Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5100/19.0T8STB-K.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: ABUSO DE DIREITO
RENDA
PAGAMENTO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I.- O exercício de um direito subjetivo deve situar-se dentro dos limites das regras da boa fé, dos bons costumes e ser conforme com o fim social ou económico para que a lei conferiu esse direito: se forem manifestamente excedidos esses limites, atua-se em abuso de direito – Artigo 334.º do Código Civil.
II.- Se o locador por 32 vezes não exige o recebimento das rendas, sendo que o locatário já havia abandonado o locado, criou neste a convicção de que as rendas não seriam exigidas, atuando em abuso de direito, na modalidade de supressio, se, após a insolvência do locatário, vem ao processo de insolvência exigir o pagamento das rendas.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc.º 5100/19.0T8STB-K.E1


Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrente: Fundo de Gestão de Património Imobiliário (…) – (…) Banco II,

Recorrida: Massa Insolvente de (…), Unipessoal, Lda.
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No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Comércio de Setúbal – Juiz 2, (…) – (…) Banco II, Fundo de Gestão de Património Imobiliário, representado por (…) – Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Colectivo, S.A., propôs ação declarativa de condenação, sob a forma comum, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 2, do CIRE, contra a Massa Insolvente de (...), Unipessoal, Lda., representada pelo Exm.º Sr. Administrador da Insolvência por apenso à insolvência n.º 5100/19...., na qual, por sentença de 18/10/2019, entretanto transitada em julgado, foi declarada insolvente (…), Unipessoal, Lda. requerendo que seja a Massa Insolvente condenada no pagamento da quantia € 20.064,65 (vinte mil e sessenta e quatro euros e sessenta e cinco cêntimos), acrescido dos legais juros de mora, desde a interpelação de 16.11.2020 e até efetivo e integral pagamento, como créditos sobre a massa insolvente.
Alega para tanto que:
No dia 1 de março de 2016, o A. outorgou com a sociedade (...), Unipessoal, Lda., escrito particular, denominado contrato de arrendamento, mediante o qual a A. deu de arrendamento à sociedade (...), Unipessoal, Lda., que aceitou, a fração autónoma designada pelas letras ..., destinada a indústria e serviços, correspondente ao Bloco ... com piso térreo, composto por escritório e espaço amplo, pertencente ao prédio urbano constituído sob o regime da propriedade horizontal sito na Estrada ..., freguesia ... – ..., concelho ..., inscrita na matriz respetiva sob o artigo ...89 e descrita na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...50, com licença de utilização n.º ...9, passada em 4 de dezembro de 2009 pela Câmara Municipal ... e seus Aditamentos de 09 de fevereiro de 2010 e 27 de fevereiro de 2013;
Tal contrato teria a duração de um ano com início em 01/03/2016 e fim em 28/02/2017, renovável por iguais períodos de um ano;
A renda foi fixada em € 1.360,00 vencendo-se no primeiro dia útil do mês anterior a que respeita.
A renda mensal ficou sujeita às atualizações determinadas pelo Instituto Nacional de Estatística nos termos legais.
Na data da celebração do contrato a (...), Unipessoal, Lda. entregou ao A. um cheque bancário no valor de € 2.720,00, correspondente a 2 meses de renda;
Desde março de 2018 que a (...), Unipessoal, Lda. deixou de pagar as rendas, nada mais tendo pago;
O contrato de arrendamento não foi denunciado pelo Sr. A.I.;
Por carta datada de 16/11/2020 a A. interpelou expressamente o Sr. A.I. para pagar as rendas devidas desde a data da declaração de insolvência;
O Sr. A.I. respondeu em 20/11/2020 negando o conhecimento da existência do contrato de arrendamento.
Porém o Sr. A.I. não denunciou o contrato, nem pagou quaisquer rendas, designadamente as vencidas após a declaração de insolvência em 18/10/2019, no valor mensal de € 1.389,55.
Em 18 de novembro de 2021 o Sr. A.I. enviou carta afirmando o desconhecimento do contrato e a inexistência de qualquer estabelecimento na morada do imóvel, e sustentando que não foi reclamado qualquer valor a título de rendas vencidas e à cautela a comunicar a recusa do cumprimento do contrato.
O pagamento das rendas devidas após a declaração da insolvência, constituem encargo da massa insolvente.
As rendas em dívida desde a declaração de insolvência e até 16/11/2020 ascendem a € 20.064,65.
Conclui pedindo a condenação da massa insolvente na liquidação dos referidos valores, nos termos do disposto no artigo 51.º, n.º 1, alínea e), do CIRE.
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A Massa Insolvente de (...), Unipessoal, Lda. contestou alegando, em síntese, que:
- a autora atua em abuso de direito na modalidade de supressio, porquanto desde março de 2018 que não lhe era liquidada qualquer renda e nada fez;
- não reclamou qualquer crédito sobre a insolvente referente a rendas vencidas e não pagas antes da declaração de insolvência;
- permitiu já após a declaração de insolvência a renovação do contrato, não obstante a existência de uma dívida de rendas com mais de três anos;
- apenas em 16/11/2020 veio a A. indagar acerca do contrato e das rendas devidas pela massa insolvente;
- a A. não exerceu qualquer direito referente ao alegado contrato de arrendamento, criando a convicção de que esse direito já não seria exercido;
- a propositura da presente ação ocorre mais de 2 anos após a declaração de insolvência;
- conclui pela verificação da exceção de abuso de direito e consequente absolvição da R. do pedido;
- caso assim não se entenda, sustenta que o contrato de arrendamento já não se encontrava em vigor à data da declaração de insolvência;
- inexistem registos contabilísticos de qualquer contrato de arrendamento na contabilidade da insolvente;
- O A.I. desconhecia a existência de qualquer contrato de arrendamento que vinculasse a insolvência ou a massa;
- Em 2020 a insolvente não desenvolvia qualquer atividade, pois cessou todas as atividades em outubro de 2019, com a declaração de insolvência;
- Terá havido antes da declaração de insolvência uma cessão de posição contratual a favor de terceiro;
- Caberá a esse terceiro e não à massa insolvente a liquidação das rendas devidas;
- A A. nunca peticionou nem peticiona as chaves do imóvel;
- A Massa insolvente não apreendeu, não usou nem pôde usar o imóvel que a A. afirma ter estado arrendado, e que dele não retirou qualquer benefício que impusesse o pagamento da renda;
Conclui pela improcedência da ação, seja pela procedência da exceção deduzida, seja pela ausência total de prova.
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Pronunciou-se o A. quanto à invocada exceção de litigância de má-fé.
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Realizado julgamento foi preferida a seguinte decisão:
Pelo exposto, julgo a presente ação integralmente improcedente, julgando procedente a exceção de abuso de direito e em consequência, absolvo a Massa insolvente de (...), Unipessoal, Lda. do pedido.
Custas pelo A.
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Não se conformando com a sentença, a recorrente apelou, formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608.º/2, 609.º, 635.º/4, 639.º e 663.º/2, do CPC:
1. Vem o presente recurso interposto da Douta Sentença proferida pelo Meritíssimo Tribunal a quo, a qual julgou a presente ação totalmente improcedente, absolvendo a R. Massa Insolvente “(...), Unipessoal, Lda.” do pagamento ao A. da quantia de € 20.064,65, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da interpelação (16/11/2020) até integral e efetivo pagamento.
2. O Apelante não pode concordar com os fundamentos de facto e de direito que sustentam a Douta decisão proferida, considerando que a mesma padece de uma errada apreciação da prova produzida e com o consequente erro de julgamento e, do mesmo modo, de uma desadequada subsunção jurídica dos factos.
- Do Erro de Julgamento – Reapreciação da Prova:
3. A douta sentença proferida padece de manifesto erro de julgamento, desde logo porque não teve em linha de conta toda a prova carreada aos presentes autos, nomeadamente a prova testemunhal e documental.
4. Ora, o presente recurso sobre a douta decisão proferida quanto à matéria de facto funda-se na convicção do Apelante de que o Douto Tribunal a quo terá efetuado uma incorreta apreciação e valoração da prova e, concretamente, na instrução da matéria de facto plasmada no artigo 14.º dos factos provados, assim como na não consideração de pelo menos dois factos, que resultaram da prova testemunhal e documental produzida, essenciais à descoberta da verdade material e justa composição do litígio.
5. Os elementos de prova carreados aos presentes autos, que impunham que o facto provado sob o n.º 14.º fosse julgado em moldes distintos do aposto na douta sentença proferida e que fossem aditados factos, no que diz respeito à posse do imóvel pela ora insolvente são:
- Depoimento prestado pela testemunha AA, gravado no sistema integrado de gravação digital, com o n.º de ficheiro áudio 20220519092552_3678059_281790, aos minutos 00:06:20 a 00:07:56 e 00:01:22 a 00:03:44 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
- Contrato de arrendamento celebrado, concretamente, teor da cláusula 2.ª, n.º 1.
6. Compulsado o referido depoimento verifica-se que o Apelante interpela sempre os devedores ao cumprimento da obrigação (pagamento de rendas), e por outro lado, diligencia pela recuperação do valor das rendas, uma vez que o seu escopo é manter os imóveis arrendados.
7. Pelo que, e atento o referido meio de prova, o facto n.º 14 deverá passar a constar dos factos provados, com a seguinte redação:
Desde março de 2018 e até 16/11/2020 o A. não diligenciou pela resolução do contrato por falta de pagamento de rendas, permitindo a sua renovação, e uma vez que o objetivo do fundo é recuperar o valor das rendas e manter os imóveis arrendados”.
Por outro lado,
8. Compulsados os factos considerados provados, verifica-se que o Meritíssimo Tribunal “a quo” não verteu para os mesmos a cláusula 2.ª, n.º 1, do contrato de arrendamento celebrado, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
9. Assim sendo, e em face da supra aludida prova, quer documental, quer testemunhal, sempre se verifica que à data da celebração do contrato de arrendamento, a insolvente já se encontrava na posse do imóvel e por outro lado, que à data da declaração de insolvência da (...), Unipessoal, Lda., a mesma ainda não havia entregue o locado ou denunciado o contrato.
10. Motivo pelo qual, e atenta a referida prova deverá aditar-se à matéria considerada provada o teor da cláusula 2.ª, n.º 1, do contrato de arrendamento, e nos seguintes termos:
“Em tal contrato ficou previsto, que o senhorio dá o Locado de arrendamento ao arrendatário, que o toma de arrendamento, mantendo-se assim no mesmo, visto já se encontrar a ocupar o Locado.”
11. Deverá, de igual forma, e em face da prova testemunhal produzida aditar-se o seguinte facto:
“A (...), Unipessoal, Lda. não denunciou o contrato de arrendamento constante do ponto 1 dos factos provados, nem procedeu à entrega do locado ao Autor.”
12. O que se alega e requer para os devidos efeitos legais.
B - Do Abuso de Direito:
13. Entendeu o Meritíssimo Tribunal a quo que o Apelante atuou em manifesto abuso de direito, atenta a conduta por si adotada, na medida em que o A. criou a expetativa na R., de que não exerceria o seu direito, quer pelo decurso de tempo decorrido, quer pelos comportamentos omissivos previamente adotados.
14. Porém, e salvo o devido respeito por melhor opinião em contrário, sempre se dirá que tal entendimento não deverá ser acompanhado, e desde logo, porque o Meritíssimo Tribunal “a quo” e relativamente ao primeiro pressuposto, computou como tempo de inação, por parte do A., o período decorrido entre a data em que a insolvente entrou em mora, até à data à data da propositura da presente ação.
15. Sendo certo que nos presentes autos estando em causa, apenas e tão só, dívidas da Massa insolvente e não da insolvente, o tempo que deverá ser computado será o decorrido entre a declaração da insolvência e a da propositura da presente ação, e com as nuances que infra se exporão.
Ora,
16. Tendo em consideração aquele lapso temporal, sempre se dirá que no decurso do período compreendido entre a declaração da insolvência e a data da interpelação da R. ao cumprimento da obrigação, decorreu um ano.
17. E desde a referida data de interpelação (16.11.2020), até à data da propositura da presente ação, decorreu mais um ano, sendo que e relativamente a este último período, o Apelante encontrava-se a aguardar por uma resposta do Administrador da Insolvência quanto ao pagamento das rendas, e conforme se extrai dos documentos juntos com a petição inicial.
18. Sendo que a referida resposta tardou em ser concedida!
19. Motivo pelo qual, o A. apenas apresentou a presente ação em 10/12/2021, em face do comportamento omissivo por parte do Administrador da insolvência.
20. Pelo que, e salvo o devido respeito por melhor entendimento, o prazo a ser apreciado por este Tribunal ad quem para efeitos de eventual abuso de direito deverá ser apenas e tão só o decorrido entre o a data da declaração de insolvência e a data em que o Exmo. Sr. Administrador da insolvência foi interpelado ao cumprimento da obrigação de pagamento das rendas.
21. Porém, e para este efeito, cumpre atentar que o prazo de prescrição de rendas é de cinco anos, pelo que não se poderá entender como manifestamente excessivo o decurso de um ano para interpelar a Massa Insolvente ao cumprimento da obrigação, mesmo estando no âmbito de um processo com carácter urgente.
22. Acresce que a jurisprudência também tem vindo a entender que a figura do abuso de direito na modalidade de “supressio” não terá o seu lugar de aplicação privilegiada nas matérias em que se encontra estabelecido prazo de prescrição para o exercício do direito, uma vez que esta, também a seu modo, visa prevenir o exercício tardio do direito e seus inconvenientes.
23. Acresce ainda que a insolvente, não se confunde com a Massa insolvente, pois esta última trata-se de um património autónomo, e facto é que relativamente à mesma, o A., e até pelo menos momento anterior ao da prestação de contas pelo Administrador da Insolvência e respetivo rateio, estaria sempre em tempo de peticionar o seu crédito, nos termos do artigo 89.º, n.º 2, do CIRE.
24. Por fim, a doutrina e a jurisprudência também têm vindo a perfilhar o entendimento que para a caracterização da atuação de um sujeito em abuso de direito, na modalidade de “supressio” não basta o mero não-exercício e o decurso do tempo, impondo-se a verificação de outros elementos circunstanciais que melhor alicercem a justificada/legítima situação de confiança da contraparte.
25. Assim sendo, e em face do exposto, o fundamento em causa para a caracterização da conduta do A. como violadora do princípio da boa-fé, sempre deverá ser desconsiderado.
26. O que se alega e requer para os devidos efeitos legais.
Por outro lado,
27. Saliente-se que o facto do FUNDO não ter reclamado o seu crédito perante a insolvente não implica que o pedido formulado na presente instância o seja em manifesto abuso de direito, ou contraditório com o previamente adotado, e desde logo, porque não se extrai de qualquer dos factos considerados provados o porquê de tal comportamento omissivo.
28. Pelo que da alegada renúncia prévia a um direito, perante a insolvente, a qual, diga-se, não é parte na causa, não poderá extrair-se uma atuação abusiva do A. ao reclamar um crédito que detém, sobre uma nova entidade, que constitui um património autónomo e solvente.
29. Aliás, a não reclamação do crédito pelo A., sobre a insolvente, apenas o prejudicou, pois caso o tivesse reclamado, poderia ter sido ressarcido, ainda que parcialmente, pelo mesmo.
30. Motivo pelo qual, e salvo o devido respeito por melhor opinião em contrário, deste facto também não se poderá extrair que a atuação do A. é manifestamente abusiva.
Acresce ainda,
31. O A. é completamente alheio ao facto de o Administrador da insolvência desconhecer a existência do contrato de arrendamento em causa, não ter na sua posse recibos de água, luz ou outros referentes ao imóvel, nem ter meios de o conhecer.
32. Sendo que não poderá deixar de se referir que o vertido pelo Administrador da insolvência, no relatório, constante do artigo 155.º do CIRE, concretamente fls. 6, alínea b), não corresponde à verdade, ou seja, não é verídico que a devedora só tenha apresentado as suas declarações fiscais, e prestado as suas contas na respetiva Conservatória do Registo Comercial até ao ano de 2015.
33. Pois é facto notório e público, e que se confirma por mera consulta ao portal da justiça, que em novembro de 2019, e antes mesmo de decorrido o prazo para a reclamação de créditos e para a conclusão do relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, que a devedora prestou as suas contas e até à data da declaração de insolvência (2019).
34. Deste modo, tendo a insolvente a contabilidade organizada, tendo prestado as suas contas, tendo o A. emitido as suas faturas relativamente ao arrendamento do imóvel, e tendo emitido os respetivos recibos, pelo menos até fevereiro de 2018, e conforme documento 4 junto com a Petição Inicial, poderia e deveria o Administrador da insolvência ter aferido da existência do contrato de arrendamento em causa.
35. Por outro lado, os recibos de renda emitidos pelo A. até fevereiro de 2018 eram eletrónicos, o que implica que manifestamente na Autoridade Tributária teria, necessariamente, de aparecer a existência do A. como emitente de uma fatura de renda e respetivo recibo eletrónico.
36. Acresce ainda que resulta do relatório apresentado pelo Administrador da insolvência, nos termos do artigo 155.º do CIRE, o conhecimento, pelo mesmo, dos elementos identificativos do contabilista da sociedade insolvente, pelo que sempre poderia ter entrado em contacto com o mesmo e questionado a existência de qualquer contrato de arrendamento em curso.
37. Motivo pelo qual o desconhecimento do contrato de arrendamento, assim como de documentos que o titulam, é exógeno ao aqui A. e não lhe poderá ser imputado.
38. Por fim, a validade do contrato de arrendamento, nos termos e condições do mesmo constantes, não foi posta em consideração, tendo sido aceite a sua existência e recusado o seu cumprimento (cfr. factos provados sob os n.ºs 1 a 5, e carta emitida pelo Administrador da Insolvência em novembro de 2021).
Acresce ainda,
39. Ao contrário do doutamente aposto, pelo Meritíssimo Tribunal “a quo”, na fundamentação da douta sentença proferida, não impende sobre o A. a faculdade legal de resolver o contrato de arrendamento, ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 108.º do CIRE.
40. Pois tal norma apenas tem aplicação nos casos em que à data da declaração de insolvência ainda não tenha havido a entrega do imóvel, pelo locador ao locatário, factualidade que claramente não se verifica nos presentes autos, e uma vez que desde data anterior à da celebração do contrato (01/03/2016), que a insolvente se encontrava a ocupar o imóvel (cfr. cláusula 2.ª, n.º 1, do contrato de arrendamento celebrado).
41. Motivo pelo qual, e ao contrato de arrendamento em causa aplicar-se-ia o disposto no artigo 108.º, n.ºs 1, 3 e 4, alínea a), do CIRE.
42. Acresce que também não impendia sobre o A., a obrigação de fixação de um prazo ao Administrador da Insolvência para o cumprimento do contrato de arrendamento, nos termos do disposto no artigo 102.º do CIRE, e uma vez que este contrato de arrendamento se encontrava sujeito ao preceituado no referido artigo 108.º do CIRE.
43. Por fim, e quanto à conclusão vertida na douta decisão, de que o imóvel não se encontrava na posse da insolvente ou sequer da massa insolvente, sempre se dirá que a proceder o peticionado quanto à alteração da matéria de facto e a aditar-se os factos supra elencados, resultará da mesma que o imóvel já se encontrava na posse da insolvente em data anterior à da declaração de insolvência e que não foi denunciado pela (…), Unipessoal, Lda., de onde se infere a posse do imóvel por parte da insolvente.
44. Sendo certo que, até se verificar a denúncia do contrato de arrendamento e consequente entrega do locado, o locador tem direito de exigir a contraprestação devida.
45. Por tudo o exposto, não se vislumbra, e salvo o devido respeito por entendimento diverso, que a atuação do A. tenha sido gritantemente violadora da boa-fé e dos bons costumes, na modalidade de supressio, e nos termos e para os efeitos do disposto no Código Civil, artigo 334.º.
46. Motivo pelo qual, mal andou o Meritíssimo Tribunal a quo ao considerar que o A. atuou em abuso de direito, motivo pelo qual deverá a douta sentença proferida ser revogada.
47. O que se alega e requer para os devidos efeitos legais.
- Da Obrigação de Pagamento pela Ré do Montante Peticionado nos Autos:
48. O n.º 1 do artigo 108.º do CIRE determina que a declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o Administrador da Insolvência pode sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se nos termos da lei ou do contrato não for suficiente um pré-aviso inferior.
49. Significa que, com a declaração de insolvência, a devedora é automaticamente substituída pela Massa Insolvente, na qualidade de arrendatária.
50. Assim, o pagamento das rendas, após a declaração da insolvência é, nos termos do artigo 51.º, n.º 1, alínea e), do CIRE da responsabilidade da Massa Insolvente e o crédito decorrente do seu não pagamento configura uma dívida da massa insolvente.
51. Nestes termos e atenta a matéria de facto considerada provada, concretamente sob os n.ºs 1, 9, 12, 13 e 16, e aqueles que se requereu o seu aditamento, infere-se dos mesmos que a R. é responsável pelo pagamento à A. da quantia de € 20.064,65 (vinte mil, sessenta e quatro euros, sessenta e cinco cêntimos), referente às rendas vencidas entre 18.10.2019 e 16.11.2020.
52. Motivo pelo qual, deverá, em consequência, a R. ser condenada a pagar ao A. o referido montante.
53. Por tudo o exposto, a douta sentença posta em crise mostra-se, assim, inquinada, por violação do disposto nos artigos 51.º, 89.º, n.º 2 e 108.º, n.º 1, todos do CIRE, assim como do artigo 334.º do Código Civil, pelo que deverá a mesma ser revogada e substituída por outra que condene a R. ao pagamento do montante peticionado nos autos.
Termo em que deverá ser concedido integral provimento ao recurso interposto e revogada a douta sentença proferida, nos termos supra expendidos, assim se fazendo, tão somente, a habitual e sã justiça.
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Foram dispensados os vistos.
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As questões que importa decidir são:
1.- A impugnação da matéria e facto.
2.- O abuso de direito.
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A matéria de facto fixada na 1ª instância é a seguinte:
Factos provados:
1. No dia 01 de março de 2016, o A. outorgou com a “(...), Unipessoal, Lda.”, um escrito particular, contrato de arrendamento não habitacional com prazo certo, pelo qual aquela deu de arrendamento a esta, que a tomou de arrendamento, a fração autónoma designada pelas letras ..., destinada a indústria e serviços, correspondente ao Bloco ... com piso térreo, composto por escritório e espaço amplo, pertencente ao prédio urbano constituído sob o regime da propriedade horizontal sito na Estrada ..., freguesia ... – ..., concelho ..., inscrita na matriz respetiva sob o artigo ...89 e descrita na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...50, com licença de utilização n.º ...9, passada em 4 de dezembro de 2009 pela Câmara Municipal ... e seus Aditamentos de 09 de fevereiro de 2010 e 27 de fevereiro de 2013, constante de fls. 7 a 10 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
2. Em tal contrato ficou estabelecido que a duração seria de “1 (um) ano, com início em 01-03-2016 e fim em 28-02-2017, renovável por iguais e sucessivos períodos de 1(um) ano”;
3. Ficou acordada uma renda mensal de € 1.360,00 (mil, trezentos e sessenta euros), que se vence no primeiro dia útil do mês anterior a que diz respeito.
4. Em caso de renovação do contrato, a partir da renda devida referente ao mês de março de 2017 a renda mensal passaria a estar sujeita às atualizações determinadas anualmente pelo Instituto Nacional de Estatística, nos termos da lei.
5. Na data da celebração do contrato a referida “(...), Unipessoal, Lda.” entregou ao A. um cheque bancário “no montante de € 2.720,00 (dois mil, setecentos e vinte euros), correspondente a 2 (dois) meses de renda, a título de caução para garantia de conservação e manutenção do Locado”;
6. Desde março de 2018 que a “(...), Unipessoal, Lda.” deixou de pagar as rendas devidas no âmbito do referido contrato de arrendamento, nada mais tendo pago, seja a que título for, desde tal data;
7. A sociedade (...), Unipessoal, Lda. foi declarada insolvente por sentença de 18.10.2019, no processo n.º 5100/19...., ao qual estes autos estão apensos.
8. O A. interpelou a R., na pessoa do Sr. A.I. para o pagamento do valor das rendas, despesas e encargos com as partes comuns, devidas desde a data da declaração de insolvência e até 16.11.2020, através de carta registada, expedida na referida data de 16.11.2020, que foi recebida pelo Exm.º Sr. AI, junta a fls. 10 verso e 11 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
9. A massa insolvente não liquidou quaisquer rendas desde a data da declaração de insolvência até 20/11/2020 ou posteriormente;
10. O Sr. A.I. respondeu à interpelação referida por carta datada de 20/11/2020, recebida em 22/11/2020 pelo A, junta a fls. 11 verso e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, negando o conhecimento da existência do contrato de arrendamento e solicitando o envio de contrato de arrendamento e o último recibo de renda liquidado;
11. Em 24/11/2020 foi enviado ao Sr. A.I. cópia do contrato de arrendamento, e do último recibo de renda pago pela sociedade insolvente;
12. Após a correspondência referida o A.I. não denunciou o contrato até 18/11/2021, nem pagou as rendas vencidas após a declaração de insolvência no valor mensal de € 1.389,55;
13. Apenas em 18/11/2021 o Sr. A.I. respondeu à interpelação, por carta junta a fls. 12 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, afirmando desconhecer qualquer contrato de arrendamento, dado não ter sido apreendido qualquer estabelecimento comercial referente à morada do imóvel, nem qualquer bem ali existente, não foi reclamado qualquer crédito de rendas sobre a insolvente; não foi fixado qualquer prazo razoável para que o A.I. se pronuncie quanto à vigência do contrato; caso se considere que o contrato ainda se encontra em vigor, opta pela recusa de cumprimento e considera o imóvel entregue ao locador;
14. Desde março de 2018 e até 16/11/2020 o A. não diligenciou pela resolução do contrato por falta de pagamento de rendas, permitindo a sua renovação;
15. Desde a declaração de insolvência e até 16/11/2020 o Sr. A.I. nunca foi interpelado pelo A. com vista ao pagamento das rendas ou entrega do imóvel ou com a fixação de prazo para opção pelo cumprimento ou não do contrato;
16. A ré nunca procedeu ao pagamento de qualquer renda;
17. A Ré nunca usufruiu do locado;
18. A Ré não tem nem teve a posse do imóvel, após a declaração de insolvência;
19. A Ré não tinha na sua posse as chaves ou qualquer elemento contabilístico atinente ao contrato de arrendamento referido em 1, designadamente, recibos de renda, luz, água, referentes à morada do alegado locado;
20. Não foram apreendidos quaisquer bens da insolvente no imóvel referido em 1, nem o mesmo se apresentou associado no processo de insolvência ao exercício da atividade da insolvente;
21. O A. não reclamou na insolvência ou noutro processo de verificação ulterior de créditos qualquer crédito sobre a insolvente atinente a rendas;
22. Desde outubro de 2019 que a insolvente não desenvolvia qualquer atividade;
23. O A. nunca solicitou à R. a entrega das chaves do imóvel;
24. O imóvel objeto dos autos foi vendido pelo A. a terceiro em 3 de dezembro de 2020.
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Factos não provados
a) Desde março de 2018 e até 16/11/2020 o A. não efetuou qualquer diligência de cobrança das rendas em dívida;
b) Desde, pelo menos, meados de 2021 que no local labora outra empresa;
c) Ocorreu uma cessão da posição contratual a favor de terceiro que desde 2020 ocupa o locado.
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Conhecendo.
1.- A impugnação da matéria e facto.
A recorrente impugna a matéria de facto constante do ponto 14 da matéria de facto provada, que tem a seguinte redação:
14. Desde março de 2018 e até 16/11/2020 o A. não diligenciou pela resolução do contrato por falta de pagamento de rendas, permitindo a sua renovação;
Por ouro lado, argumenta que devem acrescentar-se aos factos provados o que consta da cláusula 2.ª, n.º 1, do contrato de arrendamento em causa nos autos, com a seguinte redação:
1. Nos termos e condições aqui previstos, o Senhorio dá o locado de arrendamento ao Arrendatário, que o toma em arrendamento, mantendo-se assim no mesmo, visto já se encontrar a ocupar o locado.
Bem como deve ser aditado a seguinte factualidade:
A (...), Unipessoal, Lda. não denunciou o contrato de arrendamento constante do ponto 1 dos factos provados, nem procedeu à entrega do locado ao A.
Factos que resultam do depoimento da testemunha AA, funcionário da recorrente.
Vejamos.
Alega a recorrente que o ponto 14 da matéria de facto provada deve se alterado, aditando-se o seu objeto social, pelo que se deve acrescentar a redação que segue em itálico:
Desde março de 2018 e até 16/11/2020 o A. não diligenciou pela resolução do contrato por falta de pagamento de rendas, permitindo a sua renovação e, uma vez que o objetivo do fundo é recuperar o valor das rendas e manter os imóveis arrendados.
Fundamenta a sua pretensão na análise das declarações da testemunha AA, funcionário da recorrente.
Ora, os autos demonstram que a recorrente é um Fundo de Gestão de Património Imobiliário, ou seja, uma sociedade que tem como finalidade a realização de lucros societários para distribuir pelos seus acionistas, resultante da sua atividade imobiliária, onde certamente se inclui a compra e venda de imóveis e o seu arrendamento mediante o pagamento de rendas.
O objeto social da recorrente (ou parte dele) é o recebimento de rendas, o que resulta numa evidência que não necessita de ser evidenciada.
Com efeito, se assim não fosse a recorrente seria uma entidade de beneficência, sem fins lucrativos, cujo escopo seria o assistencialismo e nada nos autos nos leva a considerar verificada tal asserção.
Isto para concluir que se mostra irrelevante para a boa decisão da causa incluir uma evidência na matéria de facto provada, pelo que improcedem as conclusões nesta parte.
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Quanto à inclusão da cláusula 2.ª, n.º 1, do contrato de arrendamento na matéria de facto provada, resulta do ponto 1 da matéria de facto o seguinte:
1. No dia 01 de março de 2016, o A. outorgou com a “(...), Unipessoal, Lda.”, um escrito particular, contrato de arrendamento não habitacional com prazo certo, pelo qual aquela deu de arrendamento a esta, que a tomou de arrendamento, a fração autónoma designada pelas letras ..., destinada a indústria e serviços, correspondente ao Bloco ... com piso térreo, composto por escritório e espaço amplo, pertencente ao prédio urbano constituído sob o regime da propriedade horizontal sito na Estrada ..., freguesia ... – ..., concelho ..., inscrita na matriz respetiva sob o artigo ...89 e descrita na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...50, com licença de utilização n.º ...9, passada em 4 de dezembro de 2009 pela Câmara Municipal ... e seus Aditamentos de 09 de fevereiro de 2010 e 27 de fevereiro de 2013, constante de fls. 7 a 10 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
Ora, apesar de a técnica jurídica não ser a mais perfeita ao dar como reproduzido um documento, o tribunal a quo fez incluir na matéria de facto provada todo o conteúdo do contrato de arrendamento, onde, como é evidente, se inclui a cláusula 2.ª, n.º 1.
Assim sendo, reproduzir o que já está dado como produzido resulta num ato que se revela inútil para a boa decisão da causa, uma vez que o tribunal a quo e este tribunal de recurso estão obrigados a considerar tal cláusula na decisão a proferir.
O que equivale por dizer que improcedem também as conclusões nesta parte.
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Finalmente, quanto à factualidade onde se refere que A (...), Unipessoal, Lda. não denunciou o contrato de arrendamento constante do ponto 1 dos factos provados, nem procedeu à entrega do locado ao A., tal matéria foi admitida indiretamente na contestação da massa insolvente, uma vez que afirmou desconhecer sequer a existência do contrato de arrendamento, motivo pelo qual nunca o poderia ter denunciado ou procedido à entrega do locado.
Por esse motivo, a matéria em questão não se mostra controvertida.
Para além disso, tal matéria consta da factualidade provada em 10 pelo que a procedência do recurso nesta parte redundaria numa repetição de factos provados, o que em nada contribuiria para a boa decisão da causa.
Improcedem, em consequência, também as conclusões atinentes, não se verificando, como alegado qualquer erro de julgamento.
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2.- O abuso de direito.
O exercício de um direito subjetivo deve situar-se dentro dos limites das regras da boa fé, dos bons costumes e ser conforme com o fim social ou económico para que a lei conferiu esse direito: se forem manifestamente excedidos esses limites, atua-se em abuso de direito.
É o que estipula o artigo 334.º do Código Civil.
Menezes Cordeiro, autoridade doutrinária no nosso ordenamento quanto ao instituto da boa fé e aos institutos que com ela se interceccionam, no seu Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, 3ª. Ed. Revista, 2017, pág. 271, recorta este instituto com origem no direito francês do Sec. XIX, que o nosso ordenamento acolheu numa perspetiva objetivista:
O instituto do abuso do direito “começa pela estatuição: é ilegítimo o exercício (…) A ilegitimidade tem no Direito Civil, um sentido técnico: exprime, no sujeito exercente, a falta de uma específica qualidade que o habilite a agir no âmbito de certo direito. No presente caso, isso obrigaria a perguntar se o sujeito em causa, uma vez autorizado ou, a qualquer outro título, “legitimado”, já poderia exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito em causa. A resposta é, obviamente, negativa: nem ele, nem ninguém.
Vamos depreender que “ilegítimo” não está em sentido técnico. O legislador pretendeu dizer “é ilícito” ou “não é permitido”. Todavia, para não tomar posição quanto ao dilema (hoje ultrapassado) de saber se ainda há direito, no abuso ou se, de todo, já estamos em campo proibido, optou pela formula ambígua, da ilegitimidade.
II. De seguida, o preceito exige que o titular exceda manifestamente certos limites. A expressão liga-se aos superlativos usados por alguma doutrina, anterior ao Código Civil. (…)
“Manifestamente” contrapõe-se a “ocultamente” ou “implicitamente”. (…)
“Manifestamente “deixa-nos um apelo a uma realidade de nível superior, mas que a Ciência do Direito terá de localizar, em termos objetivos. Hoje, isso consegue-se pela aferição do sistema.”
Em Ars Iudicandi – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Vol. II, pág. 128, Menezes Cordeiro especifica que não se justifica hoje a necessidade de que a violação dos limites impostos ao exercício do direito seja especialmente grave para que se identifique abuso, bastando que o excesso se identifique para além da dúvida razoável.
Prosseguindo, na obra inicialmente citada, Menezes Cordeiro, continua delineando a figura:
“III. Os limites “impostos pela boa fé” têm em vista a boa-fé objetiva (…) concretizados através de princípios mediantes: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.
IV. Os “limites impostos pelos bons costumes” remetem-nos paras as regras da moral social (…) regras de conduta sexual e familiar e códigos deontológicos (…).
V. Finalmente: o fim social ou económico do direito invoca uma determinada construção historicamente situada.”
Ana Prata, no seu C.C. Anotado, Vol. I, 2017, pág. 408, identifica o fim social ou económico do direito da seguinte forma: “se o direito (hoc sensu) é sinteticamente um poder jurídico para realizar um interesse, está-se fora do domínio de permissão jurídica sempre que o interesse tutelado pelo direito não é aquele que é perseguido pelo seu titular. (…) a permissão jurídica tem objetivos que, defraudados, não se contêm nela.”
De entre as figuras jurídicas autonomizáveis dentro dos atos abusivos, encontramos o venire contra factum proprio e a supressio.
Esta última identifica-se quando se verifica uma inércia no exercício de um direito durante um período temporal longo, suscetível de criar fundada convicção de que não mais será exercido, fazendo desaparecer o direito.
É o caso dos autos.
Está demonstrado nos autos que a empresa (…), Unipessoal, Lda. celebrou um contrato de arrendamento com a recorrente em 01-03-2016, tendo ocupado o locado ainda antes da celebração (cláusula 2.ª, n.º 1, do contrato).
O contrato tinha a duração de um ano, renovável por iguais e sucessivos períodos.
Em março de 2018 a (…), Unipessoal, Lda. deixou de pagar as rendas.
A recorrente não exigiu o pagamento das rendas durante 19 meses, permitindo a renovação do contrato (pelo silêncio) nas datas da renovação, 01-03-2018 e 01-03-2019.
De onde se conclui que, até à data da declaração de insolvência da (...), Unipessoal, Lda. – 18-10-2019 – se verificaram 19 atos omissivos de não pagamento de renda aos quais a recorrente não reagiu, sendo certo que a sua finalidade social, como fundo imobiliário, era o recebimento de rendas e a boa gestão do seu património.
Acontece que a (…), Unipessoal, Lda., como se disse, foi declarada insolvente e a recorrente continuou a ignorar os atos omissivos de não pagamento das rendas, agora pela Massa Insolvente, até 16-11-2020, data em que interpelou o sr. Administrador da insolvência para que procedesse ao pagamento das rendas.
Desta forma ignorou mais 13 atos omissivos de não pagamento de rendas, vindo apenas naquela data a exigir o pagamento.
Ora, a inércia no exercício do direito do locatário no recebimento das rendas e na permissão de sucessivas renovações do contrato de arrendamento, não obstante o locatário ter deixado de cumprir a sua obrigação durante este largo período de tempo, criou fundada convicção na empresa M..., Unipessoal, Ld.ª, convicção que se comunicou à Massa Insolvente que dela derivou, de que não mais o direto seria exercido, o que implica constituir o seu exercício uma violação objetiva dos princípios da boa fé que todos os contraentes devem observar no comércio jurídico.
Pouco importa saber se, no decurso do largo período em que os 32 atos omissivos de ausência de pagamento das rendas, ocorreu a declaração de insolvência, uma vez que a alteração da qualidade jurídica do arrendatário, não contende com o contrato de arrendamento em si e a evidência do não pagamento de rendas.
O locado ficou ao abandono, segundo se infere da matéria de facto provada, uma vez que não era utilizado pela empresa e o proprietário não se preocupou em, por um lado receber as rendas, numa reiteração de inação por 32 momentos e, por outro, dar-lhe o destino para que foi criado.
Nem são aqui de analisar os mecanismos dos artigos 51.º, 89.º/2 e 108.º do CIRE, uma vez que apenas se trata de saber qual a atitude da recorrente relativamente ao cumprimento do contrato de arrendamento e, esta, foi de clara omissão no exercício do direito, pelo que pretender exercê-lo nas circunstâncias em que o fez, se revela abusivo.
Para além disso, no momento em que foi declarada a insolvência, o exercício do direito de receber as rendas já seria um ato abusivo, o que implica não ter aplicação o disposto no artigo 108.º do CIRE.
De onde se conclui que a apelação deve improceder, mantendo-se a bem fundamentada sentença recorrida.
Neste sentido, cfr. Ac. STJ de 05-06-2018, Processo n.º 10855/15.9T8CBR-A.C1.S1:
I - O abuso do direito – artigo 334.º do CC –, na modalidade da supressio, verifica-se com o decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar na contraparte a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido.
II - O Banco exequente, ao deduzir processo executivo contra o avalista duma livrança em branco, treze anos depois desse mesmo avalista ter abandonado a sociedade subscritora da livrança (entretanto declarada insolvente), e reportando-se as responsabilidades reclamadas (só conhecidas do embargante quando foi citado para a execução), a dívidas contraídas por essa sociedade já após o seu abandono como sócio, age com manifesto abuso do direito, na modalidade da supressio.

E o Ac. TRC de 24-11-2020, Processo n.º 4472/18.9T8VIS-A.C1:
I – O termo suppressio é a tradução latina proposta por Menezes Cordeiro, na sua tese de doutoramento “Da boa fé no direito civil”, da figura da Verwirkung do direito alemão, a qual conheceu as suas primeiras manifestações no último quartel do século XIX, ainda em tempos anteriores à entrada em vigor do B.G.B.
II - Com essa designação pretende-se abarcar as hipóteses em que, devido ao titular de um direito não o ter exercido durante um lapso de tempo significativo, as circunstâncias que rodearam essa inação criaram na contraparte a confiança que o mesmo já não viria a ser exercido, merecendo essa confiança a proteção da ordem jurídica através de um impedimento a esse exercício tardio ou da atribuição à contraparte de um direito subjetivo obstaculizador (a surrectio, como tradução latina da Erwirkung alemã, e que constitui com a suppressio as duas faces da mesma moeda).
III - Fruto da teorização desta figura no direito português, introduzida por Menezes Cordeiro, a mesma tem vindo a ser objeto de profusa equação nos tribunais desde os últimos anos do século XX, invocando as mais diversas decisões que ponderaram a sua aplicação, em diferentes situações, o instituto do abuso de direito, consagrado no artigo 334º do Código Civil.
IV - É opinião corrente entre nós que a suppressio abrange situações próximas ou que constituem uma modalidade da figura do venire contra factum proprio, em que o exercício de um direito se revela contraditório com um anterior comportamento de inação prolongada, que, atentas as circunstâncias que caracterizam o caso concreto, induzem o sujeito obrigado por esse direito a, legitimamente, confiar que o mesmo já não será exercido, pelo que a sua ativação ofende os ditames da boa fé.
V - Costumam ser enunciados como requisitos de aplicação desta figura:
- um não exercício prolongado do direito;
- uma situação de confiança daí derivada para a contraparte, coadjuvada por elementos circundantes que a sustentem;
- uma justificação para essa confiança;
- um investimento de confiança;
- a imputação ao não exercente da confiança criada.
VI - Note-se que estes pressupostos não são necessariamente cumulativos, processando-se a sua articulação dentro dos mecanismos de uma sistemática móvel, ou seja, a falta de algum ou alguns deles pode ser suprida pela especial intensidade que assumam os restantes.
VII - Relativamente à prescrição dos direitos, a suppressio, tendo em comum o pressuposto da inércia do titular do direito durante um significativo período de tempo, afasta-se destas figuras ao depender da existência de um concreto investimento de confiança por parte do devedor para operar.
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Sumário:
(…)
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DECISÃO.
Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação improcedente e confirma a sentença recorrida.
Custas pela recorrente – Artigo 527.º do CPC.
Notifique.
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Évora, 10-11-2022
José Manuel Barata (relator)
Cristina Dá Mesquita
Emília Ramos Costa