Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
310/20.0JAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: COACÇÃO SEXUAL; IMPORTUNAÇÃO SEXUAL; TIPO OBJECTIVO; VIOLÊNCIA; CONSTRANGIMENTO
Data do Acordão: 06/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DA CASTELO BRANCO – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 163.º E 170.º DO CP
Sumário: I – Nos termos e para os efeitos do artigo 163.º, n.º 2, do CP, constranger significa obrigar, submeter à sua vontade, sem que a vítima tenha liberdade de escolha ou determinação.

II – Esse normativo exige que a violência seja adequada ao resultado do constrangimento.

III - Ao invés do que sucede no tipo de crime do artigo 163.º do CP, na importunação sexual (cfr. artigo 170.º do CP) o agente não chega a praticar qualquer acto sexual de relevo, referindo-se os contactos de natureza sexual a um contacto corporal que transporta significado sexual, sem, contudo, representar um acto sexual de relevo.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

1. Por acórdão datado de 4 de janeiro de 2022, proferido pelo Juízo Central Criminal ... – J..., Comarca ..., no processo comum coletivo n.º 310/20...., foi decidido:
a) Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de coação sexual, previsto e punido pelo artigo 163º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período temporal;
b) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido pela demandante BB, condenando AA a pagar-lhe a quantia de € 3.000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data do acórdão.

2. Inconformados com a decisão, dela recorrem o arguido AA e o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

          2.1. Recurso do arguido:

1. O Tribunal à quo com a prolação do douto acórdão, descerrou grave erro de julgamento, porquanto

2. Os factos constantes dos parágrafos 8º a 11º, atento à dinâmica como vêm descritos,

3. Mormente, atento ao tempo em que o arguido permaneceu parqueado no local da prática dos factos (vide fls. 39 a 41 dos autos);

4. Conquanto sejam interpretados segundo as elementares regras de experiência, afiguram-se impossíveis de ocorrer;

5. Pelo que o Tribunal a quo os deveria ter julgado como não provados, ou in minime, não subsumidos à dúvida razoável;

6. Devendo os mesmos ser julgados por não provados;

               7. O que desde já se requer para os devidos e legais efeitos.

8. Acresce que, caso o arguido tivesse praticado os factos que lhe eram imputados em sede de libelo acusatório, tais factos seriam suscetíveis de integrar a prática do crime de importunação sexual (artigo 170º do CP) e não do crime coação sexual (artigo 163º do CP), porquanto:

9. Não fora exercida qualquer violência sobre a ofendida, tampouco ocorrera qualquer ameaça ou outro facto que a deixasse inconsciente ou impossibilitada de reagir;

10. Tanto mais que, não consta da acusação a descrição de qualquer ato violento;

11.          E a ofendida diz ter reagido aos atos alegadamente perpetrados pelo Arguido (paragrafo 10 dos factos provados);  

12. Pelo que deverá o arguido ser integralmente absolvido da prática do crime que lhe fora imputado;

13. O que desde já se requer para os devidos e legais efeitos.

14.          O douto acórdão ora posto em crise, faz errada interpretação do artigo 163º do Código Penal.

· Responderam ao recurso o Ministério Público e a assistente BB, pugnando pela sua improcedência.

          2.1. Recurso do Ministério Público:

1. O arguido AA foi condenado pela prática de um crime de coação sexual, p. e p. nos termos do art. 163.º, n.º2 do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período.

2. Salvo o devido respeito, que é muito, a pena aplicada ao arguido é desadequada.

3. O tribunal a quo violou o disposto no art. 70.º, n.º 1 do Código Penal ao considerar que as exigências de prevenção especial não são elevadas, e que o grau de ilicitude e culpa também não é muito acentuado.

4. O arguido, apresenta elevadas exigências de prevenção especial, pela forma como praticou os factos e gravidade da sua conduta;

5. O grau de ilicitude e de culpa são elevadíssimos atenta a forma como o arguido agiu num lugar ermo, ao passar por uma mulher que não conhece, decidir abordá-la e atentar contra a sua liberdade sexual, sabendo que a sua força física é superior à daquela mulher, e que como tal, as hipóteses de resistência da mesma, até face à surpresa da conduta do arguido são bastante diminutas e decide atuar da forma descrita.

6. O arguido agiu, de modo a satisfazer os seus institutos libidinosos de modo totalmente alheio à vontade e liberdade sexual de uma mulher que objetificou, com a qual se cruzou casualmente na estrada apenas parando com a sua conduta quando esta apresentou resistência efetiva e mais forte do que aquele esperou.

7. Assim, considero que a pena do arguido tem que se afastar do seu limite mínimo e fixar-se em 4 anos de prisão.

8. Concorda-se com o Tribunal a quo que a pena de prisão seja suspensa na sua execução, todavia, considera-se que aquela suspensão tem que ser sujeita a regime de prova de modo a que o arguido interiorize o desvalor da sua conduta e seja orientado para a necessidade de respeitar o corpo e autodeterminação sexual das mulheres.


· Respondeu ao recurso o arguido, defendendo a sua improcedência, e a assistente BB, pugnando pela sua procedência.

3. Nesta Relação, a Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da total improcedência do recurso do arguido, e da procedência do recurso interposto pelo Ministério Público.  


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II. ACÓRDÃO RECORRIDO

(transcrição das partes relevantes para o conhecimento do recurso)

«(…) 2.1- FACTOS PROVADOS:

- Da acusação:

1. No dia 02.10.2020, cerca das 09h e 45min, o arguido conduzia o veículo automóvel de pronto socorro, autor reboque, ligeiro de mercadorias, de cor ... e …, com os dizeres “..." nas portas, marca ..., matrícula n ..-TM-.., pertença da firma "M..., Lda.”, com sede em ..., na EM n.º … no sentido ... - ...-;

2. Quando a cerca de 200/300 do restaurante "H…” passou por BB, que conduzia uma bicicleta, no mesmo sentido que o arguido que a ultrapassou.

3. Ao ultrapassar BB o arguido acenou-lhe, tendo esta retribuído o aceno, pensando que se tratava de alguém conhecido.

4. Alguns metros mais à frente, o arguido imobilizou o veículo que conduzia na berma da via, no sentido que seguia, com o motor a trabalhar, saindo do veículo e colocando-se junto à porta do condutor.

5. Quando BB se aproximou, circulando na mencionada bicicleta, parou a bicicleta que conduzia, constatando, nesse momento, não conhecer o arguido, condutor da viatura automóvel, sendo que o mesmo não usava máscara, apesar da pandemia Covid 19.

6. Em seguida o arguido perguntou-lhe “então tudo bem?” e dirigiu-se a BB dando-lhe dois beijos na cara e dizendo-lhe que a levava enquanto pegava na bicicleta.

7. Como BB não acedeu à proposta do arguido, este perguntou-lhe se não queria de vez em quando andar com ele, tendo mais uma vez a resposta sido negativa.

8. Então e como BB colocou o pé na pedaleira para reiniciar a marcha, o arguido apalpou-a com ambas as mãos no rabo.

9. Ato contínuo o arguido agarrou BB por detrás e apalpou-lhe a vagina e as mamas com força, por cima da roupa, enquanto tentava puxá-la para trás e retirá-la da bicicleta que caiu no chão.

10. Nesse momento e enquanto arrastava BB para a carrinha, como esta começou a gritar e dar murros no capot da viatura o arguido largou-a, entrou no veículo e fugiu daquele local.

11. Ao agir da forma descrita, apalpando a ofendida nas nádegas, na vagina e no peito, o arguido agiu com o intuito de satisfazer os seus instintos sexuais, bem sabendo que coartava, desse modo, a possibilidade de a ofendida se determinar livremente nesse campo da sua vida e sendo certo ainda que, atuando com aquele propósito, o arguido usou violência física contra a mesma, por modo a obstar que aquela resistisse aos seus intentos, o que logrou conseguir.

12. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e criminalmente punível.

***

- Da discussão da causa e dos autos, com relevo para a decisão de mérito (factos constantes do relatório social):

1- AA é oriundo de um agregado familiar numeroso e de modesta condição socioeconómica, sendo o mais novo de uma fratria de seis.

2- Nasceu na ..., concelho ..., localidade onde residiam os seus progenitores aquando do seu nascimento.

3- Com poucos meses de vida do arguido, os seus pais regressaram à aldeia de ..., concelho ..., de onde eram originários, tendo aqui decorrido o seu processo de desenvolvimento.

4- O pai trabalhava na área da construção civil e a mãe era doméstica.

5- Segundo o arguido, os pais constituíram-se como modelos positivos ao nível afetivo e educativo, caracterizando a sua infância de forma normativa, pese embora as dificuldades económicas que se faziam sentir, agravadas na sequência de um acidente rodoviário do pai, que o incapacitou para o trabalho.

6- A partir daí o agregado subsistia com a pensão de invalidez do pai, dedicando-se à agricultura de subsistência.

7- Deu início ao seu percurso escolar na idade normal, tendo registado insucesso em dois anos letivos, não conseguindo concluir o 6.º ano de escolaridade, altura em que o deu por concluído, dadas as dificuldades económicas da família.

8- A partir de então, com cerca de 12 anos, começou a trabalhar na área da exploração florestal, onde se manteve até aos 15 anos de idade.

9- Nesta altura, emigrou para a ..., para junto de um dos seus irmãos mais velhos que o acolheu e a quem auxiliava na prestação e cuidados aos sobrinhos.

10- Com 17 anos, regressou para junto dos seus progenitores, iniciando atividade profissional na área da construção civil, onde permaneceu durante cerca de 3 anos.

11- Aos 20 anos de idade, emigrou novamente para a ..., onde continuou a beneficiar do apoio do irmão, tendo iniciado atividade profissional na área da restauração.

12- Inicialmente como ajudante de cozinha, rapidamente progrediu para cozinheiro, mantendo esta atividade durante cerca de 9 anos.

13- Regressou a Portugal, na sequência do encerramento do restaurante, tendo iniciado atividade como motorista de ligeiros no transporte de mercadorias e pessoas para a ....

14- Manteve esta atividade pelo período de 5 anos, inicialmente por conta de outrem e, posteriormente, por conta própria.

15- Em 2001 sofreu um acidente rodoviário grave, que o levou a cessar a sua atividade na área dos transportes, dedicando-se, desde então, à distribuição e venda de peixe porta a porta, além de trabalhos na área da construção civil, à jornada diária.

16- Desde 2018, exerce atividade profissional na empresa M..., Lda, como motorista de pronto socorro, onde se mantém até à atualidade.

17- Segundo o responsável da empresa, AA é um funcionário exemplar, não havendo referência a qualquer tipo de comportamento desajustado da parte do arguido.

18- Há cerca de 13 anos, AA estabeleceu união de facto com CC, de 54 anos de idade, doméstica.

19- O casal tem uma filha, com 12 anos de idade, estudante.

20- Refere uma dinâmica familiar normativa, sem referência a qualquer tipo de problemática ou conflitualidade, sendo o arguido considerado um pai e marido cuidador.

21- O casal reside numa moradia, propriedade da companheira do arguido, com razoáveis condições de habitabilidade.

22- A situação económica é descrita como equilibrada, subsistindo a família com os rendimentos auferidos pelo arguido.

23- AA aufere mensalmente a quantia de 675 euros, referindo como despesas, além das domésticas, um encargo mensal no valor de 100 euros, correspondente a uma indemnização a uma companhia de seguros.

24- No âmbito da sua atividade, o arguido ausenta-se da sua residência durante todo o dia, regressando a casa somente à noite e aos fins de semana e férias.

25- Nestes períodos, dedica-se à agricultura, centrado no trabalho e apoio aos seus familiares.

26- Na comunidade de residência a sua imagem social é positiva, sendo o arguido descrito como uma pessoa trabalhadora e associado a condutas sociais normativas.

27- O arguido não apresenta problemas de saúde de relevo, mencionando consumos moderados de álcool no passado, que abandonou, mantendo-se abstinente desde então.

-  Averbamentos no c.r.c. do arguido:

1- Nada consta do c.r.c. do arguido AA. ***

(…)

2.3. MOTIVAÇÃO

A formação da convicção do Tribunal baseou-se na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, segundo juízos de experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação, plasmado no artigo 127º do Código do Processo Penal.

O arguido usou do direito a não prestar declarações sobre o objeto do processo, sendo que de tal silêncio nada o Tribunal concluiu, seja a favor ou contra o arguido.

Desde logo, foram muito relevantes as declarações da assistente BB que descreveu, de forma pormenorizada, o circunstancialismo de tempo, modo e lugar dos factos numa versão coincidente com a da acusação. Estas declarações foram sinceras, espontâneas e objetivas, o que efetivamente aconteceu, demonstrando a sua descrição pormenorizada, repita-se, todo o desenrolar dos factos, nos termos que ficaram provados, tendo merecido total credibilidade.

No âmbito dos crimes sexuais, como é o caso sub-judice, as declarações da vítima têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante (…). Não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais. (…)

Ora, é precisamente este o caso dos autos: o sucedido, no essencial, não foi presenciado por ninguém e apenas foi relatado pela ofendida, usando o arguido do direito ao silêncio.

Em função destas especialidades, quando o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha, seja ou não vítima, de maior ou menor idade, opostas, em maior ou menor medida, às do arguido (aqui declarações inexistentes, por isso, não valorado tal silêncio) podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso. O velho aforismo “testis unus testis nullus”, carece, pois, de eficácia jurídica num sistema como o nosso em que este tipo de prova não é tarifada ou legal mas antes livremente apreciada pelo tribunal.

Note-se que a questão - que não é, naturalmente, privativa do direito português - tem merecido um desenvolvimento assinalável na doutrina e jurisprudência do País vizinho onde se tem vindo reiteradamente a declarar que um único testemunho, ainda que da vítima e inclusivamente de uma criança, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência do arguido desde que ocorram as seguintes notas: a) ausência de incredibilidade subjetiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança: o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objetivo que o dotem de aptidão probatória e; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (cfr. v.g. Antonio Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, págs.181-187, J.J. Bégué Lezaún, Delitos Contra la Libertad e Indemnidad Sexuales, Barcelona, 1999, pág. 246 e seguintes, Miguel Angel Montañes Pardo, La Presunción de Inocencia-Análisis Doctrinal e Jurisprudencial, Pamplona, 1999, pág.180-182 e José Manuel Alcaide González, Guia Prática de la Prueba en el Processo Penal, Valencia, 1999, pág.133-136).

No caso dos autos, em que todas as três apontadas notas se mostraram bem evidenciadas, bem como a postura da assistente e a forma de depor que as concretizaram, as suas declarações permitiram ao tribunal formular, na sua convicção, um juízo de certeza positivo dos factos, tal como resultaram provados.

Para tal conclusão foi também relevante a prova documental dos autos: - auto de exame de fls. 16 a 18;

- reconstituição de acordo com a ofendida de fls. 19 a 23; - ficha de registo automóvel de fls. 24;

- certidão permanente de fls. 25 a 30; - mapa de viaturas de fls. 32;

- email de fls. 33;

- informação de identificação civil de fls. 34;

- informação de serviços efectuados de fls. 35; - fotografia de fls. 36 a 38;

- informação do GPS da entidade empregadora do arguido de fls. 39 a 41; - fotografias de fls. 43, 44 e de fls. 48.

Acresce que, igualmente se mostrou relevante o depoimento da testemunha de acusação DD, inspetor da PJ

De acordo com o mesmo, após comunicado pela GNR ..., foram ao local, inquiriu a vítima no posto da GNR, descreveu os factos no local, fizeram a reportagem fotográfica; a vítima descreveu a viatura do sujeito; fotografaram o suspeito, ele autorizou, tatuagem que ele tinha (que a vítima tinha referido).

Mais referiu que a vítima estava bastante transtornada, chorosa, muito perturbada com o que aconteceu, muito incomodada com tudo o que aconteceu – relatando tudo muito direitinho, mas sempre muito transtornada.

Anota-se, ainda, que de acordo com o depoimento de EE, GNR, ... (testemunha indicada ao pedido de indemnização civil) a ofendida e marido, da República ..., são muito conhecidos pela população de ....

Refere a testemunha que quando viu a ofendida chegar com o marido ela chorava, chorava, chorava, em pânico, nem conseguia falar. (…)

A situação foi bastante falada, as pessoas ficaram com um bocado de receio. Também a testemunha FF, companheiro da assistente (igualmente ouvido quanto ao pedido de indemnização civil), confirmou que antes dos acontecimentos a ofendida era uma pessoa alegre e que, por virtude dos factos, “perdeu a sua luz” (alegria), confirmando que ela recorreu a médicos e teve necessidade de tomar medicamentos, antes disso não o fazia.

Trata-se de depoimentos de pessoas que não presenciaram os factos, mas que demonstram à saciedade o estado psicológico em que a vítima ficou após os acontecimentos, necessitando de ajuda médica e psicológica.

Ora, da valoração e conjugação das declarações da assistente e do depoimento da Testemunha DD, inspetor da PJ, corroborado, também, pelos demais depoimentos referidos, bem como pela prova documental dos autos, o tribunal concluiu  no sentido dado como provado, merecendo as declarações da ofendida/assistente BB inteira credibilidade, face à postura assumida pela mesma e estado de espírito em que ficou, corroborado pela demais prova.

Quanto ao elemento subjetivo, no que concerne à intenção com que o arguido atuou, “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão, é possível captar a existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infração. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência” (cf. Ac. da Relação do Porto de 23.02.1983, BMJ, n.º 324, pág. 620).

Da ponderação de toda a prova referida e, principalmente, com base na dinâmica dos acontecimentos, como relatado pela assistente, bem como atendendo à sucessão dos atos do arguido - factos levados a cabo, dados como provados -ponderadas as regras de experiência e da normalidade da vida, resultou, em nossa convicção, com certeza, que a intenção do arguido foi dirigida à consumação daqueles atos (sexuais) que levou a cabo, objetivo que quis atingir e efetivamente atingiu.

(…)

SUBSUNÇÃO DOS FACTOS AO ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL:

Vem o arguido AA acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de coação sexual, p. e p. pelo art. 163º, n.os 1 e 2, do C.Penal. (…)

O bem jurídico tutelado no crime de coação sexual é a liberdade de determinação sexual.

Conforme salienta Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora 1999, pág. 447, “... o cerne do tipo objetivo de ilícito é constituído pelo ato sexual de relevo. “Acto sexual” é, no sentido do art. 163º, todo aquele (comportamento ativo, só muito excecionalmente omissivo: talvez, por ex. em certas circunstâncias, permanecer nu) que, de um ponto de vista predominantemente objetivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado diretamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica”.

O conceito de "ato sexual de relevo", traduz-se no comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas. Integram aquele conceito os atos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objetivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade é apanágio de todo o ser humano (Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal, 2º Vol., 2ª ed., pág. 230). (…)

Ato sexual de relevo é “toda a ação que tenha uma conotação sexual e seja suficientemente ofensiva ou condicionante da liberdade e da autonomia sexual que cada um tem pleno direito a preservar e a desenvolver. Evidentemente que nem todo o ato sexual será de relevo. Mas sê-lo-á seguramente aquele que, atentas as concretas circunstâncias do caso, atinge de modo importante a liberdade de determinação sexual da pessoa que o sofreu. Claro que na tarefa de conferir, ou não, relevo ao comportamento do autor do ato importará antes de tudo o mais ter presente a atinente ação gestual. Mas não serão despiciendas, bem pelo contrário, por exemplo, as palavras com que o autor faz acompanhar o gesto, na justa medida em que, complementarmente, revelam, por um lado, a intenção de quem as profere e, por outro, atingem a liberdade de autodeterminação da pessoa a quem são dirigidas” (Ac RP de 07.10.09, www.dgsi.pt).

(…)

Relativamente à conduta típica que se traduz em um ato de coação, a lei distingue três meios típicos: a violência, a ameaça e o constrangimento.

Quanto à violência, conforme refere Figueiredo Dias, in loc. cit. pág. 453-454, “... no contexto do art. 163º, apenas o uso de força física (como vis absoluta ou como vis compulsiva) destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada. (...) Não é necessário que a força usada deva qualificar-se de pesada ou grave, mas será em todo o caso que ela se considere idónea, segundo as circunstâncias do caso nos termos conhecidos da doutrina da adequação, a vencer a resistência efetiva ou esperada da vítima. Sob certas circunstâncias concretas nomeadamente em função da debilidade, física ou psíquica, do carácter temerário ou assustadiço da vítima pode bastar, v. g., uma bofetada, o fechá-la contra a sua vontade num quarto ou mesmo num automóvel, transportá-la de um lugar para outro: é aqui decisiva em princípio a perspetiva da vítima” (...). Quanto ao segundo meio de coação individualizado, a ameaça deve entender-se a manifestação de um propósito de causar um mal ou um perigo se a pessoa ameaçada não consentir no ato sexual. Nesta medida poderá reentrar neste conceito, em parte, a “violência psíquica”. (...) Quanto ao último meio de coação tipificado, ele traduz-se em o agente constranger a vítima ao ato sexual “depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir”. Para o direito penal constranger é coagir, é obrigar outrem a algo sem lhe dar a liberdade de escolha.

Já quanto ao tipo subjetivo, temos como exigência da norma incriminatória que o agente atue com dolo em qualquer uma das suas formas. Efetivamente, e não prevendo o tipo incriminatório a punição a título de negligência, temos que, por referência ao artigo 13.º do Código Penal, só será punível o comportamento descrito quando praticado de forma dolosa.

Ora, no presente caso, em face da matéria de facto provada, estão plenamente preenchidos todos os elementos típicos objetivos, bem como o elemento subjetivo identificados.

Na verdade, o arguido atentou contra a liberdade e autodeterminação sexual da assistente ao praticar os atos que resultaram provados; numa sucessão gradativa de atos e logo após uma abordagem em que cumprimenta a vítima com 2 beijos (sendo que aquela não conhecia o arguido), a ofendida foi primeiramente apalpada na zona das nádegas, após o que foi agarrada por detrás, apalpada com força na zona da vagina e das mamas, puxada para trás e obrigada a sair da bicicleta, que cai, só saindo o arguido do local quando a ofendida bateu com as mãos no capot da viatura do agressor. Os atos descritos – agarrar a ofendida e apalpar com força, na zona da vagina e mamas são, de acordo com as posições expostas, atos sexuais de relevo que, com toda a certeza ofendem, em evidência, e em elevado grau, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas. Acresce que todos os atos praticados pelo arguido, foram alcançados pela violência utilizada e constrangimento provocado, através da utilização da força física, agarrando a vítima por trás e puxando-a, estando aquela na bicicleta, então parada. Relativamente a situação similar cfr. Ac. RC de 27.06.2012.

Destarte, e porque o arguido quis praticar os factos conforme os praticou, atuando, pois, com dolo – sem que se conclua, além do mais, pela existência de qualquer causa que afaste a ilicitude dos atos e a culpa – e porque tinha perfeito conhecimento de ser a sua conduta proibida e punida por lei, impõe-se concluir que o arguido, praticou um crime de coação sexual, nos termos do artº 163º/2 do Código Penal.

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B) ESCOLHA E MEDIDA DA PENA:

O crime de coação sexual é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos (artº 163º/2 do Código Penal).

(…)

Assim e ponderando no caso concreto:

- As exigências de prevenção geral são muito elevadas, atenta a frequência com que o bem jurídico é posto em causa, sendo certo que a reação da comunidade aumenta consideravelmente quando estão em causa bens pessoais, gerando forte alarme social. Os crimes de natureza sexual, são objeto de elevada reprovação social, ofendendo em alto grau os sentimentos gerais da moralidade sexual, todo o comportamento de prática de atividades sexuais dirigido contra a vontade das pessoas, nomeadamente o crime de coação sexual, por via do qual se lesa a liberdade e a autenticidade da expressão da vida sexual das pessoas.

- As exigências de prevenção especial, não se afiguram elevadas no caso concreto, na medida em que o arguido não tem qualquer averbamento no seu c.r.c. e em face do seu percurso de vida, onde pontuam hábitos de trabalho.

- o grau de ilicitude e de culpa é, in casu, não se afigura muito acentuado para o tipo em causa, considerando a forma de atuação, e o grau de violência empregue, pois tratando-se embora de violência física efetiva, apenas foi exercida por breves momentos, entre o agarrar a vítima por trás, obriga-la a sair da bicicleta e esta debater-se e bater no capot da viatura do arguido, que logo para a sua atuação e vai embora; contudo, não pode olvidar-se que por via da atuação do arguido a ofendida sentiu medo e humilhação, pelos atos vividos, e qua ainda hoje não ultrapassou.

- o dolo foi direto e intenso, resultando, pelos factos apurados, serenidade na tomada da resolução criminosa – saudou a vítima, para a viatura, acerca-se da mesma e cumprimenta-a com 2 beijos (a ofendida não conhecia o arguido), após o que pratica os factos descritos;

- a idade do arguido, a sua personalidade e as condições pessoais da sua vida; - o seu comportamento anterior e posterior aos factos;

Em face do exposto, tudo visto e ponderado, afigura-se necessário, justo, adequado e proporcional, aplicar ao arguido a pena de 2 (dois) anos de prisão. (…)»


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QUESTÕES A DECIDIR

O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente [cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010: “É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer  oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95).

São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, e devem por isso ser concisas, precisas e claras. Se estas ficam aquém, a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões, e se vão além da motivação também não devem ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente ([1]).

            Assim, são as seguintes as questões a decidir:
a) Impugnação da matéria de facto;
b) Subsunção jurídica ao crime de importunação sexual; e
c) Pena concreta aplicada (recurso do Ministério Público).


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IV. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS



1. Impugnação da matéria de facto

Na motivação recursiva, o arguido afirma ter o tribunal a quo incorrido em erro de julgamento ao dar como provados os factos descritos nos pontos 1º a 12º (referindo nas conclusões apenas os factos 8º a 11º da decisão).

Como é sabido, no recurso amplo da matéria de facto o recorrente tem de se socorrer das provas examinadas na audiência da primeira instância, devendo especificar, sob pena de rejeição:

- os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;

- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e

- as provas que devem ser renovadas (artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal).

            E quando as provas tenham sido gravadas, a referida especificação deve efetuar-se por referência ao consignado em ata (quanto ao meio de prova registado, seu início e termo), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412º, nº4, do Código de Processo Penal).

           

No caso, sem curar de indicar os factos concretamente pretendidos impugnar, afirma o recorrente que a factualidade provada não tem outro suporte probatório para além das declarações da assistente, não se mostrando consentâneos com o documento de fls. 39 a 41 e o auto de reconstituição de fls. 19 a 23.

Partindo desta prova documental, o recorrente limita-se a tecer considerações vagas sobre os factos provados e as declarações prestadas pela assistente, manifestando a sua discordância relativamente à avaliação deste meio de prova essencial considerado na decisão recorrida.

Para além disso, a peça recursiva não efetua qualquer correspondência entre declarações prestadas em concreto e/ou documentos relativos a determinado ou determinados factos e os que se consideraram como provados. o ónus imposto pelo art. 412º, n.º 4, do Código de Processo Penal.

O fundamento da impugnação da matéria de facto efetuada pelo recorrente limita-se à sua discordância com a credibilidade dada pelo tribunal a quo às declarações prestadas pela assistente. No entanto, nada obsta a que o julgador assente a sua motivação na credibilidade que lhe merece um determinado depoimento, sendo certo que no caso as razões para a credibilidade atribuída se encontram esclarecidas de forma clara e exaustiva na fundamentação de facto que ficou consignada na decisão recorrida.

Limita-se o recorrente a discordar da avaliação da prova efetuada pela primeira instância com base em juízos valorativos distintos dos vertidos na decisão proferida, sem indicar em concreto provas suscetíveis de convencer, de forma lógica, este tribunal de recurso da irracionalidade e implausibiidade da formação da convição do tribunal a quo sobre a realidade dos factos objeto de impugnação.

Em resumo, pretende o assistente/recorrente substituir a sua análise da prova produzida e a sua convicção à análise e convicção do tribunal a quo, de uma forma global, que aplica genericamente a todos os factos que pretende impugnar.

Acresce que não basta para se considerar deduzida uma impugnação da matéria de facto o recorrente declarar que as declarações de certas pessoas não são dignas de credibilidade, que é inverosímel que os factos tenham ocorrido da forma cuja prova pretende e referir terem sido produzidas declarações pela assistente que entende não merecerem credibilidade: o recorrente tinha de individualizar as partes que entende relevantes para a impugnação de cada facto, individualizadamente considerado, deixando ao intérprete a atribuição do seu significado.

O que o recorrente não cumpre.

Constata-se, deste modo, que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto não cumpre o ónus da especificação exigido pelo artigo 412.º, n.s 3 e 4, do Código de Processo Penal, na medida em que não são indicados, nem na Motivação nem nas Conclusões, os concretos factos objeto de impugnação com uma correspondência dos meios de prova que entende imporem uma decisão distinta com os factos que entende erroneamente julgados, explicando o motivo pelo qual essa prova impõe decisão diversa ([2]).

Impõe-se, em consonância, a rejeição do recurso incidente sobre a impugnação da matéria de facto declarada como provada na sentença.


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Por último, cabe referir não incorrer a sentença proferida em qualquer dos vícios descritos no art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal (que, aliás, não foram invocados), encontrando-se a matéria de facto bem fundamentada, sendo totalmente apreensível e compreensível a correspondência entre os factos provados e a sua fundamentação, e não decorrendo da sentença qualquer erro na apreciação da prova, porquanto o tribunal recorrido efetuou uma apreciação da prova de forma crítica, criteriosa e racional, tendo fundamentado os factos provados nas regras da experiência, da lógica e da ciência, em cumprimento do princípio da libre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal.

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2. Qualificação Jurídica dos Factos:

Defende o recorrente arguido não se encontrarem preenchidos todos os elementos do crime de coação sexual, p. e p. pelo art. 163º, n.º 2, do Código Penal, pelo qual foi condenado, concretamente não constando da factualidade provada a prática de qualquer ato violento ou capaz de impossibilitar a assistente de resistir. Pugna pela qualificação dos factos como integradores da prática de um crime de importunação sexual, p. e p. pelo art. 170º do Código Penal.

Vejamos:

O art. 163º, n.º 2, do Código Penal estabelece o seguinte: “Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou praticar, consigo ou com outrem, ato sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos”.

Ora, constranger significa obrigar, submeter à sua vontade, sem que a vítima tenha liberdade de escolha ou determinação (bem jurídico objeto de tutela no crime em causa).

O art. 170º do Código Penal, por seu turno, enuncia o crime de importunação sexual da seguinte forma: “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de caráter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido…”.

Este crime foi introduzido no Código Penal pela Lei n.º 59/2007, constando da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X (7.9.2006), que esteve na sua origem: “para garantir a defesa plena da liberdade sexual, é criado um crime de importunação sexual, que abrange, para além do exibicionismo, o constrangimento a contactos de natureza sexual que não constituam atos sexuais de relevo”.

Assim, na importunação sexual o agente não chega a praticar qualquer ato sexual de relevo, referindo-se os contactos de natureza sexual a um contacto corporal que transporta significado sexual, sem contudo representar um ato sexual de relevo ([3]).

Na motivação recursiva, não é colocada em causa a subsunção dos atos praticados, provados em 8 e 9, ao conceito de ato sexual de relevo. E não subsistem dúvidas que os atos de “apalpar com ambas as mãos no rabo” e de “apalpar a vagina e as mamas com força, por cima da roupa”, constituem atos sexuais de relevo, não se tendo limitado o arguido a um contacto com significado sexual, antes consubstanciando a sua atuação uma grave ofensa do sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas, violador do património íntimo da assistente.

Tanto basta para que seja afastado o crime de importunação sexual.

Tratando-se de um crime de execução vinculada, exige o crime de coação sexual que o constrangimento da vítima seja praticado por meio de violência, ameaça grave ou depois de o agente ter tornado a vítima inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir.

No que tange à violência, reporta-se a norma à violência física, como bem afirma o recorrente. No entanto, “não é necessário que a força usada deva qualificar-se de pesada ou grave, mas será em todo o caso que ela se considere idónea, segundo as circunstâncias do caso nos termos conhecidos da doutrina da adequação, a vencer a resistência efetiva ou esperada da vítima” ([4]). Exige-se que a violência exercida seja adequada ao resultado do constrangimento ([5]).

No caso, após uma abordagem à vítima com dois beijos, o arguido apalpou as suas nádegas, e após agarrou-a por detrás, apalpando com força a zona da vagina e as mamas da assistente, tendo-a puxado para trás, obrigando-a a sair da bicicleta, que caiu, arrastando-a para a sua carrinha. O arguido só largou a vítima quando esta começou a gritar e a dar murros no capot da viatura do arguido.

Não se vislumbra como se poderá retirar a violência física deste acervo factual: é que o arguido conseguiu praticar os atos de natureza sexual referidos por ter agarrado e puxado a assistente, e foi tão intensa a violência exercida que a bicicleta da assistente caiu, conseguindo arrastar a vítima para junto da sua carrinha.

Foi exercida violência física, e de forma ativa e enérgica.

A qualificação jurídica efetuada no acórdão sob recurso não merece, pois, qualquer censura, por ser a correta.

Improcede igualmente nesta parte o recurso do arguido.


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3. Medida da pena aplicada

Insurge-se o Ministério Público contra a pena concreta aplicada de 2 anos de prisão, que considera exígua, pugnando pela sua fixação em 4 anos de prisão, ficando a suspensão da execução da pena sujeita a regime de prova.

De acordo com os quadros normativos relativos às finalidades das penas (a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade), a pena concreta jamais poderá ultrapassar a medida da culpa, e deverá situar-se em medida consentânea com a proteção do mínimo ético-jurídico capaz de cumprir o seu especial dever de prevenção (geral e especial) – arts. 40º e 71º do CP.

Entre o limite mínimo de garantia da prevenção, e o limite máximo da culpa do agente, a pena terá de ser determinada em concreto tendo em consideração todos os fatores do caso, nomeadamente os previstos no n.º 2 do art. 71º do Código Penal.

Assim sendo, terá de se atender, no apuramento da medida concreta da pena, a três exigências:
a) A culpa (pressuposto-fundamento da pena, que constitui o princípio ético-retributivo);

b) A prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização); e

c) A prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação, e que apresenta também uma dimensão negativa, de dissuasão individual).
Cabe a este tribunal superior apreciar a fundamentação jurídica da decisão recorrida, balizada pelos concretos fundamentos recursivos, de natureza desconstrutiva.
Invoca o recorrente que foram erradamente considerados os graus de ilicitude e culpa, bem como as exigências de prevenção especial.
Assim, entende:
ü Ser a ilicitude e culpa elevadas, por ter o arguido abordado uma mulher que não conhecia em lugar ermo, sabendo que a sua força física é superior à dela e que são diminutas as suas hipóteses de residência; ao que acresce o elevado grau de violência exercido, suficiente para retirar a ofendida da bicicleta;
ü Serem elevadas as necessidades de prevenção especial devido à forma e gravidade como praticou os factos.
 No fundo, estes fatores resumem-se ao entendimento do Ministério Público de que os factos revestem uma elevada ilicitude.
No entanto, não podemos olvidar que parte da gravidade da conduta do arguido determina a subsunção da sua conduta a um crime de coação sexual na formulação agravada, encontrando-se a maior ilicitude já ínsita na moldura abstrata da pena a aplicar (recorde-se que o crime base, previsto no art. 63º, n.º 1, é punível com pena de prisão até 5 anos, enquanto o crime agravado, previsto no n.º 2, é punível com prisão entre 1 e 8 anos).
Sucede que na sentença foi considerado o seguinte:
Ø Exigências de prevenção geral muito elevadas;
Ø Grau de ilicitude e culpa não muito elevados “para o tipo em causa”, considerando a forma de atuação e o grau de violência empregue, pois tratando-se embora de violência física efetiva, apenas foi exercida por breves momentos, entre o agarrar a vítima por trás, obriga-la a sair da bicicleta e esta debater-se e bater no capot da viatura do arguido, que logo para a sua atuação e vai embora. Não foram, no entanto, desconsideradas as consequências do crime, relevantes para a ilicitude dos factos, encontrando-se vincado na decisão que “por via da atuação do arguido a ofendida sentiu medo e humilhação pelos atos vividos, que ainda hoje não ultrapassou”. Corretamente.
Ø O dolo direto e intenso (relevante para a culpa), transparecendo dos factos serenidade na tomada da resolução criminosa;
Ø As necessidades de prevenção especial não se reputaram de elevadas, “na medida em que o arguido não tem qualquer averbamento no seu CRC e em face do seu percurso de vida, onde pontuam hábitos de trabalho”.
A análise efetuada na decisão dos fatores relevantes para o achamento da medida concreta da pena tomou em consideração todas as circunstâncias a que se refere o n.º 2 do art. 71º do Código Penal, de forma correta, ajustada, harmoniosa e apropriada.
Acresce que o arguido conta 43 anos de idade, donde decorre que a ausência de antecedentes criminais permite concluir que a conduta em causa nos autos se tratou de um desvio ao seu normal comportamento, o que, aliado às suas condições de vida, confirma o juízo efetuado na sentença quanto às necessidades de prevenção especial.
Ponderados os argumentos recursivos, em confronto com os fundamentos vertidos no acórdão recorrido, concluímos que a pena concreta aplicada é a justa, adequada e proporcional à culpa do arguido e às necessidades de prevenção.

Por último, a suspensão da execução da pena é acompanhada de regime de prova se o tribunal “o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade” – art. 53º, n.º 1, do Código Penal.
Ora, considerando as circunstâncias de vida do arguido, que tem emprego certo, uma família equilibrada, condições económicas modestas, e uma imagem social positiva, não se vislumbra necessidade para a sua reintegração de acompanhamento dos serviços de reinserção social.
Em consequência, improcede na totalidade o recurso interposto pelo Ministério Público.


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A. DECISÃO

Nos termos expostos, acorda-se em negar provimento aos recursos interpostos pelo arguido AA e pelo Ministério Público, confirmando-se na íntegra o acórdão recorrido.


Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.
Recurso do Ministério Público: sem tributação.


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Coimbra, 15 de junho de 2022

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)

João Bernardo Peral Novais (adjunto)

Alberto Mira (Presidente da 5ª Seção)




[1] neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336.
[2] cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 4ª ed., pág. 1144.
[3] Simas Santos e Leal-Henriques, “Código Penal Anotado”, III, 4ª ed., pág. 534.
[4] Cf. Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, I, pág. 453-454.
[5] V. o Ac. desta Relação de 13.1.2016, proc. 53/13-.1GESRT.C1, em www.dgsi.pt.