Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
787/13.0TACTB.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
JULGAMENTO
SENTENÇA
FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 05/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 339.º, N.º 4, 358.º, N.ºS 1 E 3, 368.º, N.ºS 1 E 2, 374.º, DO CPP
Sumário: I – A alteração da qualificação jurídico-penal dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não constitui, no nosso sistema processual, uma questão prévia ou incidental, mas sim uma questão de fundo, só podendo, por isso, ser apreciada na estrutura da sentença prevista no artigo 374.º do Código de Processo Penal, depois de julgados os factos como provados e não provados, com indicação dos respectivos fundamentos.

II – Deste modo, ainda que para efeito de declaração da prescrição do procedimento criminal, não é legalmente admissível a alteração da qualificação jurídica – no caso, do imputado crime de fraude fiscal qualificada para o crime de fraude fiscal simples –, sem a fixação, na sentença, da matéria de facto considerada provada e não provada.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I. RELATÓRIO

1. Em processo comum e perante o tribunal singular, foram pronunciados os arguidos:

AA, casado, médico, nascido a .../.../1954, em ..., ..., filho de BB e de CC, e residente na Rua ..., ... – ...;

DD, casado, farmacêutico, nascido a .../.../1938, em ...l, ..., filho de EE e de FF, residente na Rua ..., ...;

GG, divorciado, médico, nascido a .../.../1963, em ..., ..., filho de JHH e de II, residente na Rua ..., ..., ..., e

JJ, casado, médico, nascido a .../.../1955, em ..., ..., filho de KK e de LL, residente na Praceta ... – ...,

imputando-lhes a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º nº 1 als. a) e c) e 104º nº 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de junho, na redacção dada pela Lei nº 60-A/2005, de 30 de dezembro.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença datada de 11 de outubro de 2021, onde consta a seguinte Decisão:

Altera-se a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação – para a qual se remete no despacho de pronúncia – nos termos e para os efeitos previstos no artigo 358º nºs 1 a 3 do Código de Processo Penal, subsumindo-se tais factos, relativamente a cada arguido, a um crime de fraude fiscal simples, p. e p. pelo artigo 103º nº 1 als. c) do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pela Lei nº 60-A/2005, de 30 de Dezembro, por força do disposto no artigo 2º nº 4 do Código Penal, e declara-se a extinção do procedimento criminal contra os arguidos AA, DD, GG e JJ, por força da prescrição do procedimento criminal, nos termos previstos no artigo 21º do referido diploma e no artigo 118º nº 1 al. c) do Código Penal.

Em consequência, não se determina a perda de vantagens requerida pelo Ministério Público em sede de acusação (artigo 110º nºs 1 al. b) e 4 a contrario do Código Penal).

3. Inconformado, recorre o Ministério Público, concluindo (após convite ao abrigo do disposto no artigo 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal)

1. A sentença recorrida limita-se a apreciar a questão prévia da prescrição, sem apreciar o fundo ou mérito da questão, não constando da mesma nem a fundamentação, com os factos provados e não provados, nem tão pouco o dispositivo com as disposições legais aplicáveis e a decisão condenatória ou absolutória, pelo que incorreu a mesma na falta de cumprimento do disposto no art. 374º, n.ºs 2 e 3 do C. P. Penal, sendo nula, nos termos do art. 379º, n.º 1, al. a) do C. P. Penal.

2. A sentença recorrida não podia ter conhecido da prescrição sem conhecer do mérito da causa, elencando os factos provados e não provados, para então, a partir dos primeiros, aferir se aquela se verifica ou não.

3. A sentença recorrida errou ao considerar que os factos em causa seriam apenas suscetíveis de integrar o crime de fraude fiscal simples, e não do crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, n.º 2 do RGIT, como constava na acusação e do despacho de pronúncia.

4. A sentença recorrida não poderia ter declarado o procedimento criminal extinto por prescrição, uma vez que a contagem do respetivo prazo apenas se iniciou com o recebimento dos valores que os negócios simulados pretendiam ocultar às autoridades fiscais, sendo que a sentença não é omissa relativamente à data em que tal recebimento ocorreu.

5. Em qualquer caso, considerando a factualidade constante do despacho de pronúncia, a data em que os arguidos foram notificados do despacho de acusação e o disposto pelos arts. 118º, nº 1, alínea b) e 121º, nº 1, al. b), ambos do Cód. Penal, e art.º 21º, nº 4, do RGIT, o procedimento criminal não se encontra prescrito.

6. A sentença recorrida, ao fundamentar a decisão sobre a prescrição em factos que não considerou como provados, nomeadamente os relativos às datas dos contratos simulados e a forma como a fraude foi concretizada, incorreu em contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vício previsto pelo art.º 410º, nº 2, al. b), do C.P. Penal.

7. Além disso, constata-se que estamos perante um vício por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, na medida em que o Tribunal “a quo” não fez um juízo crítico e minimamente entendível sobre a forma como chegou a dar como não provados a maioria dos factos constantes da decisão instrutória, além de que a decisão de considerar os crimes prescritos não se fundamenta nem baseia na matéria de facto provada, a qual não existe, por não existir decisão de mérito, nos termos do disposto no art. 410º, n.º 1, al. a) do C. P. Penal.

8. A sentença recorrida violou, assim, o disposto pelos arts. 374º, nº s 2 e 3, 410º, nº 2, alíneas a) e b), ambos do C.P. Penal, arts. 21º, nº 4, 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, n.º 2 do RGIT, e arts. 118º, nº 1, alínea b) e 121º, nº 1, al. b), ambos do Cód. Penal, devendo ser declarada a nulidade da referida sentença, e ser ordenado a repetição do julgamento ou, sem conceder, caso assim não se entenda, deve ser revogada e substituída por outra que considere os arguidos autores materiais da prática dos crimes de que vinham acusados, e que lhe aplique uma pena que considere adequada à gravidade do ilícito e à situação pessoal dos arguidos, anterior e posterior à prática dos factos.

4. Os arguidos, AA, GG e JJ, em reposta, concluem:

1. Nas suas conclusões agora renovadas, o Recorrente converte dois pedidos contraditórios em pedidos subsidiários (nascendo ambos da mesma alegada nulidade da sentença):

2. Pugna para que a sentença seja declarada nula, ordenando-se, em consequência, a repetição do julgamento.

3. Subsidiariamente, pede que a sentença seja revogada e substituída por outra que que condene os Recorridos!

4 Este pedido subsidiário é feito apesar de o Recorrente assinalar, como uma das falhas da sentença e determinante a sua nulidade, a falta de indicação dos factos provados e dos factos não provados.

5. Pelo que, salvo melhor leitura, o Recorrente entenderá que esse Venerando Tribunal poderia condenar os Recorridos mesma na ausência de factos provados e não provados!

6. Preterindo as regras relativas à impugnação da matéria de facto, como melhor se explicita na página 4 desta resposta.

7. O que, reitere-se, coexiste, de forma inexplicável, com o pedido formulado no sentido de que a sentença seja declarada nula!

8. Pelo que os pedidos continuam a ser contraditórios e incompatíveis, o que os torna ininteligíveis na sua convivência.

Por outro lado:

9. O Recorrente não indica, de forma inequívoca, o momento no qual entende que se deverá iniciar a contagem do prazo de prescrição.

10. Havendo, como se assinalou, contradição entre excertos da motivação e a conclusão exarada a este respeito, como melhor se detalha nas páginas 4 a 6 desta resposta.

11. O que corresponde à violação do disposto na alínea b), do n.º 2, do artigo 412.º do CPP.

Por último cabe dizer que:

12. A Sentença recorrida procedeu à correta interpretação e aplicação do direito, quando decretou a prescrição do procedimento criminal.

13. Para o que dispunha de todos os elementos necessários, os quais foram retirados da Acusação.

14. A Sentença recorrida utilizou como ponto de partida para a contagem do prazo de prescrição, aquele que foi também considerado como relevante no despacho de pronúncia.

15. O despacho de pronúncia transitou em julgado, sendo que o Recorrente com ele se conformou.

16. Uma vez julgada a prescrição enquanto questão prévia, o Tribunal “a quo” não deve julgar as questões que só teria de conhecer se a prescrição não tivesse ocorrido.

17. O facto de a prescrição ter sido conhecida na Sentença recorrida, isto é, após o julgamento, não lhe retira a natureza de questão prévia.

18. É manifesto o lapso em que incorre o Recorrente quando refere ser qualificado o tipo previsto no artigo 103 n.º 1 alíneas a) e c) do RGIT aprovado pela Lei 15/2001 de 5 de junho, na redação dada pela Lei 60-A/2005 (redação aqui aplicável, como o próprio Recorrente admite).

19. A constatação de que a conduta dos Recorridos não foi enquadrável no disposto no artigo 104 do RGIT, na redação aqui aplicável, resulta da própria Acusação, pelo que não carece de mais detalhe.

20. Para conhecer, como conheceu, da prescrição, o Tribunal recorrido precisou apenas de constatar a inexistência da utilização de faturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes, ou a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente.

21. Sendo que a conduta dos Recorridos nada tem de criticável, pois não praticaram qualquer crime, inclusivamente o previsto no artigo 103 do RGIT.

5. O arguido DD, respondendo, ao Recurso, conclui:

 1) (…)

2) (…)

3) (…)

4)  (…)

5) Em resumo, o recorrente assenta o recurso que interpôs na premissa, errada, de acordo com a qual não é possível concluir

pela prescrição do procedimento penal contra o arguido, sem que, antes, se aprecie a questão de mérito.

6) Ao não apreciar a questão prévia da prescrição em momento anterior ao da realização do julgamento, o Tribunal a quo não ficou impedido de o fazer, depois do julgamento realizado, previamente ao conhecimento do mérito da factualidade levada à acusação.

7) Como, aliás, a decisão recorrida deixa claro, constituindo a prescrição uma questão prévia, deve a mesma ser apreciada previamente ao mérito da acusação, visto que as questões devem ser organizadas na sentença por uma ordem de precedência lógica, não carecendo o Tribunal «de conhecer o mérito da factualidade objeto do processo para poder analisar se se verifica, ou não, a prescrição invocada pelos arguidos».

8) A prescrição advém dos próprios termos da acusação, sendo que é apenas da factualidade contida na acusação (e não de qualquer outra) que o Tribunal a quo se serve para concluir pelo acerto da prescrição arguida pelos arguidos.

9) Em face da factualidade do libelo acusatório, o Tribunal a quo concluiu que a mesma apenas é subsumível no âmbito do crime de

fraude fiscal simples, como os arguidos propugnaram, e não no de fraude fiscal qualificada, como o recorrente erradamente defende.

10) E, de facto, a factualidade vazada na acusação subsume-se ao tipo de crime previsto nas alíneas a) e c), do número 1, do artigo 103.º 23 do RJIT e não no número 2 do artigo 104.º do mesmo regime jurídico.

11) Em parte alguma da acusação deduzida se faz referência à utilização,        pelos      arguidos «de               faturas    ou documentos

equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes».

12) O arguido DD foi constituído arguido em 16 de janeiro de 2015 e, de acordo com o despacho de pronúncia, «o facto tributário concretiza-se, para efeitos do citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo com o ato de alienação das participações sociais – ou seja, é neste momento que se apura se aquele ato gerou ou não, na esfera jurídica dos sujeitos passivos, aqui arguidos, mais valias sujeitas, mais tarde, a tributação.».

13) Pelo que, o facto tributário dos autos concretizou-se em 19.03.2008, aquando da celebração do contrato de compra e venda de ações.

4) Uma vez que o crime de fraude fiscal simples é punível com pena de prisão até três anos e a alínea c) do número 1 do artigo 118.º do Código Penal fixa, para os crimes puníveis com pena de prisão de um ano até cinco anos, o prazo normal de prescrição cinco anos, quando o arguido DD foi constituído arguido, já o crime pelo qual foi acusado prescrevera (já haviam decorrido seis24 anos, nove meses e vinte e oito dias).

15) A prescrição que o Tribunal a quo declarou ocorreu em 19.03.2013.

16) Pelo que, é evidente o acerto do Tribunal a quo ao alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, declarando subsumirem-se tais factos a um crime de fraude fiscal simples, previsto e punido pelo artigo 103.º, número 1, alínea c) do RGIT, e, por conseguinte, ao declarar extinto o presente procedimento criminal, em face de se ter exaurido o respetivo prazo prescricional.

17) A douta sentença proferida nos autos é, assim, correta, tanto na forma como no conteúdo, não enfermando de qualquer nulidade e nem violando qualquer preceito, designadamente aqueles que lhe são apontados no               recurso, encontrando-se, aliás, absolutamente coincidente com o Direito constituído.

6. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador emitiu douto Parecer, sufragando a posição e os fundamentos do Recorrente.

7. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.

8. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.

III.  A SENTENÇA RECORRIDA

A sentença sindicada tem o seguinte teor:

«Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, como se pode verificar nas respectivas actas.


***

Importa agora verificar se se cumprem os pressupostos de regularidade e validade da instância e se existem nulidades ou questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa.

Efectivamente, preceitua o artigo 368º nº 1 do Código de Processo Penal, inserido sistematicamente no Título III do Livro VII, Parte II, referente à sentença, que “o tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão”, esclarecendo-se no número seguinte que apenas se prossegue nos termos aí previstos “se a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada”.


*

(….)

Todos os arguidos invocaram, na respectiva contestação, a prescrição do procedimento criminal, em virtude de considerarem que os factos descritos na acusação não se subsumiam ao crime de fraude fiscal qualificada, mas, quando muito, ao crime de fraude fiscal simples (tendo em conta a redacção aplicável à data dos factos).

Traduzindo-se a prescrição numa questão prévia, ainda que de natureza substantiva, há que apreciá-la nesta fase, porquanto as questões devem ser organizadas na sentença segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica (o que resulta quer das normas processuais penais, designadamente dos artigos 338º e 368º do Código de Processo Penal, quer das normas processuais civis, mormente do artigo 608º do Código de Processo Civil).

Ademais, este não é um dos casos em que Tribunal necessita de conhecer o mérito da factualidade objecto do processo para poder analisar se se verifica, ou não, a prescrição invocada pelos arguidos.

Mais especificamente, a prescrição do procedimento criminal consubstancia uma das causas de extinção da responsabilidade criminal, sendo certo que tais causas se verificam “em momento posterior ao facto, porém, extinguindo a responsabilidade criminal, fazem cessar a possibilidade de a mesma ser apurada ou de ser executada a pena ou medida de segurança, entretanto, aplicada” – cf. Pedro Filipe Gama da Silva, “A prescrição como causa de extinção da responsabilidade criminal – Um estudo de direito penal português”, Dissertação de Mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015, p. 14.

No caso concreto, é imputada a cada um dos arguidos a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º nº 1 als. a) e c) e 104º nº 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de junho, na redacção dada pela Lei nº 60-A/2005, de 30 de dezembro (vigente à data dos factos descritos na acusação, por força do disposto no artigo 2º nº 4 do Código Penal).

Para se conhecer da eventual prescrição do procedimento criminal, cabe desde logo ter em conta que:

- AA foi constituído arguido em 9 de janeiro de 2015 (cf. fls. 210);

- DD foi constituído arguido em 16 de janeiro de 2015 (cf. fls. 238);

- GG foi constituído arguido em 20 de janeiro de 2015 (cf. fls. 248);

- JJ foi constituído arguido em 22 de janeiro de 2015 (cf. fls. 316).

Previamente à respectiva constituição como arguido, inexistiu qualquer causa de suspensão ou de interrupção do procedimento criminal (cf. o artigo 21º do Regime Geral das Infracções Tributárias e os artigos 120º e 121º do Código Penal).

Cumpre igualmente mencionar que, como decorre da acusação, estão aqui em causa, no essencial, contratos de compra e venda de acções datados de 19 de março de 2008 (cf. o ponto 12. da acusação) e de 28 de março de 2008 (cf. os pontos 18 a 21 da acusação), todos eles juntos aos autos.

Quanto às normas legais indicadas na acusação e no despacho de pronúncia, veja-se que o artigo 103º do Regime Geral das Infracções Tributárias, na mencionada redacção, previa o seguinte:

“1. Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:

a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;

b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;

c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.

2. Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000.

3. Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.

Por seu turno, o artigo 104º deste diploma, na redacção em causa, estabelecia o seguinte:

“1. Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:

a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;

b) O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções;

c) O agente se tiver socorrido do auxílio do funcionário público com grave abuso das suas funções;

d) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;

e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro;

f) Tiver sido utilizada a interposição de pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;

g) O agente se tiver conluiado com terceiros com os quais esteja em situação de relações especiais.

2. A mesma pena é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente.

3. Os factos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do presente preceito com o fim definido no n.º 1 do artigo 103.º não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber”.

Na perspectiva dos arguidos, não se mostra verificado o circunstancialismo previsto no artigo 104º nº 2 do referido diploma legal, uma vez que não resulta dos factos a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes, nem a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente.

Ora, neste particular, adianta-se desde já que se entende assistir-lhes razão, concordando- se com a contestação deduzida por AA, GG e JJ na parte em que aí se refere que “não se vislumbra, na narrativa acusatória, a mais ténue indicação de que os Arguidos tenham, em algum momento, utilizado faturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes”.

Efectivamente, observa-se que, na situação em análise, está e sempre esteve em causa a celebração de contratos que, na tese seguida na acusação, incluíram, de uma forma fictícia e encapotada, valores adicionais no preço global das acções vendidas pelos arguidos, referentes às obrigações de não concorrência e à prestação de serviços médicos e de consultadoria acordados, para que tais valores adicionais pudessem igualmente aproveitar, de modo ilegítimo, da exclusão de tributação que as mais-valias emergentes da alienação das acções beneficiavam (ao abrigo do que dispunha o artigo 10º nº 2 al. b) do Código do I.R.S. vigente à data), dissimulando aqueles, desta maneira, os valores reais pelos quais tinham sido vendidas as acções, sendo que as declarações de rendimentos subsequentemente entregues não iriam conter os valores de todos os proveitos tributáveis.

Perante este cenário, aceita-se o enquadramento da factualidade imputada aos arguidos no âmbito do crime de fraude fiscal simples, devendo ser tido em conta, no que respeita ao conceito de simulação, o artigo 240º nº 1 do Código Civil, de acordo com o qual “se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado”, bem como o artigo 241º nº 1 do mesmo diploma, que a respeito da simulação relativa refere que “quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado”.

Todavia, já não se aceita o enquadramento de tal factualidade no âmbito do artigo 104º do Regime Geral das Infracções Tributárias, na redacção dada pela Lei nº 60-A/2005, de 30 de dezembro.

Na verdade, não surge imputada aos arguidos nem nunca esteve em causa a utilização de outros documentos de suporte à alegada fraude fiscal, assim como factualidade que permita integrar o caso no nº 1 deste mesmo artigo. não surge descrita

Ora, os contratos não se confundem com facturas ou documentos equivalentes a estas.

Apesar de a emissão da “factura falsa” pressupor um negócio – uma compra e venda ou prestação de serviços – ou seja, pressupor um negócio subjacente que pode existir noutros termos (simulação relativa) ou nem sequer existir (simulação absoluta), não se pode olvidar que a simulação é uma das condutas típicas previstas no artigo 103º do Regime Geral das Infracções Tributárias e que a qualificação a que alude o artigo 104º exige mais do que isso, resultando “da consideração da especial gravosidade do meio, tornando mais difícil a sua descoberta” (cf. Germano Marques da Silva, “Direito Penal Tributário”, 2ª edição revista e ampliada, Universidade Católica Editora, p. 237).

Na mesma obra, faz-se notar que, sobre o conceito de factura, há que observar o artigo 476º do Código Comercial e o Decreto nº 19.490, de 21 de março de 1931 (além de que, para relevar em sede fiscal, vieram a ser impostos requisitos específicos do Código do I.V.A.).

Decompondo o texto da lei, este autor prossegue explicando o seguinte: “As faturas ou documentos equivalentes podem referir-se a operações inexistentes, a valores diferentes ou com intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente.

A operação pode ser real, existente, mas ser emitida por pessoa diversa da que realizou a operação subjacente (v.g., o serviço foi prestado por uma pessoa e a fatura ou recibo de honorários emitidos por outra) ou a fatura ou equivalente serem reais, corresponderem a uma operação efetiva, mas não poderem ser contabilizados como despesa do contribuinte que a incluiu nas suas contas (v.g., o serviço é prestado individualmente a um sócio ou gerente e a fatura ou recibo de honorários é emitida em nome da empresa; o recibo de parqueamento ou portagem em que o estacionamento ou portagem nada tenha a ver com o contribuinte que o utiliza).

Documento equivalente é o que substitui a fatura para efeitos de contabilização da despesa (v.g., recibos de honorários modelo 6, talões/recibos de parqueamento, talões/recibos de portagens, etc.).

Note-se que muito de propósito o legislador não se refere a faturas falsas, mas a utilização de faturas por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das operações subjacentes. As faturas ou documentos equivalentes podem ser verdadeiros, material e ideologicamente, mas não serem ilegíveis para o contribuinte em causa, o que constituirá uma espécie de falsidade ideológica dado a fatura ser contabilizada como despesa do contribuinte e na realidade é despesa de terceiro.

A consideração da especial gravosidade das faturas por operações inexistentes ou por valores diferentes ou com intervenção de pessoas ou entidades diversas das operações subjacentes, em termos de só por si determinar a qualificação da fraude, foi, ao que pensamos, resultante de essa ser uma prática muito frequente, pelo menos ao tempo da elaboração do projeto do RGIT” (Op. Cit., p. 237 e 238).

Posto isto, observando-se que a factualidade imputada aos arguidos, que constitui o objecto do processo, se subsume ao crime de fraude fiscal simples, e não ao crime de fraude fiscal qualificada, por não se mostrar verificada qualquer uma das circunstâncias vertidas no artigo 104º do Regime Geral das Infracções Tributárias, tendo em conta a redacção legal vigente à data, o prazo de prescrição do procedimento criminal aplicável é de cinco anos, de harmonia com o preceituado nos artigos 21º e 103º nº 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias e no artigo 118º nº 1 al. c) do Código Penal.

Relativamente ao momento relevante para efeitos de consumação deste crime (e, consequentemente, por força do estatuído no artigo 119º nº 1 do Código Penal, para efeitos de se poder afirmar que começa a correr o prazo de prescrição do procedimento criminal), adere-se ao entendimento que foi sufragado no despacho de pronúncia – que não suscitou qualquer reacção, mormente do Ministério Público, na medida em que não foi interposto recurso da decisão instrutória – isto é, ao entendimento de que o momento da consumação do crime de fraude fiscal, em casos como o descrito nos autos, é o da data da celebração do contrato simulado (da alienação das participações sociais), independentemente da apresentação da respectiva declaração de rendimentos e independentemente de as contrapartidas poderem ser pagas em tranches.

Na verdade, atentando-se ao que surge explicitado pelo Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão nº 5/2017 (in D.R. nº 180/2017, Série I, de 18 de setembro de 2017), conclui-se que o facto tributário ocorre no momento do acto de venda das acções, sendo em tal momento em que se deve apurar se tal acto é gerador de mais-valias sujeitas a tributação.

De resto, o prejuízo patrimonial do Estado pode não chegar a concretizar-se, devendo frisar-se que está em causa um crime de perigo. Assim, o que releva é a conduta adoptada pelo agente que vise ou seja preordenada à obtenção ilegítima de vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem a diminuição da receita tributária.

Com relevo para a análise desta questão, cumpre também mencionar que o bem jurídico protegido com esta incriminação não é a exactidão da declaração a apresentar à administração tributária, mas o património do Estado. Por isso é que só há crime quando o fim visado pelo agente seja a não liquidação, entrega ou pagamento do imposto, ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais, susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. E o facto gerador da diminuição de receitas do Estado, pretendido pelos agentes do crime, é o negócio simulado.

Sobre esta matéria, podem ser consultados, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de Setembro de 2012, no processo nº 379/07.3TAILH.C1 (em que se escreveu, nomeadamente, que “E é esta a orientação que consideramos adequada, consumando-se o crime com a ação orientada para a obtenção de uma situação tributária favorável, que no caso é a celebração do negócio”); o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de Novembro de 2016, no processo nº 438/10.5IDPRT.P1; o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Junho de 2021, no processo nº 159/04.8IDAVR.P1, e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Janeiro de 2017, no processo nº 5/11.6IDFUN.L1-5, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Pois bem, sendo este o ponto de partida, ou seja, ocorrendo a consumação do crime imputado a cada arguido no momento da celebração do respectivo negócio da venda das acções datado de 28 de Março de 2013, momento em que, de acordo com a tese vertida na acusação, os arguidos decidiram ocultar à Administração Fiscal os valores referentes às obrigações de não concorrência e à prestação de serviços médicos e de consultadoria, conclui-se que, nas datas em que AA, DD, GG e JJ foram constituídos arguidos nestes autos, já tinha decorrido o prazo de cinco anos previsto nos supra citados artigos legais.

Em face do exposto, há que proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação (para a qual se remete no despacho de pronúncia), nos moldes previstos no artigo 358º nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal e, consequentemente, há que declarar a extinção do procedimento criminal pendente contra os arguidos, por força do decurso do respectivo prazo prescricional, ficando assim prejudicada a apreciação do mérito da causa.

De facto, e como o refere Pedro Filipe Gama da Silva (Op. Cit., p. 14 e 15), “O destino de qualquer procedimento criminal, que nasce com a notícia do crime (art. 241º do CPP)27, é a sua extinção. Esta extinção ocorre, em regra, com a sentença absolutória ou com o cumprimento da pena aplicada por decisão condenatória, transitada em julgado. Nestes casos, apurou-se a responsabilidade criminal do agente do crime, através de uma decisão de mérito, absolutória ou condenatória, sendo, neste último caso, definidas as consequências jurídicas do crime. Tal não ocorre no caso de, durante o processo criminal, ocorrer a prescrição. Do mesmo modo, tal não ocorre no caso de se verificar, por exemplo, a morte do arguido. (…) a extinção da responsabilidade penal ocorre apesar do mérito da causa, isto é, sem efectivo e definitivo apuramento sobre se uma determinada pessoa praticou (ou não) um determinado crime”.

Acrescenta o mesmo o autor que “(…) o âmbito da relação processual penal prende-se com a definição da responsabilidade criminal do agente do crime. Naturalmente que, uma vez extinta essa responsabilidade criminal, seja qual for a causa dessa extinção, o processo criminal deixa de poder prosseguir os seus termos e, de certo modo, torna-se inútil, não havendo fundamento para prosseguir” (Op. Cit., p. 17, sombreado nosso).

Por outra banda, cumpre explicitar que não se comunicou a alteração da qualificação jurídica que levou a que se considerasse prescrito o procedimento criminal, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 358º nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, dado que todos os arguidos se pronunciaram neste sentido em sede de contestação, não cumprindo, deste modo, salvaguardar os direitos de defesa daqueles.

Na verdade, apesar de o nº 3 do artigo 358º do Código de Processo Penal apenas remeter para o nº 1, e não para o nº 2 do mesmo artigo, adere-se ao entendimento, que se considera ser pacífico, segundo o qual “Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, o legislador entendeu dever tomar posição perante as diversas posições doutrinais e jurisprudenciais assumidas, tendo consagrado, por via de aditamento de um número ao artigo 358º, o 3, a solução da livre qualificação jurídica dos factos pelo tribunal do julgamento, com reserva da obrigatoriedade de prévia comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica e da concessão, a requerimento daquele, do tempo necessário à preparação da defesa, ressalvando os casos em que a alteração derive de alegação feita pela defesa – n.º 2 do artigo 358º (…) Assim e atenta a ratio do instituto, vem-se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido – artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República – o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder-lhe prazo para preparação da defesa” (cf. o A.U.J. nº 7/2008, do Supremo Tribunal de Justiça, bem como o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7 de Abril de 2015, no processo nº 203/12.5GBCTX, estando ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque também é claro ao explicitar que não há necessidade de comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos nos casos em que a alteração deriva da posição da defesa (In “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, p. 930).

Saliente-se ainda que, na medida em que a declaração da prescrição do procedimento criminal implicava, no caso sub judice, que se efectuasse uma alteração da qualificação jurídica dos factos, tal declaração não podia ocorrer sem que fosse produzida prova em audiência de julgamento. Com efeito, não se podia deixar de ter em atenção que no A.U.J. nº 11/2013, do Supremo Tribunal de Justiça (disponível em www.dgsi.pt), se fixou jurisprudência no seguinte sentido: “A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artº 358º nºs 1 e 3 do CPP”.

Importa assinalar que, já antes deste aresto, existia o entendimento de que “O tribunal não pode, no início da audiência de julgamento, proferir despacho a alterar a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido na acusação (…) Valem neste momento as mesmíssimas razões que obstam à alteração da qualificação jurídica no momento do saneamento dos autos (…) ou entre este momento e o momento e o início da audiência” (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Op. Cit., p. 873).

Daí que fosse necessário proceder à realização da audiência de julgamento e à produção de prova. Mas tal obsta a que, como dito, e pelos motivos já explanados, se deva organizar, na sentença, as questões pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência, considerando-se que, in casu, face à conclusão a que se chegou, não há que prosseguir no sentido da apreciação do mérito da causa, em virtude de já se mostrar excluída a responsabilidade penal dos arguidos».

III. OBJECTO DO RECURSO

1. A apreciação das questões colocadas pelo Recorrente e pelos recorridos, devem seguir uma ordem, que é lógica e resulta da própria lei adjectiva, considerada sistematicamente, na sua unidade.

Em primeiro lugar, a nulidade da sentença; depois, os vícios que o seu contexto revele; depois o conhecimento da questão de facto e por fim a discussão dos aspectos jurídicos da causa.

Começando a nossa análise pela questão da nulidade (também de conhecimento oficioso) -  se a mesma vier a proceder, o conhecimento das demais ficarão prejudicadas – cabe, desde logo, notar na sentença a falta fundamentação de facto, nas vertentes de enumeração dos factos provados e não provados e do exame critico da prova.

Tal omissão é justificada pelo tribunal recorrido por considerar que a prescrição, sendo uma questão prévia, ainda que de natureza substantiva, que obsta ao conhecimento de mérito da causa, deve ser apreciada em primeiro lugar, de acordo com as regras do disposto nos artigos 338º e 368º, do Código de Processo Penal (diploma a que nos referiremos de ora em diante, sem menção do contrário) e do artigo 608º do Código de Processo Civil.

Mais considerou, que, na sequência da jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, foi necessário proceder à realização da audiência de julgamento e à produção de prova, não sendo, contudo, exigido, se fixe a matéria de facto na sentença, em virtude de a responsabilidade criminal dos arguidos se encontrar extinta por prescrição.

Pelo que, a primeira decisão do Tribunal a quo não incidiu directamente sobre a prescrição, mas sobre a modificação da qualificação jurídica dos factos, sem a qual aquela não teria lugar.

Ora, sendo pacifico que, mantendo-se intacto o objecto de processo fixado pela acusação ou despacho de pronúncia se o houver, a prescrição é de conhecimento oficioso ou a requerimento de qualquer interessado,  em qualquer momento do processo, designadamente, antes de iniciar a audiência de julgamento (artigo 338.º, n.º 1),  a primeira questão que se coloca não é a de saber se a prescrição se verificou, mas antes a de saber se  alteração da qualificação jurídica dos factos, no regime processual vigente, integra o conceito de questão prévia que obste ao conhecimento de mérito da causa e, como tal, deva ser apreciada na sentença antes da decisão de facto.


***

De acordo com o disposto no artigo 368.º, n.º 1 e 2, primeira parte, o juiz começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão (n. º1), e se o conhecimento da decisão de mérito não tiver ficado prejudicada, enumera discriminada e especificamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa (n. º2).

Por seu turno, estatui o artigo 338.º, n.º 1:

O tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer outras que as questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar.

As questões prévias que devem ser conhecidas na sentença ao abrigo do disposto no artigo 368.º, n.º 1 e 2, primeira parte são: 1) as susceptíveis de obstar à apreciação de mérito da causa; b) as que não tenham sido objecto de decisão e c) as que possam, desde logo, ser apreciadas.

Deverão ser conhecidas pela ordem da sua precedência lógica a que se encontram submetidas as decisões judiciais (artigo 608.º, do Código de Processo Civil), devendo o juiz começar por apreciar as questões de cujo conhecimento possa fazer precludir o conhecimento das demais.

Ao consagrar a ordem de apreciação das questões suscitadas, o legislador revela o cuidado de eliminar práticas de actos processuais inúteis.

Foi com base nestes preceitos, que o tribunal recorrido decidiu como questão prévia, alterar as normas jurídico-penais aplicáveis aos factos narrados no despacho de pronúncia, defendendo que, neste caso, não recai sobre o julgador o dever de fixar na sentença a fundamentação de facto, nos termos do n.º 2, do artigo 374.º.

Com o devido respeito, não acolhemos tal posição.

Não constitui novidade que o processo penal tem estrutura acusatória integrada por um principio de investigação da verdade material (artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa), competindo ao Ministério Público exercer a acção penal, orientada pelo principio da legalidade [artigo 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto do Ministério Público e 53.º, n.ºs 1 e 2, alínea c)].

Uma das consequências da estrutura acusatória do processo criminal consiste na designada «vinculação temática do tribunal» significando que o objecto do processo penal é o objeto da acusação, sendo este que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado.

Formulada a acusação -  pública ou particular, para o que, além do mais deve narrar os factos e indicar as disposições legais aplicáveis [art.283.º, n.º 3, alínea c)] – ou proferido despacho de pronúncia, caso tenha havido instrução – artigo 308.º-  encontra-se fixado o objecto do processo perante o juiz, aqui incluindo a qualificação jurídico dos factos.

Neste particular, importa reter - como assinala Frederico Isasca (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, fasc. 3, julho Setembro de 1994, Frederico Isasca, páginas 100 e 104 – que o seu objecto são os factos.

 «São os factos que formam um acontecimento da vida: debilitado no espaço e no tempo, e que se imputam a certo sujeito Objecto da qualificação jurídica é, portanto, o facto processual, i. e., o objecto do processo. Qualificar um determinado facto do ponto de vista jurídico-penal é subsumir um determinado acontecimento na descrição abstracta de uma preposição penal, i. e., verificar se aquele comportamento concreto daquele agente, corresponde ou não, ao comportamento abstractamente descrito numa dada lei penal como constituindo um crime. Nisto e só nisto consiste a qualificação jurídico-penal.

(…)

A liberdade do tribunal, no que concerne à apreciação da questão de direito, é, numa outra perspectiva, uma decorrência lógica do dever que sobre ele impende de uma apreciação esgotante de todo o objecto do processo. (…). Entendemos, pois, que só uma apreciação esgotante da matéria de facto, i. e., a sua apreciação sob todos os pontos de vista jurídicos possíveis, é compatível com a posição que acolhemos em sede de caso julgado e por sua vez coerente com a liberdade de qualificação que aqui se defende.».

Por outro lado, ensina Germano Marques da Silva - Curso de Processo Penal, I, 5.ª edição revista e actualizada, pág. 382 -:

«A norma incriminadora não faz parte do facto, mas a é a referência à norma que dá ao facto concreto sentido de ilicitude.

O facto com relevância penal é o facto com significado e esse significado é-lhe dado pela referência à norma incriminadora. Por isso a alteração da norma incriminadora pode alterar a significação do facto. Logo a sua relevância jurídico-penal.

A referência à norma revela o interesse tutelado e os limites em que o bem jurídico é tutelado pelo direito penal e o que a lei penal exige é o conhecimento da protecção penal desse interesse e dos termos em que é protegido, do desvalor jurídico do comportamento objecto da acusação. (…)».

A propósito da liberdade de o juiz alterar a qualificação jurídico dos factos, no inicio da audiência, ao abrigo do disposto no atrigo 338.º, nº. 1, surgiu a conhecida divergência jurisprudencial, dirimida no Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, de 12 de junho de 2013 mencionado na sentença recorrida.

Aí se fixou a seguinte jurisprudência:

«A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358º n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal.»         

É certo que esta jurisprudência visa expressamente os poderes de cognição do Tribunal sobre a liberdade do juiz na alteração da qualificação jurídica como questão prévia ou incidental a decidir no inico da audiência ao abrigo do disposto no artigo 338.º, n.º 1.

Também é certo, como se afirma na sentença recorrida, que a modificação do enquadramento legal só pode ser decidida, após a produção de prova.

O que já não nos parece certo, é que o juiz se possa pronunciar, na sentença, sobre o direito (a qualificação jurídica e a consequente prescrição) sem enumerar os factos provados e não provados que resultaram da prova produzida.

Desde logo, porque a modificação da qualificação jurídica assume natureza de apreciação de fundo sobre a decisão da matéria de facto. Esta precede aquela.

Depois, porque, de um lado, a alteração da qualificação jurídico-penal dos factos narrados no despacho de pronúncia não teve como efeito imediato a extinção do procedimento criminal e, de outro, a prescrição não operava mediante as incriminações legais pelas quais os arguidos foram pronunciados e submetidos a julgamento.

A convolação do crime de fraude fiscal qualificada previsto e punido pelo artigo 103.º, n.º 1, alíneas a) e c) e 104.º, n.º 2 , do Regime Geral das Infracções Tributárias aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, num crime de fraude fiscal simples previsto e punido pelo artigo 103.º, n.º 1, alínea c) do mesmo diploma, exigiu por parte do julgador uma apreciação material e substantiva dos factos, em particular, saber se o contratos descritos no despacho de pronúncia integram a qualificativa prevista no n.º 2 do artigo 104.º, do mesmo diploma, configurando, por isso, uma decisão de mérito.

A corroborar esta orientação, apontam os fundamentos do Acórdão 11/2013, acolhendo o parecer do Exmo. Magistrado do Ministério Público.

Aí se consignou:

«(…) tendo em conta a inserção sistemática do preceito [o artigo 358.º do CPP] no capítulo que define as regras e princípios que regulam a actividade da produção de prova, não se suscitam grandes dúvidas de que o mecanismo da alteração da qualificação jurídica do artigo 358.º n.º 3 do CPP foi previsto e tem aplicação já após a discussão da causa, após produção de prova.

Na verdade, a alteração da qualificação jurídica poderá ocorrer em duas situações: no decurso de uma alteração dos factos (não substancial); e no caso em que, não obstante os factos resultantes da prova produzida em julgamento serem coincidentes com os da acusação ou pronúncia, o tribunal discorda dessa qualificação jurídica.

Ora, considerando que o referido n.º 3 é uma norma integrada no contexto global do mecanismo da "alteração não substancial dos factos", prevista no artigo 358.º CPP, e que a alteração dos factos (n.º 1) só pode ocorrer, necessariamente, após produção de prova, estabelecendo o n.º 3 que aquele n.º 1 "é correspondentemente aplicável" à alteração da qualificação jurídica, não faria sentido que a alteração da qualificação jurídica pudesse ocorrer em momento processual diferente.

[...]

Ora, considerando que a acusação, definidora do objecto do processo, integra, para além dos factos, as disposições legais aplicáveis, ou seja, a qualificação jurídica (um dos requisitos obrigatórios da acusação cuja omissão acarreta rejeição - artigo 283.º, n.º 3, alínea c), do CPP), a alteração da qualificação efectuada pelo juiz de julgamento mais não é do que um proibido controlo substantivo da acusação.

De resto, se a indicação das disposições legais não integrasse a parte substantiva da acusação, certamente que o legislador não teria atribuído à sua omissão uma consequência tão grave como a rejeição.

É verdade que o despacho judicial que procedeu à alteração da qualificação, não se fundamentou em diferente apreciação da prova, antes decidindo perante o próprio texto da acusação.

No entanto, ao enquadrar os factos da acusação numa determinada qualificação jurídica, está a formular um juízo acerca do conteúdo substantivo da referida acusação.

Em conclusão, recebida a acusação e designado dia para julgamento, a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, merecedora ou não da concordância do juiz, traduz-se na posição que o Ministério Público assume no processo, como órgão de justiça, que goza de estatuto próprio e de autonomia movendo-se exclusivamente por critérios de legalidade e de objectividade.

Questão bem diferente é a da acusação conter um manifesto lapso ou erro, passível de correcção, o que não se confunde com a divergência do juiz sobre a subsunção jurídica dos factos.

Por último, saliente-se que a tese do acórdão recorrido conduz a uma solução, a nosso ver, inadmissível, pois a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público seria mero exercício anódino. O juiz, previamente ao julgamento do mérito, passaria a poder ingerir-se em competências alheias, estruturando substancialmente a acusação, elegendo e impondo aos sujeitos do processo a qualificação correcta, que nenhum previamente (na fase própria) contestara.

Daí que, sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza, cada autoridade judiciária terá que actuar no momento processual que lhe compete.

E sendo indiscutível que o Tribunal é totalmente livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, certo é que o momento próprio para o fazer ocorre após haver produção de prova, isto é, quando está a julgar o mérito do caso concreto.»

A alteração da qualificação jurídico-penal dos factos não constitui, no nosso sistema processual, uma questão prévia ou incidental, mas sim uma questão de fundo, só podendo por isso, ser apreciada na estrutura da sentença prevista no artigo 374.º do Código de Processo Penal, depois julgados os factos considerados provados e não provados, com indicação dos respectivos fundamentos. [neste sentido, cf. entre outros, Acórdãos do Tribunal da Relação da Lisboa de 24 de março de 2010 (processo n.º 470/04.8TAOER.L1-3) e de 17 de fevereiro de 2011; e Acórdão desta Relação de 23 de outubro de 2019 (processo N.º 669/15.1T9CLD-A.C2].

Como tal, e seguindo a ordem lógica do artigo 368.º, n. º1 e 2, só pode ser apreciada e decidida, depois fixada a matéria de facto (cf. artigo 374.º, nº 2).

Outro entendimento esvaziaria de sentido a produção de prova em audiência exigida pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 11/13.

A prova tem por função demonstrar a realidade dos factos (artigo 341.º, do Código Civil), correspondendo, num sentido mais amplo, à fase processual que tem por fim tal demonstração.

A prova é um pressuposto da decisão jurisdicional, que consiste na formação através do processo no espírito do julgador da convicção de que certa alegação singular de facto (…) Não existe decisão justa sem prova, uma vez que ela é o pressuposto, a base da evocação do direito. (Prof. Castro Mendes, do conceito de Prova, páginas 178 e 252 a 253).

De acordo com o artigo 124.º, a prova tem por objecto todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicadas.

A produção de prova em audiência destina-se a fixar na sentença a factualidade dela resultante, só fazendo sentido se o tribunal julgar a matéria de facto. Se assim não fosse, a exigência da produção ditada no Acórdão 11/13, revelar-se-ia um acto verdadeiramente inútil, com custos humanos e materiais injustificáveis.

Além de que, decorre dos artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2 que, o tribunal, deve indagar e pronunciar-se sobre os alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia.

Ou seja, ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a sua verificação/ não verificação se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico pertinente.

A fixação da factualidade à luz das soluções plausíveis (sobre o conceito, cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, página 66 e José Alberto dos reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, página 220) revela-se essencial na economia do processo, devendo contemplar a matéria que permita ao tribunal competente proferir a decisão final com base em todos os elementos factuais determinados.

Ora, sendo a sentença, o momento processual adequado julgar a matéria de facto, recai sobre o julgador o dever de enumerar os factos provados e não provados, antes de decidir a questão da modificação da qualificação jurídico-penal dos factos (artigo 368.º, n.º 1 e 2 segunda parte e 374.º, n. 2).

Os factos a qualificar juridicamente são os que resultaram concretamente apurados da prova produzida em audiência e, portanto, só depois de fixados na sentença estará o tribunal em condições de alterar a qualificação jurídica dos mesmos.

Não foi o que sucedeu no caso.

A sentença sindicada omite a enumeração dos factos provados e não provados, bem como a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para criar a convicção do tribunal, sendo, por isso, nula, nos termos conjugados dos artigos 379.º, alínea a) e 374.º, n. 2.

2. A nulidade da sentença é suprida com a elaboração de nova sentença pelo juiz a quo que deverá corrigir o vicio apontado com observância do previsto no artigo 374.º, n.º 2.

Consequentemente, o conhecimento de todas as demais questões suscitadas pelo Recorrente e pelos recorridos encontram-se prejudicadas.

                                                   

IV. DECISÃO 

Por todo o exposto, acordam os Juízes da 5ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso e, em consequência, declarar a nulidade a sentença recorrida que deverá ser substituída por outra que contenha as menções estabelecidas pelo artigo 374.º.

Sem tributação.

Coimbra, 18 de Maio de 2022

Alcina da Costa Ribeiro (relatora)

Alexandra Guiné (adjunta)

Alberto Mira (presidente da secção)