Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3361/21.4T8FAR.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: ARROLAMENTO
JUSTO RECEIO DE EXTRAVIO OU DISSIPAÇÃO DE BENS
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A alegação, pela requerente de uma providência cautelar de arrolamento de bens móveis, de que estes se encontram a ser retirados, pelos requeridos, do imóvel onde ela os tinha para local desconhecido, configura a situação de justo receio de extravio, ocultação ou dissipação prevista no artigo 403.º, n.º 1, do CPC.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3361/21.4T8FAR.E1

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(…) propôs o presente procedimento cautelar de arrolamento contra (…) e (…). A petição inicial foi objecto de indeferimento liminar com fundamento na não verificação do pressuposto do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens cujo arrolamento é pretendido, bem como na falta de correspondência entre o arrolamento e a acção principal, que seria um recurso de revisão da sentença que decretou o despejo do imóvel onde se encontravam os móveis a arrolar, falta de correspondência essa que redundaria no incumprimento do ónus de convencer o tribunal da provável procedência do pedido formulado em acção destinada a declarar o direito sobre os seus bens.

A requerente interpôs recurso de apelação do despacho de indeferimento liminar, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – Termos em que, encontrando-se incapacitada, vem requerer justo impedimento nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 140.º do CPC.

2 – Nem sequer o tribunal ponderou ouvir o requerido nos presentes autos, verificando-se a violação do disposto no artigo 2.º do CPC.

3 – Verifica-se nulidade da sentença recorrida nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, uma vez que a presente providência cautelar em algum momento refere ou diz que é dependência do processo que a sentença refere.

4 – A sentença recorrida, ao não apreciar devidamente a petição inicial, padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.

5 – A recorrente não alegou em momento algum que exista a dissipação ou ocultação total. Ela tem receio… motivo e fundamento para a presente providência cautelar.

6 – Termos em que deve a sentença recorrida ser revogada, por violação das normas constantes dos artigos 2.º, 140.º e 615.º do CPC.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.


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Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, as questões a resolver são as seguintes:

1 – Justo impedimento;

2 – Nulidade da decisão recorrida;

3 – Violação do princípio do contraditório;

4 – Se foram alegados factos que consubstanciem justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens cujo arrolamento é pretendido;

5 – Falta de correspondência entre o arrolamento e a acção principal.


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1 – Justo impedimento:

Como acertadamente se referiu no despacho que admitiu o recurso, este foi interposto tempestivamente, pelo que a alegação de justo impedimento é irrelevante.

2 – Nulidade da decisão recorrida:

A recorrente sustenta que a decisão recorrida padece da nulidade estabelecida no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, porquanto não apreciou devidamente a petição inicial, na qual não é referido que o arrolamento seja dependência do recurso de revisão da sentença que decretou o despejo do imóvel onde se encontram os móveis a arrolar.

O artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, estabelece que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Parece resultar do corpo das alegações que a recorrente tem em vista a segunda hipótese, ou seja, o excesso de pronúncia.

Corresponde à verdade que, na petição inicial, a recorrente não identificou o recurso de revisão da sentença que decretou o despejo do imóvel onde se encontram os móveis a arrolar como sendo a acção de que o arrolamento é dependência nos termos estabelecidos no artigo 403.º, n.º 2, do CPC. Todavia, ao considerar, erradamente, que a recorrente o fez, o tribunal a quo não se pronunciou sobre questão de que não podia tomar conhecimento, antes se tendo limitado a interpretar mal a petição inicial e, por via disso, a tomar uma decisão incorrecta.

Consequentemente, a decisão recorrida não padece da nulidade invocada.

3 – Violação do princípio do contraditório:

A recorrente invoca a falta de audição dos requeridos, considerando que isso determinou a violação do princípio do contraditório. É evidente a sua falta de razão. Por um lado, a recorrente carece de legitimidade para invocar uma hipotética violação de um direito processual que não é seu, mas da parte contrária. Por outro, estamos perante um despacho de indeferimento liminar de uma providência cautelar, pelo que, por definição, não há lugar à audição dos requeridos antes da sua prolação.

4 – Se foram alegados factos que consubstanciem justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens cujo arrolamento é pretendido:

O artigo 403.º, n.º 1, do CPC, estabelece que, havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles.

O tribunal a quo indeferiu liminarmente a petição inicial com fundamento na não verificação do pressuposto do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens cujo arrolamento é pretendido. Entendeu-se, na decisão recorrida, que, das duas uma: ou os requeridos já retiraram os bens, caso em que inexiste a iminência de extravio, ocultação ou dissipação (já se concretizou), ou os requeridos não retiraram, mas não se invoca que se recusem a entregar os bens à requerente, inexistindo, nessa hipótese, qualquer lesão do direito desta, tanto mais que a mesma não alegou que tenha interpelado aqueles para procederem àquela entrega.

A leitura da petição inicial não legitima o seu indeferimento liminar com o fundamento descrito.

De acordo com a petição inicial, os requeridos têm vindo a desviar, desconhecendo-se para onde, o recheio do estabelecimento de que a recorrente é proprietária (4.º); a recorrente desconhece se os seus bens ainda se encontram nas fracções onde o estabelecimento se encontrava instalado, porquanto viu os réus levarem alguns desses bens numa camioneta (8.º); a recorrente receia que, mesmo que seja decretada a providência, todo o recheio do seu estabelecimento tenha sido dissipado (12.º); os requeridos estão a delapidar os bens da recorrente (13.º); a recorrente ignora o que ainda se encontra no estabelecimento (14.º); verifica-se justo receio da recorrente de perder os seus bens (15.º); tal situação piora à medida que o tempo passa (17.º).

Alega-se, pois, na petição inicial, que a situação que se descreve está em curso, ou seja, já se iniciou e ainda não terminou. Segundo a recorrente, alguns bens já foram, seguramente, retirados do imóvel, havendo, porém, a possibilidade de os restantes ainda aí se encontrarem. Sendo assim, a recorrente alega uma situação de justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens tal como é configurada pelo artigo 403.º, n.º 1, do CPC, não havendo fundamento para indeferimento liminar da petição inicial com fundamento na ausência dessa alegação.

5 – Falta de correspondência entre o arrolamento e a acção principal:

Como afirmámos no ponto 2 da fundamentação deste acórdão, a recorrente não identificou, na petição inicial, o recurso de revisão da sentença que decretou o despejo do imóvel onde se encontravam os móveis a arrolar como sendo a acção de que o arrolamento é dependência nos termos estabelecidos no artigo 403.º, n.º 2, do CPC. Em vez disso, é de supor que a recorrente pretenda propor uma acção destinada a reaver a posse dos bens em causa. Consequentemente, não é possível concluir, neste momento processual, que se verifica uma falta de correspondência entre o arrolamento e a acção principal, a qual ainda nem sequer foi proposta.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se o prosseguimento do procedimento cautelar de arrolamento.

Não são devidas custas.

Notifique.


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Sumário: (…)

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Évora, 13.01.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

José Manuel Barata

Emília Ramos Costa