Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1249/16.0T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: DEVER DE APRESENTAÇÃO DE RELATÓRIO ANUAL
OMISSÃO
CONSEQUÊNCIAS
ENTREGA DO RENDIMENTO MENSAL DISPONÍVEL
INTERPELAÇÃO
Data do Acordão: 01/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 59.º, N.º 1, 60.º, 239.º, N.º 4, 240.º, 241.º, N.º 1, 242.º, N.º 2, 243.º, N.º 1, 244.º, N.º 2, DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO).
Sumário: I) Ao não apresentar os relatórios anuais referentes a 4 anos, limitando-se a apresentar um relatório final global, o fiduciário faltou ao dever imposto pelo artigo 240.º, n.º 2, do CIRE, podendo, por tal, ser responsabilizado nos termos do artigo 59.º, n.º 1, do CIRE.

II) A obrigação de entrega do rendimento mensal disponível não se encontra dependente de qualquer interpelação ou liquidação anual por parte do fiduciário ou do tribunal, sendo o devedor obrigado a, mensalmente e imediatamente, assim que lhe é processado o vencimento desse mesmo mês, proceder à entrega da parte que exceda o valor que foi autorizada a reter para a sua subsistência.

III) Dispondo a devedora de todos os elementos necessários ao cálculo dos montantes a ceder, o facto de o fiduciário ter posteriormente incumprido o dever de apresentação anual do relatório previsto no art. 241.º, n.º 2 do CIRE, não é suficiente para afastar o juízo de negligencia grosseira que recai sobre o comportamento da devedora que nenhuma entrega efectuou durante os cinco anos da cessão, nem para tal apresentou qualquer justificação.

Decisão Texto Integral:



                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Declarada a insolvência de A., foi, por despacho de 24 de maio de 2016, admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, fixando o valor necessário para o sustento da insolvente em um salário mínimo nacional e a obrigação de ceder ao fiduciário o rendimento disponível que a insolvente viesse a auferir.

Nesse mesmo despacho, foi ainda decretado o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa, nos termos do artigo 230º, nº1, al. d), do CIRE, dando início ao período de cinco anos da cessão.

A 16 de junho de 20121, o Fiduciário vem apresentar o “Relatório Anual Fiduciário – 240º/2 CIRE”, informando que terminado o período de cessão de rendimentos e não resultando qualquer entrega por parte da insolvente, não poderá ser ressarcido do montante das suas despesas com o processo e remuneração pelo exercício das suas funções, pelo que requer a fixação e posterior liquidação pelo IGFIJ a quantia de 300 €/ano, acrescida de IVA; mais considerando que a insolvente não está a cumprir com as obrigações que lhe estão adstritas, nomeadamente do art. 239º, 4, al. c), deverá ser notificada para esclarecer os motivos que levaram ao referido incumprimento.

Junta informação fixando o valor do incumprimento em 12.756,00 €, acompanhada das comunicações efetuadas à devedora e mapa de pagamentos referentes aos anos de 2016 a 2012.

Notificada de tal requerimento, bem como para os efeitos previstos no artigo 244º do CIRE, a insolvente vem pronunciar-se no sentido de se encontrarem reunidos os pressupostos para a concessão da exoneração do passivo restante:

não percebe as razões pelas quais não foram levados a cabo contactos ou elaboração de relatórios anuais, vindo agora a ser surpreendida por um relatório relativo a todo o período de cessão (5 anos ou 60 meses) e com um valor em dívida que manifestamente não consegue liquidar;

entre setembro de 2016 e Maio de 2021 o processo não foi tramitado, sendo que, assim que foi contactada para o efeito, em junho de 2021, denotou máxima preocupação, tendo remetido todos os recibos bem como as declarações de IRS, da mesma forma que manteve ocupação laboral adequada e informou também da mudança de morada;

como não mais recebeu qualquer contacto e o tempo foi passando e com despesas acrescidas no combate à pandemia (máscaras, luvas, álcool gel, etc.), não tem condições objetivas de liquidar tal quantia;

a sua situação económico financeira não lhe permitiu efetuar pagamentos sem colocar em causa a sua própria subsistência;

havendo alguns meses em que não atingiu tal retribuição mínima (Abril, Maio e novembro de 2020) em que não atingiu tal retribuição mínima, terá de haver abatimento de tal diferença, não sendo as contas apenas de somar.

Foi proferido Despacho a decidir não conceder a exoneração do passivo restante à insolvente.


*

Inconformada com tal decisão, a Insolvente dela interpõe recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
(…)
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se é de alterar a decisão recorrida que negou a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, pela seguinte ordem de razões:
a. Existência de culpa grave – concorrência de culpas por parte do Fiduciário, do Ministério Público e do Tribunal.
b. Inconstitucionalidade dos artigos 241º, nº1 e 244º, nº2, do CIRE.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O artigo 235º do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas)[1] atribui ao devedor que seja uma pessoa singular a possibilidade de lhe vir a ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Ou seja, em linguagem comum, como afirma Assunção Cristas, “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente[2]”.
Trata-se, assim, de uma “versão bastante mitigada”[3] do modelo do fresh start, na medida em que, a seguir à liquidação, decorre um “período probatório” de cinco anos, durante o qual o devedor deverá afetar o seu rendimento disponível ao pagamento das dívidas aos credores que não foram integralmente satisfeitas no processo de insolvência. Só depois de decorrido tal período e se a sua conduta tiver sido exemplar, poderá o devedor requerer a exoneração, obtendo, assim, o remanescente não pago.
Como consta do Preâmbulo não publicado do Decreto-Lei que aprova o Código da Insolvência[4], “A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o credor permaneça, durante um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume entre várias outras obrigações a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (…), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, e tendo o devedor adoptado um comportamento liso para com os credores, cumprindo todos os deveres que sob ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor de eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento”.
Tratando-se de um benefício concedido pelo legislador, o devedor terá de se esforçar por merecer a concessão do mesmo – perdão total das dívidas não integralmente satisfeitas – e aquela dependerá da efetiva cedência do “rendimento disponível”, tal como se acha definido no nº3 do art. 239º do CIRE, durante o período de cinco anos posterior ao encerramento do processo de insolvência.
A concessão de tal benefício surge como a contrapartida do sacrifício do devedor que, durante o período de cessão se encontra sujeito, entre outras, à obrigação de “exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado” e à obrigação de “entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão” – als. b) e c), do nº4 do art. 239º.
Expostos os motivos e objetivos que subjazem à consagração de tal instituto, passemos à análise da concreta questão objeto do presente recurso, respeitante à determinação sobre se o comportamento da insolvente, ao longo do tempo recorrido desde o início do período da cessão, justifica a concessão ou não da exoneração do passivo restante.
Dispõe o artigo 244º do CIRE, sobre a “Decisão final da exoneração”:
1. Não tendo havido lugar à cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência.
2. A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
Remetendo o nº2 de tal norma para os fundamentos e requisitos previstos para a cessação antecipada, dispõe a tal respeito o artigo 243º do CIRE, que a exoneração deve ser recusada, nomeadamente, quando “o devedor tiver dolosamente ou com grave negligencia, violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência”.
O despacho recorrido veio a negar a exoneração do passivo restante, por violação do dever de cessão do rendimento disponível, com base nas seguintes considerações:
“(…) Quanto às obrigações previstas no artigo 239.º cuja violação está em causa no presente incidente a obrigação do devedor em entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos rendimentos objeto de cessão [alínea c) do n.º 4].
Resulta da alínea a) do n.º 1 do artigo 243.º que a violação das obrigações impostas pelo artigo 239.º constituirá fundamento da recusa da exoneração do passivo restante quando tal violação for imputável aos devedores título de dolo ou de negligência grave e quando a violação prejudicar a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
A violação será imputável a título dolo quando o devedor não cumprir as obrigações de forma consciente e intencional.
A violação será cometida com grave negligência quando, em face das circunstâncias do caso, só um devedor especialmente descuidado no cumprimento das suas obrigações é que não teria cumprido as obrigações que lhe são impostas. Cita-se em abono desta interpretação Assunção Cristas que  escreve a este propósito o seguinte: “De acordo com os ensinamentos tradicionais da doutrina, que distingue entre culpa grave, culpa leve e levíssima, a negligência grave ou negligência grosseira corresponderá à conduta do agente que só seria susceptível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, actuando a maioria das pessoas de modo diverso” [Exoneração do Passivo Restante, página 171, nota 6, publicado na Revista Themis, 2005, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência].
Por sua vez a violação das obrigações prejudica a satisfação dos créditos sobre a insolvência quando por esse facto os credores deixarem de obter o pagamento, total ou parcial, dos créditos que lhe foram reconhecidos.
Interpretando o n.º 2 do artigo 244.º do CIRE combinado com a alínea a) do n.º 1 do artigo 243.º e com a alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º com o sentido acima exposto, podemos dizer que não procede a alegação da devedora de que a falta de entrega dos rendimentos objeto da cessão, em todos os 5 anos de cessão, não é passível de censura ético-jurídica.
Com efeito, e não obstante seja verdade que o senhor Fiduciário não deu cumprimento à obrigação anual prevista no artigo 240.º, n.º 2, parte final, do CIRE, não é menos verdade que a obrigação contida no artigo 239.º, n.º 4, alínea c), do CIRE não depende do cumprimento daquela. Ou seja, tal como resulta da citada disposição legal, a devedora encontrava-se obrigada a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos rendimentos objeto de cessão, sendo que, em face das notificações efetuadas nestes autos do despacho inicial de exoneração e de encerramento do  processo de insolvência (de 24.05.2016), tanto a mesma como o seu Ilustre mandatário eram conhecedores, não só da referida obrigação, como do início da mesma.
Por outro lado, o alegado acréscimo de despesa que terá suportado em virtude da situação pandémica entretanto ocorrida (máscaras, luvas, álcool-gel, etc.), para além de não resultar concretamente demonstrado (nem sequer no seu quantum), não afeta os anos anteriores a 2020, ou seja, aos 1.º, 2.º, 3.º anos e mais de metade do 4.º ano de cessão de rendimentos, não se logrando concluir terem-se tratado de despesas necessárias a um sustento minimamente digno da devedora, a ponto de terem de ser excluídas do cálculo do rendimento disponível.
Por fim, e tal como se pode verificar através do quadro dos rendimentos auferidos pela devedora insolvente ao longo dos 5 anos de cessão, apresentado pelo senhor Fiduciário com o relatório final de fidúcia (cf. fls. 104 e v.º), a devedora insolvente aufere mensalmente rendimentos fruto do seu trabalho prestado por conta de outrem, não se justificando qualquer ponderação da sua média anual para cálculo do rendimento indisponível.
Tal como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra, de 28.3.2017, publicado em www.dgsi.pt, «sempre que há entradas de rendimentos no património do devedor (periódicas, esporádicas ou ocasionais), coloca-se a questão do apuramento do rendimento disponível a ceder ao fiduciário. E a resposta a tal questão, quando o apuramento se fizer por força da combinação do corpo do nº 3 com a alínea b), i), do artigo 239º, não pode deixar de ter por referência o rendimento disponível de um determinado período. No caso, o período de referência é o de um mês».
Há incumprimento doloso quando ele é intencional e consciente. São pressupostos desta intencionalidade e consciência o conhecimento, do devedor, da parte dos seus rendimentos que são objeto de cessão e o conhecimento da obrigação de os entregar imediatamente ao fiduciário.
No caso, é patente que o incumprimento da obrigação em causa ocorreu, pelo menos, com grave negligência da devedora insolvente, dado que, como já acima se referiu, a mesma era conhecedora (ou tinha obrigação de ser conhecedora) da obrigação em causa e, mesmo assim, não agiu em conformidade.
(…)”
Insurge-se a Apelante contra o decidido com base nas seguintes ordens de razões:
- a falta de pagamentos durante os cinco anos da cessão não é devida apenas a culpa sua, mas também do Tribunal, do Ministério Público e do Administrador de Insolvência, uma vez que nunca foi interpelada para proceder a qualquer entrega ou notificada da liquidação das quantias a entregar;
- a situação de confiança depositada na ausência de interpelação/notificação para entrega dos recibos de vencimento, nem efetuada a liquidação do que teria de entregar, bem como a ausência de relatórios anuais, foi decisiva para a sua situação de incumprimento;
- tendo agora despesas acrescidas, e dado o valor acumulado, não tem condições para liquidar tal quantia, indevidamente contabilizada por referência ao total dos cinco anos;
- há alguns meses (abril, maio e novembro de 2020) que não atingiu a remuneração mínima, havendo que proceder ao abatimento da diferença;
- inconstitucionalidade dos artigos 241º, nº1 e 244º, nº2, da CRP.
1. Inexistência de culpa grave – concorrência de culpa dos demais intervenientes processuais
Segundo as disposições conjugadas dos artigos 243º, nº1, al. a), e 239º, nº4, alíneas a) e c), CIRE, antes de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, “quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligencia violado algumas das obrigações impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência”, entre as quais, se destaca a de “Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objetos da cessão”.
A decisão recorrida veio a recusar a concessão da exoneração do passivo restante por violação da obrigação prevista na alínea a), do n.º 1 do artigo 243.º, do CIRE, ou seja, violação com grave negligência da obrigação imposta pelo artigo 239.º, n.º 4, alínea c) – não entrega ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão, prejudicando assim a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Verificada a violação da obrigação contida na al. a) do nº1 do artigo 243º – entrega ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão – e não pondo em causa que tal obrigação foi incumprida, insurge-se a Apelante contra o decidido invocando a existência de “causas desculpantes” resultantes da conculpabilidade do Ministério Publico, do Tribunal e do fiduciário, alegando não ter procedido à entrega de qualquer quantia por não lhe ter sido efetuada a interpelação/notificação para entrega do recibos de vencimento, nem efetuada a liquidação do que teria de entregar, não tendo sido elaborados os relatórios anuais ao final de cada ano da cessão. Justificando o tribunal a quo que a insolvente não cumpriu o dever que estava obrigada em nome do despacho inicial bem como de uma alegada comunicação inicial, tal missiva não se mostra junta aos autos, nem comprovativo de envio ou receção (consta apenas junta a de 01 de Junho de 2021!), desconhecendo a insolvente o teor de tal comunicação e a morada para onde tenha sido remetida pois não tem memória de alguma vez a ter recebido, sendo certo que tão-pouco tinha o NIB/IBAN da massa insolvente para proceder a algum pagamento, que nunca foi sequer apurado nem liquidado pela entidade a quem competia tal tarefa; não sendo a insolvente a única ou a maior culpada, não se vê como possa a mesma ter atuado com negligência grave.
Não podemos dar razão à Apelante.
É verdade que, adotando um comportamento omissivo e censurável, o fiduciário não deu cumprimento à obrigação de apresentação do Relatório Anual, resultante das disposições conjugadas dos artigos 240º, nº1 e nº1 do artigo 60º do CIRE – dever de, anualmente, a contar da sua nomeação, prestar informação sucinta sobre os rendimentos cedidos e o estado dos pagamentos feitos, informação esta que deve ser enviada ao juiz e a cada um dos credores da insolvência.
Mais se reconhece que, embora este dever de informação tenha por destinatário o juiz e os credores, o cumprimento do mesmo tem a vantagem de, no final de cada ano, deixar claro nos autos qual o estado da cessão, permitindo igualmente ao devedor saber com exatidão quais os valores que, no entender do fiduciário/tribunal, deveria ter cedido, e se se encontra em falta relativamente a alguns deles.
Mais se admite que, nalguns casos, a intervenção/colaboração do fiduciário junto do devedor pode mesmo ter de ir para além da prestação desta informação anual, sempre que se levantem dúvidas com a contabilização dos rendimentos que integrarão a parte disponível e a indisponível, ou a determinação dos montantes a ceder se encontre dependente de formas de cálculo mais complexas, como será o caso de trabalhadores por conta própria ou que, trabalhando por conta de outrem, cumulem com rendimentos provenientes de outras fontes.
Contudo, não é este o caso em apreço:
- Proferido, a 24.05.2016, despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante, no qual se refere auferir a remuneração base mensal de 530,00 €, foi nele fixado o valor necessário para o sustento da insolvente em um salário mínimo nacional, foi, nesse mesmo despacho, declarado encerrado o processo por insuficiência da massa, e iniciado o período de cessão de rendimentos.
- A 7 de junho de 2016, o fiduciário, por correio registado enviou à insolvente uma carta informando que o inicio da cessão de rendimentos é a Junho de 2016, tendo o seu termo a 2021, e ainda que:
O pagamento deve ser efetuado através de vale postal ou cheque passado à ordem da massa insolvente de A. (…) Após o 1º pagamento será informado do NIB para proceder aos restantes pagamentos através de transferência bancária);
Solicita-se o envio mensal das cópias dos recibos de vencimento, podendo fazer o envio para a morada abaixo ou para o email jfaustino@gmail.com
(…)”.
Em sede de recurso, o Apelante vem alegar desconhecer a existência de tal comunicação – junta aos autos pelo fiduciário com a apresentação do seu relatório final de 16 de junho de 2021 –, mas tal alegação só agora efetuada, em sede de recurso, é extemporânea e, como tal irrelevante.
Face à notificação do despacho proferido a 24 de maio e da comunicação que lhe foi enviada pelo fiduciário por carta datada de 7 de junho de 2016, e aos recibos de vencimento mensais que lhe foram sendo emitidos pela entidade patronal (e que a insolvente veio a juntar aos autos), a insolvente disporia de todos os elementos necessários à quantificação dos montantes a ceder ao fiduciário, bem como as informações quanto à forma de pagamento e o contacto do fiduciário.
E durante esse primeiro ano, relativamente ao qual não pode ser assacada qualquer falha do fiduciário, a insolvente não procedeu à cedência de qualquer quantia ao fiduciário, quando auferiu sempre valores superiores ao salário mínimo nacional.
Ao contrário do sustentado pela Apelante, a obrigação de entrega do rendimento mensal disponível não se encontrava dependente de qualquer interpelação ou liquidação anual por parte do fiduciário ou do tribunal, encontrando-se, durante os cincos anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, obrigado a “entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão” [artigo 239º, nº4, al. c)].
É certo que, desde aquela primeira comunicação datada de junho de 2016, o fiduciário não terá tido qualquer tipo de contacto com a devedora nem prestou qualquer informação ao tribunal, até que, a 1 de junho de 2021, enviou uma comunicação à insolvente a solicitar-lhe a documentação comprovativa dos rendimentos por si auferidos.
Ao não apresentar os relatórios anuais nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, e numa atitude altamente censurável, o fiduciário faltou ao dever imposto pelo artigo 240º, nº2, CIRE, podendo, por tal, ser responsabilizado nos termos do artigo 59º, nº1, CIRE.
E é certo que, na elaboração do relatório anual não lhe bastaria comunicar que nenhuma entrega lhe fora feita pela insolvente: o fiduciário teria de ter acesso ao montante dos rendimentos auferidos em cada mês pela devedora, para o que, na ausência de qualquer comunicação por parte desta, teria de notificar a devedora para lhe enviar os respetivos recibos de vencimento, para daí aferir da existência de rendimentos a ceder e de uma eventual situação de incumprimento por parte desta.
Contudo, tal como se afirma na decisão recorrida, a obrigação de cedência do rendimento disponível, em si, não se encontrava dependente do cumprimento daquela obrigação que impende sobre o fiduciário de apresentação do relatório anual.
Antes pelo contrário, a obrigação do fiduciário é de constituição posterior à obrigação de entrega do rendimento disponível: o devedor é obrigado a, mensalmente e imediatamente, assim que lhe é processado o vencimento desse mesmo mês, proceder à entrega da parte que exceda o valor que foi autorizada a reter para a sua subsistência. Ora, só ao fim de cada ano, o fiduciário terá de apresentar contas, informando os credores e o tribunal de qual o valor auferido mensalmente pelo devedor, se e qual o valor a ceder em cada um dos meses e, havendo montantes a ceder, se o devedor procedeu atempadamente à respetiva entrega.
E, não só durante aquele primeiro ano, como nos seguintes, a devedora assumiu uma atitude perfeitamente passiva e de total desinteresse relativamente à obrigação que sabia impender sobre si – quer quanto ao momento temporal, quer quanto aos valores a descontar, sendo que, se alguma dúvida tivesse, sempre poderia tentar obter esclarecimentos junto do fiduciário ou do tribunal – remetendo-se, também ela, a um total silêncio, tendo deixado os anos passar sem proceder à cedência de qualquer rendimento e sem que justificasse a seu comportamento omissivo.
É certo que, agora, não disporá de condições para proceder à liquidação do acumulado, mas essa acumulação só ocorreu porquanto, durante os 5 anos da cessão, nunca teve o cuidado de proceder à entrega de qualquer quantia ao fiduciário ou de se informar sobre a que valor montava já o seu incumprimento.
Como tal, irrelevante se torna a alegação de que, face ao aumento das despesas derivadas do covid e ao montante acumulado em dívida não dispõe de condições económicas para proceder ao respetivo pagamento.
Assim como, não faz sentido a alegação, por parte da Apelante, de que a decisão recorrida abala a “confiança jurídica depositada pela insolvente” no facto de nunca ter sido interpelada para proceder à entrega de qualquer quantia ao fiduciário ou notificada de qualquer liquidação dos montantes em dívida. Ora, não só, a devedora foi claramente notificada da data de início da cessão e do montante a ceder, como, não tendo posteriormente tido qualquer outra notícia por parte do fiduciário ou do tribunal, terá confiado, em quê? Que, na ausência de qualquer comunicação, nada teria a entregar? Ou que só teria de começar a entregar a parte disponível depois da apresentação dos relatórios anuais (contrariando a comunicação que a tal respeito lhe fora expressamente feita pelo fiduciário em junho de 2016)?
Quanto à questão levantada pela devedora no requerimento em que se pronunciou quanto à decisão final da exoneração – de que houve alguns meses em que não atingiu a remuneração mínima, havendo que proceder ao abatimento da diferença –, tal não foi objeto de apreciação pela decisão recorrida, nem tinha de o ser, uma vez que, não tendo a Apelante procedido à entrega de quaisquer montantes durante os cinco anos, torna-se irrelevante a determinação sobre se ao montante do incumprimento se há de, ou não, descontar os valores respeitantes aos 3 meses em que os rendimentos por si auferidos não atingiram o montante do rendimento indisponível (sendo que, rejeitada a exoneração do passivo restante, deixam de ser por si devidos os valores calculados para efeitos da cessão, mantendo-se a obrigação de pagamento dos créditos reconhecidos).
Como tal, não se apreciará aqui tal questão, por irrelevante para o objeto do recurso.
Por fim, dir-se-á, ainda, não ser necessário que o incumprimento da obrigação ocorra com dolo, bastando-se ainda o artigo 243º com a ocorrência de “grave negligência”.
Ora, decorridos os cinco anos da cessão, e reconhecendo que, com exceção de 3 meses, auferiu sempre rendimentos superiores ao valor do rendimento mensal garantido, a insolvente não procedeu à entrega ao fiduciário de qualquer quantia, nem apresentou ao tribunal qualquer justificação para o não pagamento.
Tal circunstancialismo preencherá, pelo menos, o conceito de negligência grosseira[5] – a devedora tinha necessariamente conhecimento do exato montante que deveria ter entregado e não entregou, sendo que, caso dúvidas tivesse ou se a sua situação económica se tivesse deteriorado, poderia ter suscitado tais questões junto do fiduciário ou do tribunal e não o fez, remetendo-se ao silêncio.
Ou seja, verifica-se aqui uma total falta de empenho por parte da devedora no cumprimento da principal obrigação que sob si impendia durante o período probatório de cinco anos, de proceder à entrega imediata do seu rendimento disponível, não se podendo afirmar ser a mesma merecedora da concessão efetiva do benefício de exoneração do passivo restante.
2. Inconstitucionalidade dos artigos 241º, nº1 e 244º, nº2 do CIRE
 Invoca a Apelante a inconstitucionalidade do artigo 241º, nº1 do CIRE, por violação dos princípios da proporcionalidade, da adequação, da proibição do excesso bem como da culpa, quando interpretado no sentido de “O fiduciário fica desonerado de elaborar relatórios anuais durante os cinco anos em que dure a cessão, podendo unicamente apresentar um relatório único a englobar todo o período em causa, e sem que ao Tribunal, ao Ministério Público e aos credores caiba qualquer dever de vigilância ou controlo do cumprimento de tal dever”.
Ora, desde logo, na decisão recorrida não se afirma, nunca, que o fiduciário fique desonerado de elaborar relatórios anuais e que possa elaborar um só relatório final que abarque todo o período da cessão: o que aí se diz é, tão só, que, a obrigação de entrega (imediata) do rendimento disponível não se encontra dependente do cumprimento da obrigação que sobre o fiduciário impende de elaborar e apresentar os relatórios anuais a que se reporta o nº1 do artigo 241º.
Ou seja, na decisão decorrida não é assumido o entendimento ou a interpretação que a Apelante apelida de inconstitucional.
Invoca ainda a Apelante a inconstitucionalidade do artigo 244º, nº2, por violação dos já referidos princípios, quando interpretado no sentido de que “É de recusar a exoneração do passivo restante à insolvente que no final de cada um dos cinco anos de duração da cessão nunca foi contactada pelo Administrador de Insolvência nem em relação à qual foram elaborados relatórios anuais, e que vindo a final a ser confrontada com relatório único a englobar todo o período de cinco anos não tem capacidade financeira para liquidar tais obrigações de dimensão pecuniária considerável e num quadro de crises económica e pandémica/sanitária”.
Dispondo o nº2 do artigo 244º do CIRE que “A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior”, a decisão de se considerar que o facto de o fiduciário ter faltado ao seu dever de apresentar anual dos relatórios não é desculpabilizante da atitude da devedora de omissão de qualquer entrega do rendimento disponível, para afastar a verificação de culpa dolosa ou com grave negligência, nada tem a ver com alguma interpretação especial que o tribunal possa ter dado ao nº2 do artigo 244º e que seja suscetível de contrariar a Constituição.
Por outro lado, aquando da invocação da inconstitucionalidade de qualquer uma dessas normas, a Apelante, não indica quais as concretas normas da constituição que se encontram violadas, nem de que modo tal violação se concretiza, limitando-se, no final das suas conclusões, a indicar, de entre as normas jurídicas violadas, os artigos 1º, 2º, 12º, 13º, 18º, 20º, 202º, nº2, 204º e 266º, nº2 da CRP.
Concluindo, a apelação é de improceder.

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IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela devedora/Apelante.              

                                                                            Coimbra, 11 de janeiro de 2022
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[1] Código a que pertencerão todas as disposições citadas sem menção de origem.
[2] Assunção Cristas, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, in THEMIS 2005, Edição especial, “Novo Direito da Insolvência”, Almedina, pág. 167.
[3] Na expressão de Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, “Regular o sobreendividamento”, in “Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o Anteprojecto do Código”, Ministério da Justiça – Gabinete da Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pág. 94.
[4] Da autoria de Osório de Castro, e que se mostra publicado in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações Sobre o Anteprojecto de Código”, Ministério da Justiça – Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pág. 233.
[5] Ainda que consideremos como o faz o Acórdão do STJ de 21-04-2016, relatado por Lopes do Rego, que “o  conceito penal de negligência grosseira implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também do ilícito: a nível do tipo de ilícito torna-se indispensável que se esteja perante um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada - sendo que também o tipo de culpa resulta, nestes casos, inevitavelmente aumentado, tendo de alcançar-se a prova autónoma de que o agente revelou no facto uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, plasmando nele qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez.” – acórdão disponível in www.dgsi.pt.