Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1142/12.5TTLRA.1.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA PARA O TRABALHO HABITUAL
INCIDENTE DE REVISÃO
PROVA PERICIAL
NÚCLEO ESSENCIAL DA ATIVIDADE PROFISSIONAL
Data do Acordão: 05/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 145.º, N.º 5, DO CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO, 21.º, N.º 4, DA LAT E 18.º DO DLEI N.º 167-C/2013, DE 31-12
Sumário: I – Na prova pericial, o juízo dos peritos pode ser afastado pelo tribunal, no exercício dos poderes de livre convicção do juiz, embora a divergência deva ser fundamentada.

II – Para a qualificação de IPATH, para além dos exames médicos, o tribunal pode apoiar-se em parecer, por perito especializado, requisitado ao IEFP, no âmbito dos arts. 21.º, n.º 4, da LAT e 18.º do DLei n.º 167-C/2013, de 31-12, caso em que o relatório subscrito por aquele perito constitui documento autêntico (emanado de autoridade pública competente) e goza da presunção de autenticidade e força probatória plena quanto aos factos relativos à autoria do relatório e qualificação profissional do seu subscritor.

III – Para a atribuição de IPATH basta que o sinistrado fique impossibilitado de executar, com caráter permanente, as tarefas que constituem o núcleo essencial da sua atividade profissional, como no caso de um serrador de mármore que, por força das limitações decorrentes das sequelas apresentadas, não mais voltou a desempenhar as respetivas funções, passando a executar tarefas de limpeza e como auxiliar na área de produção, procedendo a limpezas e lubrificação de máquinas.

Decisão Texto Integral:

Apelação n.º 1142/12.5TTLRA.1.C1
(secção social)
Relator: Azevedo Mendes
Adjuntos:
Felizardo Paiva
Paula Roberto


Autor: AA
Ré: L..., SA

   Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Em processo emergente de acidente de trabalho, o sinistrado, com o patrocínio oficioso do Ministério Público e alegando agravamento das lesões, requereu que fosse submetido a exame de revisão às lesões descritas no auto de junta médica realizada em 09/01/2014 e que determinaram que tenha ficado afetado com uma IPP de 56,832% desde 03/05/2013, conforme decidido nos autos.
Procedeu-se à realização de exame de revisão, em cujo relatório se concluiu no sentido do agravamento do quadro clínico do requerente e pela atribuição de uma IPP de 61,4268% (0,409512 x 1,5 = 0,614268), sem atribuição de IPATH.
O sinistrado, discordando do resultado da perícia médica singular na parte em que ali se entendeu que não se encontra afetado de IPATH, requereu a realização de perícia por Junta Médica, a qual teve lugar - com solicitação prévia de parecer técnico ao IEFP - e que concluiu unanimemente no sentido do não agravamento do quadro apresentado em 09/01/2014 e maioritariamente pela não atribuição de IPATH.
Perante esse laudo, a Sr.ª Juíza no tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Verificando-se, dos elementos dos autos, que a atribuição de Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual ao Sinistrado não foi unânime e continuando a Entidade Responsável a questionar essa atribuição, sendo certo que o parecer junto a fls. 190-192 também não corresponde cabalmente a essa questão, entende-se ser de lançar mão do disposto no art. 21º, nº 4 da Lei nº 98/2009, de 4 de setembro, requisitando-se, antes de mais, “parecer prévio de peritos especializados, designadamente dos serviços competentes do ministério responsável pela área laboral”.
Nestes termos, e com vista a determinar se o Sinistrado está (ou não) afetado de Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual, solicite ao Instituto de Emprego e Formação Profissional, I.P., a elaboração e junção aos autos, em 20 dias, de um parecer sobre essa questão de um perito especializado.»

Foi solicitado então novo parecer de perito especializado ao IEFP, em cujo relatório se conclui no sentido da impossibilidade de reconversão do sinistrado no posto de trabalho e pela atribuição de IPATH.
Após, foi proferida a decisão final pelo tribunal a quo onde se decidiu pela revisão e estar o sinistrado afectado com uma Incapacidade Permanente Parcial de 56,832 % com IPATH desde pelo menos 04/10/2019, atribuir ao mesmo sinistrado uma pensão anual e vitalícia de € 5.910,68, devida desde 04/10/2019, a ser paga na proporção de 1/14 até ao 3º dia de cada mês, sendo os subsídios de férias e de Natal, na mesma proporção, pagos em Junho e em Novembro, condenando-se a ré seguradora a pagar-lhe a pensão anual e vitalícia correspondente à diferença entre tal incapacidade com IPATH e a IPP anterior fixada, no valor de € 2.078,93, acrescido dos juros de mora, à taxa legal, vencidos desde 04/10/2019 e vincendos até integral pagamento, bem como a pagar-lhe um subsídio por situações de elevada incapacidade permanente no valor de € 4.817,06, desde 04/10/2019, acrescido dos juros de mora à taxa legal, vencidos desde essa data e vincendos até integral pagamento.
É desta decisão que a ré seguradora vem apelar.
Alegando, conclui:
«1- O presente recurso é interposto da douta Sentença proferida a qual ficou ao trabalhador sinistrado uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) baseada num documento emanado do IEPF e contra o Parecer dos médicos que compõem o Exame médico e a Perícia Colegial
2- A recorrente não se conforma com tal entendimento espelhado na Douta Sentença, que reputa de ilegal desde logo, por ter desprezado, em absoluto, as conclusões periciais dos médicos do Exame Pericial e Junta Médica.
3- Com efeito, o tribunal não apenas não problematizou e equacionou a questão da não imputabilidade clínica mencionada na Junta Médica relativa a IPATH, desde logo descartando, sem o devido fundamento o resultado da Perícia Colegial.
4- Como igualmente se limitou o veredito jurisdicional a “colar-se” a um documento sem se saber quais as qualificações técnicas de quem o elaborou.
5- Ao sinistrado deve-lhe ser atribuída uma Incapacidade Parcial Permanente para o Trabalho descrita no auto pericial e não no parecer do Sr. BB
6- O Exmo. Juiz do Tribunal “a quo” ignorou o resultado da Perícia Colegial.
7- Em lado algum o Tribunal a quo discorreu autonomamente sobre o conteúdo do Relatório Pericial da Junta Médica – limitando-se a o descredibilizar - tendo-se limitado a aderir ao sentido conclusivo e abstrato do documento emanado do IEFP, documento esse, da autoria do Sr. BB.
8- Em rigor, pois, e salvo melhor opinião, a douta Sentença aderiu, sem mais, ao sentido do referido documento ele próprio também intrinsecamente auto conclusivo, sem qualquer caminho motivador/justificador da natureza da incapacidade, o que revela, aparentemente, falta de qualificação de quem o elaborou (pois não se sabe quem foi, nem se sabe se quem o fez foi quem o elaborou), conforme foi referido no requerimento da ora apelante junto aos autos de 15 de novembro de 2021 .
9- O documento do Sr. BB conclui de modo genérico, admitindo uma causalidade hipotética.
10- Por isso, a fundamentação da Decisão, não se coaduna com a aferição correta, clara e inequívoca, do “nexo de não imputação clínica”, já descrito no referido Relatório Pericial Colegial.
11- A qualificação de “incapacidade permanente absoluta” para o “trabalho habitual” é uma qualificação de ordem “clínica” e não “jurídica”.
12- A Douta sentença violou, assim, o disposto o artigo 21º da Lei nº 98/2009 de 4 de setembro e os artigos 607º nº 4 e 5, 615º nº 1 alínea b) do Código de Processo Civil, pelo que a Douta Sentença deverá ser anulada, proferindo-se decisão consentânea com o Grau de Incapacidade Parcial Permanente determinada pela Perícia Colegial. Isto porque:
13- Embora o Juiz embora não tendo conhecimentos técnicos para avaliar o grau de IPP ou IPATH de que o sinistrado é portador – por isso prevê a realização de précias médicas e perícias médicas de especialidade – não está vinculado ao resultado da junta médica, dela podendo afastar-se, conquanto que o faça fundamentadamente. Mas se opta por decisão diferente deverá fundamentar a sua decisão.
14- Ora, essa fundamentação, deve ser convincente, deve estar devidamente sustentada por pareceres de técnicos, comprovadamente, especializados, que, numa análise entendível e, ainda plausível e verdadeira refira conclusões que põem de modo também irremediável, o resultado de uma Perícia.
15- A fundamentação concreta, lógica e razoável, da razão pela qual opta pelo parecer do Sr. BB, não foi descrita na douta sentença.
16- Na fundamentação da douta sentença, não está referenciada a explicação porque não segue o entendimento dos Senhores Peritos e dá primazia absoluta a um senhor de nome BB.
17- A douta sentença baseia a sua convicção, mas não fundamenta as razões pelas quais optou pelo parecer do Sr. BB, que, como se disse:
18- Não se sabe se o Senhor Técnico Superior tem experiência na análise deste tipo de situações;
19- Não se sabe se o Sr. Técnico Superior é “técnico especializado” conforme exige o artigo 21 nº 4 da Lei 98/2009 de 4 de setembro, nem se sabe o contexto em que foi elaborado o alegado aditamento, nem se sabe com quem, o Sr. Técnico Superior, conversou (identidade), nem se sabe se o Sr. Técnico Superior tem alguma relação com o sinistrado (amigo, familiar, conhecido…!!!!), nem se sabe se quem escreveu o documento “Aditamento” foi quem o assinou.
Termos em que,
Atentos os fundamentos e conclusões ex ante expostos, deverá ser dado provimento ao presente Recurso e nessa medida revogar-se a Douta Sentença, devendo nessa medida ser substituída por outra que fixe uma Incapacidade Parcial Permanente como resulta da resposta aos quesitos formulados na Perícia Médica (Junta Médica), com todas as legais consequências, com o que se fará a devida, JUSTIÇA.»

O sinistrado, patrocinado pelo Ministério Público, respondeu ao recurso interposto, manifestando-se pela sua improcedência.
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II- Apreciação
1. Factos considerados pela 1.ª instância:
No despacho de que se recorre, foram considerados provados os seguintes factos:
a) AA nasceu no dia .../.../1963;
b) No dia 09.11.2011 trabalhava como serrador de mármore sob as ordens, direção e fiscalização da sociedade “E..., Lda.”, com sede em ..., ..., ... ..., auferindo o salário base de 600,00 € x 14 meses + 5,09 € x 22 dias x 11 meses de subsídio de alimentação, no total anual de 9.631,78 €;
c) Na data referida em b), quando o sinistrado se encontrava a serrar pedra numa máquina, foi atingido nos dedos da mão esquerda, vindo a sofrer as lesões e sequelas descritas no auto de junta médica junto aos autos a fls. 142-144, em consequência das quais ficou afetado com uma Incapacidade Permanente Parcial de 56,832% (0,37888 x 1.5 = 0,56832) desde 03/05/2013, dia imediato ao da alta clínica;
d) Desde a data da alta clínica, e por virtude das limitações decorrentes das sequelas apresentadas para desempenhar tarefas na área da serragem de pedra, o sinistrado não mais voltou a desempenhar as funções de cortador de mármore, executando tarefas de limpeza e outras compatíveis com as suas limitações, tendo sido integrado, após a insolvência da E..., na empresa T..., como auxiliar na área de produção, desenvolvendo tarefas de limpeza do envolvente e limpeza e lubrificação de máquinas;
e) Na data referida em b), a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho de AA encontrava-se transferida pela “E..., Lda.” para a “L..., SA”, através de contrato de seguro titulado pela Apólice nº ...74, pelo salário referido em ii).
*

            2. Análise do recurso
É pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação.

Decorre do exposto que as questões que importa dilucidar e resolver se podem equacionar da seguinte forma:
- se está correcta a apreciação que conduziu à atribuição de incapacidade permanente e absoluta para o exercício da profissão habitual;
- se, concluindo-se que o sinistrado não está afectado de IPATH, deve ser alterada a sentença.
Importa antes de mais referir que a apelante não enuncia qualquer pedido que consubstancie impugnação da matéria de facto fixada pelo tribunal a quo e acima transcrita. Não o faz nas alegações nem nas conclusões do recurso, sendo certo que tal impugnação sempre obrigaria ao cumprimento do ónus mencionado no art. 640.º do Código de Processo Civil, designadamente quanto à especificação dos concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, cumprimento que não se mostra verificado.
Por conseguinte, o que verdadeiramente se coloca antes de mais no recurso, o que a apelante pretende, é a reavaliação da decisão que conduziu à atribuição de IPATH, decisão essa que não é tomada na parte da pronúncia sobre a matéria de facto provada, mas antes na parte da pronúncia sobre o direito aplicável ao caso.
Ou seja, a apelante sustenta que os elementos dos autos não permitiam que a 1.ª instância tivesse concluído pela IPATH, perante o laudo maioritário dos peritos e perante a insuficiência do laudo do IEFP.
A decisão da 1ª instância, contém as seguintes partes de fundamentação quanto a esta matéria, expostas em duas distintas partes da sentença:
«(…)  já quanto à atribuição de IPATH, considerou-se o referido no primeiro auto de junta médica (fls. 194), no sentido (unânime) de que as sequelas que o sinistrado apresenta são incompatíveis com as funções de cortador/serrador de mármore, e que no 2º auto (fls. 202) pese embora se refira que o sinistrado teria mantido a mesma profissão com as funções adaptadas à sua incapacidade, e por isso reconvertido, nada se diz sobre quais as funções concretas para as quais foi adaptado (fls. 202), coadjuvado com o teor dos pareceres do IEFP (que se afiguram devidamente fundamentados, nada nos permitindo pôr em causa a sua credibilidade, mormente no que concerne às concretas funções exercidas pelo sinistrado após o acidente), dos quais decorre o sinistrado, após o acidente, não voltou a exercer as funções de serrador de mármore que tinha quando ocorreu o acidente, mas outro tipo de tarefas (de limpeza e outras compatíveis com as suas limitações), donde se extrai a sua não reconvertibilidade no posto de trabalho, e que as sequelas apresentadas pelo sinistrado eram incompatíveis com as exigências, em particular físicas, requeridas pelo desempenho da sua profissão habitual de cortador de mármore (em consonância com a posição unânime manifestada pelos Srs. peritos médicos na perícia colegial realizada).
Considera-se, ainda, ao contrário do referido no (2º) auto de junta médica, que ainda que o sinistrado tivesse sido adaptado em outras funções, tal facto seria sempre uma consequência do facto de estar afetado com IPATH e nunca motivo justificativo para a sua não atribuição.»

E mais adiante:
«Conforme resulta dos factos provados, à data do acidente, o sinistrado exercia, sob as ordens, direção e fiscalização da sociedade “E..., Lda.”, a profissão de serrador de mármore.
A junta médica, por unanimidade, considerou que se mantinha a IPP anteriormente fixada, isto é, que o sinistrado, por força do acidente dos autos, ficou permanentemente afetado em 56,832% na sua capacidade de ganho, e que as sequelas que apresentava eram incompatíveis com as funções que desempenhava à data do acidente como serrador de mármore.
Como é consabido, o “trabalho habitual” é o conjunto de funções exercidas habitualmente pelo trabalhador no âmbito do posto de trabalho que ocupa, no contexto do contrato de trabalho que celebrou (vide, neste sentido, v.g., Acórdão da Relação de Évora de 16.04.2015, P. nº 6/14.7TTPTG.E1, disponível em www.dgsi.pt).
No caso, o trabalho habitual do sinistrado era o de serrador de mármore, e foi no exercício dessas funções que sofreu o acidente de trabalho em causa nestes autos.
Por sua vez, a IPATH «é uma incapacidade de 100% para a execução do trabalho habitual do sinistrado, no desempenho da sua específica função, atividade ou profissão, mas que deixa uma capacidade residual para o exercício de outra atividade laboral compatível, permitindo-lhe alguma capacidade de ganho, todavia, uma capacidade de ganho, em princípio, diminuta (vide, neste sentido, Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, p. 96).
Já a reconversão em relação ao posto de trabalho implica o “regresso do sinistrado ao desempenho das funções que tinha quando ocorreu o acidente, apesar das limitações em termos de capacidade que trabalho que do mesmo decorreram. Pode, assim, afirmar-se que um trabalhador que foi vítima de um acidente de trabalho é reconvertido em relação ao posto de trabalho que tinha antes do acidente quando o pode retomar, apesar das limitações funcionais de que seja portador em consequência do acidente sofrido.
Quando esse regresso não seja possível, quando essa retoma não seja possível, o trabalhador não é suscetível de reconversão nesse posto de trabalho” (vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 10/2014 de 30-06-2014).
In casu, por força das lesões e sequelas que padece, o sinistrado está absolutamente incapacitado de exercer as funções de serrador de mármore, que exercia à data do acidente (posição unanimemente reconhecida), não tendo sido reconvertido no seu posto de trabalho; efetivamente, da matéria factual provada extrai-se que o sinistrado, desde a data da alta clínica, em 03/05/2013, passou a executar tarefas de limpeza e outras compatíveis com as suas limitações, tendo sido integrado, após a insolvência da E..., na empresa T..., como auxiliar na área de produção, desenvolvendo tarefas de limpeza do envolvente e limpeza e lubrificação de máquinas.
E a ocupação deste destas novas funções, como bem refere o Ministério Público, é uma decorrência do estado em que ficou por força do acidente sofrido.
Como se diz no mencionado Acórdão do STJ, “na linha da jurisprudência definida nesta secção, os casos de IPATH são situações típicas de não reconvertibilidade do sinistrado em relação ao seu anterior posto de trabalho”.
E isto, mesmo que não tenha havido um agravamento da incapacidade permanente do sinistrado, porque este, com essa incapacidade, como decorre dos autos, nunca esteve apto para realizar o mesmo trabalho, fixando-se agora a IPATH mesmo sem agravamento das sequelas.»

Vejamos:
Em incidente de revisão da incapacidade, dispõe o art. 145.º n.º 5 do Código de Processo do Trabalho que, realizado o exame por junta médica “e efectuadas quaisquer diligências que se mostrem necessárias, o juiz decide por despacho, mantendo, aumentando ou reduzindo (...) ou declarando extinta a obrigação”
Como é nossa jurisprudência constante, na decisão a proferir é ao juiz que cabe fixar a natureza e o grau de desvalorização e nessa decisão deve lançar mão dos pareceres dos peritos médicos existentes nos autos, seja em exame singular, seja em junta médica, ou mesmo de exames e pareceres complementares que entenda mandar proceder ou requisitar, sendo certo que a força probatória desses pareceres periciais é fixada livremente pelo tribunal, no quadro do disposto no art. 389.º do Código Civil.
Como refere Leite Ferreira, (Código de Processo do Trabalho Anotado, 4.ª ed. pág. 627) “as asserções e conclusões dos peritos, ainda que emitidas por unanimidade, não vinculam o julgador. O princípio da livre apreciação das provas ou da prova livre tem aqui perfeito cabimento. Por isso, pode o magistrado exercer sobre elos a sua actividade crítica, movendo-se, na sua apreciação, com inteira liberdade e sem outros limites que não sejam os que lhe são impostos pela sua convicção íntima ou pelo seu próprio juízo. Nada obsta, pois, a que o julgador se desvie do parecer dos peritos. Apenas se exige, neste caso, que deixe consignada nos autos a sua motivação, isto é, os fundamentos ou razões por que o faz”.
O exame por junta médica previsto nos art. 139.º ou 145.º do CPT, inscreve-se no âmbito da denominada prova pericial, regendo-se para além do disposto naquelas normas, também pelas que no Código de Processo Civil disciplinam este meio de prova. A prova pericial tem por fim, conforme art. 388.º do Código Civil “a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem” ou quando os factos “relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”. Conforme escreveu o Professor Alberto dos Reis, “o verdadeiro papel do perito é captar e recolher o facto para o apreciar como técnico, para emitir sobre ele o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem” (in Código do Processo Civil Anotado, vol. IV, p. 171).
Não obstante o perito dispor de conhecimentos especiais que o julgador não possui, a sua função é a de auxiliar do tribunal no julgamento da causa, facilitando a aplicação do direito aos factos, não impedindo isso que seja “um agente de prova e que a perícia constitua um verdadeiro meio de prova”, como referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, 1984, p. 578.
Ou seja, o juízo pericial está muitas vezes entre o facto simples e a norma técnica de recorte jurídico, entre o reconhecimento dos factos simples e o seu enquadramento nas normas a aplicar.
É por isso também que, conforme estatuído na lei, a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal (art. 389.º do Código Civil e 607.º n.º 5 do Cód. Proc. Civil). Como defendem aqueles autores “apesar de a resposta do perito assentar, por via de regra, em conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, é ao tribunal, de harmonia com o prudente arbítrio dos juízes, que se reconhece o poder de decidir sobre a realidade do facto a que a perícia se refere. Parte-se do princípio que aos juízes não é inacessível o controlo do raciocínio que conduz o perito à formulação do seu laudo e de que lhes é de igual modo possível optar por um dos laudos ou por afastar-se mesmo de todos eles, no caso de frequente divergência entre os peritos” (op. cit., p. 583).
A aplicação do princípio da livre apreciação da prova à prova pericial foi igualmente objecto de exaustiva apreciação por parte do Professor Alberto dos Reis, para concluir “é dever do juiz tomar em consideração o laudo dos peritos; mas é poder do juiz apreciar livremente esse laudo e portanto atribuir-lhe o valor que entenda dever dar-lhe em atenção à análise critica dele e à coordenação com as restantes provas produzidas. Pode realmente, num ou noutro caso concreto, o laudo dos peritos ser absorvente e decisivo (...); mas isso significa normalmente que as conclusões dos peritos se apresentam bem fundamentadas e não podem invocar-se contra eles quaisquer outras provas; pode significar também que a questão de facto reveste feição essencialmente técnica, pelo que é perfeitamente compreensível que a prova pericial exerça influência dominante” (op. cit., p. 185/186).
Na prolação da decisão para fixação da incapacidade o juiz não pode deixar de servir-se da prova obtida por meios periciais, isto é, o exame feito pela junta médica e o exame médico singular realizado na fase de conciliação. É o que decorre do art. 145 n.º 5 do Código de Processo Civil, quando diz que a decisão é proferida realizadas as perícias médicas. Mas tal não significa que o julgador está vinculado ao parecer dos peritos, já que o princípio da livre apreciação da prova permite-lhe que se desvie do parecer daqueles, seja ele maioritário ou unânime. Como já se disse, porém, quer adira ou quer se desvie, por a ele caber na sua livre convicção decidir, é-lhe sempre exigido que deixe expressa a sua motivação, isto é, os fundamentos ou razões por que o faz.
Como refere Alberto Vicente Ruço (in Prova e Formação da Convicção do Juiz, Coleção Casa do Juiz, 2016, pag. 278) “para o juiz divergir da prova pericial terá de mostrar, por exemplo, que a mesma sofre de vícios de procedimento que afectam os resultados; que aqueles resultados podem ter outras outras causas ou que não se seguem das premissas que constam do relatório” e “por isso, o relatório pericial deve conter sempre, e às vezes não contém, as premissas que conduziram à conclusão, sob pena de não se possível divergir dele”.
E foi uma verdadeira motivação de divergência que o tribunal a quo exerceu, a nosso ver exaustiva e convincentemente.
A apelante, no recurso, convoca a opinião maioritária da junta médica no sentido da não atribuição da IPATH como aquela que deveria ter sido atendida, desvalorizando o relatório pericial do IEFP.
Nos seus argumentos, teremos de descontar qualquer valia ao que parece ser um ataque pessoal ao técnico que subscreveu aquele relatório do IEFP, num uso de argumentação que associa o não saber “quais as qualificações técnicas de quem o elaborou”, nomeando-o várias vezes pelo nome “Sr. BB”, à afirmação que a sentença “dá primazia absoluta a um senhor de nome BB” e revelar o relatório “aparentemente, falta de qualificação de quem o elaborou (pois não se sabe quem foi, nem se sabe se quem o fez foi quem o elaborou)” e de que não “se sabe se o Sr. Técnico Superior tem alguma relação com o sinistrado (amigo, familiar, conhecido…!!!!), nem se sabe se quem escreveu o documento “Aditamento” foi quem o assinou” (em itálico são transcrições de trechos escritos nas conclusões do recurso).
Efectivamente, um primeiro parecer, por perito especializado, e um aditamento ao mesmo foram pedidos pelo tribunal a quo (despachos de 19-11-2020 e 03-09-2021) ao Instituto do Emprego e da Formação Profissional, I. P. (IEFP), no quadro do previsto nos arts. 21.º n.º 4, 154.º e 159.º n.º 1 da LAT (Lei dos Acidentes de Trabalho – Lei n.º 98/2009, de 4/9) e no âmbito das competências daquele Instituto público previstas no art. 18.º do DL n.º 167-C/2013, de 31 de Dezembro.
Significa isto que o tribunal, no âmbito dos seus poderes de iniciativa oficiosa, pediu a um serviço oficial uma concreta perícia, tal como o permitem as normas apontadas, o n.º 4 do art. 145.º do CPT (realização de “diligências que se mostrem necessárias”) e o n.º 1 do art. 467.º do CPCivil (requisição de perícia a “serviço oficial apropriado”).
O IEFP, o serviço oficial com a competência legal apropriada, respondeu a essa perícia enviando o relatório subscrito por técnico identificado como “perito especializado com competências na área do emprego, reabilitação”.
Segue-se que os documentos relacionados com os pareceres em questão devem ser considerados como documentos autênticos (art. 369.º n.º 1 do Código Civil) porque emanados de autoridade pública competente, e gozam da presunção de autenticidade e força probatória plena quanto aos factos atestados com base na percepção da entidade documentadora, embora já não quanto aos meros juízos pessoais os quais só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador (arts. 370.º e 371.º do Código Civil).
Ora, a ré que agora ataca a perícia e o perito no recurso, como já antes o tinha feito no processo (a fls. 207 e segs. do processo em registo de papel), não suscitou qualquer incidente de falsidade (371.º do Código Civil) do documento do IEFP na parte que identifica a qualidade do “perito especializado com competências na área do emprego, reabilitação” e a autoria do parecer, nem requereu qualquer incidente de suspeição como o poderia ter feito nos termos do disposto no n.º 1 do art. 470.º do CPCivil.
Não o tendo feito, não podem aceitar-se no recurso os argumentos de desqualificação pessoal que apresenta para desvalorizar o parecer do IEFP.
Dito isto, não pode também aceitar-se o argumento da apelante de acordo com o qual «a qualificação de “incapacidade permanente absoluta” para o “trabalho habitual” é uma qualificação de ordem “clínica” e não “jurídica”».
A qualificação em causa comporta, como já ficou dito, uma base de facto determinada pericialmente mas sujeita à livre apreciação do juiz e uma apreciação de conformidade normativa com o conceito de trabalho habitual. A qualificação final é, portanto, de índole jurídica, do domínio da conformidade normativa.
É que como vem sendo afirmado pela jurisprudência, a atribuição de IPATH não implica até que o sinistrado fique absolutamente incapaz de exercer todas as tarefas inerentes ao posto de trabalho que desempenhava antes do acidente. Basta que o mesmo fique impossibilitado de poder executar, com carácter permanente, as tarefas que constituem o núcleo essencial da sua atividade profissional.
Assim, no Acórdão da Relação de Guimarães, de 17-12-2019 (proc. 1185/16.0T8BGC.G1, in www.dgsi.pt), bastante citado, é referido que  a “determinação da existência, ou não, de IPATH nem sempre é fácil, sendo certo que, por vezes, poderá ser ténue a fronteira entre esta e uma vulgar IPP, impondo-se a avaliação da repercussão desta na (in)capacidade para o sinistrado continuar a desempenhar o seu trabalho habitual, correspondendo este às funções fulcrais e que predominante desempenhava à data do acidente”. E que o “exercício do trabalho habitual corresponde à execução de um conjunto de tarefas que constituem o núcleo essencial de determinada atividade profissional, sendo necessariamente de concluir que o sinistrado fica afetado de IPATH quando as sequelas de que padece, resultantes do acidente apenas permitem desempenhar funções meramente residuais ou acessórias do trabalho habitual que não permitiram a quem quer que fosse que com essas tarefas pudesse manter essa mesma profissão/trabalho habitual”.
Como também refere Carlos Alegre (in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª edição, página 96, a propósito da IPATH: “trata-se de uma incapacidade de 100% para a execução do trabalho habitual do sinistrado, no desempenho da sua específica função, atividade ou profissão, mas que deixa uma capacidade residual para o exercício de outra atividade, laboral compatível, permitindo-lhe alguma capacidade de ganho, todavia, uma capacidade de ganho, em princípio diminuta”.
Por conseguinte, a linha jurisprudencial de acordo com a qual a IPATH deve ser atribuída quando o sinistrado não pode executar o núcleo essencial das tarefas que anteriormente exercia foi a linha seguida pelo tribunal recorrido.
Foi dado como provado, sem impugnação da ré no recurso, que o sinistrado trabalhava antes do acidente como serrador de mármore e que desde a data da alta clínica, e por virtude das limitações decorrentes das sequelas apresentadas para desempenhar tarefas na área da serragem de pedra, o sinistrado não mais voltou a desempenhar as funções de cortador de mármore, passando a executar tarefas de limpeza e outras compatíveis com as suas limitações e também como auxiliar na área de produção, desenvolvendo tarefas de limpeza do envolvente e limpeza e lubrificação de máquinas.
O primeiro laudo pericial da junta médica, no incidente de revisão, a fls. 194, considerou que as sequelas que o sinistrado apresenta são incompatíveis com as funções que desempenhava à data do acidente como serrador de mármore, mas não lhe atribuiu IPATH porque, nas palavras ditas, o mesmo sinistrado afirmou aos peritos da junta que tinha “sido reconvertido ao seu posto de trabalho”. O segundo laudo de esclarecimento, manteve no essencial esta apreciação (fls. 202).
E foi este claro vício intelectivo, manifesto numa conclusão que não se apoia na premissa que consta do laudo, que a sentença veio dar recorte para divergir da não atribuição da IPATH, optando antes por decidir por essa atribuição.
É muito claro, no caso dos autos, que o sinistrado não foi reconvertido nas mesmas funções que antes desempenhava, ainda que com limitações, mas foi colocado ou afecto a outras funções bem distintas.
E se assim foi, e se a junta médica afirmou que as sequelas do acidente são incompatíveis com as funções que o sinistrado desempenhava à data do acidente como serrador de mármore, a qualificação da incapacidade como IPATH está absolutamente correcta.

Em consequência, a apelação deve improceder.


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Sumário:
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III- DECISÃO

Termos em que se delibera julgar improcedente a apelação.

Custas no recurso pela apelante.

   Coimbra, 27 de Maio de 2022
 
(Luís Azevedo Mendes)
(Felizardo Paiva)
(Paula Roberto)