Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
711/17.1T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: AÇÃO POPULAR
OBJETO
INTERESSES DIFUSOS
AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ÓNUS DE PROVA DO JUSTIFICANTE
IMÓVEIS CLASSIFICADOS
SUA IMPOSSIBILIDADE DE SEREM ADQUIRIDOS POR USUCAPIÃO
Data do Acordão: 04/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JC CÍVEL DE CASTELO BRANCO – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI N.º 83/95, DE 31/08; ARTº 15º DA LEI Nº 107/2001, DE 08/09; ARTº 89º DO CÓDIGO DO NOTARIADO.
Sumário: I- As ações populares, que vem sendo consideradas como uma das mais importantes conquistas processuais para a defesa de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, têm por objeto, antes de mais (embora não se esgotem neles), a defesa dos chamados interesses difusos, enquanto interesses de toda uma comunidade, que tanto podem ser de âmbito internacional, nacional, regional ou mesmo local.

II- Interesses esses que são da mais diversa índole, e que têm, nomeadamente, a ver com a defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do consumo de bens e serviços, do património cultural e do domínio público.

III- Ações essas (para defesa desses bens) que tanto podem situar-se no âmbito da jurisdição administrativa, como no âmbito da jurisdição comum (civil ou criminal).

IV- Nas ações de impugnação de escritura de justificação notarial, na qual o réu justificante afirmou a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre determinado imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhe ele a prova dos factos constitutivos desse seu aí alegado direito, sem que possa beneficiar da presunção do registo decorrente do artº. 7º do CRPed. .

V- O réu justificante (na prova da aquisição originária, por via da usucapião, do seu invocado direito de propriedade sobre o prédio justificado) pode juntar a sua posse à posse do anterior possuidor - desde que nela tenha sucedido por título diverso da sucessão -, mesmo que naquela escritura não tenha alegado essa acessão da posse.

VI- A impossibilidade de os bens imóveis classificados (vg. nos termos do artº. 15º da Lei nº. 107/2001, de 08/09), ou em vias dessa classificação, poderem ser adquiridos por usucapião, não se estende àqueles que se encontram situados/inseridos nas suas zonas de proteção (vg. das zonas especiais).

Decisão Texto Integral:







Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. No tribunal judicial da Comarca de Castelo Branco (Juízo Central Cível), os autores, J... e H..., residentes na Rua ..., instauraram (em 27/04/2017), ao abrigo do disposto nos artigos 52º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 1º, n.º 1 e 2, 2º, n.º 1 e 2, e 12º, n.º 2, da Lei n.º 83/95, de 31/08, contra os réus, M..., Unipessoal, Lda., com sede na Rua ..., e J... e sua mulher M..., ambos residentes na Rua ..., a presente ação popular civil, requerendo ainda a intervenção principal ou, subsidiariamente, a intervenção acessória do Ministério Público, pedindo no final que:

a) Se declare não ser verdadeira a declaração constante da escritura de justificação notarial outorgada a 16 de Abril de 2010, declarando-se ainda que o prédio urbano aí identificado nunca pertenceu à sociedade Ré;

b) Se anule o contrato de compra e venda celebrado entre a sociedade Ré e o Réu J... mediante escritura pública outorgada no dia 20 de Outubro de 2015, determinando-se o cancelamento do correspondente registo de aquisição;

c) Se declare a nulidade de eventuais negócios jurídicos que tenham sido celebrados com terceiros por qualquer um dos réus, e bem como o cancelamento dos registos efetuados ou que venham a ser efetuados a favor de eventuais terceiros adquirentes;

d) Que se declare que o prédio em causa é imprescritível, por ser de utilidade pública, na medida em que integra uma servidão administrativa por estar integrado na Zona Especial de Proteção do Monumento Nacional Castelo de ..., condenando-se ainda os Réus a desocupar e restituir o mesmo, livre e devoluto de pessoas e bens, bem como das construções, implantações e qualquer equipamento que nele os Réus ou terceiros hajam executado ou erigido, designadamente a estação de telecomunicações que se encontra no interior e no logradouro do prédio e correspondentes equipamentos, torres e antenas.

Para o efeito, e em síntese, alegaram o seguinte:

Por escritura de justificação outorgada no dia 16/04/2010, o réu J..., na qualidade de único sócio e gerente da ré M..., Unipessoal, Lda, declarou que o prédio urbano situado no ..., então inscrito na matriz sob o artigo ..., pertence à sociedade ré, que o comprou a M... no ano de 1985, entrando de imediato na posse do mesmo, embora não tenha chegado a ser formalizada a necessária escritura pública.

Sucede, porém, que tais declarações são falsas, tendo em conta que o ali referido prédio nunca pertenceu a M... e que a sociedade ré foi constituída por escritura pública outorgada apenas no dia 13/08/2001, nunca tendo adquirido esse prédio.

Por outro lado ainda, o dito prédio está integrado na Zona Especial de Proteção (ZEP) do Castelo de ..., classificado de Monumento Nacional, razão pela qual não pode ser adquirido por particulares, designadamente por usucapião.

2. Após terem sido citados para o efeito, os réus apresentaram contestação à ação, defendendo-se por impugnação, o que fizeram, em síntese, nos moldes seguintes:

Que M..., mãe da ré mulher, herdou o prédio identificado na petição inicial na sequência de partilha realizada verbalmente, tendo-o vendido, no ano de 1985, à R...

Desde essa data, o referido prédio tem vindo a ser utilizado, de forma pacífica, ininterrupta, à vista de todos e sem qualquer oposição de quem quer que seja, pela R..., aí exercendo a sua atividade, que funcionou  inicialmente como rádio-pirata, tendo depois sido constituída sob a forma de Cooperativa no ano de 1987, a qual, por sua vez, constituiu, no ano de 2001, a sociedade ré, para a qual aquela transmitiu o seu património, ali continuando a exercer a mesma atividade nos mesmos moldes, acabando aquela (Cooperativa) entretanto por se dissolver.

O referido prédio urbano (identificado na sobredita escritura de justificação que os AA. impugnam) está situado a mais de 50 metros da muralha do Castelo de ..., pelo que as limitações legais que aqueles invocam não se mostram aplicáveis ao caso em apreço.

Pelo que o referido prédio foi, assim, também adquirido originariamente pela ora sociedade ré, por via da usucapião.

Terminaram os RR. por pedir a improcedência da ação, como a sua absolvição dos pedidos.

3. À luz do disposto nos artigos 15º, nº. 1, e 16º da Lei nº. 83/95, de 31/08, foram citados o Ministério Público e os habitantes de ..., tendo estes (nele identificados e através de requerimento/documento juntos aos autos) declarado não aceitar ser representados pelos autores.

4. Dispensada que foi a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que afirmou a validade e a regularidade da instância, tendo-se depois ali procedido à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos termas de prova, sem que tivesse sido apresentada qualquer reclamação.

5. Mais tarde - após a instrução do processo, na qual se incluiu um relatório pericial – realizou-se (em várias sessões) a audiência de discussão e julgamento (com a gravação da mesma).

6. Seguiu-se a prolação da sentença que, no final, decidiu julgar improcedente a ação, e absolver os réus dos pedidos formulados pelos autores.

7. Inconformados com tal sentença, dela apelaram os autores, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

...

8. Contra-alegaram os RR. e o MºPº, pugnando no final pela total improcedência do recurso e pela manutenção integral da sentença.

9. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.

II- Fundamentação

A) De facto

Pelo tribunal da 1ª. instância foram dados como provados os seguintes factos:

...

A) De direito

1. Como é sabido, e é pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, e 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2 – fine -, do CPC).

Constitui igualmente entendimento prevalecente que nas questões que se impõe ao tribunal conhecer não se abrangem/incluem as razões ou a argumentação jurídicas aduzidas pelas partes.
Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso dos autores/apelantes, verifica-se que a questão que aqui nos cumpre apreciar traduz-se em saber se houve ou não erro julgamento quanto ao mérito da causa e, particularmente, quanto ao saber se o direito de propriedade sobre o prédio que foi objeto da impugnada (pelos AA.) escritura de justificação notarial a que se reporta o ponto 1. dos factos provados foi ou não adquirido originariamente pela sociedade ré através do instituto da usucapião (conforme o ali declarado), e das consequências daí a extrair, face ao pedido formulado, em caso de resposta negativa.
Há luz dos factos apurados o tribunal a quo entendeu de que que sim.
Dessa decisão conclusiva (que resulta da sentença), discordam os autores/apelantes apoiando-se em dois fundamentos:
a) Ao contrário do que considerou o tribunal a quo, a sociedade ré não poderia suceder/aceder à anterior posse que sobre o referido prédio deteve/exerceu a cooperativa R..., CRL, pois que essa acessão/sucessão não foi alegada na referida impugnada escritura de justificação notarial, e daí que sem essa soma de posses não tinha ainda, aquando da outorga da mesma, decorrido o prazo legal que permitisse àquela sociedade adquirir, por via da usucapião, originariamente o direito de propriedade sobre o referido prédio justificado.
b) Independente do fundamento anterior, e situando-se o prédio que foi objeto daquela escritura de justificação dentro da zona especial de proteção do Castelo de ... (classificado, tal como as respetivas muralhas, de monumento nacional), essa aquisição do direito de propriedade não pode ocorrer por imprescritibilidade do prédio, não podendo, pois, ser adquirido por usucapião (imprescritibilidade essa que o tribunal a quo também concluiu não ocorrer no caso em apreço).
Contra o entendimento dos AA./apelantes, e em defesa daquele que foi sufragado pelo tribunal a quo, se pronunciam os réus/apelados e o MºPº.
2. Apreciando
2.1 Como ressalta daquilo que acima deixámos expresso na Relatório, encontramos no domínio de uma ação tutelar cível instaurada pelos AA. (enquanto cidadãos) para defesa do património cultural.

Perfunctoriamente (dado que no caso a caracterização da natureza desse tipo de ação se mostra pacífica entre o tribunal e as partes) diremos tão só que a ação popular vem sendo considerada como uma das mais importantes conquistas processuais para a defesa de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, e que tem por objeto, antes de mais (embora não se esgote neles), a defesa dos chamados interesses difusos, enquanto interesses de toda uma comunidade, que tanto pode ser de âmbito nacional, como regional ou mesmo local. Interesses esses que são da mais diversa índole, e que têm, nomeadamente, a ver com a defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do consumo de bens e serviços, do património cultural e do domínio público.

Ação essa que, entre nós, têm a sua consagração no artº. 52º, nº. 3, da CRPort., tendo, em termos gerais, obtido a sua regulamentação através da Lei nº. 83/95, de 31/08.

Nesta última lei se regula a ação, quer no âmbito da jurisdição administrativa (participação popular em procedimentos administrativos ou contencioso administrativo), quer no âmbito da jurisdição (judicial) comum, visando a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas naquele citado normativo da nossa Carta Fundamental.

O âmbito daqueles interesses difusos que com tal ação se visam tutelar aparece ali, embora numa tendência que se pretende globalizante, enumerado de forma meramente exemplificativa, e de que é exemplo disso a expressão adverbial “designadamente” empregue no nº. 2 do artº. 1º daquela Lei.

Grosso modo, podemos ainda dizer que muito embora a lei atribua legitimidade processual a qualquer pessoa singular (para além das instituições ou entidades ainda referidas no atual artº. 31º do CPC) – desde que se encontre no gozo dos seus direitos civis e políticos - para intentar tal ação popular, todavia, os direitos que com ela se visam tutelar deverão ter um carácter comunitário, ou seja, ter um valor pluri-subjetivo e os interesses devem assumir um cunho-meta individual. Na verdade, correspondendo os interesses difusos a interesses juridicamente reconhecidos e tutelados, cuja titularidade pertence a todos e a cada um dos membros de uma comunidade ou grupo, não são, assim, os mesmos suscetíveis de apropriação individual por qualquer um dos seus membros. Víde, sobre a Ação Popular, para mais e melhor desenvolvimento, que o caso aqui nos dispensa, os profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Anotada, 3ª ed., pág. 281 e ss”; Nuno Sérgio Antunes, in “O Direito de Acção Popular no Contencioso Administrativo Português, Lex. 1997, págs. 27 e ss”; Luiz Lingnau Silveira, PGA, in “BMJ 448, págs. 11 a 35”; Robin de Andrade, in “A Acção Popular no Direito Administrativo Português, pág. 4 e ss”; Ac. do STJ de 08/09/2016, proc. 7617/15.7T8PRT.S1, disponível em www.dgsi.pt; e  Ac. do STJ. de 20/10/2005, in “CJ, Acs. do STJ, Ano XIII, T3, pág. 82 e ss”.

Tendo presente o que se acabou de expor, é indiscutível estarmos, no caso em apreço, perante uma ação popular cível (a qual, nos termos do disposto no artº. 12º, nº. 2, daquela citada Lei, pode revestir qualquer uma das formas previstas no Código de Processo Civil), afigurando-se igualmente incontroversa a legitimidade que os autores dispõem para a instaurar, pois que subjacente a ela está a defesa de um bem/património cultural que com ela se visa proteger (vg. o Castelo de ...) e do qual não seus titulares exclusivos, já que o mesmo pertence globalmente, ou seja, como um todo, a toda uma comunidade nacional - e não apenas local e/ou regional – (dado se reportar a um monumento nacional).

Posto isto, avancemos.
2.1.1 Em defesa desse património, os AA. começaram por impugnar a escriturar a que se reporta o ponto 1. dos factos provados, através da qual foi justificada pela sociedade ré a aquisição originária por si, através do instituto da usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio urbano ali descrito e identificado, com o fundamento de que a declaração aí prestada não é verdadeira, pois que a ré justificante não é dona do aludido prédio, não tendo, ao contrário do que ali se afirma, adquirido sua propriedade por via de usucapião, e daí que tenha pedido, desde logo, que se declare que tal declaração não é verdadeira e que o dito prédio justificado nunca pertenceu à referida ré.
Em consequência dessa declaração pediram ainda ao tribunal que anule o contrato de compra e venda que posteriormente foi celebrado entre a sociedade Ré e o Réu J... formalizado escritura pública outorgada no dia 20 de Outubro de 2015 (a que se reporta agora o ponto 7. dos factos provados e que teve por objeto o aludido prédio), bem como de eventuais negócios jurídicos que tenham entretanto sido celebrados com terceiros por qualquer um dos réus, determinando-se ainda o cancelamento dos correspondente registos de aquisição.
Como bem se salientou o tribunal a quo, o primeiro daqueles pedidos é característico de uma típica ação de impugnação de escritura de justificação notarial.
A questão relacionada com tal pedido e que levou à improcedência da pretensão dos AA. foi, adiantamos já, a nosso ver, e de forma exaustiva, devida e acertadamente apreciada e decidida na sentença recorrida, com uma correta subsunção do direito aos factos apurados, e com a convocação para o efeito dos acertados normativos e institutos legais aplicáveis ao caso, socorrendo-se ainda dos contributos de autorizada jurisprudência e doutrina citadas, para ela, assim, nos remetendo.

Não obstante tal, passaremos a apreciar tal questão.

Nos termos do disposto no artigo 89º do Código do Notariado:

1 - A justificação, para os efeitos do nº. 1 do artigo 116º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.

2 - Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião. (sublinhado nosso)

Como se sabe, a justificação notarial não constitui em si um ato translativo de propriedade, pressupondo sempre – atenta a invocada aquisição originária por usucapião – a prática de determinados atos anteriores tendentes a conferir à posse características suficientes para conduzir a tal aquisição, atos esses que podem ser impugnados por qualquer interessado (artigo 101º do Código do Notariado).

Como ressalta da referida escritura pública de justificação, e enfatizando, foi nela declarado, e naquilo que para aqui mais releva, ter a sociedade ré adquirido, por usucapião, o aí identificado prédio urbano, na sequência dos atos de posse ali descritos.

Tendo tal escritura sido, como vimos, objeto de impugnação por parte dos AA. que contestam a ali declarada e justificada aquisição do direito de propriedade sobre o dito prédio, competirá então à ré justificante demonstrar, nesta ação, essa aquisição (por via da usucapião).

Na verdade, sendo a ação de impugnação de escritura de justificação notarial (como é esta nessa parte) uma ação de simples apreciação negativa (cfr. artºs. 10º, nºs. 1, 2, e 3º, al. a), do nCPC) competirá aos RR., e sobretudo a ré justificante, nos termos do preceituado no artº. 343º, nº. 1, do CC, fazer a prova dessa alegada aquisição, por via da usucapião, do direito de propriedade sobre prédio ali justificado.

Aliás, isso mesmo foi afirmado pelo STJ no seu acórdão uniformizador de jurisprudência nº. 1/2008, de 04/12/2007 (publicado no D.R., nº. 63, Série I. de 2008-03-31), ao fixar a seguinte doutrina “na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial. (sublinhado nosso)

Posto isto, vejamos então se os RR., e particularmente ré (justificante), lograram demonstrar/provar que última adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio justificado em tal escritura.

Como é sabido, e tal como decorre dos artºs. 1287º e 1316º do CC, a usucapião é, por excelência, uma das formas de aquisição originária dos direitos reais de gozo (nos quais se inclui e destaca o direito de propriedade), cuja verificação depende de dois elementos: a posse (corpus/animus) e o decurso de certo período de tempo, variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa, e as características da posse (cfr., nomeadamente, artºs. 1251º e ss., 1256º e ss. e 1294º e ss. do CC).

Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (artº. 1288º do CC), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse (artº. 1317º, al. c) do CC).

Como ressalta do atrás referido, constituindo a posse um dos elementos essenciais para aquisição do direito de direito propriedade (tal como para qualquer direito real de gozo), ela consubstancia-se em dois elementos: o corpus (os atos materiais praticados sobre a coisa) e o animus (o intuito de se comportar como titular do direito correspondente aos atos praticados).

Como é sabido, nesse domínio, o nosso ordenamento jurídico aderiu à conceção ou corrente (savignyana) subjetivista da posse (cfr. artºs. 1251º e 1253º do CC). Nesses termos, como elementos da posse fazem parte o corpus, que, como elemento externo, se identifica com a prática de atos materiais sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes de facto sobre o objeto, de modo contínuo e estável, e o animus que, como elemento interno, se traduz na vontade ou intenção do autor da prática de tais atos se comportar como titular ou beneficiário do direito correspondente a esses atos realizados. Elementos esses cuja presença simultânea se exige permanentemente, para que possa haver, na sequência da prática reiterada e contínua de atos materiais de posse, a aquisição, por via da usucapião, do correspondente direito ao exercício de tais atos.

É que se só se verificar a presença daquele primeiro elemento (o corpus) a situação configura apenas uma mera detenção (precária), insuscetível de conduzir à dominialidade, ou seja, ao direito real de gozo que se reclama (cfr. artº. 1253º).

Porém, considerando a dificuldade que muitas vezes existe em demonstrar a posse em nome próprio, ou seja, do referido animus, a lei estabeleceu uma verdadeira presunção (iuris tantum) do mesmo a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, ou seja, presume-se que quem tem o corpus tem também o animus (cfr. artº. 1252º, nº. 2, e assento, hoje acordão uniformizador de jurisprudência, do STJ de 14/5/96, in “DR, II S, de 24/6/96, e ainda acordãos do STJ de 9/1/97 e de 2/5/99, respetivamente, in “CJ/STJ, T5 – 37” e “CJ/STJ, T2 – 126”).

Pelo que, assim, podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa (cfr. ainda artº. 1268º, nº. 1, do CC sobre a presunção da titularidade do direito de que goza o possuidor, desde que não existe a favor de outrem presunção fundada em registo anterior).

A posse, por seu turno, segundo o artº. 1258º do CC, pode ser titulada ou não titulada, de boa fé ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta.

Sendo a posse titulada quando e “fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico” (artº. 1259º, nº. 1, do CC); de boa ou má fé consoante o possuidor ignorava ou não, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem (artº. 1260º, nº. 1, do CC); pacífica quando foi adquirida sem violência – considerando-se violenta quando para obtê-la o possuidor usou de coação física, ou de coação moral nos termos do artigo 255º - (artº. 1261º, nºs. 1 e 2, do CC), e pública quando é exercida de modo a poder se conhecida pelos interessados (artº. 1262º do CC).

Como já transparece do atrás referido, os carateres da boa ou má fé ou da titulação ou não da posse somente influem no prazo necessário à verificação da usucapião (sendo que a posse titulada faz presumir uma posse de boa fé e a não titulada de má fé – artº. 1260º, nº. 2, do CC).

Posse essa que o possuidor atual pode juntar à posse do seu antecessor, desde que nela tenha sucedido por título diverso da sucessão por morte (artº. 1256º, nº. 1, do CC)

Na falta de registo do título ou da mera posse, a usucapião de imóveis pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé (artº. 1296º).

Diga-se, por fim, que, nos termos do artº. 1297º do CC, se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde a cessação da violência ou desde que a posse se torne pública, daí que ela deva ser pacífica e pública.

Posto isto, da conjugação dos pontos 3, 4, 6, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 30, 31, 32, 33, 34 e 35 dos factos provados (que neste recurso não foram objeto de impugnação) ressalta que o prédio urbano que foi objeto de justificação através da sobredito escritura notarial foi utilizado, ininterruptamente, pela R..., CRL, desde o final da década de 1980 até ao dia ao dia 13/08/2001, e desde altura pela Ré M..., Unipessoal, Lda. – data em que esta foi constituída e aquela transferiu para ela o seu património/atividade, no qual se incluía do dito prédio - até hoje (e mais concretamente até pelo menos o dia 20/10/2015, data em que por esta foi vendido ao seu legal representante, o 2º. R.), praticando sobre ele os mais diversos atos materiais de posse, à vista de todos, sem qualquer oposição (violência), e sempre na convicção de que o mesmo então lhes pertencia.

Ou seja, durante aqueles períodos de tempo consecutivos, cada uma das referidas entidades coletivas (primeiro a R..., CRL., e depois a sociedade ré) foi utilizando o dito prédio (que foi objeto justificação notarial), praticando sobre ele os correspondentes atos materiais de posse (corpus, e com animus possidendi, isto é, como se fossem então os seus verdadeiros donos), fazendo-o de forma pública (à luz do dia, ou seja, à vista de todos) e pacífica (sem qualquer oposição/violência).

Posses essas que, in casu, à luz do acima citado artº. 1256º, nº. 1, do CC podem ser juntas, ou seja, a ré justificante pode juntar a sua posse àquela imediatamente anterior exercida pela R..., CRL, pois que, como vimos, nela sucedeu por título diverso da sucessão por morte. Não sendo a posse exercida pela R..., CRL, titulada, e presumindo-se a mesma de má fé (pois que essa presunção não se mostra ilidida), essa acessão da posse pela ré justificante ter-se-á de dar dentro dos limites daquela exercida pela sua antecessora (nº. 2 do artº. 1256º do CC), o que significa que, in casu, e aquisição originária do direito de propriedade, pela via usucapião, só poderia dar-se no termo de 20 anos do exercício de posse (artº 1296º do CC). (Sobre esta problemática da acessão/sucessão da posse vide, para mais e melhor desenvolvimento, entre outros, os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil, Vol. III, 2ª. ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, págs. 13/15”; José Oliveira Ascensão, in “Direito Reais, 4ª. ed. refundida, Coimbra Editora, págs. 118/119”, Dias Marques, in “Prescrição Aquisitiva, Vol. II, págs. 6 a 97”; Manuel Rodrigues, in “A Posse, nº. 55”, Menezes Cordeiro in “A Posse, Perspectivas, 1997, pág. 136”, e o Ac. do STJ de 05/02/2012, proc. 1588/06.8TCLRS.L1.S1, disponível em dgsi.pt).

Sendo assim, juntando aquelas duas posses facilmente se constata que na data em que foi celebrada a sobredita escritura de justificação notarial já se havia completado o prazo de vinte anos (a que alude o artº. 1296º do CC), o que permite à ré justificante a aquisição, por via da usucapião, do direito de propriedade sobre o referido prédio nela justificado, pois que logrou provar, como lhe competia, todos os pressupostos legais exigidos para o efeito.

E não se diga, e salvo sempre o devido respeito, como defendem os apelantes, que a tal obsta o facto de a ré justificante não ter alegado/invocado na referida escritura a sucessão/acessão da sua posse à posse anterior que foi exercida pela R..., CRL, e nem mesmo que não tenha provado a aquisição derivada (por via de compra efetuada à ali identificada M...), pois o que tão só se lhe exige nesta ação é que prove/demonstre (como veio a fazer) ter - na altura da celebração da escritura e conforme o aí alegado - adquirido originariamente, por via da usucapião, o direito do propriedade sobre o prédio que ali justificou.

Em conclusão, estão, assim, à partida, preenchidos todos os pressupostos legais (que os RR. lograram provar) que permitiam à sociedade ré adquirir originariamente, por via da usucapião, o direito de propriedade que justificou ter sobre o prédio urbano a que se reporta a sobredita escritura de justificação notarial outorgada no dia 16/04/2010.

2.1.2 E dizemos à partida, porque os AA./apelantes invocam ainda a imprescritibilidade do dito prédio que foi objeto da sobredita escritura de justificação notarial, devido ao facto de encontrar integrado na Zona Especial de Proteção (ZEP) Castelo de ..., classificado como Monumento Nacional, razão pela qual não pode ser adquirido usucapião.

O tribunal a quo entendeu (entendimento que é perfilado pelas RR./apelados e pelo MºPº) que essa imprescritibilidade só se aplica aos bens culturais legalmente classificados ou em vias classificação, e não também àqueles que se encontrem (como acontece com prédio aqui em causa) nas suas zonas legais de proteção.

Apreciemos.

Como é sabido, por aquilo que ele representam (sobretudo em termos de valor civilizacional, ao nível da memória, da antiguidade, da autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade), cada vez mais se tem notado uma crescente consciencialização (ao nível quer das Organizações Mundiais, quer dos Estados, quer dos seus cidadãos) de proteger e valorizar o património cultural (quer ele seja composto de bens materiais, quer o seja por bens imateriais), e daí produção de legislativa que para o efeito vem sendo publicada.

A nível das convenções internacionais veja-se, por exemplo – por estar a relacionada com o caso em apreço -, a Convenção para a Salvaguarda do Património Arquitetónico da Europa, assinada em Granada, a 3 de outubro de 1985 – e à qual o nosso país aderiu, nele entrando em vigor em 01/07/1991, depois da sua aprovação pela resolução da AR nº. 5/91 e ratificação pelo Decreto do Presidente da República nº. 5/91 de 23/01, publicado no DR, I S-A, nº. 19, de 23/01/91 –, na qual, além do mais, se procedeu à definição do património arquitetónico, e ao estabelecimento de medidas que as partes aderentes comprometeram a implementar no sentido da proteção desse património.

E foi com tal desiderato que entre nós foi publicada Lei nº. 107/2001, de 08/09 (entrada em vigor, na sua essência, em 08/08/2001), que estabeleceu as bases da política e do regime de proteção e valorização do património cultural.

Desse diploma importa reter, e tendo em vista o caso em apreço, os seguintes normativos:

O artº. 2º, que procede à definição do conceito e âmbito do património cultural, nos seus nºs 1 a 8.

O artº. 11º que dispõe:
1- Todos têm o dever de preservar o património cultural, não atentando contra a integridade dos bens culturais e não contribuindo para a sua saída do território nacional em termos não permitidos pela lei.
2 - Todos têm o dever de defender e conservar o património cultural, impedindo, no âmbito das faculdades jurídicas próprias, em especial, a destruição, deterioração ou perda de bens culturais.
3 - Todos têm o dever de valorizar o património cultural, sem prejuízo dos seus direitos, agindo, na medida das respectivas capacidades, com o fito da divulgação, acesso à fruição e enriquecimento dos valores culturais que nele se manifestam.

O artº. 14º onde se dispõe que:
1 - Consideram-se bens culturais os bens móveis e imóveis que, de harmonia com o disposto nos n.os 1, 3 e 5 do artigo 2.º, representem testemunho material com valor de civilização ou de cultura.
2 – (…)
O artigo 15º, onde se procede à categorização/classificação dos bens culturais, nos seguintes termos:
1 - Os bens imóveis podem pertencer às categorias de monumento, conjunto ou sítio, nos termos em que tais categorias se encontram definidas no direito internacional, e os móveis, entre outras, às categorias indicadas no título VII.
2 - Os bens móveis e imóveis podem ser classificados como de interesse nacional, de interesse público ou de interesse municipal.
3 - Para os bens imóveis classificados como de interesse nacional, sejam eles monumentos, conjuntos ou sítios, adoptar-se-á a designação «monumento nacional» e para os bens móveis classificados como de interesse nacional é criada a designação «tesouro nacional».
4 - Um bem considera-se de interesse nacional quando a respectiva protecção e valorização, no todo ou em parte, represente um valor cultural de significado para a Nação.
5 - Um bem considera-se de interesse público quando a respectiva protecção e valorização represente ainda um valor cultural de importância nacional, mas para o qual o regime de protecção inerente à classificação como de interesse nacional se mostre desproporcionado.
6- Consideram-se de interesse municipal os bens cuja protecção e valorização, no todo ou em parte, representem um valor cultural de significado predominante para um determinado município.
7 - Os bens culturais imóveis incluídos na lista do património mundial integram, para todos os efeitos e na respectiva categoria, a lista dos bens classificados como de interesse nacional.
8 - A existência das categorias e designações referidas neste artigo não prejudica a eventual relevância de outras, designadamente quando previstas no direito internacional.

O artº. 16º que estatui:
1 - A protecção legal dos bens culturais assenta na classificação e na inventariação.
2 – (…)
3 - A aplicação de medidas cautelares previstas na lei não depende de prévia classificação ou inventariação de um bem cultural.
 O artº. 18º que estatui:
1 - Entende-se por classificação o acto final do procedimento administrativo mediante o qual se determina que certo bem possui um inestimável valor cultural.
2 – (…)
3 – (…)
4 – (…).

O artº. 31º que estatui:
1 - Todo o bem classificado como de interesse nacional fica submetido a uma especial tutela do Estado (…).

2 – (…)

3 -  (…)

4 – Os bens classificados como de interesse nacional e municipal ficarão submetidos, com as necessárias adaptações, às limitações referidas nos n.os 2 e 4 do artigo 60.º, bem como a todos os outros condicionamentos e restrições para eles estabelecidos na presente lei e na legislação de desenvolvimento.

O artº. 34 º que estatui: Os bens culturais classificados nos termos do artigo 15.º da presente lei, ou em vias de classificação como tal, são insusceptíveis de aquisição por usucapião. (sublinhado e negrito nosso)
O artº. 35º que estatui: A lei estabelecerá as limitações incidentes sobre a transmissão de bens classificados ou em vias de classificação pertencentes a pessoas colectivas públicas ou a outras pessoas colectivas tituladas ou subvencionadas pelo Estado ou pelas Regiões Autónomas. (sublinhado nosso)
O artº. 36º que estatui:
1 - A alienação, a constituição de outro direito real de gozo ou a dação em pagamento de bens classificados nos termos do artigo 15.º da presente lei, ou em vias de classificação como tal, depende de prévia comunicação escrita ao serviço competente para a instrução do respectivo procedimento.
2 - A transmissão por herança ou legado de bens classificados nos termos do artigo 15.º da presente lei, ou em vias de classificação como tal, deverá ser comunicada pelo cabeça-de-casal ao serviço competente referido no número anterior, no prazo de três meses contados sobre a data de abertura da sucessão.
3 - O disposto no número anterior é aplicável aos bens situados nas zonas de protecção dos bens classificados nos termos do artigo 15.º da presente lei, ou em vias de classificação como tal. (sublinhado nosso)
O artº. 37º que estatui:
1 - Os comproprietários, o Estado, as Regiões Autónomas e os municípios gozam, pela ordem indicada, do direito de preferência em caso de venda ou dação em pagamento de bens classificados ou em vias de classificação ou dos bens situados na respectiva zona de protecção.
2 - É aplicável ao direito de preferência previsto neste artigo o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º do Código Civil, com as necessárias adaptações.
3 – (…) (sublinhado e negrito nosso)
O artº. 38º que estatui:
1 - O incumprimento do dever de comunicação estabelecido nos artigos anteriores constituirá impedimento à celebração pelos notários das respectivas escrituras, bem como obstáculo a que os conservadores inscrevam os actos em causa nos competentes registos.
2 - Quando efectuadas contra o preceituado pelo artigo 35.º e pelo n.º 1 do artigo 36, a alienação, a constituição de outro direito real de gozo ou a dação em pagamento são anuláveis pelos tribunais sob iniciativa do membro da administração central, regional ou municipal competente, dentro de um ano a contar da data do conhecimento (sublinhado nosso)
O artº. 43º que estatui:
1 - Os bens imóveis classificados nos termos do artigo 15.º da presente lei, ou em vias de classificação como tal, beneficiarão automaticamente de uma zona geral de protecção de 50 m, contados a partir dos seus limites externos, cujo regime é fixado por lei.
2 - Os bens imóveis classificados nos termos do artigo 15.º da presente lei, ou em vias de classificação como tal, devem dispor ainda de uma zona especial de protecção, a fixar por portaria do órgão competente da administração central ou da Região Autónoma quando o bem aí se situar.
3 - Nas zonas especiais de protecção podem incluir-se zonas non aedificandi.
4 - As zonas de protecção são servidões administrativas, nas quais não podem ser concedidas pelo município, nem por outra entidade, licenças para obras de construção e para quaisquer trabalhos que alterem a topografia, os alinhamentos e as cérceas e, em geral, a distribuição de volumes e coberturas ou o revestimento exterior dos edifícios sem prévio parecer favorável da administração do património cultural competente.
5 – (…). (sublinhado nosso)
O artº. 112º que estatui:
1 - Mantêm-se em vigor os efeitos decorrentes de anteriores formas de protecção de bens culturais móveis e imóveis da responsabilidade da administração central ou da administração regional autónoma, independentemente das conversões a que tenha de se proceder por força da presente lei.
2 –
3 – (…) (sublinhado nosso).
Subsequente à referida “Lei Base” que temos vindo a citar - “e como que a regulamentando”, e sempre com desiderato supra referido -, foi entre nós também publicado DL nº. 309/2009, de 23/09 (entrado em vigo em 01/01/2010 - artº. 79º), estabelecendo o procedimento de classificação dos bens imóveis de interesse cultural, bem como o regime jurídico das zonas de proteção e do plano de pormenor de salvaguarda.
Importa, por isso, e tendo sempre em conta o caso em apreço, reter também alguns dos seus preceitos legais.
O artº. 2º que estatui:
1 - Um bem imóvel é classificado nas categorias de monumento, conjunto ou sítio, nos termos em que tais categorias se encontram definidas no direito internacional.
2 - A classificação de um bem imóvel pode abranger, designadamente, prédios rústicos e prédios urbanos, edificações ou outras construções que se incorporem no solo com carácter de permanência, bem como jardins, praças ou caminhos. (sublinhado nosso)
O artº. 3º que estatui:
1 - Um bem imóvel pode ser classificado como de interesse nacional, de interesse público ou de interesse municipal.
2 - A graduação do interesse cultural, para efeitos do número anterior, obedece aos critérios previstos nos n.os 4, 5 e 6 do artigo 15.º da Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro.
3 - A designação de «monumento nacional» é atribuída aos bens imóveis classificados como de interesse nacional, sejam eles monumentos, conjuntos ou sítios. (sublinhado nosso).
O artº. 14º que estatui:
1 - Um bem imóvel é considerado em vias de classificação a partir da notificação da decisão de abertura do respectivo procedimento de classificação ou da publicação do respectivo anúncio, consoante aquela que ocorra em primeiro lugar, nos termos previstos no artigo 9.º
2 – (…) (sublinhado nosso)
O artº. 36º que estatui:
1 - Os bens imóveis em vias de classificação beneficiam automaticamente de uma zona geral de protecção.
2 - Os bens imóveis em vias de classificação podem beneficiar, em alternativa à zona de protecção prevista no número anterior, de uma zona especial de protecção provisória.
3 - Os bens imóveis classificados beneficiam de uma zona especial de protecção. (sublinhado nosso)
O artº. 37º que estatui:
1 - A zona geral de protecção tem 50 m contados dos limites externos do bem imóvel e vigora a partir da data da decisão de abertura do procedimento de classificação.
2 - Quando o limite da zona de geral de protecção abranja parcialmente um bem imóvel, considera-se o mesmo sujeito na sua totalidade ao regime aplicável aos bens imóveis situados na zona de protecção.
O artº. 41º que estatui:
1 - O procedimento administrativo de definição de uma zona especial de protecção inicia-se oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado e pode decorrer em simultâneo com o procedimento de classificação de um bem imóvel.
2 –
3 – (…)
O artº. 43º que estatui:
1 - A zona especial de protecção tem a extensão e impõe as restrições adequadas em função da protecção e valorização do bem imóvel classificado, podendo especificar:
a) Zonas non aedificandi;
b)  (…)
c) Bens imóveis, ou grupos de bens imóveis, que:
i) Podem ser objecto de obras de alteração, nomeadamente quanto à morfologia, cromatismo e revestimento exterior dos edifícios;
ii) Devem ser preservados;
iii) Em circunstâncias excepcionais, podem ser demolidos;
iv) Podem suscitar o exercício do direito de preferência, em caso de venda ou dação em pagamento;
d) Identificação das condições e da periodicidade de obras de conservação de bens imóveis ou grupo de bens imóveis;
e) As regras genéricas de publicidade exterior.
2 - A zona especial de protecção assegura o enquadramento paisagístico do bem imóvel e as perspectivas da sua contemplação, devendo abranger os espaços verdes, nomeadamente jardins ou parques de interesse histórico, que sejam relevantes para a defesa do contexto do bem imóvel classificado.
3 - Nas situações previstas nos números anteriores são estabelecidos zonamentos específicos e indicadas as restrições estritamente necessárias. (sublinhado nosso)
O artº. 71º que estatui: os prejuízos decorrentes de servidões administrativas ou de outras restrições resultantes da aplicação do presente decreto-lei são indemnizáveis nos termos do artigo 16.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.
Posto isto, é a altura de dar resposta à questão acima colocada.
Por um lado, temos o Castelo de ... que se encontra classificado como monumento nacional (cfr. artº. do Decreto nº. 37.077, de 29 de Setembro de 1948, publicado no Diário do Governo n.º 228/1948, Iª Série, de 29 de Setembro de 1948).
Monumento esse que é, assim, insuscetível de aquisição por usucapião (artº. 34º. da citada Lei nº. 107/2001, de 08/09).
Por outro lado, temos o prédio urbano aqui em causa (que foi objeto da sobredita escritura de justificação notarial), que não se encontra classificado e nem em vias de classificação, mas que se encontra situado no interior da Zona Especial de Proteção (ZEP) daquele Castelo - monumento nacional – (cfr. ponto 5 dos factos provados, e ainda Portaria de 27 de Outubro de 1950, publicada no Diário do Governo n.º 265, IIª Série, de 14 de Novembro de 1950).

E a questão que se suscita é se pelo facto de o referido prédio se encontrar inserido na zona especial de proteção (que englobará, inclusive, à luz de tal portaria, uma zona non aedificandi) torna o mesmo insuscetível de poder ser adquirido por usucapião?

Por outras palavras, a impossibilidade de os bens classificados (nos termos do citado artº. 15 da Lei nº. 107/2001), ou a vias dessa classificação poderem ser adquiridos por usucapião, também se estende aos bens (neste caso os imóveis) que se encontrados situados/inseridos nas suas zonas de proteção (vg. das zonas especiais)?

Do cotejo dos normativos e diplomas legais acima citados, não logramos, salvo o devido respeito por outra opinião, alcançar o estabelecimento dessa impossibilidade.

Na verdade, da sua leitura resulta que tal restrição impeditiva (insusceptibilidade de aquisição por usucapião) apenas se aplica aos bens classificados (vg termos do citado artº. 15º da Lei nº. 107/2001) ou que estão em vias de o ser - o mesmo sucedendo, aliás, quanto às especificas limitações relacionadas com a sua alienação – e não também àqueles bens que se encontram integrados nas suas zonas de proteção.

Sendo assim, não se encontrando o dito prédio (que foi objeto da aludida escritura de justificação notarial) classificado ou sequer em vias de o vier a ser, somos levados a concluir, tal como o fez o tribunal da 1ª. instância, que o facto de o mesmo se encontrar situado/inserido na especial de proteção do Castelo de ... (classificado como monumento nacional) não o torna imprescritível, ou seja, não impede que o mesmo possa ser adquirido originariamente por via da usucapião.

As limitações/restrições impostas por lei a esses bens situadas em tais zonas de proteção situam-se a outro nível, que não naquele.

A concluir-se em sentido contrário, tal conduziria, a nosso ver, a que os particulares (crê-se que em número elevado) ficassem para sempre impedidos de registar os seus prédios/imóveis por falta de título/documento que demonstre a sua propriedade sobre eles.

Sempre que o património cultural corra risco, nomeadamente por ação ou omissão dos particulares, o Estado tem já ao ser dispor um enorme manancial de medidas (instrumentos) legislativas a que pode recorrer tendo a vista a sua proteção, desde as mais simples até às mais graves, podendo estas inclusive passar pela expropriação dos próprios bens ou pela tutela penal e contra-ordenacional ou mesmo pelo exercício de direito de preferência em caso de alienação.

Em suma, pelo que se deixou exposto, e à luz dos factos apurados, não vislumbramos razão legal para não reconhecer que a sociedade ré adquiriu originariamente, por via da usucapião, o direito de propriedade que justificou ter sobre o prédio urbano a que se reporta a sobredita escritura de justificação notarial outorgada no dia 16/04/2010, soçobrando, in casu, e, em consequência, todas pretensões petitórias que os AA./apelantes formularam nesta ação.

Termos, pois, em que se decide julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença da 1ª. instância.

III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença da 1ª. instância.

Sem custas, por delas estarem isentas os AA./apelantes (artº. 4º, nº. al. b) do RCP).


***

Após os autos baixarem à 1ª. instância, deverá aí providenciar-se pelo cumprimento do disposto no artº. 19º, nº. 2, da citada Lei nº. 83/95  (nos moldes que já haviam sido determinados na sentença recorrida).

***

Sumário:

I- As ações populares, que vem sendo consideradas como uma das mais importantes conquistas processuais para a defesa de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, têm por objeto, antes de mais (embora não se esgotem neles), a defesa dos chamados interesses difusos, enquanto interesses de toda uma comunidade, que tanto podem ser de âmbito internacional, nacional, regional ou mesmo local.

II- Interesses esses que são da mais diversa índole, e que têm, nomeadamente, a ver com a defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do consumo de bens e serviços, do património cultural e do domínio público.

III- Ações essas (para defesa desses bens) que tanto podem situar-se no âmbito da jurisdição administrativa, como no âmbito da jurisdição comum (civil ou criminal).

IV- Nas ações de impugnação de escritura de justificação notarial, na qual o réu justificante afirmou a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre determinado imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhe ele a prova dos factos constitutivos desse seu aí alegado direito, sem que possa beneficiar da presunção do registo decorrente do artº. 7º do CRPed. .

V- O réu justificante (na prova da aquisição originária, por via da usucapião, do seu invocado direito de propriedade sobre o prédio justificado) pode juntar a sua posse à posse do anterior possuidor - desde que nela tenha sucedido por título diverso da sucessão -, mesmo que naquela escritura não tenha alegado essa acessão da posse.

VI- A impossibilidade de os bens imóveis classificados (vg. nos termos do artº. 15º da Lei nº. 107/2001, de 08/09), ou em vias dessa classificação, poderem ser adquiridos por usucapião, não se estende àqueles que se encontram situados/inseridos nas suas zonas de proteção (vg. das zonas especiais).

Coimbra, 2021/04/27