judiciário.

6ª – E ilegalmente retira aos beneficiários de apoio judiciário o direito de não prestarem a caução prevista no artigo 15º-F da Lei 6/2006.

7ª – Estamos, pois, perante um conflito de normas de direito infraconstitucional, no qual deverá prevalecer a norma de superior hierarquia, ou seja, o disposto no n.º 3 do artigo 15º-F da Lei 6/2006, enfermando de ilegalidade a norma da Portaria 9/2013.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685-Aº do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda  é a seguinte:

Validade e eficácia da oposição, por o inquilino opoente estar isento do pagamento de caução, dado beneficiar de apoio judiciário, nos termos do nº 3 do artº 15º-F da lei 6/2006 de 27.02.

4.

Apreciando.

4.1.

É esperado que, tipicamente, determinado conjunto de normas jurídicas siga certa ordem e possua caráter unitário e íntegro, de modo que, múltiplas e excessivas interpretações de uma mesma situação real, ou, ao menos, incompatibilidades, óbvias ou difusas, sejam afastadas.

Porém, tal pode não acontecer, e cairmos perante contradições ou antinomias de normas ou, até, de princípios.

A contradição jurídica é uma incoerência ou antinomia, real ou aparente, entre  duas normas,   entre dois princípios jurídicos, ou entre uma norma e um princípio aplicado a um caso particular.

 As antinomias jurídicas reais são aquelas em que se percebe um conflito mutuamente exclusivo e/ou incompatível, sendo impossíveis de resolver dentro das linhas e critérios exegéticos designados pelo ordenamento.

Já as antinomias jurídicas aparentes são aquelas em que se percebe uma solução interpretativa do conflito, devendo o magistrado e o operador do direito utilizar  determinados critérios lógicos, doutrinários e até normativos, para resolvê-lo.

Para se reconhecer uma antinomia jurídica, é necessário verificar a contradição, total ou parcial, entre duas ou mais normas, ambas emanadas por autoridades competentes e no mesmo âmbito jurídico, pois que só assim surge uma insustentável inconsistência de critérios  que não permite uma saída nos quadros do ordenamento  jurídico.

Em suma, as regras jurídicas são consideradas antinómicas quando são  (i) vigentes, (ii) contidas num mesmo ordenamento, (iii) legítimas e (iv) contraditórias.

Tal antinomia, é, obviamente, de evitar, pois que dificulta a interpretação dentro do sistema jurídico e reduz a sua segurança e credibilidade como um todo.

 No que tange ao modo de se  ultrapassar uma situação de contradição de leis, é possível  deitar mão de três critérios ou instrumentos, a saber:

a) Critério Cronológico: em caso de antinomia entre duas normas criadas ou vigoradas em dois momentos cronológicos distintos, prevalece a norma posterior.

 Corresponde a este princípio o brocardo latino lex posterior derogat legi priori, ou seja, lei posterior derroga leis anteriores.

b) Critério da especialidade: no caso da existência de duas normas incoerentes uma com a outra, verifica-se se ao dispor sobre o objeto conflituoso, uma delas possui caráter mais específico, em oposição a um caráter mais genérico, prevalecendo a norma especial.

`A este se refere o brocardo lex specialis derogat legi generali, isto é, lei especial derroga leis genéricas.

c) Critério Hierárquico: consiste na preferência dada, em caso de antinomia, a uma norma portadora de status hierarquicamente superior ao seu par antinómico.

Assim, a Lei Constitucional prevalece sobre a Lei Ordinária, e, no âmbito desta, a Lei  da Assembleia da República prevalece sobre o Decreto Lei do Governo, e este prevalece sobre as Portarias ou Decretos Regulamentares, que são diplomas meramente regulatórios e concretizadores dos diplomas legislativos que, a montante, os preveem.

Vale aqui o brocardo lex superior derogat legi inferiori, ou seja, lei superior derroga leis inferiores.

Por via de regra, os dois primeiros critérios complementam-se, ou seja, normalmente, a lei mais recente é a mais especifica ou especial sobre a matéria.

E de entre todos os critérios, o mais importante, e, assim,  prevalecente, é o terceiro, pois que este se atém ao respeito e defesa que, num Estado de Direito Democrático, deve merecer a lei dimanante dos órgãos legiferantes hierarquicamente superiores e democráticamente legitimados.

4.2.

Estão em causa os seguintes preceitos:

Da Lei nº 6/2006, de 27.02.

Artigo 15.º-F

Oposição

1 - O requerido pode opor-se à pretensão no prazo de 15 dias a contar da sua notificação.

2 - A oposição não carece de forma articulada, devendo ser apresentada no BNA apenas por via eletrónica, com menção da existência do mandato e do domicílio profissional do mandatário, sob pena de pagamento imediato de uma multa no valor de 2 unidades de conta processuais.

3 - Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos n.os 3 e 4 do artigo 1083.º do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.

4 - Não se mostrando paga a taxa ou a caução previstas no número anterior, a oposição tem-se por não deduzida.

5 - A oposição tem-se igualmente por não deduzida quando o requerido não efetue o pagamento da taxa devida no prazo de cinco dias a contar da data da notificação da decisão definitiva de indeferimento do pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa ou de pagamento faseado da taxa e dos demais encargos com o processo.

Da Portaria n.º 9/2013, de 10 de Janeiro:

Artigo 10.º

Caução

1 - O pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, nos termos do n.º 3 do artigo 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, é efetuado através dos meios eletrónicos de pagamento previstos no artigo 17.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril, após a emissão do respetivo documento único de cobrança.

2 - O documento comprovativo do pagamento referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário.

Verifica-se, pois, que os segmentos normativos se apresentam, na parte sublinhada, total, inequívoca e inconciliavelmente, contraditórios.

Na verdade, a Lei isenta o beneficiário de apoio judiciário da caução.

Já a Portaria obriga este a satisfazer a caução, mesmo que lhe tenha sido concedido tal benefício.

E nem se diga, como defendeu o Sr. Juiz recorrido na decisão prévia à presente, que a Portaria operou uma interpretação do estatuído na lei 6/2006.

Primus, porque a letra daquela Lei não é duvidosa, antes sendo claramente inequívoca no sentido de isentar da caução o beneficiário do apoio judiciário.

Pelo que não pode ser aventada qualquer hipótese exegética que não tenha na letra da lei um respaldo ou um mínimo apoio verbal – artº 9º nº2 do CC.

Não há, pois, qualquer dúvida que exija esclarecimento através de uma interpretação.

Secundus, porque a interpretação  legal vinculativa é apenas a interpretação autêntica; e esta apenas pode ser operada por diploma com igual ou superior valor hierárquico, o que não é o caso.

Encontramo-nos, assim, perante uma antinomia real de normas.

4.3.

Por outro lado, e no âmbito da pura  interpretação da lei.

Neste domínio, e considerando  a ratio legis e outros elementos da hermenêutica jurídica, como sejam o  lógico e teleológico, pode chegar-se à conclusão que uma norma encerra, em si mesma, ou por comparação com outras, uma contradição insanável e  conduz a um resultado não pretendido e que até pode apresentar-se, atentas as finalidades do sistema, como nocivo.

Neste caso pode o interprete operar uma interpretação  abrogante.

Na interpretação abrogante, o interprete: «após a busca do sentido possível conclui que há uma contradição insanável, donde não resulta nenhuma regra útil…por ter escapado ao legislador uma incongruência na regulamentação ou uma incompatibilidade (lógica: não pode ser assim, ou valorativa: não deve ser assim) entre vários textos, há, desde o início, uma falta de sentido… Verificados estes pressupostos o intérprete deve declarar a lei morta» - Oliveira Ascensão, in O Direito, Ed. Gulbenkian, 2ª ed. p. 373 e sgs.

4.4.

Retornando ao caso vertente reitera-se que a norma da Portaria contraria frontalmente a norma da Lei.

Por conseguinte, e por apelo à prioridade hierárquica desta norma, ela deve prevalecer.

Acresce que a isenção de prestação da caução ex vi de ter sido concedido ao inquilino o beneficio do apoio judiciário, se apresenta, como se viu, uma pretensão assumidamente pretendida pela lei 6/2006.

E bem se compreende a sua ratio e finalidade

Quanto aquela razão de ser, porque a concessão do apoio jurídico radica na falta ou míngua de meios económico financeiros; e não havendo que distinguir sobre as consequências deste défice económico, em função das finalidades a que se reporta: custas do processo ou pagamento de  renda.

Afinal estamos a falar de, e a tratar com,  pessoas e não apenas de números ou valores; e a pessoa com défice económico é a mesma: o opoente.

O direito e a sua interpretação não podem apenas ser perspetivados em termos meramente economicistas; urge, outrossim, apreciar e decidir com base num mínimo ético.

Se se conclui que o opoente não tem cabedal económico para pagar honorários a advogado e, inclusive, as custas dum processo público a entes públicos, mal se compreende que se lhe exija suportar uma caução para tutelar interesses meramente privados.

Nesta conformidade, e aqui já entramos no âmago daquele referido fito, há que convir que se tal penúria pecuniária existe, de tal sorte que lhe atribui jus a litigância gratuita e a pagamento de honorários a advogado, outrossim, logicamente, e ao menos, por igualdade de razão, ela deve valer  para  o eximir do pagamento da caução.

Até porque, se assim não fosse, o inquilino, por falta de meios, podia perder a ação e ser despejado ainda antes de se discutir a substancia da questão, dilucidação esta que, se se concretizasse, até lhe poderia dar-lhe ganho de causa e, assim, se obstaculizando ao despejo.

Decorrentemente, e sdr., os argumentos vertidos na decisão prévia, e que, essencialmente, foram colhidos no Ac. RE de 25.09.2014, p.1091/14.2YLPRT-A.E1, vislumbram-se  inconsistentes com a previsão legal e algo rebuscados.

Cremos, aliás, ser a posição ora propugnada a  maioritária na jurisprudência, pois que, para além dos arestos citados na decisão prévia, e que julgaram no sentido ora defendido, outros se lhe seguiram no mesmo sentido – cfr., vg. Acs. RP de  05.06.2017, p. 2375/16.0YLPRT-A.P1, de  26.10.2017, p. 342/16.3YLPRT-A.P1 e de  30.05.2018, p. 2678/17.7YLPRT.P1 in dgsi.pt.

Por conseguinte se concluindo que, outrossim em sede meramente interpretativa, urge operar a aludida interpretação abrogante, e dar como «morta» a regra da Portaria, pois que, o nela  preceituado não pode, por ilógico, nem deve, por ponderação valorativa,  relevar e singrar.

Procede o recurso.

5.

Sumariando – artº 663º. nº 7 do CPC.

 I - O estatuído no artº 10º, nº 2 da Portaria n.º 9/2013, de 10.1, quando preceitua que o inquilino deve proceder ao pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, nos termos do n.º 3 do artigo 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27.02, independentemente de lhe ter sido concedido apoio judiciário, não é interpretativo deste segmento normativo, antes tendo de se concluir que o contraria de um modo inconciliável.

II - Destarte,  quer porque aquela Lei prevalece hierarquicamente sobre esta Portaria,  quer porque, lógica a valorativamente deve ser dada prioridade à Lei, urge efetivar-se uma interpretação abrogante do preceituado na Portaria, cujo teor, assim, deve ter-se por inatendível,  prevalecendo o estatuído na Lei.

6.

Decisão.

Termos em que se decide julgar o recurso procedente e, consequentemente, revogar a decisão, com as legais consequências.

Custas recursivas pelo vencido a final, ou na proporção da sucumbência.

Coimbra, 2021.04.20.

Carlos António Moreira