Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
152/21.6GGCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: TELECOMUNICAÇÕES TELEFÓNICAS
IDENTIFICAÇÃO DE UTILIZADORES
DADOS DE TRÁFEGO
LOCALIZAÇÃO CELULAR
Data do Acordão: 06/01/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 187.º, N.º 1, E 189.º, N.º 2, DO CPP; ARTIGO 2.º, N.º 1, AL. G), DA LEI 32/2008, DE 17-07; ARTIGO 6.º DA LEI 41/2004, DE 18-08
Sumário: I – A investigação dos crimes elencados no n.º 1 do artigo 187.º do CP – não previstos no catálogo do artigo 2.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 32/2008, de 17-07 –, não admite o recurso aos ficheiros criados ao abrigo do último dos dois diplomas referidos, conservados durante 1 (um) ano após o termo da comunicação.

II – No âmbito dessa investigação apenas é permitida a utilização da base de dados das empresas fornecedoras de serviços de comunicações electrónicas referida no artigo 6.º da Lei n.º 41/2004, de 18-08, mas só quando não tenha decorrido, após o termo da comunicação em causa, o prazo de 6 (seis) meses, período esse determinante da eliminação dos dados de tráfego.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do inquérito a que se reportam os autos principais, o Ministério Público submeteu ao Mmo. Juiz com funções de Instrução Criminal a apreciação da seguinte promoção:

«Nos presentes autos investiga-se a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. nos arts. 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e) do C.P. porquanto entre as 09h10 e as 19h20 do dia 19.10.2021, foi partida uma janela da residência de AA, sita na Rua ..., em ..., e do interior foram retirados e levados €300,00 em notas do BCE, uma máquina fotográfica, sete relógios de várias marcas e um da marca ..., e várias peças de joalharia e bijuteria

Foram realizadas inspecções aos locais – fls. 5 a 25.

O ofendido, aquando da inspecção ao local, informou que, no dia anterior aos factos (18.10.2021), BB e CC tinham estado no seu terreno a fazer a limpeza do terreno.

Ora, o ofendido tinha dois cães de grande porte à solta no seu terreno, os quais ficaram habituados à presença dos suspeitos.

Foi solicitado, às operadoras nacionais, a conservação dos eventos de rede naquele período e local.

Com efeito, dos autos resulta a suspeita que os autores dos factos serão BB – com o n.º ...56 – e CC – com o n.º ...79.

Nos termos do art. 189.º do C.P.P., o disposto nos art. 187.° e 188.° é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telemóvel, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital e à intercepção entre presentes.

Ora, nos termos do art. 187.º, n.º 1, alínea a), do C.P.P., a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, quanto, além dos mais, a crimes punidos com pena, no seu máximo, superior a 3 anos como é o caso dos autos.

Encontram-se esgotadas as diligências possíveis.

Por não se vislumbrar outra diligência com a virtualidade de contribuir para o apuramento da verdade e das concretas circunstâncias e com que meios actuam os suspeitos, a obtenção dos registos completos das comunicações efectuadas e recebidas nas BTS situadas no local dos factos é imprescindível para a descoberta da verdade uma vez que, de outra forma, a prova seria muito difícil de obter.

Com efeito, naquela zona recatada as antenas ali existentes não terão sido utilizadas que não pelos suspeitos, sendo esta a única diligência que permitirá a continuação da investigação.

Ora o acesso aos elementos que permitam a identificação dos concretos números móveis e equipamentos activos naquelas redes no período referido mostra-se regulamentado nos arts. 32.º e 34.º da CRP, 187.º, 188.º e 189.º, n.º 2, do C.P.P. e no art. 4.º, n.º 1, alínea f) da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho.

Feita a devida ponderação entre os direitos fundamentais dos suspeitos e o interesse e necessidade de investigação, entende-se ser proporcional e adequado a utilização dos meios de prova referidos para a descoberta da verdade material – aqui notando que apenas após identificação dos números activos se diligenciará pela identificação dos números activos em todas as referidas atentas naquele período.

Face ao exposto, nos termos dos arts. 187.º, n.º 1, alínea a), 188.º ex vi 189.º, 269.º, n.º 1, alíneas e) e f), do C.P.P. e 4.º, n.º 1, alínea f) da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, promovo:

- seja ordenada a todas as operadoras móveis nacionais (Meo/Altive; NOS, VODAFONE) a listagem – também em suporte digital – de todos os dados de tráfego, nomeadamente registos completos das comunicações efectuadas e recebidas nas BTS, detalhes das comunicações e eventos de rede com indicação da hora e números chamados e chamadores, incluindo as mensagens de texto, duração e hora das chamadas e localização celular relativos aos cartões SIM entre as 09h10 e as 19h20 do dia 19.10.2021, nas células/operadoras concretamente identificadas a fls. 39 e 40.

2. Tal pedido foi indeferido, por despacho datado de 5 de janeiro de 2022, nos termos que, a seguir, se transcrevem:

«No presente inquérito investiga-se a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, n.º 1, e 204º, n.º 1, al. a), e n.º 2, al. e), do Código Penal. 

Estando ainda por determinar a identidade dos autores do indiciado crime, o Ministério Público requer que seja ordenada a todas as operadoras móveis nacionais (Meo/Altive; NOS, VODAFONE) a listagem – também em suporte digital – de todos os dados de tráfego, nomeadamente registos completos das comunicações efectuadas e recebidas nas BTS, detalhes das comunicações e eventos de rede com indicação da hora e números chamados e chamadores, incluindo as mensagens de texto, duração e hora das chamadas e localização celular relativos aos cartões SIM entre as 09h10 e as 19h20 do dia 19.10.2021, nas células/operadoras concretamente identificadas a fls. 39 e 40. 

A pretensão assim deduzida inscreve-se no âmbito da obtenção de dados de tráfego e de localização celular conservados pelos fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes pública de comunicações, nos termos previstos na Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15-03, relativa ao acesso e conservação dos dados de tráfego e de localização das comunicações para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades e que estabelece um regime processual privativo da referida matéria.

Para efeitos do mencionado diploma, entende-se por dados os dados de tráfego, os dados de localização e os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador [artigo 2.º, n.º 1, alínea a)]. Tais dados estão sujeitos à conservação temporária pelos referidos fornecedores de serviços e abrangem os que se revelem necessários para encontrar e identificar a fonte e o destino de uma comunicação, para identificar a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação, para identificar o equipamento de telecomunicações dos utilizadores, ou o que se considera ser o seu equipamento, e para identificar a localização do equipamento de comunicação móvel [artigo 4.º, n.º 1, alíneas a) a f)].

Na linha do que sustentam os Acórdãos da Relação de Lisboa de 22-06-2016 (processo n.º 48/16.3PBCSC-A.L1-9), 07-03-2017 (processo n.º 1585/16.5PBCSC-A.L1-5) e 25-10-2016 (processo n.º 223/16.0GBLLE.E1)[3], o regime estabelecido na citada Lei n.º 32/2008 refere-se à obtenção dos dados de comunicações já ocorridas e que se encontram preservados ou conservados. Já o artigo 189.º, n.º 2 do CPP e a extensão do regime das escutas telefónicas nele consagrada tem em vista os dados recolhidos em tempo real.

De todo o modo, os requisitos de acesso aos dados previstos num e noutro regime são, no essencial, os mesmos, como também é ponto assente que ambos se traduzem em meios de obtenção de prova restritivos do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada, tutelado no artigo 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) e, mais directamente, do sigilo das telecomunicações (cf. artigo 34.º, n.ºs 1 e 4 da CRP), devendo enquanto tais obedecer às exigências de adequação, necessidade e proporcionalidade consagradas no artigo 18.º da Lei Fundamental.

E a obtenção de dados de tráfego e de localização como aqueles que o Ministério Público pretende só pode ocorrer em relação às pessoas referidas no artigo 9.º, n.º 3 da citada Lei e no n.º 4 do artigo 187.º do CPP e quando estiver em causa crime grave, nos termos e para os efeitos da al. g) do n. 1 do artigo 2º, o artigo 3º e o n. 3 do artigo 9º da Lei nº 32/2008, de 17-07, corresponde aos crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima, sendo que a densificação do indicado conceito “criminalidade violenta” se encontra plasmada no artigo 1.º, alínea j), do CPP, que remete para as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.

Por fim, exige-se ainda que a decisão judicial de transmitir os dados respeite os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, designadamente no que se refere à definição das categorias de dados a transmitir e das autoridades competentes com acesso aos dados (artigo 9.º, n.º 4 da Lei n.º 32/2008).

Na situação em apreço, não se mostram reunidos os pressupostos para o deferimento do pretendido, uma vez que o crime de furto qualificado não constitui “crime grave”, nos termos e para os efeitos da al. g) do n. 1 do artigo 2º, o artigo 3º e o n. 3 do artigo 9º da Lei nº 32/2008, de 17-07.

Em razão do exposto, há que indeferir o requerido.».

3. Discordante, recorre o Ministério Público, concluindo:
I. Nos presentes autos investiga-se a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. nos arts. 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e) do C.P., sendo que, no âmbito das diligências de investigação e porquanto existem dois suspeitos identificados nos autos, o Ministério Público promoveu que fosse ordenado a “todas as operadoras móveis nacionais (Meo/Altive; NOS, VODAFONE) a listagem – também em suporte digital – de todos os dados de tráfego, nomeadamente registos completos das comunicações efectuadas e recebidas nas BTS, detalhes das comunicações e eventos de rede com indicação da hora e números chamados e chamadores, incluindo as mensagens de texto, duração e hora das chamadas e localização celular relativos aos cartões SIM entre as 09h10 e as 19h20 do dia 19.10.2021, nas células/operadoras concretamente identificadas a fls. 39 e 40.”, tal pretensão foi indeferida, por despacho datado de 05.02.2022, por entender o Tribunal a quo que “não se mostram reunidos os pressupostos para o deferimento do pretendido, uma vez que o crime de furto qualificado não constitui “crime grave”, nos termos e para os efeitos da al. g) do n. 1 do artigo 2º, o artigo 3º e o n. 3 do artigo 9º da Lei nº 32/2008, de 17-07.”, entendo que este diploma revogou os art.s 187.º e 189.º do C.P.P.
II. Versa, pois, o presente recurso sobre a interpretação do disposto nos arts. 187.º, n.º 1 ex vi 189.º, n.º 1 do C.P.P., que o Ministério Público considera serem as normas que determinam a admissibilidade do requerido, e, ainda, a inaplicabilidade das restrições decorrente da definição de “crime grave” no art. 2.º, alínea g) da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho cuja vigência não resultou na revogação de qualquer norma do C.P.P.
III. Com efeito, o primeiro regime a considerar é aquele estatuído no art. 187.º e 188.º que, por força do art. 189.º, n.º 1, todos do C.P.P., “é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes.”
IV. Tal regime, contrariamente ao que parece decorrer da decisão recorrida, e em concreto o art. 189.º do C.P.P. não foi tácita ou expressamente revogado por qualquer das leis que o sucederam; sendo a Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime) e a Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho (Conservação de Dados Gerados ou Tratados no Contexto Oferta de Serviços de Comunicações Electrónicas) os outros dois diplomas a considerar.
V. Com efeito, a Lei n.º 32/2008 procedeu à transposição para a ordem jurídica interna da Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, e, como tal, não é possível interpretar a referida lei sem considerar o texto e escopo da Directiva; a Directiva não pretendeu impor uma limitação de acesso à informação pelas autoridades nacionais dos Estados-Membros; isto é, não pretendeu criar restrições ou meros procedimentos de acesso, in casu, pelo Ministério Público a tal informação por referência a quaisquer outros requisitos que não os decorrentes da lei nacional, mas, tão-só, criar uma regime de conservação de dados que acabou por criar duas valências diferentes como adiante explanaremos.
VI. Conforme o refere Carlos Pinho, “Lei de retenção de dados de comunicações eletrónicas: aposentar ou reformar?”, in Revista do Ministério Público 154, Abril/Junho 2018, pág. 169, o legislador nacional quando operou essa tarefa de transposição olvidou, como vai sendo frequente na legislação dedicada a matérias similares, a necessidade de harmonização também com as normas internas. Ao fazê-lo, o legislador criou problemas de compatibilização, inicialmente com o regime referente às escutas, o que se adensou com a entrada em vigor da Lei do Cibercrime (que, por sua vez, transpõe a Decisão Quadro n.º 2005/222/JAI, do Conselho, de 24 de Fevereiro, entretanto substituída pela Diretiva n.º 2013/40/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Agosto de 2013), e com a adaptação do direito interno à Convenção sobre o Cibercrime do Conselho da Europa (Convenção de Budapeste).
VII. Numa breve nota – por mera completude de raciocínio uma vez que tal diploma não foi invocado no despacho recorrido – também a Lei do Cibercrime não afasta o disposto nos art.s 187.º a 189.º do C.P.P. A Lei do Cibercrime transpõe para a ordem jurídica interna a  Decisão Quadro nº 2005/222/JAI, do Conselho, de 24 de Fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação e adapta o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa; pretendendo estreitar a cooperação entre autoridades competentes em matéria dos ataques contra os sistemas de informação de forma a eliminar as diferenças entre a legislação dos Estados-Membros que, em abstracto, poderiam impedir uma eficiente colaboração no combate à criminalidade organizada e terrorismo e não revogar qualquer norma do C.P.P., concretamente o art. 187.º para o qual remete expressamente no art. 18.º.
VIII. Defende, pois, o Ministério Público que, enquanto não se verificar a necessária adaptação do C.P.P. à realidade que nos vincula nesta matéria, a decisão sobre tais matérias deverá orientar-se pelo regime vigente do C.P.P., relegando a Lei n.º 32/2008 e a Lei n.º 109/2009 para as questões nelas particularizadas, justificantes das transposições de cada uma das Diretivas que estiveram na sua génese.
IX. Neste contexto, é fácil perceber que a definição de crime grave não pode, de forma alguma, revogar o art. 187.º do C.P.P., em particular o seu n.º 1, mas apenas cria um regime diferencial decorrente da própria Lei 32/2008, a definição de “crime grave”, constante do art. 2.º, n.º 1, alínea g) da Lei 32/2008 implicaria um catálogo limitador quando comparado com o disposto no art. 187.º, n.º 1 do C.P.P. e, como é o caso dos autos, poderia conduzir a que se considerasse que não é possível a obtenção de dados de tráfego e localização relativamente a tais crimes e apenas aos ali catalogados – tal criaria a circunstância inusitada de ser possível aceder ao conteúdo da comunicação pelo registo de voz ou texto, mas não aos dados de tráfego e localização que são certamente menos intrusivos.
X. Se caberia invocar a velha máxima a maiori, ad minus, não menos relevante é dizer que qualquer interpretação normativa que fique aquém do razoável, não pode certamente vingar – com efeito, as escutas telefónicas, as vigilâncias presenciais são mais intrusivas que a mera localização celular e registo de contactos; notemos que existem vários meios de prova admissíveis (pense-se nos vários registos de imagem privada e pública lícitos, no próprio registo de passagem em pórticos de portagens/taxas) que permitem determinar a localização das pessoas.  XI. Em síntese: a Lei n.º 32/2008 impõe dois prazos distintos durante os quais os operadores estão obrigados a conservar os dados de tráfego: o prazo geral de 6 meses decorrente da legislação anterior e o prazo especial de 1 ano, este último apenas para os casos em que se investigue os crimes expressamente previstos na referida Lei.
XII. Neste sentido de interpretação, pela qual pugnamos no presente recurso, é defendido nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no proc. n.º 135/09.4JAAVR- A.C1, datado de 09.12.2009, no proc. n.º   222/09.9GBETR-A.C1, de 28.01.2010, no proferido no proc. n.º 388/17.4JACBR-A.C1, datado de 10.01.2018, e no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. n.º 3225/18.9T9GMR.G1, datado de 05.07.2021, que conclui que “[o] regime jurídico das escutas telefónicas constante dos art. 187º e ss do CPP não foi revogado pelas leis 32/2008 de 17.07 e 109/2009 de 15/09 (lei do cibercrime).”
XIII. Daqui decorre, em jeito de síntese, que a referida Lei 32/2008 não é uma lei especial face ao C.P.P., sendo esta uma conclusão que não requer esforço de análise das regras da hermenêutica jurídica; com efeito, está desintegrada do C.P.P., do seu léxico próprio (notemos que o que são crimes graves na Lei 32/2008 não têm reflexo no conceito de gravidade próprio do C.P.P. que é conexo à moldura penal aplicável e não apenas a questões de politica criminal supranacional) e não cria um regime excepcional ante o mesmo, antes tem um objecto diferente da previsão do art. 187.º e segs. do C.P.P.
XIV. Acresce que para se equacionar a revogação tácita do regime do art. 189.º do C.P.P. e da remissão ali operada, teríamos de verificar uma identidade formal ou material entre o art. 2.º, n.º 1, alínea da Lei 32/2008 e o catálogo do art. 187.º, n.º 1 e 189.º do C.P.P. – atenta a evidente diferença estrutural e as diferentes matérias tratadas – não é possível invocar a regra da especialidade como fundamento para defender tal revogação. Ainda que assim não fosse, a máxima lex specialis derrogat lex generalis imporia uma revogação expressa, precisamente pelo reconhecimento dessa especialidade.
XV. Ademais, em rigor, o art. 187.º, n.º 1, alínea a) do C.P.P., sem mais, compreende todos os crimes do seu n.º 2 e todos os “crimes graves” da Lei 32/2008, razão suplementar para não se verificar qualquer incompatibilidade prática na aplicação das normas. Mais certo é, pois, interpretar que o art. 187.º do C.P.P. tem vigência plena no prazo de 6 meses contabilizados sob a comunicação e, quando aos “crimes graves” verifica-se que é possível o acesso durante um ano.
XVI. Aqui chegados, há uma conclusão evidente de direito a retirar: mantém-se a vigência plena dos art. 187.º a 189.º do C.P.P.
XVII. Há uma conclusão relativa à prática judicial que não podemos deixar de sublinhar; ainda que tenhamos de supor que o legislador se expressou da forma mais adequada possível, não ignorar o facto de ter o legislador omitido um esforço de harmonização entre diplomas que, versando parcialmente sobre a mesma matéria, têm propósitos muito diferentes e demitirmo-nos – sob as perigosas vestes de um formalismo que pode ter âncora na letra da lei mas se alheia inteiramente das suas razões histórias, propósitos e âmbito de aplicação – de procurar a interpretação jurídica mais razoável, mais compaginável com o ordenamento jurídico. Não é razoável entender diplomas que surgiram num esforço do direito da União Europeia como forma de adensar e melhorar a investigação e a conservação de dados relevantes como forma de limitar, precisamente, a investigação criminal. Confiando no bom senso do legislador e na unicidade do sistema jurídico penal, apenas se pode concluir que uma lei inteiramente estranha ao C.P.P. amplia, mas não pode reduzir a investigação permitida pelo mesmo.
XVIII. Há, ainda, uma conclusão que o Ministério Público, ora recorrente, como responsável constitucional pelo impulso na acção penal e nas suas vestes de representação também do Estado comunidade, não pode deixar de referir: a interpretação vertida no despacho recorrido mais não resulta do que numa estrondosa desistência da prossecução penal.
XIX. Uma desistência que é inexplicável ao cidadão comum e menos ainda à vitima de um crime que, como aquele que é investigado nos autos, é punido com pena de prisão de oito anos e que poderia motivar a captura das comunicações do telemóvel de um suspeito, mas já não saber se esse telemóvel esteve activo numa determinada antena e se comunicou com alguém. 
XX. Tal interpretação aniquila o princípio da legalidade, num esforço de interpretação de normas desprovido de contexto, acaba por negar esse mesmo princípio ao defender uma revogação ficcionada; tal interpretação destrói o principio orientador da descoberta da verdade material e restringe, de forma desproporcional, inadequada, desarrazoada, a investigação, de uma forma que não é compatível com um sistema jurídico coerente, equitativo e justo.
XXI. Ao defender que a aquisição probatória de dados menos lesivos que os decorrentes das escutas (que seriam sempre um meio de prova admissível atenta a moldura penal do crime de furto qualificado investigado) não são admissíveis, restringe-se, de forma inaceitável, a possibilidade de êxito da investigação, da descoberta da verdade e em nome de uma ficcionada protecção da privacidade e inviolabilidade das comunicações (que, reiteramos, a lei permite ser comprimida com o recurso a escutas), eliminamos o direito dos ofendidos e de todos os cidadãos em beneficiar de um sistema de Justiça eficiente.
XXII. A tutela jurisdicional efectiva, a concretização das finalidades próprias do direito penal e em última instância das penas, são também direitos constitucionais de todos os cidadãos; direitos estes que impõe uma aplicação da lei razoável e compreensível, já não uma que caí em contradições inultrapassáveis e mais não faz que impedir a  investigação de crimes que, à luz das normas nacionais perfeitamente positivadas e hermenêuticamente coerentes, são considerados como graves no nosso ordenamento jurídico.
XXIII. Assim, do disposto nos art. 187.º, nºs. 1, alínea a) ex vi 189.º, n.º 1 do C.P.P. e considerando que não está em causa os dados cujo prazo de conservação é de um ano nos termos do art. 6.º da Lei 32/2008, deve retirar-se que tais normas do C.P.P. se encontram plenamente em vigor e, consequentemente, ser a decisão em crise revogada e substituída por outra que determine a junção da informação peticionada pelo Ministério Público.

4. Esta mesma posição foi acolhida pelo Digno Procurador no douto parecer antecedente.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, colhidos os legais vistos, nada obsta ao conhecimento de mérito.

II.  APRECIAÇÃO DO RECURSO

A questão suscitada pelo recorrente consiste em saber se, para efeitos de investigação de um dos crimes previsto no artigo 187.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, é legalmente admissível a obtenção da listagem de todos os dados de tráfego e localização celular relativos aos cartões SIM entre as 09h10 e as 19h20 do dia 19.10.2021, ao abrigo do disposto no 189.º, do Código de Processo Penal.

Assente que o crime investigado nestes autos integra um dos crimes catálogo previstos no artigo 187.º do Código de Processo Penal e não um dos crimes de “catálogo” previstos no respectivo artigo 2.º, n.º 1, alínea g) da Lei nº 32/2008 de 17 de julho diploma citado, é na relação estabelecida entre estes dois preceitos que surge a divergência entre o Recorrente e o tribunal recorrido.

O primeiro entende que é aplicável a previsão enunciada nos artigos 187.º e 189.º, do Código de Processo Penal, enquanto o tribunal recorrido, afastando a aplicabilidade destes normativos, atendeu ao disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea g) citados.

É por demais conhecida a polémica criada pelo legislador em torno do complexo normativo nacional que regula o acesso à prova digital, a saber:

- O Código de Processo Penal e o regime previsto para as intercepções telefónicas, em particular os artigos 187.º, 188.º e 189.º.

- A Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, Lei da Protecção de Dados Pessoais e Privacidade que transpôs a Directiva 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações electrónicas.

- A Lei 32/2008, de 17 de julho relativa à conservação de dados gerados ou tratados em contexto de oferta de serviços de comunicação electrónicas e que define as regras de acesso aos dados conservados para efeitos criminais;

- A Lei 109/2009, de 15 de setembro, Lei do Cibercrime. 

A falta de harmonização, de sistematização e de integração deste conjunto de diplomas com as normas de Código de Processo Penal, a sobreposição de regras relativamente ao mesmo objecto, tem levantado uma panóplia de interpretações doutrinais e jurisprudenciais, com julgados contraditórios, colocando em causa a segurança jurídica e as investigações dos crimes de grande impacto e alarme social.

Muito recentemente, o Acórdão do Tribunal Constitucional N.º 268/2022 de 19 de abril declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, dos artigos 4.º, 6. º e 9.º, da Lei 32/2008, de 17 de julho, decretada pelo que, por ainda não ter sido publicado, não é, por ora, aplicável ao caso concreto.

De qualquer forma, sempre o recurso seria de improceder, já que, com o devido respeito pela opinião contrária [cf. Acórdão desta Relação de 26 de fevereiro de 2014 Relator: Fernando Chaves), entendíamos que o prazo máximo de acesso aos dados no âmbito da investigação criminal previsto no artigo 6.º, da Lei 32/2008, não se aplicava à investigação dos crimes previstos e punidos nos artigos 187.º e 189º do Código Penal.

Eis as razões:

Dispõe-se no artigo 189º, nº 2 do Código de Processo Penal que a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no nº 1 do artigo 187º e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo.

O suspeito é uma das pessoas referidas no nº 4 do artigo 187º do mesmo diploma.

Por outro lado, os crimes previstos com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos (como é o caso dos crimes dos autos) têm assento na alínea a) do n º 1 do artigo 187.º, do Código de Processo Penal.

Já a Lei 32/2008, de 17 de julho tem como objectivo, a regulamentação da conservação e transmissão de dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves (artigo 1º desse diploma), o que segundo a definição do artigo 2.º, n,º1, alínea g) corresponde aos crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou de títulos equiparados a moeda, contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, atos preparatórios da contrafação e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.

O conceito de criminalidade violenta encontra-se plasmado no artigo 1.º alínea j) do Código de Processo Penal, que remete para as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.

De acordo com o artigo 6.º, da Lei 32/2008, as entidades referidas no n.º 1 do artigo 4.º - os fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações - devem conservar os dados previstos no mesmo artigo pelo período de um ano a contar da data da conclusão da comunicação.

A conservação de dados é realizada em ficheiros próprios, são obrigatoriamente guardados e armazenados em ficheiros separados de quaisquer outros ficheiros para outros fins (artigo. 3.º, n.º 3, da Lei n.º 3272008).

A conservação e a transmissão dos dados têm por finalidade exclusiva a investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, conforme prevê o artigo 3.º, n.º 1, da Lei 32/2008.

São, por fim, dados que ficam bloqueados, só sendo alvo de desbloqueio «para efeitos de transmissão, nos termos da presente lei, às autoridades competentes», nos termos do artigo 7º, nº 2 da referida Lei 32/2008.

O regime processual de obtenção de prova digital é regulado no Capitulo III (artigos 11.º a 19.º) da Lei 109/2009, estabelecendo o n.º 1, do artigo 11.º:

Com excepção do disposto nos artigos 18º (intercepções de comunicações) e 19º (acções encobertas), as disposições processuais previstas no Capitulo III, aplicam-se a processos relativos a crimes: a) previstos na presente lei; b) cometidos por meio de um sistema informático; ou c) em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico.

Os normativos dos artigos 12.º a 17.º, regulam os procedimentos de aquisição, conservação e recolha dos meios de obtenção de prova digital.

Por outro lado, impõe o n.º 2, do citado artigo 11.º da Lei do Cibercrime que o regime processual (do Capitulo III) não prejudica o regime da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho.

Da conjugação destes preceitos resulta que os procedimentos processuais para a aquisição de meios de obtenção de prova digital são definidos consoante o tipo de crimes que se investigam e o tipo de dados que se pretenda obter.

Assim:

Se a investigação disser respeito aos crimes enunciados nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 11º da lei do Cibercrime -  a) os previstos na própria lei; b) são ou foram cometidos por meio de um sistema informático; ou c) em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico -  rege o complexo de disposições processuais composto pelos artigos de 11.º a 17.º, quando se trate de obter a preservação expedita de dados (artigo 12.º), revelação expedita de dados de tráfego (artigo 13.º), a injunção para apresentação ou concessão de acesso a dados (artigo 14.º), a pesquisa de dados informáticos (artigo 15.º), a apreensão de dados informáticos (artigo 16.º) e, a apreensão de correio electrónico e registo de comunicações de natureza semelhante (artigo 17.º).

No âmbito da investigação criminal dos crimes elencados no artigo 18.º, n.º 1, da Lei do Cibercrime – a) os previstos na presente lei; ou b) os cometidos por meio de um sistema informático ou c) em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico, quando tais crimes se encontrem previstos no artigo 187.º do Código de Processo Penal –   é admissível o recurso à intercepção de comunicações.

Já as acções encobertas reguladas na Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, quando estejam em causa os crimes enunciados no n.º 1, do artigo 19.º - a) os previstos na presente lei; b) os cometidos por meio de um sistema informático, quando lhes corresponda, em abstrato, pena de prisão de máximo superior a 5 anos ou, c) ainda que a pena seja inferior, e sendo dolosos, os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual nos casos em que os ofendidos sejam menores ou incapazes, a burla qualificada, a burla informática e nas comunicações, o abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, a discriminação racial, religiosa ou sexual, as infrações económico-financeiras, bem como os crimes consagrados no título iv do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos – seguem o regime previsto no artigo 19.º da lei do Cibercrime.  Sendo necessário o recurso a meios e dispositivos informáticos observam-se, naquilo que for aplicável, as regras previstas para a interceção de comunicações.

As disposições processuais relativas à obrigação de conservação de dados para efeitos de investigação criminal dos crimes são reguladas pela Lei 32/2008, quando se investigam os crimes catalogados no seu artigo 2.º, n.º 1, alínea g), por força da ressalva do artigo 11.º, n.º 2, do Cibercrime.

De acordo com tal preceito, as disposições processuais previstas no capítulo III, da Lei do Cibercrime, não prejudicam o regime da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho.

Temos para nós, com o devido respeito pela opinião contrária, que o sentido de não prejudicam significa apenas que, a par da aquisição da prova digital contemplada nos artigos 11.º, n.º 1, 17.º e 18.º, da Lei do Cibercrime, há, ainda, que considerar, no que respeita à obrigação de conservação de dados para efeitos de investigação criminal, o regime jurídico-processual previsto para as situações abrangidas pela Lei 32/2008.

Afirmar-se que as normas processuais não prejudicam o regime da Lei n.º 32/2008, só pode significar que este se mantém em vigor, mas dentro dos limites do seu âmbito de aplicação aos crimes do catálogo previstos no artigo 2.º, n.º 1, alínea g). Na investigação dos demais crimes, não se pode lançar mão dos ficheiros criados ao abrigo deste último diploma legal.

Ora, para além da Lei n.º 32/2008, inexiste normativo que indique prazo especifico para a guarda de dados de tráfego para fins de investigação criminal.

Restam-nos, pois, o regime das escutas telefónicas, com extensão às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio diferente do telefone, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital (artigo 187.º, n.º 1 e 189.º do Código de Processo Penal), a Lei do Cibercrime, e o Regime Geral de Protecção de dados Pessoais e de Privacidade comtemplados na Lei 41/2004.

De acordo com este último diploma, a conservação dos dados por parte dos operadores é, também, possível durante o prazo de 6 meses para efeitos de facturação.

Estatui o seu artigo 4.º:

1. As empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações eletrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respetivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público.

Já o n.º 2, do mesmo preceito (artigo 4.º) e diploma, proíbe a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento ou outros meios de intercepção ou vigilância de comunicações e dos respectivos dados de tráfego por terceiros sem o consentimento prévio e expresso dos utilizadores, com excepção dos casos previstos na lei.

Umas das excepções a tal proibição vem prevista no n.º 4, do artigo 4.º, da Lei 41/2004, admitindo-se as gravações de comunicações de e para serviços públicos destinados a prover situações de emergência de qualquer natureza.

Por outro lado, dispõe o artigo 6.º, da mesma Lei 41/2004:

1. Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os dados de tráfego relativos aos assinantes e utilizadores tratados e armazenados pelas empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações eletrónicas devem ser eliminados ou tornados anónimos quando deixem de ser necessários para efeitos da transmissão da comunicação.

2. É permitido o tratamento de dados de tráfego necessários à faturação dos assinantes e ao pagamento de interligações, designadamente:

a) Número ou identificação, endereço e tipo de posto do assinante;

b) Número total de unidades a cobrar para o período de contagem, bem como o tipo, hora de início e duração das chamadas efetuadas ou o volume de dados transmitidos;

c) Data da chamada ou serviço e número chamado;

d) Outras informações relativas a pagamentos, tais como pagamentos adiantados, pagamentos a prestações, cortes de ligação e avisos.

3. O tratamento referido no número anterior apenas é lícito até final do período durante o qual a fatura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado.

4. As empresas que oferecem serviços de comunicações eletrónicas só podem tratar os dados referidos no n.º 1 se o assinante ou utilizador a quem os dados digam respeito tiver dado o seu consentimento prévio e expresso, que pode ser retirado a qualquer momento, e apenas na medida do necessário e pelo tempo necessário à comercialização de serviços de comunicações eletrónicas ou à prestação de serviços de valor acrescentado.

5. Nos casos previstos no n.º 2 e, antes de ser obtido o consentimento dos assinantes ou utilizadores, nos casos previstos no n.º 4, as empresas que oferecem serviços de comunicações eletrónicas devem fornecer-lhes informações exatas e completas sobre o tipo de dados que são tratados, os fins e a duração desse tratamento, bem como sobre a sua eventual disponibilização a terceiros para efeitos da prestação de serviços de valor acrescentado.

6. O tratamento dos dados de tráfego deve ser limitado aos trabalhadores e colaboradores das empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público encarregados da faturação ou da gestão do tráfego, das informações a clientes, da deteção de fraudes, da comercialização dos serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público, ou da prestação de serviços de valor acrescentado, restringindo-se ao necessário para efeitos das referidas atividades.

7. O disposto nos números anteriores não prejudica o direito de os tribunais e as demais autoridades competentes obterem informações relativas aos dados de tráfego, nos termos da legislação aplicável, com vista à resolução de litígios, em especial daqueles relativos a interligações ou à faturação.

O tratamento dos dados de tráfego necessários à faturação dos assinantes e ao pagamento de interligações apenas é licito até final do período durante o qual a factura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado.

Quanto ao prazo para reclamar o pagamento, preceitua o artigo 10.º, nº 1, da Lei n. 23/96 de 26 de julho [define as regras referentes à prestação de serviços essenciais), aplicável, nos termos do artigo 1.º, n.º 2, alínea d), ao serviço de comunicações electrónicas], que o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação. O prazo para a propositura da acção ou da injunção pelo prestador de serviços é, também de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos (n.º 4, do artigo 10.º).

Ou seja, estando em causa a prestação de serviços de comunicações electrónicas, o fornecedor de serviço tem o prazo de 6 meses para reclamar o respectivo preço tem o prazo de 6 meses, findos os quais, tem o dever de eliminar os dados de tráfego. O Tratamento dos dados apenas é lícito até final do período durante o qual a fatura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado (artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2004). 

Diante destes preceitos, defendemos, com o devido respeito por opinião contrária, que o prazo máximo para a conservação de dados é de seis meses quando estejam em causa crimes não abrangidos pela Lei 32/2008.

Neste sentido, se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28 de fevereiro de 2012 (Relator: Sénio Alves):

Para a investigação e repressão dos crimes elencados no artigo 187º, nº 1 do Código de Processo Penal (posto que verificado o condicionalismo previsto nos artigos 189º, nº 2 e 187º, nº 1 do Código de Processo Penal) apenas era possível recorrer à base de dados da empresa prestadora dos serviços (a que se refere o artigo 6º da Lei 41/2004). Tal possibilidade, porém, só é efectiva nos 6 meses subsequentes ao termo da comunicação em causa, porquanto findo tal prazo os referidos dados de tráfego são eliminados.

Esta orientação é a que, a nosso ver e salvo melhor opinião, salvaguarda os direitos constitucionais em conflito, o direito à reserva da vida privada e à inviolabilidade da correspondência e a realização da justiça.

No caso dos autos, tendo decorrido mais de 6 meses desde as comunicações realizadas em 19 de outubro de 2021, mostra-se impossível aceder-lhes, pelo que improcede o recurso.

 III. DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público.

Sem tributação.

Coimbra, 1 de junho de 2022

Alcina da Costa Ribeiro (Relatora)

Maria Alexandra Guiné (Adjunta)

Alberto Mira (Presidente da Secção)