Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3077/19.1T8LRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: CASO JULGADO
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 577.º, ALÍNEA I) DO CPC
Sumário: Não se verifica a excepção da autoridade do caso julgado se, após acção de reivindicação, onde o réu apenas reconveio para peticionar o reconhecimento do seu direito de retenção sobre o imóvel reivindicado, direito esse ali julgado extinto, em despacho saneador-sentença, por caducidade decorrente da alienação do imóvel em acção executiva, com a consequente procedência da reivindicação, tal réu vem depois intentar acção indemnizatória por factos ilícitos alegadamente ocorridos no âmbito executivo anterior à transmissão do imóvel, que o impediram de fazer valer a garantia, sem, pois, pôr em causa o decidido na acção de reivindicação.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA (incapaz, representado pela sua tutora, BB), com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa condenatória, com processo comum, contra

1.ª - “C..., CRL”, com os sinais dos autos, e

2.º - CC, também com os sinais dos autos,

pedindo que seja a ação «julgada procedente por provada e, consequentemente, a demandada condenada a pagar ao demandante a quantia de € 90.000,00 e juros de mora à taxa legal a partir da citação até integral pagamento» ([1]).

Alegou que:

- em 2005, a 1.ª R. concedeu um empréstimo à sociedade «O... S.A.» (doravante, sociedade construtora) para construção de um edifício em prédio rústico que identifica, tendo, para garantia, sido constituída hipoteca – com registo provisório em 07/09/2005, convertido em definitivo em 29/11/2005 –, a favor da mutuante sobre tal prédio rústico;

- a sociedade construtora deixou caducar o alvará de construção, não respeitou as áreas de construção previstas, a localização e a cércea e excedeu o prazo de construção, situação que não foi ultrapassada;

- a 1.ª R. acompanhou a construção do edifício, pelo que podia ter controlado a execução da obra, sendo ainda que nada obsta a que venham a ser apresentados novos elementos para avaliação da possibilidade de legalização do edifício construído;

- em 30/01/2008, o A. celebrou com a sociedade construtora um contrato-promessa de compra e venda, pelo qual convencionaram a venda ao demandante de um apartamento daquele edifício (de tipologia «T3», correspondente ao 2.º andar esq.º), livre que quaisquer ónus ou encargos, sendo o preço convencionado de € 112.500,00 e com prestação de sinal;

- após o pagamento pelo A. de diversas quantias, no âmbito daquele contrato, a sociedade construtora, em março de 2009, entregou-lhe o apartamento em causa, o qual o mobilou e o passou a habitar em permanência, sendo, porém, que aquela sociedade nunca se disponibilizou a outorgar o contrato prometido, tendo entretanto sido extinta, sem qualquer património;

- a 1.ª R. instaurou execução contra aquela sociedade (Proc. 1796/12....), âmbito em que foi penhorado o imóvel hipotecado, onde se encontrava implantado o apartamento negociado pelo A., vindo aquele prédio a ser vendido à 1.ª R. por € 297.500,00, impedindo o demandante, embora credor da dita sociedade no valor de € 90.000,00, de exigir o cumprimento do contrato-promessa;

- por isso, gozava o A. do direito de retenção sobre o aludido apartamento, nos termos dos art.ºs 754.º e segs. do CCiv., direito esse que prevalece sobre a hipoteca, permitindo-lhe reclamar créditos, sendo, porém, que não interveio naquela execução, em que foi agente de execução (AE) o solicitador ora 2.º R.;

- este procedeu à penhora, não afixou – e devia tê-lo feito – edital no edifício, não citou nem informou o A. da execução e da penhora, enquanto a 1.ª R. sabia, por seu lado, que apenas havia sido penhorado um terreno e que ali se encontrava construído um edifício, bem sabendo que a venda não incluía as construções;

- a omissão da penhora das construções e da demais informação devida ao A. é imputável à exequente (1.ª R.), a qual sabia que o A. ocupava o espaço referido;

- esta responde com base no enriquecimento sem causa e na responsabilidade civil, tendo em conta o disposto no art.º 483.º do CCiv.;

- a 1.ª R. instaurou contra o aqui A., em 2017, uma ação declarativa de reivindicação do apartamento aludido (Proc. 3881/17....), tendo ali o ora A. deduzido contestação-reconvenção, invocando o seu direito de retenção, bem como abuso do direito da contraparte, vindo a ser proferida sentença de condenação (do ora demandante) a restituir o apartamento, julgando improcedente o pedido reconvencional, por a venda judicial ser efetuada livre de ónus.

Oferecendo provas, pugna pela procedência da ação.

Contestou a 1.ª R., invocando a exceção do caso julgado, com referência ao decidido naquele Proc. 3881/17...., e defendendo-se por impugnação, tudo para concluir pela improcedência da ação.

O 2.º R., apesar de citado, não contestou.

O A. exerceu o contraditório:

- esclarecendo que, relativamente à 1.ª R., a causa de pedir se traduz na responsabilidade civil e no enriquecimento sem causa, enquanto em relação ao 2.º R. é a responsabilidade civil, sendo este solidariamente responsável com a 1.ª R. pelos danos causados, havendo, assim, lapso de escrita quanto ao pedido, a poder ser corrigido, devendo, então, passar o pedido da ação a reportar-se à condenação solidária dos RR.;

- bem como que, mesmo a entender-se que tal implica alteração do pedido, tratar-se-á de desenvolvimento do pedido inicial, como tal, admissível ao abrigo do disposto no art.º 265.º, n.º 2, do NCPCiv.;

- e pugnando pela improcedência da exceção de caso julgado, por inexistir repetição de causas de pedir e de pedidos.

Em audiência prévia, foi decidido:

a) Indeferir o pedido do A. «de correcção de lapso ou de ampliação do pedido, não subsistindo qualquer pretensão deduzida contra o réu CC»;

b) Julgando, por falta de indicação do pedido, «inepta a petição relativamente ao réu CC», assim o absolvendo da instância;

c) Absolver «a ré C..., CRL da instância», «seja por procedência da invocada excepção de caso julgado, seja por efeito preclusivo decorrente da autoridade de caso julgado inerente à decisão proferida no processo 3881/17....».

O A., inconformado, recorreu, vindo este Tribunal da Relação (doravante, TRC), por acórdão de 23/02/2021, a revogar a decisão recorrida, julgando:

a) Admissível a correção de manifesto erro de escrita no petitório da ação, com o pedido a reportar-se à expressão os demandados condenados (ambos eles);

b) Em consequência, havendo pedido contra ambos os RR., improcedente a ineptidão da petição relativamente ao R. CC (a dever ser notificado da admissão da correção do pedido);

c) Prosseguindo os autos a sua legal tramitação, com aquisição de prova documental (certidão judicial) e observância do contraditório, só depois se conhecendo da exceção do caso julgado.

Cumprido, no Tribunal a quo, o determinado pelo TRC, teve lugar a audiência prévia, após o que foi proferido saneador-sentença, datado de 20/10/2021, julgando procedente a exceção da autoridade do caso julgado e, consequentemente, a ação totalmente improcedente, com absolvição dos RR. dos pedidos.

Novamente inconformado, o A. recorre do assim decidido, apresentando alegação recursiva, onde formula as seguintes

Conclusões ([2]):

«I. Na sentença recorrida, o juiz a quo partiu pressuposto errado de que, na ação nº 3881/17.... (reivindicação) o lá demandado/ reconvinte (aqui demandante / recorrente) podia e devia, nos termos do disposto no artigo 266º do CPC, deduzir reconvenção com fundamento na responsabilidade civil extracontratual, por falta de notificação do lá demandado / reconvinte da penhora efetuada na execução nº 1796/12.....

II. Porém, esta questão não foi objeto de análise na sentença recorrida onde, aliás, não é feita qualquer referência ao disposto no citado nº 2 do artigo 266º do CC, como fundamentação de direito da decisão.

III. Quanto à al. a) do nº 2 citado artigo 266º, fundamentando-se o pedido da demandante da ação 3881/17.... no seu direito de propriedade e na ocupação ilícita do demandado / reconvinte, não podia este apresentar reconvenção com fundamento na responsabilidade civil extracontratual.

IV. Quanto ao disposto na al. b), não tendo o sido alegada, na citada ação 3881/17...., a execução de benfeitorias, não podia o lá demandado formular pedido reconvencional com base num direito de crédito por benfeitorias.

V. Quanto à primeira parte do disposto na citada la. c), não tendo a demandante formulado contra o demandado / reconvinte qualquer pedido de pagamento de um direito crédito, não podia este invocar a exceção ou pedir em reconvenção “compensação”, a compensação de créditos nos termos do disposto no artigo 847º do CC, uma vez que demandante e demandado / reconvinte não eram “reciprocamente credor e devedor.”

VI. Para o reconvinte poder pedir a compensação, teria de admitir a preexistência de um crédito do demandante, o qual não foi alegado nem pedido pela demandante.

VII. Quanto à segunda parte da citada al. c), sendo uma solução entroncada na compensação e não tendo sido alegado e pedido qualquer crédito pela demandante, não podia o reconvinte pedir pagamento do valor em que o seu crédito excede o do autor, por este não ter sido pedido.

VIII. Quanto à al d), não pretendendo o demandado / reconvinte o reconhecimento do direito do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, mas apenas do direito real de retenção com base no contrato de promessa, no pagamento do preço, na tradição da coisa e no incumprimento, não podia o demandado formular pedido reconvencional.

IX. Ou seja, o demandado não pediu, em reconvenção, a condenação da demandante no pagamento de um direito de crédito com base na responsabilidade civil extracontratual, por artigo 266º, nº 2 do CC o não permitir.

X. Não há identidade dos pedidos formulados no processo 3881/17.... e neste processo 3077/19.....

XI. Enquanto no processo 3881/17.... foi formulado um pedido de reivindicação e, em reconvenção, um de retenção sobre um bem por dívida de terceiro, neste processo 3077/19.... foi formulado um pedido de indemnização.

XII. Também não há identidade das causas de pedir de ambos os processos.

XIII. No processo 3881/17.... a causa de pedir é apenas o direito (real) de retenção, por incumprimento de terceiro de contrato de promessa, ao passo que no presente processo, a causa de pedir é a responsabilidade civil extracontratual e o enriquecimento sem causa.

XIV. Num caso, esteve em apreciação o direito de propriedade e de retenção, uma ação real, noutro caso, está em apreciação a responsabilidade civil extracontratual como fonte da obrigação de indemnização, uma ação obrigacional.

XV. É ao demandado CC, agente de execução, a quem o demandante atribui, nesta ação, a omissão da notificação do demandante, no âmbito da referida execução 1796/12...., ou seja, a quem atribui a autoria dos atos ilícitos que integram a fonte da obrigação de indemnizar,

XVI. O aqui demandado CC não tinha legitimidade para ser demandado naquele processo 3881/17.... com base em tal responsabilidade.

XVII. Consequentemente, não há identidade quanto às partes.

XVIII. A causa de pedir, relativamente à demandada C..., CRL é essencialmente a responsabilidade do comitente (artigo 500º do Código Civil), uma vez que nomeou e acompanhou o agente de execução CC no processo nº 1796/12.....

XIX. Porém, a designação do agente de execução é efetuada pela secretaria judicial quando o não tenha sido pelo exequente (artigo 720º, nº 2 do CPC).

XX. Ou seja, a atividade do agente de execução não reveste o caráter de execução de mandato e poderá não revestir mesmo a posição de comissário, podendo não existir responsabilidade solidária.

XXI. Não devendo nem podendo o demandante / recorrente formular, na ação 3881/17...., contra os aqui demandados pedido com base na responsabilidade civil extracontratual, não existe caso julgado formal (artigo 581º do CPC).

XXII. Foi violado o disposto nos artigos 266º, nº 2 e 581º do CPC.

Revogando a decisão recorrida, como se conclui, Vªs Exªs fareis a já costumada justiça.».

Não foi apresentada contra-alegação recursiva.

O recurso foi admitido como de apelação, com o regime e efeito fixados no processo ([3]), tendo sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foram mantidos tais regime e efeito fixados. 

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo fixado nos articulados das partes – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([4]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação conhecer da questão que motivou o julgamento de improcedência da ação: exceção da autoridade de caso julgado.

III – FUNDAMENTAÇÃO

          A) Da factualidade apurada

Na decisão recorrida foram dados como assentes os seguintes factos:

«1- Em 28 de Setembro de 2017 a C..., CRL, propôs contra AA, acção declarativa na qual pediu fosse julgada procedente por provada essa demanda e sequencialmente a:

“C..., CRL é dona e legítima possuidora do imóvel supra identificado em 6., deverá:

A) Declara-se inexistente ou, em todo o caso caduco, o direito de retenção que o réu invoca, em consequência da alegada outorga do contrato promessa de compra e venda com anterior proprietária do imóvel identificado em 6.;

B) O réu ser condenado a desocupar de imediato o espaço que nele ocupa, entregando-o à autora, livre de pessoas e bens;

C) Mais se devendo condenar o réu numa sanção pecuniária compulsória de 100,00€ por cada dia de mora na desocupação e entrega dos espaços que ocupa no sobredito imóvel.”

2- A causa de pedir é aquela que consta dos artigos 6º a 49º da petição inicial daquele processo (nº 3881/17....), que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos.

3- AA contestou – contestação aqui reproduzida – a acção e nela reconveio pedindo a final:

“Nestes termos, e nos demais de direito, deve a ação ser julgada improcedente e reconvenção julgada procedente e, consequentemente, a demandante condenada a reconhecer que o reconvinte goza do direito real de retenção sobre o apartamento identificado em 72, para garantia do seu crédito no valor de €90.000,00 e juros de mora à taxa legal a partir da notificação da reconvenção”.

4- A causa de pedir da reconvenção é aquela que consta dos artigos 55º a 96º da contestação/reconvenção que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos.

5- Por sentença, confirmada na sequência de recurso interposto por AA para o Tribunal da Relação de Coimbra, foi decidido:

“I. JULGA-SE A PRESENTE AÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE E, NA MEDIDA DESSA PROCEDÊNCIA, ENTENDE-SE QUE O DIREITO DE RETENÇÃO INVOCADO PELO RÉU, A TER EXISTIDO, CADUCOU COM A TRANSMISSÃO DO BEM EM PROCESSO DE EXECUÇÃO E,

CONSEQUENTEMENTE, CONDENA-SE O RÉU A ENTREGAR À AUTORA A PARTE DO IMÓVEL (melhor identificado sob o número 1. dos factos assentes) QUE OCUPA, LIVRE DE PESSOAS E BENS.

II. NO MAIS, JULGA-SE IMPROCEDENTE O PEDIDO DA AUTORA, DELE ABSOLVENDO O RÉU.

III. JULGA-SE IMPROCEDENTE O PEDIDO RECONVENCIONAL, DELE ABSOLVENDO A AUTORA”.

6- Para o acima decidido, o Juízo Central Cível ... (J4) deu como provados os seguintes factos:

“1. No âmbito da execução comum para pagamento de quantia certa nº 1796/12...., que correu termos pelo extinto Tribunal Judicial ... – ... Juízo, em que era executada “O... S.A”, a autora adquiriu, de entre outros e pelo preço de €297.500,00, por adjudicação cujo título está datado de 07.10.2013, o seguinte imóvel:

- Prédio rústico composto de pinhal e mato, com a área de 10.500 m2, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...39, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o número 1757/20.../freguesia ... (documento ... junto com a petição inicial).

2. Esse prédio, ao tempo da transmissão, tinha inscrição de propriedade a favor da executada O..., S.A, através da AP. 40 de 2005/09/07 (documentos ... e ... juntos com a petição inicial).

3. A autora fez inscrever a sua aquisição no registo predial e aí se encontra consolidada pela Ap. 1543 de 2013/10/17 (documento ... junto com a petição inicial).

4. A autora pediu a adjudicação do imóvel no processo de execução supra identificado face à sua condição de credora hipotecária, pois, para garantia dos seus créditos, derivados de empréstimo concedido à anterior proprietária do imóvel e ali executada, esta o deu de hipoteca à mutuante, adjudicatária e ora autora, hipoteca essa que desde logo foi registada pela AP. 41 de 2005/09/07, inicialmente provisória e posteriormente convertida, pela AP. 73 de 2005/11/29 (documentos ... junto com a petição inicial).

5. Durante o período de tempo em que O..., S.A, foi dona do imóvel referido em 1., foi nele iniciada e desenvolvida a implantação de uma construção urbana, a qual haveria de consistir e obedecer ao previsto no Alvará de Construção de Obra Nova nº 750/04 (Processo nº ...2), emitido pela Câmara Municipal ... em 10 de setembro de 2004 (documento ... junto com a petição inicial).

6. Tal projeto respeitava a um edifício composto por quatro pisos, sendo a cave para garagem, rés-do-chão para comércio e primeiro e segundo andares para habitação, esquerdo e direito

7. A promotora dessa construção não logrou concluir a mesma, nem tão pouco proceder à respetiva legalização – nomeadamente, submetê-la ao regime da propriedade horizontal.

8. A obra foi iniciada e progrediu sem licenciamento válido, pois o alvará acima referido caducou em virtude de a obra não ter sido iniciada no prazo de noves meses a contar da respetiva emissão (documento ... junto com a petição inicial).

9. Parte da construção referida em 5. a 8. está a ser ocupada pelo réu, o qual invoca, perante a autora e para justificar o direito a ali permanecer que:

a) Em 30.01.2008, entre ele e DD, este como administrador de O... S.A., foi assinado um documento escrito com o seguinte teor:

«Contrato de promessa de compra e venda

Primeira Outorgante: O... S.A- lnvestimentos lmobiliários S.A. com o NIF ... com sede na rua ..., ... nesta Cidade ..., representada neste contrato pelo seu Administrador DD, com NIF ... e o BI ... de ..., na qualidade de promitente vendedor, com plenos poderes para este ato.

Segunda Outorgante: AA, com NIF ... e com BI nº ... de 10/10/2007 de ... residente, em ... freguesia ... concelho ... divorciado, na qualidade de promitente comprador.

Primeira

A primeiro Outorgante declara que é dona e legítima proprietária de um prédio urbano, inscrito na matriz sob o nº ...39 da freguesia ..., e com a descrição na Conservatória do Registo Predial ... sob o número 1757/20..., e inscrito a favor da sociedade vendedora pela respetiva inscrição, com a licença de construção nº ...04, emitida pela Camara Municipal ... a 10/09/2004.

Segunda

Pelo presente contrato de promessa, a primeira Outorgante promete vender o 2º andar esquerdo destinado a Habitação de tipologia T3 com um sótão destinado a arrumos, situado por cima da fração e um parqueamento aberto, na cave, fração esta que faz parte do prédio atrás descrito, e será entregue ao segundo Outorgante livre de quaisquer ónus ou encargos que reciprocamente promete comprar.

Terceira

O valor da transmissão prometido é de €112.500,00 (cento e doze mil e quinhentos euros), que será pago nas seguintes condições:

Como sinal e princípio de pagamento entrega o segundo Outorgante a primeira a quantia de 20.000,00€ (vinte mil euros). No final da obra pronta entrega mais 35.000,00€ (trinta e cinco mil euros) o restante que é de €57.500,00 (cinquenta e sete mil e quinhentos euros) será pago no dia da outorga escritura.

Podendo para os referidos pagamentos utilizar meio de cheque para a nossa morada ou ainda através de transferência bancaria com as referências que se seguem NIB  ...35 ou IBAN  ...35 ....

Quarta

Quinta

Todos os encargos de registos, escrituras, eventual IMT, são da conta e responsabilidade do 2º Outorgante.

Sexta

É do conhecimento dos outorgantes a obrigatoriedade de selar este contrato, no entanto acordarão entre si não o fazer, nunca podendo alegar tal formalidade para não comprimento do mesmo.

Oitava

Em caso de incumprimento de qualquer das obrigações assumidas neste contrato de promessa, os Outorgantes poderão exigir a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830 do código civil, ou a sua resolução.

..., 30 de Janeiro de 2008

Primeira Outorgante: [carimbo com menção O... SA. O

Administrador e rúbrica manuscrita]

Segunda Outorgante:[rúbrica manuscrita]

b) Pagou à empresa que ali figura como promitente-vendedora, no âmbito daquele contrato, o valor global de €90.000,00, pelo qual é, perante ela, credor. c) Em virtude do referido em a) e b), essa empresa entregou ao réu, em março de 2009, a parte do imóvel que o mesmo ocupa, onde ele passou a residir.

10. O processo de execução referido em 1. foi intentado pela aqui autora, que foi quem nomeou o solicitador de execução, tendo acompanhado a tramitação desses autos.

11. A autora sabia que, no prédio rústico mencionado em 1. Estava implantada uma construção, conforme aludido sob 5. a 8”.

7- E fundamentou-se a decisão proferida no 3881/17...., nos termos que na mesma constam aqui reproduzidos para todos os legais efeitos.

8- Em 26 de Setembro de 2019 o A. propôs a presente acção, contra os RR. C..., CRL e CC, pedindo aquilo que da petição inicial consta e aqui se reproduz, e indicando os factos também eles aqui dados por reproduzidos, em que baseia o seu pedido.».

B) Do Direito

Autoridade do caso julgado

No agora impugnado saneador-sentença, onde os RR. foram absolvidos «dos pedidos deduzidos» (cfr. dispositivo), por se julgar procedente a exceção da autoridade do caso julgado, partiu-se do pressuposto de que, in casu, tem «a reconvenção natureza necessária ou compulsiva» (cfr. fundamentação de direito).

E isto por ter anteriormente corrido termos uma outra ação declarativa entre a aqui 1.ª R. (ali autora/reconvinda) e o ora A. (ali réu/reconvinte), âmbito em que este último, na sua reconvenção, invocou já o seu direito de retenção, cujo reconhecimento pediu, para garantia de um crédito sobre a sociedade construtora, no valor de € 90.000,00, tendo a reconvenção improcedido, formando-se caso julgado nesse sentido, bem como no do reconhecimento do direito de propriedade da ali autora e na obrigação de entrega a esta do bem retido ([5]).

Vista a sentença proferida no âmbito daquela anterior ação ([6]), constata-se que foi julgado assim (na parcial procedência da ação e total improcedência da reconvenção):

«(…) ENTENDE-SE QUE O DIREITO DE RETENÇÃO INVOCADO PELO RÉU, A TER EXISTIDO, CADUCOU COM A TRANSMISSÃO DO BEM EM PROCESSO DE EXECUÇÃO E,

CONSEQUENTEMENTE, CONDENA-SE O RÉU A ENTREGAR À AUTORA A PARTE DO IMÓVEL (…) QUE OCUPA, LIVRE DE PESSOAS E BENS.

II. NO MAIS, JULGA-SE IMPROCEDENTE O PEDIDO DA AUTORA, DELE ABSOLVENDO O RÉU.

III. JULGA-SE IMPROCEDENTE O PEDIDO RECONVENCIONAL, DELE ABSOLVENDO A AUTORA» ([7]).

Trata-se, pois, no essencial, de ação de reivindicação, que foi julgada procedente (nesse âmbito), enquanto a reconvenção se restringia àquele peticionado reconhecimento do direito de retenção – para obstar à entrega –, no que ocorreu decaimento do ali reconvinte (ora A.), por se ter considerado que o direito de retenção, a ter existido, se extinguiu, por caducidade, com a transmissão executiva do bem.

Este, pois, o âmbito do anterior julgamento, com a inerente situação de causa já julgada (ação e reconvenção).

Na presente ação – posterior àquela e perante o desfecho da mesma – vem o A. pedir, como visto ([8]), a condenação dos RR. a pagar-lhe a quantia de € 90.000,00 e juros de mora, por via de: (i) responsabilidade civil por facto ilícito (e enriquecimento sem causa) quanto à 1.ª R.; e (ii) responsabilidade civil (solidária) quanto ao 2.º R..

Trata-se, pois, agora, de ação de responsabilidade (indemnizatória) – e de invocado enriquecimento – pelos danos/perdas alegadamente causados, ao não ter sido respeitado o seu direito de retenção no âmbito executivo (vícios ocorridos na execução onde teve lugar a aludida transmissão executiva do bem que originou a caducidade do invocado direito de retenção, sem aproveitamento da garantia).

É líquido, pois, que sobre esse direito de garantia se pronunciou a anterior ação (de reivindicação), para se julgar, somente (em saneador-sentença), que o direito de retenção, «a ter existido, caducou com a transmissão do bem em processo de execução».

Quer dizer, nem sequer se afirmou ali – e nem tal era necessário na economia da ação de reivindicação – que o direito nunca existiu. Apenas se estabeleceu que, ainda que tenha existido, já se havia, entretanto, extinguido, por caducidade, esta decorrente da operada transmissão/alienação executiva do bem.

Isto é, ao tempo da anterior ação declarativa, ocorrida já a transmissão do bem na execução, o direito de retenção sempre teria de considerar-se extinto, o que levou à improcedência da reconvenção e à condenação na entrega à ali autora.

Mas o aqui A. vem agora situar-se, em termos temporais, precisamente em fase anterior àquela ação declarativa, a fase executiva e, dentro desta, o tempo anterior à transmissão do bem, considerando que foi aí que ocorreu o invocado facto ilícito – por ter sido desrespeitado aquele direito de retenção, cujo facto extintivo então ainda não se tinha verificado – gerador da responsabilidade civil que imputa a ambos os aqui RR..

Esta é, pois, uma ação de responsabilidade/indemnizatória (para além de enriquecimento), visando estabelecer a responsabilidade civil de ambos os aqui RR., com reporte a um tempo anterior à transmissão executiva do bem, logo, um tempo em que o direito de retenção, a existir, ainda não estava extinto por caducidade.

Deveria o aqui A., na sua reconvenção na anterior ação de reivindicação, para além de peticionar – no que não teve êxito (por o direito ter já caducado) – o seu direito de retenção, também formular o pedido da ação de responsabilidade civil, por factos ocorridos no âmbito executivo anterior à transmissão do bem, contra a A./Reconvinda e contra terceiro (o AE), fazendo intervir este nos autos, através de incidente da instância para o efeito, sob pena de preclusão relativamente ao seu direito indemnizatório?

Com efeito, tem de convir-se, salvo o devido respeito, que a anterior ação (de reivindicação) em nada se reporta à questão indemnizatória, nada julgando sobre esta. Reporta-se, isso sim, claramente, à questão da (in)existência do direito de retenção, direito este fundamento agora da ação indemnizatória.

Mas apenas julga, quanto a tal direito de retenção, no sentido, como visto, de estar o mesmo já extinto, caso tenha existido, por caducidade, decorrente da transmissão executiva do bem. Não se nega, pois, ali que o direito de retenção existisse ao tempo do agora imputado facto ilícito, questão que não foi conhecida ([9]).

E nem era necessário ir mais além, na economia da ação declarativa anterior, posto que a extinção do direito de retenção afastava o obstáculo invocado à entrega do imóvel, escopo da reivindicação empreendida.

Mas, nesta perspetiva, estamos necessariamente a jusante do facto ilícito invocado pelo aqui A., o que não afasta que o direito de retenção pudesse ter existido no tempo anterior à transmissão/alienação executiva.

Assim, é inequívoco que estamos perante matéria não julgada naquela anterior ação declarativa ([10]).

Diversa seria a situação, obviamente, se tivesse ali sido estabelecido que o ora A. nunca foi titular do direito de retenção.

Mas, ainda assim, haverá preclusão quanto à pretensão indemnizatória? E quanto a ambos os ora RR.?

O ali reconvinte, para além de peticionar o reconhecimento do direito de retenção (a que se reportava o pedido da ali autora), teria também de peticionar, subsidiariamente (para a hipótese de esse direito não lhe ser reconhecido e ter de abrir mão do bem, entregando-o), logo ali, a indemnização que agora pretende, inclusive contra terceiro em relação à ação, sob pena de já não o poder fazer mais tarde? Ou, retomando a argumentação da decisão em crise: o caso será, quanto a tal vertente indemnizatória (e de enriquecimento), de reconvenção necessária ou compulsiva?

Ora, desde logo, parece, salvo o devido respeito, que aqui não haverá conflitualidade/incompatibilidade com o anteriormente decidido na ação de reivindicação, visto o juízo sobre o direito de retenção (base para a formulada indemnização) se reportar a momentos temporais diversos.

E, nessa perspetiva, o momento a que se reportou a decisão anterior não coincide com aquele a que se reporta a causa de pedir do A. na presente ação: aquela decisão reportava-se ao tempo pós-transmissão executiva do bem, já que essa transmissão/alienação implicava a inexorável caducidade do direito de retenção invocado; esta causa de pedir reporta-se à fase executiva prévia a tal transmissão, numa altura em que, assim, ainda não operava a causa de caducidade/extinção.

Não parece, pois, proporcional – antes sendo excessivo, salvo o devido respeito, até no plano do direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais (cfr. art.º 20.º da CRPort. e, do mesmo modo, na legislação ordinária, o art.º 2.º do NCPCiv.) – fazer operar, nestas circunstâncias, uma dimensão de preclusão que deixasse o aqui A. na impossibilidade, na veste de lesado, de pedir indemnização contra o outro litigante na anterior ação e contra terceiro (que não era parte nessa ação).

Agora, estamos perante matéria indemnizatória, reportada a um tempo não coberto/focado pela anterior ação e respetiva decisão transitada.

Donde que, se não pode operar a exceção do caso julgado, como bem definido na decisão recorrida, também não se mostre consubstanciada a exceção, igualmente dilatória, da autoridade do caso julgado ([11]), a qual, por dilatória, haveria de levar, se bem se vê, à absolvição da instância ([12]).

De salientar ainda que o caso dos autos assume contornos diferentes daquele sobre que se debruçou o Ac. STJ de 27/05/2021, proferido no Proc. 29/12.6TBPTL.G2.S1 ([13]), amplamente citado na decisão recorrida.

Ali estava em causa, em horizonte processual de reivindicação, um direito de propriedade exclusiva (invocado pelo autor na ação anterior, cuja decisão transitara) contra semelhante direito dominial (o pretendido pelo demandado, mas só deduzido na ação posterior, já como autor), pelo que o réu na primeira ação tinha o ónus de ali reconvir com o seu pretendido direito de propriedade, sob pena de, procedendo a ação, com reconhecimento do domínio da contraparte, não poder depois o vencido, em subsequente ação, com base em factos já anteriormente conhecidos, invocar (para si) o direito que havia sido reconhecido àquela contraparte.

No nosso caso, o não reconhecimento do direito de retenção e a condenação a entregar (na anterior ação, de reivindicação) não conflitua com a pretensão indemnizatório por facto ilícito (na ação atual, de responsabilidade), tanto mais que não resultou negada a existência do direito de retenção ao tempo do imputado facto ilícito.

Note-se que a anterior ação foi decidida em saneador-sentença, sem, pois, que se tivesse produzido provas sobre a matéria controvertida quanto às vicissitudes do invocado contrato-promessa (e seu alegado incumprimento), em que o ali réu/reconvinte fundava o invocado direito de retenção. Toda esta matéria foi considerada irrelevante ou prejudicada ante a conclusão de que o direito de retenção sempre teria de ter-se por extinto, por via de caducidade, decorrente da operada transmissão/alienação executiva do bem, não podendo, assim, ser obstáculo à entrega do imóvel reivindicado.

Na atual ação, o aqui A. (ali reconvinte) não questiona o direito de propriedade, não reivindica o bem, nem insiste no reconhecimento do invocado direito de retenção. A sua pretensão é agora indemnizatória, por invocado facto ilícito anterior à transmissão do bem na ação executiva.

Sobre esta matéria nada foi pedido ou decidido na ação declarativa anterior, posto a questão indemnizatória em nada fazer parte do objeto do processo dos autos de reivindicação.

Ao ali réu/reconvinte não era exigível, em matéria jurídica complexa, que previsse/configurasse que o seu decaimento levava à preclusão quanto ao direito a uma indemnização por facto ilícito anterior à transmissão executiva do bem.

Nem tal preclusão se afigura proporcional numa situação como a dos autos, por o caso não corresponder ao que se vem entendendo por «reconvenção necessária ou compulsiva».

Com efeito, pode ler-se no sumário daquele Ac. STJ de 27/05/2021:

«I. Apesar da reconvenção ter, por regra, natureza facultativa, situação em que o não uso da faculdade de dedução de reconvenção não tem, em princípio, qualquer interferência negativa na consistência do direito material de que o réu seja titular, casos há em que a faculdade de reconvir transforma-se num ónus, na medida em que o réu necessita de reconvir para afastar o risco de futura preclusão do direito, por força do caso julgado que venha a constituir-se sobre a decisão favorável ao autor, estando-se, por isso,  perante a chamada reconvenção necessária ou  compulsiva.

II. Neste último caso, uma vez apresentada a contestação, fica, em princípio, precludida, a partir desse momento, a invocação pelo réu, quer de outros meios de defesa, quer dos meios que ele não chegou a deduzir e até mesmo daqueles que ele poderia ter deduzido com base num direito seu.» (itálico aditado).

E na fundamentação de direito desse aresto do STJ é explicitado, citando Manuel de Andrade, que se trata de “situações em que (…) «uma vez julgada procedente uma acção, nela se afirmando competir ao autor certo direito, com base em certo acto ou facto jurídico, a força e autoridade do caso julgado impedirá mais tarde, por qualquer motivo não superveniente … se possa vir impugnar aquele direito, com isto negando ou por qualquer forma se intentando prejudicar bens correspondentes por aquela decisão reconhecidos ao autor».”.

E, nessa sequência ([14]), ali se considera que, «em princípio, o efeito preclusivo dos meios de defesa apenas abarca o que constitui matéria de excepção que integre factos modificativos ou extintivos apostos à pretensão do autor, excluindo as pretensões autónomas», pelo que a situação é de «falta de autonomia» na hipótese do confronto entre os aludidos dois opostos direitos de propriedade exclusiva sobre o mesmo bem, com referência a factos não supervenientes ([15]).

Mas se ocorre tal falta de autonomia – com o que se concorda – quanto a duas sucessivas ações no quadro daquele direito de propriedade, sujeitando o réu ao ónus de reconvir quanto ao seu pretendido domínio, sob pena de não o poder fazer, após trânsito, noutra ação, isto é, no âmbito da ação de reivindicação, o mesmo não ocorre quanto a uma subsequente ação de responsabilidade/indemnizatória, como a dos presentes autos.

Com efeito, nesta – insiste-se – em nada se questiona o direito de propriedade, a obrigação de restituição e a extinção do direito de retenção, tal como definidos na decisão transitada da ação anterior, levando à procedência da reivindicação a favor da ali autora.

Pelo contrário, pressupostos estes – por assim decididos judicialmente –, parte-se para um novo plano, não encarado na anterior ação, o da responsabilidade civil, com pedido indemnizatório (ou da ação de enriquecimento).

Neste âmbito, pois, a autonomia é clara e, por isso, vale o princípio enunciado da natureza facultativa da reconvenção, com o não uso da faculdade de reconvir a não ter interferência negativa na consistência do direito material de que o réu seja titular, podendo, por isso, ser ulteriormente exercido noutro processo ([16]).

Em suma, no caso dos presentes autos há autonomia: a pretensão indemnizatória é autónoma perante a pretensão dominial, tal como é autónoma em relação ao não reconhecimento do direito de retenção, fundando-se em anterior facto ilícito (anterior à extinção, por caducidade, do direito de retenção).

Nesta ação, o A., visando ser ressarcido (por considerado dano/perda ocorrido), não pretende abalar o caso julgado constituído na ação anterior, não questionando o direito de propriedade já ali reconhecido à contraparte, nem a imposição de entrega do bem, nem a decisão de extinção, por caducidade, do direito de retenção.

O que pretende agora é outra coisa: exercer um direito indemnizatório por facto ilícito anterior àquela extinção do direito de retenção.

Perante uma tal autonomia de pretensões, impõe-se, então, a regra da liberdade de dedução da reconvenção, inexistindo neste âmbito preclusão de factos ou fundamentos, que pudesse tolher a autónoma ação indemnizatória, ademais, também contra terceiro, que não interveio na anterior ação, razão pela qual a respetiva decisão não poderia constituir caso julgado quanto a este último (ou valer com a autoridade de caso julgado).

Assim sendo, procede o recurso, obrigando à revogação da decisão recorrida e ao prosseguimento da legal tramitação dos autos.


***

IV – SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

(…)


***

V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na procedência da apelação, em revogar a decisão recorrida, determinando o prosseguimento da legal tramitação dos autos.

Custas da apelação pela parte vencida a final (nenhuma delas ficou vencida no recurso).

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 25/05/2022

         

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro



([1]) Pedido inicial, conforme consta de fls. 18 v.º do processo físico.
([2]) Que se deixam transcritas.
([3]) Subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
([4]) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([5]) Esta havia pedido o reconhecimento do seu direito de propriedade, a declaração de inexistência do direito de retenção invocado pela contraparte (o ora A.), sendo esta condenada a desocupar e entregar o espaço, com sujeição a sanção pecuniária compulsória (pela mora na entrega).
([6]) Integralmente confirmada por acórdão deste TRC e aqui referência para aferição da convocada autoridade do caso julgado.
([7]) Negrito aditado, tendo-se mantido a escrita em carateres maiúsculos.
([8]) Também contra o aqui 2.º R. (AE, que não era parte na ação declarativa anterior).
([9]) Até se colocou a hipótese – que não foi afastada – de o direito ter existido; apenas se julgando que, mesmo que outrora existisse, já entretanto se extinguiu, por força da transmissão/alienação executiva.
([10]) Como dito na fundamentação do Ac. TRC que confirmou a decisão da ação de reivindicação (com reporte à anterior ação executiva), «as referidas consequências, da falta de reclamação de créditos da execução, por falta de citação do titular de direito de retenção sobre o bem vendido na execução, não constituíam o “thema decidendum” desta acção, nem relevavam para a solução deste».
([11]) Como já entendido no Ac. TRC de 06/03/2018, Proc. 10324/15.7T8CBR.C1 (com os mesmos Relator e Adjuntos), em www.dgsi.pt: «(…) 2.- A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, com objeto parcialmente coincidente ou prejudicial face ao da ação posterior, visando evitar que a relação ou situação jurídica material definida pela sentença anterior seja definida de modo diverso por outra sentença (…). // 3.- Só ocorre autoridade de caso julgado na medida/limite do que foi apreciado e decidido, não obstando a que em novo processo seja decidido aquilo que não ficou definido no caso julgado anterior.».
([12]) O caso julgado – e a autoridade do caso julgado, por identidade de razão – é uma exceção dilatória [cfr. art.º 577.º, al.ª i), do NCPCiv., com enunciação não taxativa]. Donde que, logicamente, na configuração legal, devesse levar à absolvição da instância, obstando a que se conheça do mérito da causa, e não do pedido (o que pressuporia já o conhecimento do mérito) – art.º 576.º, n.º 2, do mesmo Cód.. Com efeito, é sabido que as exceções perentórias é que determinam a absolvição do pedido (n.º 3 do mesmo art.º). Todavia, embora seja incontroversa a qualificação do caso julgado como exceção dilatória para grande parte da doutrina, tal qualificação ainda «é discutível, visto que o seu principal efeito, de natureza preclusiva (a indiscutibilidade do acertamento das situações jurídicas das partes), se produz no campo do direito material, dele sendo mera consequência a proibição de repetir ou contradizer a decisão proferida» (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, ps. 582 e seg.).
([13]) Relatado pela Cons. Rosa Tching e disponível em www.dgsi.pt.
([14]) De acordo com o Ac. STJ de 10/10/2012, Proc. 1999/11.7TBGMR.G1.S1 (Cons. Abrantes Geraldes), em www.dgsi.pt.
([15]) Como dito no sumário deste Ac. de 10/10/2012: reconhecido ao autor o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno e condenado o réu na sua restituição e na demolição da construção que na mesma foi erigida, tal impede que este, em nova ação, peça o reconhecimento do direito de propriedade sobre a mesma parcela, ainda que com fundamento na acessão industrial imobiliária. A segurança e a certeza jurídica decorrentes do trânsito em julgado da decisão obstam a que em posterior ação se questione o direito de propriedade e as obrigações de restituição e de demolição reconhecidas na primeira ação com base numa realidade que naquela ocasião já se verificava e que aí poderia ter sido invocada quer para impedir a procedência da ação, quer para sustentar, em sede de reconvenção, o direito potestativo de acessão imobiliária.
([16]) Em conformidade com o disposto no art.º 266.º, n.º 1, do NCPCiv. («o réu pode…») e ao invés do vigente e exigente princípio da concentração da defesa no articulado de contestação, a que alude o art.º 573.º, n.º 1, do mesmo Cód..