Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
554/19.8GHSTC.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 04/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Apesar de ser excecional a aplicação de pena de prisão efetiva a um arguido primário, não se justifica a aplicação de suspensão da execução da pena de prisão de 4 anos em que o arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, se ficou provado:

- ter o arguido exercido violência sobre a vítima durante trinta e quatro anos:
- o arguido considera a ofendida como sua propriedade e gostaria de voltar a viver com a ex-mulher, apresentando reduzidos níveis de autocensura e posicionamento externalizado e vitimizado na avaliação da sua trajetória conjugal;
- o recorrente não apresenta sentido crítico nem arrependimento face aos factos pelos quais, em concreto, foi condenado;
- o arguido não tem atividade laboral, pois está reformado por invalidez por problema de saúde (cifose dorsal);
- o arguido injuriou em moldes quase diários a vítima, ameaçou-a, pontapeou-a, esmurrou-a, violou-a;
- o arguido tentou manter a vítima, pelo menos desde 2017, cativa em casa impedindo de se assomar à janela, contatar com terceiros pessoalmente ou através de redes sociais;
- o arguido não revelou qualquer tipo de remorso nem sensibilidade às consequências irreversíveis provocadas na pessoa da vítima.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo Comum Singular n.º 554/19.8GHSTC Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal Juízo Local Criminal de Santiago do Cacém - Juiz 2, submetido a julgamento foi o arguido (...), nascido em (…),
A. Em matéria criminal:
1. Condenado pela prática de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 alínea a) do CP, na pena de quatro anos de prisão efetiva;
2. Condenado na pena acessória de proibição de contato, por qualquer meio, com a vítima, (...), incluindo o afastamento da residência e local de trabalho desta, pelo período de cinco anos, e determinado que o seu cumprimento, quando se encontrasse em liberdade, fosse efetuado por meios técnicos de controlo à distância, independentemente do consentimento do arguido e da vítima, por tal se ter afigurado necessário à proteção dos direitos da vítima, nos termos conjugados dos artigos 26.º n.º 2 da Lei 33/2010 de 2 de setembro e 36.º da Lei 112/2009 de 16 de setembro;
3. Mantido o estatuto coativo de proibição de contactar a ofendida, por qualquer meio, mediante fiscalização de meios eletrónicos de vigilância.
4. Obrigado a sujeitar-se a recolha de amostra em obediência ao disposto no artigo 8.º, n.º 2, da Lei 5/2008, de 12 de fevereiro («a recolha de amostra em arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, com a consequente inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, é sempre ordenada na sentença»);
B. Em matéria civil:
5. Condenado a pagar à assistente/demandante (...), a quantia de vinte e cinco mil euros, acrescida dos juros legais, à taxa supletiva das obrigações civis, desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização civil e até efetivo e integral pagamento;
C. Julgou ainda o Tribunal a quo:
6. Improcedente o pedido de condenação como litigante de má fé da assistente/demandante formulado pelo arguido/demandado em sede de contestação escrita.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões do arguido
Inconformado com a decisão o arguido interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1.- O ora arguido confessou em parte o que aconteceu na noite de casamento.
Logo cai por terra o que sempre o tribunal a quo considerou da não confissão e do não arrependimento.
2.- A ofendida viveu trinta e quatro anos com o arguido, logo não pode ter sido uma vida de horror constante, não há nenhum ser humano que consinta esse abuso durante tantos anos.
3.- Muito mais não poderá a ofendida alegar que sempre foi forçada a ter relações sexuais com o arguido.
4. Foi o arguido que sempre sustentou aquela família, além da ofendida, faziam parte da casa de habitação mais seis pessoas, sendo este que sempre ganhou para o sustento daquelas pessoas. Logo não poderia sempre ir bêbado para o trabalho e regressar bêbado como alegaram no tribunal a quo.
5. O arguido, sofreu danos psicológicos, aquando viu a sua mulher toda nua, na sua cama com o seu pai.
6. O arguido começou a ingerir bebidas alcoólicas, depois de ter casado com a ofendida
7. A Ofendida, nunca assumiu em tribunal que ingeria bebidas alcoólicas, antes da gravidez, sendo que se demonstrou, que a mesma ingeria bebidas alcoólicas em abundância, desde sempre.
8. Nunca admitiu que era descuidada no asseio da sua casa. E que por o casal beber em demasia se batiam um ao outro.
9. Não se mostrou em algum momento no tribunal, a quo qualquer prova documental ou pericial, que atestasse, os maus tratos da vítima.
10. Cabia à acusação fazer prova, dos maus tratos físicos, por prova documental ou pericial.
11. O tribunal a quo firmou a sua convicção com base no depoimento testemunhal de três testemunhas, familiares.
12. Não relevou a prova de toda a defesa, considerando a mesma inútil, e sem qualquer credibilidade.
13. O mesmo teve uma convicção parcial dos fatos, com base nos depoimentos testemunhais, tomando considerações até dogmáticas em relação aos fatos relatados pela ofendida.
14. Nunca o tribunal pode tomar partido pelo que o impressiona, e só com base no depoimento testemunhal.
15.Tudo o que foi trazido, pela defesa, foi desconsiderado e posto em causa.
16. Não dando qualquer credibilidade à que foi relatado pela mesma,
17. O tribunal não se pode impressionar, deve sim, julgar em conformidade desprendendo-se de impressionismos.
18. De dogmatismos- de verdades absolutas.
19.Se se atentarmos, no tribunal a quo este ficou até incomodado, até mesmo indisposto, Porque que considerou que a vítima foi sincera não credibilizando ao invés, nada da defesa do arguido.
20. Este sempre disse tanto no Interrogatório judicial que bebiam os dois que se batiam um ao outro e revelou o episódio no dia do casamento.
21.- Nunca a “Vitima” como diz o tribunal, assumiu perentoriamente que bebia em excesso, mesmo antes da gravidez da sua filha (…), que esteve numa casa de alterne, que já bebia em excesso, que foi o arguido que a tirou dessa má vida.
22. Que este problema do alcoolismo se deveu também em parte à união do arguido com a arguida, já que ficou demostrado e que julgo de forma séria e honesta, pelo que afirmou a ex-companheira, Testemunha, (…), ao dizer que o (…) não ingeria bebidas alcoólicas antes de conhecer a (…).
23. Nunca a ofendida nas suas declarações focou, que nos último 20 e poucos anos era usual e costumeiro irem passar férias doo país, como nas ilhas.
24. Nunca se pronunciou porque a decisão drástica de sair de casa e ir para o aeroporto de Lisboa, e depois ter pedido à filha do Arguido (…) para ir lá buscar, e depois ter pedido ao arguido para a ir buscar ao Monte da Caparica para voltar para casa.
25. Ora não se foge de uma pessoa por ser um horror e depois face a qualquer frustração, não realizada, voltar a pedir ao “monstro” que a vá buscar e voltar para.
26. A filha do casal (…) que tanto impressionou o tribunal, viveu até aos 27 anos em casa, alguém acredita que uma pessoa mormente com a cultura e capacidade dela, vivessem um terror até aquela idade.
27. Mais, até viveu na casa do casal com a sua companheira, como assumiu, em tribunal.
28. Qual o “Ditador” que permitia que a sua filha face à sua orientação sexual vivessem com outra mulher em sua casa.
29. Se atentarmos no Depoimento da (…) esta também diz que nunca pode contar com a mãe, porque a mesma estava sempre embriagada.
30. Digamos que de verdade este período conturbado, avassalador em termos de família disfuncional ocorreu entre 1989 e 1994, o casal esteve perdido, motivado pelo excesso de alcoolismo do arguido e da ofendida.
31. Foi dito, pela ofendida que a partir daí nunca mais o arguido a ofendeu fisicamente, mas sim verbalmente.
32. Mas pelos vistos viveu até 6 de Dezembro com o arguido, sendo que perante os seus familiares e amigo, dizia que com o (…) era só paz e amor.
33. Alguém acredita que uma pessoa torturada (durante 34 anos) e amargurada tem vontade de viajar, ir festejar os anos da neta do arguido em princípio de Novembro/20, sair de casa, novamente para casa. E depois sem que ninguém desse por isso, ou por uma motivação repentina, abandonasse o lar conjugal.
34. Temos também que atentar ao depoimento de todas as testemunhas de defesa que relataram o comportamento desta senhora, completamente normal em relação ao arguido, até se exibindo que tinha muito para dar em termos sexuais.
35. O tribunal a quo fez algum esforço para saber da motivação desta mulher, para que depois de 34 anos, ter vindo fazer crer, que esteve durante este todo a viver com um “monstro”.
36. Não pelo contrário, considerou com visão fixa, que a defesa foi inoperante, que foi nebulosa, censurando toda a prova testemunhal da defesa.
Assim,
37. Entende modestamente o Recorrente que a pena de 4 anos de prisão efetiva, aplicada ao arguido, nos termos do artigo 152.º, n.º1 e n.º 2 alínea a), do Código Penal, bem como a pena acessória de proibição de contacto, por qualquer meio, com a vitima, incluindo o afastamento da residência e local de trabalho desta, pelo período de 5 anos, que lhe foram aplicadas;
- Como, ABSOLUTAMENTE DESADEQUADAS, a pena principal e acessórias, na medida em que, no caso concreto, está em crer que a aplicação de pena pedida pelo Douto Ministério Público, pena suspensa na sua execução, nos limites médios da pena, sujeito a regime de prova- com proibições de contacto, com meios eletrónicos à distância, era absolutamente adequada e suficiente as finalidades da punição, mormente, as necessidades de prevenção especial.
38. Pois que, sendo no nosso sistema jurídico-penal dada sempre preferência às, Penas não privativas de liberdade, é de concluir como de todo incompreensíveis e desadequadas às circunstâncias do caso presente, e, bem assim, à personalidade do Recorrente, à pena de prisão que lhe foi aplicada. Senão porque, a acrescer ao facto de o ora Recorrente se apresentar como plenamente integrado do ponto de vista social, e profissional, a inexistência de quaisquer antecedentes criminais.
Pelo que, será de concluir que a presente condenação surge como um incidente isolado na vida do Recorrente.
39. Posto isto, é forçoso concluir-se que a opção pela aplicação ao aqui Recorrente da pena de prisão efetiva pelo crime de violência doméstica não se mostra de modo algum como correta e justa, pecando por manifestamente desadequada, não se enquadrando nos princípios legais do arts. 40º e 70º do C. Penal, nem, tão pouco, nos princípios constitucionais consagrados nos arts. 27º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
40. Ao invés, e tendo em consideração a conjuntura que levou à prática dos factos em apreço sempre deverá optar-se, nos termos desse art. 70º, pela aplicação de pena não privativa de liberdade, pois que, no que respeita punir o crime em causa, de violência doméstica, mesma pena que sempre se mostra passível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, no que ao Recorrente e a tal tipo legal de crime se refere.
41.-Sem conceder, reputam-se como incompreensíveis, porque exageradas e desproporcionadas, a pena principal e acessórias aplicadas ao Recorrente, como tal, sendo esta a primeira “confrontação” do Recorrente com a Justiça e com uma qualquer decisão de censura quanto à sua conduta.
42.-A especificidade do tipo, bem como, a ausência de antecedentes criminais por parte do Recorrente, a sua inserção, social e profissional e, ainda, a Inexistência, de notícia posterior de crime, não foram devidamente valoradas.
43.- A pena de prisão efetiva aplicada ao ora Recorrente, violam o preceituado nos arts. 40º, 71º C. Penal, sendo exagerada e desproporcional às exigências de prevenção geral e especial aqui reclamadas.
44- A pena a aplicar deverá ser em medida substancialmente inferior, porque apta a realizar, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
45. -A douta sentença violou o, 40º, 71º, Penal, e 13º, 18º e 29º da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., sopesadas as conclusões acabadas de exarar, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, deverá ser revogada a douta Sentença ora recorrida, a qual deverá ser substituída por outra decisão; que decida de forma mais equitativa, justa e menos justiceira, sem conceder, pela aplicação se assim se não se entender de a arguido que a pena principal aplicada ao arguido seja substituída por pena suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova, e que as penas acessórias, sejam substancialmente inferiores, com o que modestamente se entende,
Absolver o arguido em matéria de pedido cível, uma vez que a condenação é deveras exagerada, e infundado face aos factos não provados nos autos. Se assim se não entender deve ser o dito Pedido Cível ser reduzido substancialmente. (…)”.


2.2. Das contra-alegações do Ministério Público
Motivou o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
“I. O recorrente não especificou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e portanto, as passagens da gravação da prova que o recorrente indica na motivação de recurso, não colocam em crise a valoração/apreciação da decisão de facto formulada pelo tribunal de primeira instância, porque desconhecemos os factos que o recorrente pretende impugnar.
II. O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla.
III. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.
IV. No caso, o recorrente, não indicou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados - a omissão é, aqui, absoluta.
V. E como a omissão detetada atravessa toda a peça processual, não se encontrando nesta a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, não poderá o recurso ser aperfeiçoado já que de uma omissão total se trata.
VI. Por outro lado, a leitura da douta sentença recorrida, permite concluir, sem a mínima dificuldade, que a matéria de facto dada como provada e não provada se encontra devidamente justificada, no exame crítico das provas.
VII. Como se vê, o tribunal apercebeu-se da existência de duas versões de sinal contrário, e justificou adequadamente por que razão as declarações da assistente e das testemunhas de acusação (e não as do arguido, e as das testemunhas de defesa) convenceram aqui.
VIII. E a argumentação desenvolvida pelo tribunal a quo é racional e lógica, em nada contrariando as regras do normal acontecer.
IX. Na douta sentença, explica-se devidamente, não só a credibilidade que (desde logo pela sua verosimilhança) mereceram as declarações da assistente, como se justifica a inverosimilhança da versão apresentada pelo arguido e pela filha do arguido – a testemunha (…).
X. De tudo resulta que a argumentação desenvolvida em recurso não permite concluir que tenha ocorrido uma incorreta apreciação das provas, e do exame crítico da douta sentença recorrida, emerge a justificação da sobrevalorização do depoimento da testemunha assistente, em detrimento das declarações do arguido e do convencimento do tribunal na demonstração dos factos da acusação.
XI. Assim, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o Mmº Juiz a quo, formou a sua convicção valorando os diferentes meios de prova sem obediência a critérios legais pré-fixados, mas sempre de acordo com as regras da experiência.
XII. A convicção formou-se na prova livremente apreciada de acordo com as regras da experiência, da lógica, da razão e dos conhecimentos científicos e técnicos necessários ao caso.
XIII. Em suma, o exame crítico da prova cumpriu as suas finalidades, não sendo detetável qualquer vício do art. 410º, nº 2, do CPP, na douta sentença recorrida.
XIV. Vistos os factos em que se consubstanciou a prática pelo arguido do crime em causa (sendo elevado o grau de ilicitude desses factos, face, designadamente, ao longo período em que perduraram os comportamentos maltratantes da assistente), perante a indiferença manifestada pelo arguido (não denotando o arguido autocrítica e arrependimento, e não assumindo a sua culpa), e considerando a personalidade do arguido e as suas condições de vida, não vemos como a suspensão da execução da pena de prisão possa, no futuro, evitar a repetição pelo arguido de comportamentos delituosos.
XV. E a mesma conclusão se retira ainda que sujeitando a suspensão da execução da pena de prisão a regime de prova (conforme é pretendido na motivação do presente recurso).
XVI. Na verdade, a personalidade patenteada pelo arguido, desde logo pela não assunção da sua culpa, e a ausência de reflexão sobre o mal do crime, não permitem, com o devido respeito pela opinião expressa na motivação do recurso, sustentar um juízo de confiança no comportamento futuro do arguido, por forma a que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não venha a delinquir.
XVII. É certo que o arguido não possui antecedentes criminais (facto provado nº 87 da sentença recorrida). Porém, nenhum outro facto dado como provado permite um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do arguido, mesmo com sujeição a regime de prova.
XVIII. A necessidade da pena acessória é, como ficou expresso na douta sentença recorrida, efetivamente evidente, no caso, e justifica-se estabelecê-la no seu limite máximo de cinco anos, por tudo quanto já acima se disse a respeito da determinação da pena principal.
XIX. Posto o que precede, entende-se não ser de suspender a execução da pena de prisão aplicada, e ser de manter a pena acessória pelo período de 5 anos, sendo de negar, por isso, provimento ao recurso também nesta parte.
XX. Ficou provado, na douta sentença recorrida que, em consequência das condutas delitivas do arguido, a assistente viveu, parte da sua vida, num ambiente de terror e pânico, sempre com medo da hora em que o arguido chegasse a casa e das consequências nefastas da apresentação de uma queixa-crime; por força dos factos acima descritos a assistente/demandante viveu anos a fio de inferno, em permanente terror, perdendo toda a vontade de viver, transformando-se num farrapo humano em resultado dos comportamentos violentos do arguido/demandado, as expressões insultuosas dirigidas pelo arguido à assistente causaram à mesma vergonha, humilhação e tristeza profunda; e a par das dores psíquicas e emocionais, a assistente perdeu também o seu amor-próprio, o seu prestígio e a sua reputação.
XXI. Mais: na fixação do quantum indemnizatório não nos podemos limitar aos estritos termos da matéria de facto dada como provada sob os nºs 64 a 70 da douta sentença recorrida. Além dessa factualidade, tem de atender-se também ao modo violento e reiterado da prática dos factos por parte do arguido, e, além disso, à circunstância de tais factos serem gravemente violadores, acima de tudo, da própria dignidade humana da ofendida.
XXII. Ora, vista, por um lado, a grande gravidade dos danos físicos e psicológicos causados à demandante, e, por outro lado, tendo em devida conta todo o demais circunstancialismo que o acervo factológico provado nos dá a conhecer (nos termos acabados de enunciar), temos como justo e adequado o quantum indemnizatório fixado pelo tribunal a quo, afigurando-se-nos que o mesmo é consentâneo com a apreciação global e complexiva de todos os elementos relevantes para o efeito.
XXIII. Face ao predito, o recurso é de improceder também nesta parte.
XXIV. A douta sentença recorrida não violou o artº 40º, e 71º do Código Penal, e também não violou os artigos 13º, 18º e 29º da Constituição da República Portuguesa.
XXV. Posto tudo o que precede, o recurso interposto pelo arguido não merece provimento, sendo de manter, na íntegra, o decidido na douta sentença recorrida.
Nos termos vindos de expor e nos mais de direito que V. Exas. como sempre, mui doutamente suprirão, devem julgar totalmente improcedente o presente recurso, e por consequência, deverão manter nos seus precisos termos a douta sentença recorrida. (…)”.

2.3. Das contra-alegações da assistente
Motivou a assistente defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
“1. O Arguido insurge-se contra a pena aplicada de prisão EFECTIVA que classifica de incompreensível, exagerada e desproporcionada.
2. O mesmo quanto às penas acessórias e ao pedido de indemnização civil.
3. Fundamenta a sua pretensão na invocação FALSA de que o Tribunal não valorou a prova produzida pelas testemunhas arroladas na sua contestação.
4. Quando, por essa prova foi o arguido positivamente referenciado, em audiência de julgamento.
5. O Arguido transcreve uma meia dúzia de depoimentos, soltos mas não ao acaso, pois são apenas das testemunhas que arrolou, justificando a incompreensível pena de prisão efectiva.
6. Omite - não transcreve - qualquer outro depoimento, por saber ser-lhe adverso, mas critica a sua valoração pelo Tribunal.
7. O Arguido atingiu a vítima em todas as vertentes conhecidas da violência doméstica: violência emocional, física, sexual, social, financeira e de perseguição.
8. Num comportamento que se iniciou na noite de núpcias e só termina 34 anos depois, quando a vítima consegue sair de casa.
9. Não é concebível que alguém se sujeite a tal tratamento e durante tanto tempo a menos que tenha perdido o sentido da vida ou tenha a preocupação de criar as suas filhas – é o caso dos autos.
10. A vítima, que tem nome, (…), foi vítima, repetidas vezes e ao longo de anos de diversos crimes: ofensas à integridade física, de ameaça e de crimes sexuais, além de se ter tornado dependente social e financeiramente do Arguido.
11. Apesar das evidências, o Arguido continua a não interiorizar a gravidade da sua conduta ao longo dos anos pois que no seu entendimento e “…tendo em consideração a conjuntura que levou à prática dos factos (40 das conclusoões) é desproporcional a prisão EFECTIVA distorcendo a realidade.
12. Não apresente, assim, sentido crítico, nem arrependimento face aos factos de que, em concreto, vinha acusado e resultaram na sua condenação.
13. Desproporcional e incompreensível no caso concreto e para a comunidade é sujeitar a sua (ex) mulher e filhas a crime que se compra à tortura e, a final, cumprir “pena suspensa”, o que para o cidadão se traduz em impunidade.
14. No PIC o Arguido limita-se a questionar a adesão “in totum” ao valor peticionado sem, no entanto alegar, fundamentar e concluir no que é excesso e em que valor devia ser reduzido.
15. Bem decidiu o Tribunal “a quo” ao fixar a indemnização de €ur.25.000,00 à vítima de 34 anos de violência doméstica, que não mais recuperará completamente para a vida, seja porque desconhece o futuro seja porque jamais esquecerá os dias, as noites de sofrimento.
NESTES TERMOS (…) Deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se integralmente a decisão proferida pelo Tribunal a quo. (…)”.

2.4. Do parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser julgada a improcedência total do recurso interposto pelo arguido.

2.5. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questões a examinar
Analisadas as conclusões de recurso as questões a conhecer são:
2.1. A impugnação da matéria de facto;
2.2. Sedimentada em definitivo a factualidade apurada, indagar se em face dela ocorre erro de julgamento quanto à matéria de direito (artigo 412.º, n.º 2 do CPP), designadamente quanto:
2.2.1. Ao modo de execução da pena de prisão;
2.2.2. À dosimetria da pena principal;
2.2.3. À espécie da pena acessória.

3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida.

3.1.1. Factos provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“a. factos provados
Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:
a.1. acusação pública
1. A assistente (...) e o arguido (...), estiveram casados durante mais de 34 anos, vindo a divorciar-se recentemente; os factos infra relatados ocorreram, todos eles, no período da vigência desse casamento.
2. Durante a relação tiveram várias residências, sendo que a última era na (…).
3. Desta relação têm uma filha em comum, (…), nascida 12-04-1989.
4. A sua filha (…) sempre fez parte do seu agregado familiar até completar 27 anos de idade, sendo que, nessa altura, arranjou casa em (…) e foi viver sozinha, por estar farta dos comportamentos do arguido, seu pai.
5. Faziam ainda parte do agregado familiar duas outras filhas, uma fruto de relacionamento anterior da assistente e a outra fruto de relacionamento anterior do arguido, sendo elas, respetivamente, (…) e (…), que saíram do seu agregado familiar assim que atingiram a maioridade.
6. A ofendida está separada definitivamente do arguido desde o dia 06 de dezembro de 2019, vindo, entretanto, a divorciar-se do mesmo.
7. O primeiro episódio de violência do arguido para com a ofendida teve lugar na noite do casamento, em que o arguido a colocou fora de casa toda nua.
8. No seguimento destas ações manifestou perante o arguido querer ir para ao pé da sua filha, que se encontrava em casa do seu padrinho de casamento, sendo que, no momento em que estava à porta do mesmo, o arguido ao ouvir o estore da persiana levantar, desferiu-lhe um murro num dos olhos, deixando-a com fortes dores que posteriormente resultaram num hematoma.
9. Naquela noite acabaram por pernoitar em casa do seu padrinho de casamento e apesar de toda esta situação, o arguido procurou-a e forçou-a a ter relações sexuais contra a sua vontade.
10. Toda esta situa causou um sentimento de forte repúdio em relação ao arguido, conjugado com um forte sentimento de medo, sendo sua vontade na altura terminar a relação e separar-se do mesmo, bem assim como denunciar estes factos às autoridades.
11. No entanto, por vergonha, mas principalmente por medo do arguido, não o fez acabando por manter-se na relação.
12. Deste episódio, durante um período de dois anos, o arguido andou aparentemente calmo, pois queria mostrar às outras pessoas que a relação era estável.
13. Esta aparência nunca correspondeu à realidade, pois as discussões dele para com ela eram constantes, praticamente diárias, em que o mesmo num tom agressivo, autoritário e destrutivo, a apelidava, frequentemente, de "puta", "és uma filha da puta que andas para ai", entre outros impropérios do mesmo género, sempre com o intuito de a rebaixar, humilhar e diminuir na sua consideração enquanto pessoa, mas principalmente enquanto mulher.
14. Aliás, aos olhos do arguido "todas as mulheres eram umas putas!".
15. Passado pouco tempo de estar casada com o arguido, o pai do mesmo foi viver com eles, por estar doente, sendo que, o arguido sempre o maltratou, tanto a nível físico, como a nível verbal.
16. Era recorrente por parte do arguido agredir o pai com murros, sendo que, houve um episódio em que lhe chegou a partir um dos braços.
17. Em relação aos maus tratos verbais, o arguido acusava o pai "de ter sido o causador da morte da mãe", bem assim como lhe dirigia várias expressões depreciativas.
18. Em muitas dessas situações a ofendida colocava-se entre os dois e acabava por também ser agredida física e verbalmente, nos mesmos moldes anteriormente já referidos.
19. Nos dois primeiros anos de relação viveram em (…), sendo que após este período mudaram-se para (…), uma vez que o arguido trabalhava como estivador nessa localidade.
20. Depois de já estarem a viver em (…), os episódios de violência do arguido para com a ofendida foram-se repetindo e intensificando, factos que deixaram a mesma saturada de toda aquela situação, entrando em depressão, acabando por se refugiar nas bebidas alcoólicas.
21. Passados três anos de casamento a ofendida engravidou da sua filha mais nova, tendo nessa altura deixado de beber.
22. No entanto, o arguido nunca mudou perante a sua pessoa, ou seja, continuou a ser agredida física e verbalmente pelo mesmo, bem assim como era constantemente forçada a ter relações sexuais contra a sua vontade.
23. Quando estava grávida de seis meses, o arguido agrediu-a violentamente com murros e pontapés nas várias partes do corpo, e mesmo caída no chão, o mesmo continuou a pontapeá-la com força na zona dos rins, o que a levou a internamente hospitalar durante uma semana.
24. O arguido nessa situação calçava umas botas de biqueira de aço, o que agravou a situação.
25. Depois do nascimento da sua filha entrou em depressão pós-parto e quando se apercebeu desta situação pediu ajuda ao arguido, o que este ignorou dizendo-lhe "que não estava maluca, que os malucos é que precisam de ajuda psiquiátrica", o que a levou novamente ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
26. Muitas vezes o arguido chegava a casa e a filha de ambos estava a chorar e este dizia então muitas vezes que “se não a calasse, que a atirava pela varanda fora”.
27. Depois do nascimento da sua filha, perdeu a vontade de viver, bem assim como perdeu o interesse no arguido em todos os aspetos, sendo que, este não compreendia o seu estado de saúde e continuava a obriga-la a ter relações sexuais mesmo contra a sua vontade.
28. O estado da ofendida foi-se agravando de forma drástica ao ponto de não se alimentar, não se vestir, não fazer a sua higiene pessoal, chegando ao ponto de não saber o dia em que estava.
29. Pediu ajuda ao arguido e este como resposta agrediu-a violentamente com murros, chapadas, pontapés por todas as partes do corpo, provocando-lhe vários hematomas.
30. Depois deste episódio, o arguido desculpabilizou-se com o facto "da depoente estar bêbeda" e levou-a então a um psiquiatra.
31. Chegou ao consultório do psiquiatra, ainda cheia de sangue na cara. O médico psiquiatra, Dr. (…), disse-lhe que tinha vários hematomas internos, ao que a ofendida lhe respondeu que os mesmos eram o resultado das agressões físicas reiteradas levadas a cabo pelo arguido contra a sua pessoa, chegando a confidenciar-lhe um episódio em que o arguido "lhe partiu um candeeiro na cabeça".
32. O arguido a seguir aos episódios de violência, nunca lhe prestou auxilio, nem nunca a deixou receber tratamento médico hospitalar em unidade de saúde pública.
33. No entanto as marcas destas agressões sempre foram visíveis, muitas delas vistas pelas suas filhas e também pelo seu psiquiatra.
34. A maior parte dos episódios de violência surgiam quando o arguido estava sob influência de bebidas alcoólicas.
35. O arguido antes de iniciar a relação com a ofendida foi toxicodependente e depois passou a refugiar-se no álcool, o que provocava nele comportamentos violentos e agressivos, como os já descritos.
36. Mesmo depois da ofendida estar a fazer tratamento para depressão e a ser acompanhada pelo psiquiatra, os comportamentos do arguido nunca mudaram face à sua pessoa, ou seja, o mesmo continuou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso e a maltratá-la nos mesmos moldes dos que já foram anteriormente referidos.
37. Em data altura a ofendida disse-lhe que ou se tratava ou ia pedir o divórcio, o que levou o mesmo a pedir ajuda, e deixou as bebidas alcoólicas, porém, deixou o tratamento e os comportamentos violentos voltaram, desta vez mais verbais, dizendo-lhe “maluca”, “o psiquiatra é teu amante”.
38. Sempre que a ofendida se recusava a ter relações sexuais com o arguido era "porque já tinha ido à rua ter com amante".
39. Estes factos nunca corresponderam à realidade e quando confrontava o arguido, este tornava-se agressivo, batia as portas com força, partia objetos, dizia-lhe "vai para a puta que te pariu", entre outras expressões ofensivas à sua honra e consideração.
40. Desde a data em que confrontou o arguido com o divórcio, caso ele não se tratasse, este nunca mais a agrediu fisicamente.
41. No entanto recorda-se de quando a sua filha mais nova tinha sete anos, deste a agredir com um murro num olho e obrigá-la a mentir na escola.
42. Este último episódio ocorreu na sua ausência, em que a ofendida tinha sido sujeita a intervenção cirúrgica a uma hérnia discaI.
43. A relação entre a ofendida e o arguido sempre foi uma relação muito conflituosa ao longo dos anos de casamento.
44. Além das discussões frequentes, das expressões para a rebaixar, e de todos os tipos de agressões já referidas, o arguido tentava isolá-la socialmente, chegando a dizer-lhe “vais para casa da tua filha todos os dias, vais lhe lamber a cona !?”.
45. O mesmo agia da mesma forma face aos vizinhos.
46. Ocorreu uma situação em que a ofendida ofereceu um "whisky" a dois colegas de trabalho do arguido e este quando soube, não satisfeito, disse-lhe "se eles lhe pedissem a cona, também a dava !?”.
47. Desde a data em que a sua filha saiu de casa, por estar farta de toda aquela conjuntura, designadamente, há cerca de três anos a esta parte o controlo por parte do arguido face à sua pessoa intensificou-se, ou seja, a ofendida não podia falar com ninguém, não podia aceder às redes sociais, não podia ir à varanda da própria casa, não podia ir a casa das suas filhas, sendo que, sempre que a ofendida fazia a sua vida independente do arguido, este seguidamente acusava-a de ter “ido ter com os amantes".
48. No mês de Novembro de 2019, durante relações sexuais o arguido referiu o nome da filha e disse a expressão “deixa-me partir esse cú todo”, o que a levou a assistente ao seu “limite psicológico”, e no seguimento a levou a pedir o divórcio ao arguido, o que este não aceitou, pelo que fugiu de casa, sem destino, e esteve uma semana em casa da sua filha mais nova.
49. Porém, o arguido, convenceu-a a voltar para casa de ambos, porém concluiu que os comportamentos violentos e controladores iam voltar, pelo que saiu de casa e apresentou queixa por violência doméstica, que originou os presentes autos.
50. Sempre que surgia na comunicação social uma notícia sobre homicídio de mulheres vítimas de violência doméstica, o mesmo dizia-lhe “a próxima vais ser tu”.
51. O arguido chegou a dizer à filha de ambos que quando fossem pedir o divórcio “a primeira árvore que encontrasse que ia contra ela, levando-a com ele”.
52. A ofendida teve conhecimento que o arguido anda à sua procura por todo o lado.
53. A ofendida tem medo de que o arguido “a mate”.
54. Está cada vez mais convicta de que o arguido seja capaz de a matar, salientando que o mesmo não está bem psicologicamente, revelando uma grande instabilidade emocional e uma vez chegou a apertar-lhe o pescoço.
55. O arguido considera a ofendida como sua propriedade e gostaria de voltar a viver com a mesma.
56. A ofendida tem muito medo de que o arguido atente novamente contra a sua integridade física ou até mesmo contra a sua vida.
57. Pretende voltar a à sua vida normal, para que finalmente consiga viver em paz e segurança.
58. Em consequência das referidas condutas do arguido a ofendida sente-se muito triste e humilhada na sua honra e dignidade.
59. Sempre que tratava mal, ameaçava, injuriava ou batia na ofendida, sabia bem o arguido o que estava a fazer e nada o obrigava a adotar esses comportamentos.
60. Aliás, por via dessas condutas a ofendida sofreu, de forma acentuada, física e psicologicamente.
61. O arguido com as suas condutas repetidas e constantes, quis, e conseguiu, abalar a saúde física e psíquica da ofendida, tratando-a de forma cruel e demonstrando uma total falta de respeito e indiferença pela pessoa da ofendida.
62. O arguido movia-se apenas pelo simples desejo de descarregar na pessoa da ofendida as suas pulsões agressivas.
63. O arguido agiu de modo voluntário, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
a.2. pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante
[para além da matéria descrita em a.1. que aqui se dá por integralmente reproduzida:]
64. Por força dos factos acima descritos a assistente/demandante viveu anos a fio de inferno, em permanente terror, perdendo toda a vontade de viver, transformando-se num farrapo humano em resultado dos comportamentos violentos do arguido/demandado.
65. A assistente nunca pensou merecer tal tratamento, e acreditou durante anos que, talvez também pelas filhas, tudo pudesse melhorar, o que nunca aconteceu.
66. Assim viveu em constante pavor, sempre pensando que, a qualquer momento, o arguido repetirá tais comportamentos e concretizará as suas ameaças.
67. Não sabe como conseguirá retomar a vida.
68. Receia também pelas suas filhas caso estas lhe queiram dar apoio ou guarida.
69. A simples recordação daqueles dias, daqueles anos a fio que passou com o arguido, causam pavor à assistente.
70. A saúde física, psíquica e mental da assistente não mais foi a mesma, ficando irreversivelmente afetada.
a.3. contestação
Nenhum.
a.4. discussão da causa/para efeitos de determinação da sanção
a.4.1. aspetos abonatórios
71. Sem prejuízo da factualidade acima descrita, o arguido foi positivamente referenciado, em audiência de julgamento, pelas testemunhas (…) (filha), (…) (prima), (…) (amigo), (…) (amigo), (…) (ex-companheira, mãe da filha (…), (…) (amiga), (…) (amigo), os quais, no geral, transmitiram ao tribunal ter o arguido em boa consideração.
a.4.2. relatório social
72. O arguido ao longo do seu processo de desenvolvimento, integrou o agregado de origem, em contexto familiar constrangido pelas dificuldades materiais/financeiras e pela problemática de alcoolismo do progenitor.
73. Abandonou o percurso escolar aos 12 anos de idade, após completar o 2º ano do ciclo preparatório, para colaborar na subsistência familiar.
74. Trabalhou cerca de 20 anos como estivador, inicialmente no porto de (…) e mais tarde no porto de (…). Viria a beneficiar, aos 39 anos de idade, de reforma por invalidez decorrente de problema de saúde (Cifose dorsal).
75. Aos 18 anos de idade manteve consumo de estupefacientes por cerca de 3 meses (haxixe e anfetaminas), consumo que deixou. Após um período de abstinência, passou a consumir álcool com alguma regularidade.
76. Teve problemas graves de saúde em virtude dos referidos consumos, nomeadamente hepatite C, tendo sido acompanhado clinicamente e ultrapassado o comportamento aditivo em 1994.
77. Revela um posicionamento de desresponsabilização pessoal quanto aos factos de que vem acusado. Apresenta-se centrado na satisfação das suas necessidades, manifestando dificuldades de descentração e fraca tolerância à frustração. Releva ainda dificuldades de autocontrole, com consequências evidentes ao nível do seu ajustamento pessoal. Paralelamente, apresentou uma atitude de vitimização e uma atribuição causal externa.
78. Está sujeito à medida de coação de proibição de contactos fiscalizada por vigilância eletrónica desde 18 de junho de 2020.
79. Mantem-se a residir na habitação familiar e a sua subsistência é assegurada pela reforma que beneficia desde 1993.
80. Apresenta um posicionamento ambivalente, referindo não pretender reatar a relação e responsabilizando a ofendida pela sua situação jurídico-penal, mas, por outro lado, refere que a separação tem sido vivida por si com elevado sofrimento, afirmando manter afeto pelo cônjuge.
81. A ofendida, por sua vez, não deseja uma reconciliação com o arguido.
82. Considera a ofendida que a sua segurança tem estado salvaguardada desde que foram aplicados os equipamentos de vigilância eletrónica, não tendo até ao presente sido contactada pelo arguido, facto que lhe permitiu uma diminuição dos níveis de ansiedade.
83. Assim expressa o desejo, de que a decisão judicial que venha a ser tomada neste processo, contemple a manutenção da vigilância eletrónica.
84. No decurso da medida de coação de proibição de contactos, o arguido tem mantido um comportamento cumpridor das obrigações a que está vinculado, não tendo sido registado até ao presente qualquer situação anómala.
85. O arguido apresenta reduzidos níveis de autocensura, posicionamento externalizado e vitimizado na avaliação da sua trajetória conjugal, aspetos que não são promotores de uma atitude de mudança.
86. Apresenta noção de interdito e consciência da censura moral/social face à natureza dos ilícitos, num patamar abstrato, entenda-se - não no concreto, pois que o arguido não apresente sentido crítico nem arrependimento face aos factos de que, em concreto, vem acusado.
a.4.3. antecedentes
87. Não possui antecedentes criminais registados.”.


3.1.2. Factos não provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou que não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a presente causa nomeadamente (transcrição):
“b. factos não provados
Da audiência de discussão e julgamento resultaram não provados os seguintes factos:
b.1. acusação pública
Nenhum.
b.2. pedido de indemnização civil deduzido pela assistente
Nenhum.
b.3. contestação
1. A desavença em noite de núpcias teve origem numa discussão sem fundamento, porque estavam os dois muito embriagados, bateram-se um ao outro.
2. Além disso essa noite foi passada em casa dos padrinhos num apartamento T2 com mais de 6 pessoas em casa, e nunca obrigou (nem tinham forças para isso) a ofendida a ter relações sexuais contra a sua vontade.
3. Só agora 34 anos depois é que a ofendida vem relatar um facto que omitiu em tantos anos e que até princípios de dezembro/2019 a mesma sempre viveu com o arguido, às expensas deste.
4. Corno pode a ofendida vir dizer que sofreu tantas, tantas atrocidades depois de ter vivido em comunhão de vida e habitação durante tantos anos.
5. Sobre a (permanência), vivência do pai do arguido, na casa comum do casal o que a ofendida diz, não corresponde minimamente à verdade, o pai daquele era um homem saudável, aquando veio viver para a casa do seu filho, certo que exagerava na ingestão de bebidas alcoólicas.
6. Certo dia para espanto do arguido, ao chegar a casa depois de um dia de trabalho, veio encontrar a ofendida e o seu pai todos nus na sua cama, perdidos de bêbados.
7. Portanto, a ofendida deveria ter mais pudor em estar agora a falar dos maus tratos que o filho infligia ao seu pai, porque é tudo mentira, nunca o ofendido bateu no seu pai, este partiu realmente uma vez um braço mas foi por ter caído com uma grande bebedeira.
8. O casal bebia multo, aquando viviam em (…), os dois bebiam uma garrafa de licor beirão por noite.
9. Aliás, bebiam muito desde o início do casamento, com a vida para (…) a coisa ainda piorou mais. É normal que não fosse um casal normal.
10. No meio da gravidez da sua filha de ambos a ofendida deixou de beber, a mesma teve que ser hospitalizada, o arguido sempre a acompanhou ao Hospital São Bernardo, em Setúbal, dando todo o apeio possível, visitando-a diariamente, e não é verdade que a tenha forçado a ter relações sexuais durante a gravidez, nem fazia qualquer sentido, uma vez que na sua casa de (…) e por essa altura vivam 7 pessoas em casa.
11. Como é mentira que o arguido lhe batia com botas de biqueira de aço, nunca o mesmo, trouxe essa botas de trabalho para casa, o arguido tomava banho nos balneários da empresa, deixando sempre lá as roupas, e as botas, diariamente.
12. Sobre a ida ao psiquiatra, Dr. (…), foi o arguido que sugeriu que a mesma, e ele, fizessem um tratamento para deixarem o alcoolismo e foram realmente a esse médico particular, tudo às expensas do arguido, uma vez que a ofendida não tinha qualquer posse para poder pagar os tratamentos.
13. Não é verdade que a mesma tenha ido às consultas ensanguentada, não tem qualquer sentido as denúncias, só por pura maldade a ofendida pode mentir tanto.
14. Aliás, o arguido poderia ter recorrido a um hospital público, mas no intuito dia curar a sua mulher recorreu a um psiquiatra de fama, a pagar custos elevados, fê-lo porque o arguido tinhas possibilidades financeiras uma vez, que sempre ganhou, acima da média.
15. Se tinha hematomas era devido a quedas que a mesma sofria face a andar sempre alcoolizada, assim como o ofendido, e se se batiam, era mutuamente.
16. A ofendida não alude que abandonou a filha tinha esta um ano, indo para (…), de táxi, para a casa de uma irmã, deixando a filha em casa sozinha.
17. O arguido só se apercebeu do abandono quando chegou do trabalho, não sabendo do paradeiro da mulher.
18. Este episódio deu-se dias após o arguido a ter encontrado toda nua com la seu pai.
19. Nunca a ofendida perdeu a vontade de viver, é uma outra mentira, se era pouco asseada, era porque sofria de alcoolismo, o arguido teve que pedir a uma prima que viesse limpar a casa porque a ofendida estava num estado de desleixo, que a imundice da casa era muita.
20. O arguido reconhece que os comportamentos agressivos eram de parte a parte, batiam-se mutuamente.
21. Ainda se lembra que a ofendida a agrediu com uma barra de ferro.
22. Ficando o mesmo a sangrar.
23. As agressões verbais eram de parte a parte, ora duas pessoas alcoolizadas, não podem ter um comportamento salutar.
24. sobre a filha dos mesmos, o arguido lembra-se que uma vez deu de leve um tabefe na filha, nunca tratou mal a mesma.
25. Esta, não há muitos anos que deixou de viver com os pais, porque o pai sempre lhe proporcionou algum desafogo financeiro.
26. Como é sabido a ofendida em 1993, depois do tratamento com o dito psiquiatra deixou de beber, vindo o arguido um ano depois por sua iniciativa a deixar de beber por completo, nunca mais ingeriu uma pinça de álcool, portanto desde o ano de 1994 deixou de vez, as bebidas alcoólicas, nunca mais, friso, inquerido uma bebida alcoólica, a partir daí nunca mais houve desavenças com a ofendida, portanto é mentira que a, má relação tenha durado até fins de 2019.
27. Uns tempos antes de a ofendida sair de casa, esta levava os dias inteiros nas redes sociais, começando a teclar às 3, 4 horas da madrugada, isto até ao princípio da manhã por volta das 7.
28. Depois saia de casa ia a pé até para fazer compras, sugerindo o arguido que fosse com ele, porque iam de carro, escusava de ir a pé, ao que a ofendida dizia tenho de andar a pé. Evitava era a presença do arguido.
29. No dia 1 de Novembro de 2019, a ofendida retirou de um mealheiro de poupanças a Importância de €1.500,00, onde totalizavam a importância de €10.000, para fazer face a despesas emergentes.
30. Ora o arguido questionou a ofendida sobre a retirada do dinheiro, ela respondeu" é para comprar um casaco, mas que não vem “- " como sabes que não vem" -" Porque fui burlada"-
31. Dizendo em seguida, que queria o divórcio, coisa que nunca tinha proferido." Já não gosto de ti'.
32. Nesse mesmo dia o arguido, com grande mágoa e espantado, anuiu a ir com ela a Grândola para se divorciarem, sabendo que tal era impossível assim de momento, no caminho “queres divorciar-te porquê? " existe alguém", ao que a mesma disse que sim!”
33. De seguida o arguido fez inversão de marcha e voltou para trás, e disse: “não me vou divorciar porque gosto de ti - Vim só para ver a tua reação”.
34. De imediato o arguido telefonou para a filha de ambos e disse, vou-me divorciar da tua mãe, a filha disse não quero saber disso é lá com vocês.
35. A filha de ambos tinha por hábito ao domingo, vir à casa dos pais ver filmes com a mãe.
36. No entanto, deixou de vir porque se queixou que a mãe não ligava aos filmes, nem olhava; porque estava imbuída no telemóvel: nem olhava para a televisão.
37. No que diz respeito ao desleixo da ofendida e de não ter vontade para nada é uma pura mentira, muito "vil" e maldosa.
38. Aliás nos últimos 20 anos, passaram todas as férias ou nas ilhas ou no estrangeiro por vezes mais, de uma vez por ano.
39. No dia 17 para 18 de Novembro, o arguido apercebeu-se que a ofendida não dormiu nada, por volta das 2,30 levantou-se e foi para a sala, o arguido foi atrás dela e disse-lhe a estas horas estás levantada, ao que ela exaltada disse-lhe " vai para o caralho".
40. Estes factos aconteceram no dia 1 de Novembro de 2019, paradoxo: no dia 5 de Novembro, foram os dois ao aniversário da neta da filha mais velha do arguido, na (…), nisto vieram para (…), e no período de 5 a 18 de Novembro, era ó paz e carinho, inclusive tendo o arguido tido relações amorosas, com a ofendida era como se nada se tivesse passado.
41. No dia 18 de Novembro/19, sem que, nada o fizesse prever desapareceu de casa, indo para o aeroporto de Lisboa, só dando conhecimento de onde estava à sua filha para a ir buscar ao terminal do mesmo.
42. Por sugestão do arguido e mais uma vez a, perdoando, este pediu à sua filha mais velha que mora na (…), para a ir buscar ao aeroporto no dia 19/Nov.
43. Estando depois, disso, uma semana em casa da enteada, tendo pedido a uma prima do arguido, para falar com este para a ir buscar.
44. Assim foi. Lá vai o arguido, mais uma vez, até à charneca buscar a ofendida; Veio novamente para sua casa no dia 25 ou 26, de Novembro, o arguido não sabe precisar, se foi 25 ou 26, andaram novamente muito amorosos, tiraram fotografias, no Concelho, tudo em paz e harmonia.
45. Acontece até, que em princípios de Dezembro, a ofendida sugeriu que o arguido convidasse um médico amigo da família para vir passar o natal com o casal.
46. No dia 6 de Dezembro, da parte, da manhã o arguido mandou várias mensagens a dizer que a amava, ao, que foi correspondido pela mesma.
47. Para espanto do arguido ao dirigir-se para a sua casa. Nesse dia. Constatou que a ofendida não estava lá, Nisto telefona à ofendida, mas esta não atendia, saiu de casa à sua procura, avista a ofendida junto ao cemitério de Sines (que fica dentro da localidade), mais ou menos a 500 metros de sua ,casa e diz-lhe " o que se passe amor" ela "deixa-me da mão, já não te quero nisto apanhou um táxi, vida fazer queixa à GNR, de Sines, pelos vistos por Violência Doméstica, a partir daí o ora arguido nunca mais soube nada da sua mulher, viveu muitos momentos de angústia, com muito desespero, ficando de facto urna farrapo deprimido e sem vontade de viver; ele sim.
48. Só vindo a ver a ofendida no dia do divórcio de ambos na Comarca do Pombal, visto esta entretanto ter intentado ação de divórcio sem consentimento.
49. O arguido teve uma postura até aqui exemplar.
50. Como se pode constar no tribunal.
51. O mesmo é uma pessoa hoje muito conceituada um (…).
52. Sendo um outro homem até de defesa de causas sociais, desde que deixou as bebidas alcoólicas.
53. Nos últimos 26 anos reinou a paz entre o casal, com algumas atribulações pelo caminho como é normal entre todos os casais.
b.4. discussão da causa/para efeitos de determinação da sanção
Nenhum.”.

3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido
O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma (transcrição):
“c. indicação e exame crítico da prova
A prova é apreciada, salvo quando a lei dispuser diferentemente, de acordo o princípio da “livre apreciação da prova” (artigo 127.º do Código de Processo Penal), princípio que é “direito constitucional concretizado”, que há-de traduzir-se numa valoração “racional”, “crítica”, “lógica”, cf., Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Ed., UCE, pág. 329.
A convicção do tribunal e as razões que, em concreto, determinaram a decisão da matéria de facto:
O tribunal procedeu à análise conjugada da prova oral produzida em julgamento – o meio de prova preponderante – e formou convicção absolutamente clara e inequívoca de que os factos descritos na acusação pública correspondem à realidade – e os do pedido de indemnização civil, bem assim, como decorrência praticamente lógica, necessária, invariável, daqueles – o que afasta, por inerência, por incompatibilidade, a contestação do arguido e a matéria nela alegada.
Nós temos dúvidas quanto à relevância do alegado na contestação do arguido para a solução jurídica da causa, mas para que não fique nenhuma ponta solta, levamos essa matéria à decisão de facto, ainda que a solução só possa ser a de não provado, porque, enfim, se é inviável forma convicção de relevo quanto à mesma ela é, bem assim, a expressão da total ausência de arrependimento, de sentido crítico, do arguido perante os factos gravíssimos de que vem acusado, desculpabilizando-se a si e culpabilizando a própria vítima, assumindo até aqui, neste julgamento, um comportamento de menorização e de desprezo pelo sofrimento da vítima, ao, enfim, atribuir a matéria destes autos a uma invenção ou fabulação da mesma inclusivamente peticionado uma condenação da vítima em litigância de má-fé.
Percorramos assim a prova oral produzida em julgamento para que se perceba, sem qualquer dúvida, o porquê da nossa conclusão.
O arguido prestou declarações em audiência de julgamento e essencialmente reconhece uma única agressão, um murro na face da vítima na lua de mel do casal, aspeto que, é nossa impressão, o arguido reconheceu porque está tão distante no tempo que mesmo que provado, isoladamente, não influiria nem importaria responsabilidade criminal para o arguido.
Reconheceu, mas desvalorizou; aparentemente, na perceção do arguido, dar um murro à noiva na noite de núpcias não é nada de mais; mas este murro é sintomático do que veio a ser relação deste casal, era um prenúncio, muito infeliz, do que estava para vir, como adiante melhor se compreenderá.
No geral o arguido configura uma cabala contra si, ressalvado um outro aspeto que reconhece, como ter dado uma chapada na filha ou ter dito que ia contra uma arvore levando a vítima com ele, mas sempre desvalorizando, sempre sacudindo qualquer responsabilidade ou culpa na matéria.
Prosseguimos em julgamento para as declarações da assistente (repartidas entre a 1ª e a 2ª sessão de julgamento) – diga-se de passagem que estas declarações, como toda a demais prova oral produzida em julgamento, está integralmente exarada no suporte áudio das atas de julgamento e não iremos proceder à sua reprodução, seja no todo, em parte ou em súmula, porque, com efeito, podem ser ouvidas na sua integralidade e nada se poderá afigurar mais esclarecedor do que esse registo integral.
O que o tribunal tem a dizer quanto à sua convicção, o que se lhe afigura como sendo certo, é que a assistente produziu umas declarações absolutamente avassaladoras, absolutamente impressivas e que confirmam, sem dúvida, a generalidade do texto da acusação pública, mesmo o que não possa ter sido confirmado ipsis verbis no conjunto se retira e compreende como verdadeiro; o tribunal escutando a vítima, quase como que sentiu o seu sofrimento, ficou ele próprio incomodado, até mesmo indisposto, com a violência dos episódios que lhe eram relatados.
Este é um caso em que, escutando a vítima com sinceridade, e a vítima foi sincera não temos dúvida, fica-se com uma impressão tao pungente da veracidade dos factos que são trazidos ao conhecimento deste tribunal, na acusação pública, no pedido de indemnização civil, que nem vemos como podem ser relevantemente contrariados, e não foram; este processo praticamente que se resolve na audição das partes, e a credibilidade que atribuímos às declarações da vítima, total, é inversamente proporcional à credibilidade nos mereceram as declarações do arguido.
Avançando no julgamento para a produção da prova testemunhal, (...) prestou um depoimento identicamente impressionante, dando conta da violência, de todo tipo de violência, verbal, física, que o arguido praticava na pessoa da vítima, e que inclusivamente chegou a praticar na pessoa da testemunha, referindo-se, também, ao murro que o arguido lhe desferiu na cara quando era pequena.
O que se nos afigura, na verdade, e julgamos que a qualquer pessoa que ouça este depoimento, é a de que os eventos relatados foram traumáticos, para a vítima, como é evidente, mas também para as pessoas que integraram este agregado familiar, designadamente para a testemunha (...); é dramático escutar este depoimento, tal como depoimento da vítima, transparece o sofrimento vivenciado.
O depoimento de (...) é outro depoimento impressivo, e ademais neste depoimento se falaram, inclusivamente, de outros eventos, que não objeto deste processo é certo – a testemunha referiu, por exemplo, que era obrigada a filmar relações sexuais do casal – mas que também nos revelam uma dinâmica familiar muito conturbada, e pautada, como não poderá haver qualquer dúvida, por episódios frequentes de violência como aqueles que se descrevem na acusação pública.
O depoimento de (...) é um depoimento que o tribunal tem alguma dificuldade em avaliar, parece-nos que (...) quis fundamentalmente proteger o pai, essencialmente, produzir um depoimento abonatório do pai; porque realmente o seu depoimento colide, em essência, com os depoimentos das testemunhas (...) e (...), e não nos produziu a impressão de veracidade que aqueles nos produziram; o tribunal ficou com a impressão que a testemunhou flexionou a realidade, centrando-se na questão do alcoolismo, de apenas o pai trabalhar – sendo certo e sabido que a vitima vivia na total dependência do arguido – por forma a inverter o plano, a inverter o sentido das coisas, a culpabilizar a vítima, tónica comum, ademais, à prova testemunhal produzida pela defesa como adiante se verá; esta versão, que é versão do arguido e da contestação não procede.
Entrando na prova testemunhal da defesa, temos que a mesma é inoperante quanto aos factos principais, quanto à matéria da violência doméstica, não acarreta convicção diversa da já exposta, procurando lançar alguma nebulosidade, relatando uma aparência de normalidade deste casal, e que o anormal ou se algo de anormal havia, era da culpa ou da responsabilidade da vítima, por não cumprir, digamos, diligentemente, a sua função de dona de casa.
Por isso, e no geral, se apresentam como depoimentos de reduzida razão de ciência quanto à substância do relacionamento conjugal, mas que, mau grado esse relativo, por vezes total, desconhecimento, procuraram abonar à versão dos factos do arguido – no fundo, no mais essencial, que a culpa é da vítima; a vítima é que a responsável, a causadora, destes problemas com que o arguido agora se depara.
A testemunha (…), deu-nos conta, por exemplo, da casa desarrumada, de a vítima cair da escada por se encontrar bêbeda, de lhe confidenciar que estava muito contente por ter feito amor com o arguido, enfim, nada de negativo quanto ao arguido, o problema, renovamos, está na vítima.
A testemunha (…), também, nunca viu nada de anormal no casal, embora, a vítima não fosse muito interessada com a casa; mais uma vez, a vítima como a causadora do problema.
A testemunha (…), à semelhança das anteriores testemunhas, deu-nos conta da casa desarrumada, da sujidade, renovamos tudo aquilo que já referimos até este ponto.
A testemunha (…), no essencial, produziu um depoimento abonatório; manifestou alguma pena ou arrependimento em ter terminado a sua relação com o arguido porque sempre foi um bom marido; já no que tange à vítima a sua perceção é, à semelhança do sentido dos outros depoimentos, negativa, como uma pessoa, no fundo, desequilibrada.
A testemunha (…) produziu um depoimento análogo a outros já acima citados, que nas ocasiões em que conviveu com o casal tudo se passava bem, não havia nenhum problema, mas, novamente, a casa era uma nojice, novamente se sugerindo, mais do que sugerindo, se atestando, na verdade, que o problema era da vítima; a vítima é que bebia e que implicava com o arguido.
Por fim, a testemunha (…) produziu um depoimento em tudo análogo ou semelhante à tónica geral da prova testemunha da defesa, abonando ao arguido, e desabonando, digamos assim, à assistente, porque assumiu comportamentos incompreensíveis, neste caso um convite inconsequente para passar o Natal com o casal, mas desconhecendo, em substância, aquilo que alicerça este processo, que é muita coisa, e muito grave.
Desta prova testemunhal podemos retirar um conteúdo abonatório (facto provado 71.), mas nada mais, ela não altera a convicção do tribunal quanto aos factos da acusação pública, do pedido de indemnização civil, e aliás, ela choca, desintegra-se completamente, perante esses esses mesmo factos – o que aqui se revela, algo que, ademais, é comum no quadro da violência doméstica, e este caso não é exceção, é a ambivalência, ou seja, a possibilidade de uma pessoa ter comportamentos diametralmente opostos no seio da vida familiar, por um lado, e no contexto social, por outro; assim é a vida, afinal, as coisas nem sempre são o que parecem.
A remanescente factualidade provada, resultante da discussão da causa e para efeitos de determinação da sanção tem por base o relatório social e o certificado do registo criminal.
Importa deixar bem claro que o arguido, efetivamente, não apresenta qualquer sentido crítico nem arrependimento perante os factos, tal dimana do relatório social e é patente, bem assim, das declarações prestadas em audiência de julgamento, como já acima tivemos a ocasião de assinalar.”.

3.1.4. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma (transcrição):
“d. motivos de facto e de direito
d.1. crime
Segundo a acusação pública o arguido constituiu-se como autor material de:
- um crime de violência doméstica, p. e p. pelo 152, n.º 1, al. a), do atual Código Penal.
Importa ter presente, bem assim, que em audiência de julgamento foi comunicada a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação pública, designadamente no sentido de os mesmos configurarem crime de violência doméstica agravada, nos termos do n.º 2, alínea a), do artigo 152.º do Código Penal, e importarem, bem assim, e pelo menos, a aplicação da pena acessória de proibição de contato com a vítima (n.ºs 4 e 5 do normativo em referência)
Com o crime de violência doméstica pretende-se proteger a pessoa individual, a sua dignidade humana.
O tipo objetivo do crime de violência doméstica preenche-se com a ação de infligir maus-tratos físicos, ou maus-tratos psíquicos, a qualquer das pessoas elencadas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal.
Exige-se uma determinada qualidade da vítima, em relação ao agente do crime, podendo ela decorrer do casamento, mas não necessariamente, bastando uma relação de namoro, “isto é, uma relação amorosa monogâmica estável que não envolva ou tenha envolvido a vida conjugal ou análoga à dos cônjuges”, cf., Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed. act., UCE, pág.592.
Os maus tratos podem ser físicos ou psíquicos, conforme se pode ler no sumário do Acórdão da Relação do Porto, de 10 de julho de 2013, proferido no processo 413/11.2GBAMT.P1, disponível para consulta in www.dgsi.pt, «“Maus-tratos físicos” (que se traduzem em ofensas à integridade física, incluindo simples) ou “Maus-tratos psíquicos” (que podem consistir, como diz Taipa de Carvalho, em “humilhações, provocações, molestações, ameaças, mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça”)».
Os maus tratos podem ser reiterados ou não, significando, pois, que um único comportamento pode bastar para integrar típica do crime de violência doméstica, cf., acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-10-2012, proferido no processo 639/08.6GBFLG.G1, disponível para consulta integral in www.dgsi.pt.
No artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal prevê-se uma forma agravada do crime, entre o mais, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.
O tipo subjetivo pressupõe o dolo, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.
Os factos provados da acusação pública revelam-nos, inequivocamente, conduta típica do crime de violência doméstica, protelada no tempo, na reiteração de maus tratos físicos e psíquicos na pessoa do cônjuge do arguido.
É evidente que os factos, na generalidade, e conforme dos mesmos inequivocamente se depreende e interpreta, decorriam na residência que o arguido e a vítima partilhavam, no domicílio comum ou na casa de morada de família do casal, em suma, na intimidade, no lar conjugal, pelo que não poderá haver dúvida de que estamos perante violência doméstica agravada, nos termos do artigo 152.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal.
Em termos subjetivos ou volitivos, é evidente que a conduta do arguido prefigura dolo direto, intenção clara, direta, inequívoca, de maltratar a vítima – artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal.
Termos em que deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea a), do Código Penal.
d.2. pena
d.2.1. principal
O crime praticado pelo arguido é punível com pena de prisão de dois a cinco anos – artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal
Não se registam causas de atenuação especial ou dispensa da pena a aplicar (artigos 72.º e 74.º do Código Penal).
Nos termos do disposto no art.º 71.º n.º 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena, a sua concreta quantificação, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Por outro lado, e como se infere do n.º 2 do mesmo preceito, na determinação da medida concreta da pena o juiz deve ter em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.
O legislador decidiu-se pela teoria da margem de liberdade, mediante a qual a pena é balizada, nos seus limites mínimo e máximo, pela culpa, intervindo os outros fins das penas, prevenção geral e especial, dentro de tais limites, cf. Simas Santos e Leal Henriques, in Código Penal Anotado, Vol. I, Rei dos Livros, 2002, p. 809-ss.
As exigências de prevenção geral e especial reportam-se às finalidades da pena (artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal), ou seja, quer a proteção de bens jurídicos (prevenção geral), quer a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
No caso que concretamente nos ocupa, compulsados os factos da acusação pública na sua totalidade temos que o grau de ilicitude, a intensidade do dolo, prefiguram-se em patamares de elevadíssima gravidade/intensidade.
No quadro do ilícito de que o arguido vem acusado, de violência doméstica agravada, a gravidade da conduta situa-se no extremo superior deste ilícito, é, com um efeito, um caso limite de violência doméstica, pela sua extrema gravidade, leia-se a factualidade provada da acusação pública, e também a do pedido de indemnização civil, para assim concluir sem margem para dúvidas.
O arguido pontapeou a sua mulher, grávida de seis de meses, com botas de biqueira de aço.
Conduziu-a, através do seu comportamento violento, a uma depressão profunda, ao ponto da vítima não ter vontade de viver, ao ponto de a deixar, praticamente, num estado vegetativo, de não se alimentar, não se vestir, não fazer a sua higiene pessoal, não saber o dia em que estava.
Desconsiderando-a totalmente, inclusivamente na sua liberdade, forçando-a a relações sexuais contra sua vontade.
Este é um caso gravíssimo de violência doméstica, que não se perca isto de vista; demanda, evidentemente, uma punição severa.
A favor do arguido milita o aspeto abonatório, a ausência de antecedentes criminais, e pouco mais, na verdade, o arguido, conforme se retira da matéria extraída do relatório social – e pelo tribunal em audiência de julgamento, como é bem patente das suas declarações – não apresenta qualquer sentido crítico, qualquer arrependimento pelos factos que suportam esta condenação, pelo sofrimento, pela dor, que infligiu à vítima durante anos a fio.
As necessidades de prevenção são exponenciais.
Tudo ponderado a pena concreta não pode fixar-se em menos de 4 (quatro) anos de prisão.
Considerando que o arguido deve ser punido com pena de prisão em medida não superior a cinco anos importa saber se a mesma é passível de suspensão na sua execução, em conformidade com o art.º 50.º, n.º 1, do Código Penal.
É pressuposto da suspensão da execução da pena de prisão a formulação, pelo julgador, de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de quanto a ele a simples censura e ameaça da pena de prisão serem suficientemente dissuasoras da prática de futuros crimes.
O tribunal sabe, tem bem presente, que a aplicação de pena de prisão efetiva a arguido primário, é sempre muito excecional, e de evitar, quando possível, mas neste caso não é, sejamos rigorosos nesta análise.
Independentemente de qual venha ser a decisão final deste processo, se esta se outra em sede de recurso, o tribunal, este tribunal, quer ficar de consciência tranquila, e não tem qualquer dúvida, de que a reação penal adequada, neste caso muito concreto, muito impressivo de violência doméstica, é a de pena de prisão efetiva.
O arguido praticou factos gravíssimos, ao longo de uma vida, e volvidos todos estes anos, não está arrependido de nada, perguntamo-nos até se o arguido mudaria alguma coisa se pudesse voltar atrás no tempo
Agora temos de olhar para o futuro, é certo, e arguido não pode, porque não é possível, reparar integralmente o mal deste crime, as consequências irreversíveis que ele teve na pessoa da vítima; mas alguma reparação a justiça pode fazer, e aquela que aqui se impõe, seja sob o ponto de vista social, evitando um sentimento geral de impunidade, seja sob o ponto do indivíduo, do próprio arguido, que precisa de passar por isso, precisa de passar por essa pena para que interiorize o mal que fez, e isso só se consegue com cumprimento de pena de prisão efetiva.
d.2.1. acessória
Este caso que nos ocupa, manifestamente, não desaconselha, muito pelo contrário, demanda, a aplicação da pena acessória fundamental que se estabelece no quadro do crime de violência doméstica, prevista nos n.ºs 4 e 5 do artigo 152.º do Código Penal, de proibição de contato com a vítima.
A necessidade desta pena acessória é efetivamente evidente, no caso, e justifica-se estabelecê-la no seu limite máximo de cinco anos, por tudo quanto já acima se disse a respeito da determinação da pena principal.
A fiscalização eletrónica, quando o arguido se encontrar em liberdade, apresenta-se imprescindível – este é um caso absolutamente típico dessa imprescindibilidade da proteção dos direitos da vítima, também por tudo o que já acima dissemos quanto ao crime e quanto à pena - e assim será determinada independentemente do consentimento da vítima e do arguido, nos termos conjugados dos artigos 26.º n.º 2 da Lei 33/2010 de 2 de setembro e 36 da Lei 112/2009 de 16 de setembro.
d.3. pedido de indemnização civil
A indemnização atribuída em processo penal tem a natureza de indemnização civil por perdas e danos pelo que importa trazer à colação as normas de direito civil que regem nesta matéria.
À luz do art.º 483.º, n.º 1, do Código Civil a responsabilidade civil por factos ilícitos aquiliana depende da verificação de pressupostos cumulativos: facto (por facto entendendo-se ação ou omissão humana), ilicitude, imputação do facto ao lesante, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
A ilicitude não está estritamente relacionada com direitos das coisas ou direitos de personalidade, podendo reconduzir-se à violação de normas que em simultâneo protejam interesses públicos ou particulares, como sendo normas incriminadoras ou definidoras de contraordenações, cf., Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 1987, p. 472.
Ressalvados os casos específicos da responsabilidade civil objetiva (artigo 483.º, n.º 2, do Código Civil), é necessário que o facto possa ser imputado ao agente a título de dolo ou mera culpa.
A culpa ou a negligência é apreciada pelo critério da diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (487.º, n.º 2, do Código Civil).
À semelhança do que sucede no domínio penal (artigo 15.º do Código Penal), notar-se-á, também no domínio civil a negligência evidenciar-se-á mediante uma análise casuística, fundamentalmente objetiva, “a consideração da negligência como um erro de conduta (envolvendo a própria imperícia ou incapacidade técnica do devedor) e não como uma simples deficiência da vontade”, cf., Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., 1967, p. 333.
A obrigação de indemnização contém-se no princípio geral da reposição ou reconstituição natural (artigo 562.º do Código Civil) e estabelece-se em relação aos danos provenientes ou em nexo de causalidade com a lesão (artigo 563.º do Código Civil).
Nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-2-2017, disponível in www.dgsi.pt. “É consensual o entendimento de que o nosso sistema jurídico, com a citada norma, acolheu a doutrina da causalidade adequada, segundo a qual, para que um facto seja causa de um dano, é necessário que, no plano naturalístico, ele seja uma condição sem a qual o dano não se teria verificado e, além disso, que, no plano geral e abstrato, ele seja causa adequada desse mesmo dano”.
Os danos indemnizáveis são tanto os patrimoniais, como os não patrimoniais ou morais (artigo 496.º do Código Civil).
Caso a caso importará determinar se o dano moral é ou não merecedor de tutela jurídica, “podem citar-se como possivelmente relevantes a dor física, a ofensa à honra ou reputação do indivíduo ou à sua liberdade pessoal”, cf., Pires e Lima e Antunes Valera, op. cit., 1967, pág. 341.
No cálculo da indemnização atender-se-á aos danos direta ou indiretamente resultantes da lesão – emergentes no primeiro caso, lucros cessantes ou benefícios que o lesado deixou de obter no segundo -, podendo, bem assim, atender-se aos danos futuros, desde que previsíveis (artigo 564.º do Código Civil).
Não obstante o princípio da reconstituição natural, a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (artigo 566.º, n.º 1, do Código Civil).
Apresentando a indemnização em dinheiro uma natureza, aparentemente, excecional, em termos práticos será a mais comum forma de reparação, por serem frequentes os casos em que se apresenta como a única forma de reparação possível.
Fixando-se a indemnização em dinheiro o princípio da reconstituição natural não é olvidado (artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil), ainda que a equidade assuma um papel preponderante (artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil), e particularmente assume na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais (artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil).
A averiguação e determinação, em concreto, dos pressupostos da responsabilidade civil e do conteúdo da obrigação de indemnizar:
Trata-se, no caso dos autos, de compensar danos de natureza não patrimonial, numa palavra, o sofrimento, o extremo sofrimento, a que a vítima foi submetida durante anos a fio, e ao qual o arguido deu causa, como consequência do crime de violência doméstica que praticou.
A quantia que a demandante peticiona, de 25.000€, não é excessiva, se atentarmos na gravidade dos factos.
Porquê reduzir este montante perguntamo-nos? 25.000€ é compensação excessiva para quem viveu num clima de terror, de constante violência, física, verbal, sexual, anos a fio, sem que se conheça um pedido de desculpas, um sinal de arrependimento sincero que ajude, de algum, a apaziguar esse sofrimento?
Independentemente da situação económica do arguido, e da vítima, a vítima, evidentemente numa situação muito mais desprotegida e precária, 25.000€ constitui um montante perfeitamente justo.
Este não é um caso para uma compensação meramente simbólica ou figurativa, a indemnização a atribuir tem que efetivamente reparar, na medida possível, o sofrimento da vitima.
Sobre o montante indemnizatório acrescem os juros de mora à taxa supletiva das obrigações civis, a contar desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização civil e até efetivo e integral pagamento (art.º 805.º, n.ºs 1 e e3 e 806.º do Código Civil e Portaria 291/03, de 08-4).
Uma vez que o montante devido a título de danos patrimoniais não sofre qualquer atualização no momento desta sentença, os juros vencem-se a partir do já acima referido momento (não tendo aplicação o acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2002, de 9 de Maio de 2002, disponível in Diário da República, I-A, de 26 de Junho de 2002).
Com o devido respeito o pedido de litigância de má fé é inaceitável, não há qualquer fundamento para a condenação da assistente/demandante em litigante de má-fé pelo que tal peticionado improcede sem outras considerações.”.

3.2. Da apreciação do recurso interposto pelo arguido
O Recorrente não concorda com a matéria dada como provada e com o direito aplicável referindo, em síntese:
- Pretender a reapreciação de facto e de direito,
- Insurgindo-se contra a pena de prisão efetiva e pena acessória de proibição de contacto, por qualquer meio, com a vítima, incluindo afastamento da residência e local de trabalho desta, pelo período de cinco anos, que considera absolutamente desadequadas;
- Insurgindo-se contra a condenação no pedido cível, que considera exagerado e infundado.
Apreciemos, então, as questões suscitadas e já assinaladas em II., 2. deste Acórdão.

3.2.1. Impugnação da matéria de facto
No direito processual penal são contempladas duas formas de impugnação da matéria de facto, sujeitas a regimes processuais diferentes, a saber:
- A impugnação ampla consistente em o recorrente requerer expressamente a reapreciação da prova gravada, sempre com respeito pelo duplo ónus de especificação do artigo 412.º, n.º 3 e 4 do CPP;
- A impugnação restrita fundada na invocação dos vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º, do CPP que são, em todo o caso, de conhecimento oficioso.
No recurso interposto o recorrente não cumpriu o duplo ónus de impugnação exigido pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, pois:
- Não individualizou os pontos concretos da matéria de facto que queria impugnar, não sendo suficiente a remissão genérica para os factos provados;
- Não especificou relativamente a cada um desses pontos quais as provas que impunham decisão diversa.
O Acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência n.º 3/2012, de 8 de março de 2012[1], pronunciou-se sobre as consequências do não cumprimento do duplo ónus de impugnação, assinalando que a reapreciação da prova documentada em audiência de julgamento não é global, consistindo antes num reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto entendidos pelo recorrente como incorretamente julgados e às concretas razões de discordância.
A impugnação ampla da matéria de facto não visa a reapreciação de toda a prova produzida, não constitui um segundo julgamento, mas, tão só, a deteção e correção de erros de julgamento, incidindo sobre concretos pontos da matéria de facto, que o recorrente deve identificar, bem como especificar as concretas provas que demonstram a existência do erro.
Ao recorrente incumbiria, assim, especificar as provas que impunham decisão diversa da recorrida e não apenas que a permitiam, não bastando remeter para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
Revertendo ao caso em apreciação o recorrente em momento algum individualizou quaisquer pontos concretos da matéria de facto descrita na sentença recorrida que considerasse incorretamente julgados, nem especificou por referência a esses factos, nos moldes legalmente exigíveis, quais as provas concretas que em seu entender imporiam decisão diversa.
Acresce não competir ao Tribunal da Relação perscrutar na minuta de recurso quais os pontos concretos da matéria de facto que supostamente o recorrente reputa incorretamente julgados e eventualmente quais as provas concretas por referência a esses factos que imporiam decisão diversa.
Não tendo os recorrentes cumprido com aquele ónus, ao Tribunal da Relação encontra-se vedado reexaminar amplamente a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido e deste modo impedido de sindicar a existência ou não de supostos erros de julgamento[2].
Como atrás se referiu a sindicância da matéria de facto também é suscetível de ser realizada através da invocação dos vícios previstos no n.º 2, do artigo 410.º, alíneas a), b) e c) do CPP.
Tais vícios só ocorrem se resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos.
São vícios intrínsecos da decisão, não sendo lícito afirmar-se a sua existência recorrendo a elementos que lhe sejam exteriores (ex: depoimentos e declarações prestados durante o inquérito, instrução ou até na audiência de julgamento).
Tais vícios terão de ser evidentes para qualquer indivíduo de médio discernimento e devem resultar do texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum.
Do texto da decisão recorrida não resulta, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum (sem recurso, por exemplo, a declarações ou depoimentos prestados durante o inquérito, instrução ou julgamento) e à observação do homem de formação média ter ocorrido qualquer vício previsto nas alíneas a), b) ou c) do artigo 410.º, n.º 2 do CPP.
Na peça recursiva o que recorrente fez foi colocar em causa a apreciação realizada pelo o Tribunal a quo em relação a alguns meios de prova, que na sua perspetiva não foram avaliados devidamente, concluindo dever-se substituir a convicção do tribunal pela que é supostamente a sua, alegação essa que nada tem a ver com os vícios do artigo 410.º, n.º 2 do CPP.
No caso a sindicância foi realizada à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração essa que o Tribunal a quo é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código Penal.
Cumpre, assim, analisar se ocorreu violação do disposto no artigo 127.º do CPP Penal.
O Julgador, deve avaliar a prova de acordo com a lógica e a experiência comum e pautar-se pela descoberta da verdade processualmente relevante e embora não esteja estritamente vinculado na apreciação da prova encontra-se limitado pelas exceções decorrentes da “prova vinculada”, a saber:
- O caso julgado (artigo 84.º do CPP);
- O valor da prova pericial (artigo 163.º do CPP);
- O valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (artigo 169.º do CPP);
- A confissão (artigo 344.º do CPP).
O julgador está, ainda, sujeito aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova (artigo 32.º, n.º 8, da CRP e artigos 125.º e 126.º do CPP) e o in dubio pro reo (artigo 32.º, n.º 2, da CRP).
Dentro destes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos considerados provados e não provados.
Nada impede, assim, que o Tribunal dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
A censura realizada pelo recorrente à forma de formação da convicção do Tribunal não pode, contudo, assentar simplesmente no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova. A censura terá de assentar na violação de um dos passos para a formação, designadamente por virtude de:
- Não existirem dados objetivos apontados na motivação;
- Terem sido violados os princípios para a aquisição desses dados objetivos;
- Não ter ocorrido liberdade na formação da convicção.
Se assim não fosse ocorreria uma inversão da posição dos intervenientes do processo, ou seja, substituía-se a convicção de quem tem de julgar pela dos que esperam a decisão.
Por outras palavras: ao recorrente não basta defender que a leitura da prova feita pelo Tribunal não é a mais adequada, supondo neste caso ser a mesma possível, é necessário mais, ou seja, demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e em sentido diverso, não consentia a leitura dada pelo julgador.
Revertamos, então, aos argumentos invocados pelo arguido, para colocar em causa a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido.
O arguido considera que as declarações prestadas pelas testemunhas de defesa devem prevalecer sobre as da acusação.
Por outras palavras a versão dos factos apresentados pela defesa teria de se sobrepor à da acusação.
Quanto a este ponto o Tribunal a quo assinalou na decisão de forma expressa que na perspetiva da defesa a relação do arguido e da vítima era normal, apenas salientando tratar-se a ofendida de pessoa incumpridora da sua função de dona de casa (“a casa era um nojo”), ser bêbeda tendo, ainda, uma das testemunhas (…) apontado a circunstância de (…) implicar com o marido (o arguido).
Concluiu, assim, o recorrente face a estes depoimentos conjugados com as suas próprias declarações que os factos constantes da acusação deviam ter sido conduzidos aos não provados ou na dúvida ter-se decidido in dubio pro reo.
O Tribunal recorrido, todavia, não teve quaisquer dúvidas quanto à circunstância de a relação entre o arguido e a vítima ser tudo menos normal. Aliás, nem podia deixar de considerar a falta de “normalidade” no relacionamento descrito, face necessariamente à forma como a vítima foi descrita pela defesa (bêbeda e porca) e à circunstância de o próprio arguido afirmar ter esmurrado a vítima na lua de mel.
O Tribunal a quo, não ignorou a existência de duas versões distintas de sinal contrário: a da defesa e a da acusação, e considerou a segunda credível em detrimento da primeira.
Considerou e justificou a sua opção sustentada na versão apresentada pela acusação fundamentalmente nos relatos da vítima, da filha comum do casal que com eles viveu até meados de 2017 e nas declarações de uma enteada do arguido, mas até, como assinalado, nas próprias declarações do arguido. O arguido, efetivamente, confirmou ter desferido um murro na face da mulher durante a lua de mel e ter dado uma chapada à filha do casal, embora negasse todos os restantes factos tais como:
- Ter desferido, durante o casamento e pelo menos até meados de 2016 murros, chapadas e pontapés na vítima;
- Ter acusado a mulher de ter amantes;
- Ter, em moldes praticamente diários, apelidado a mulher, num tom agressivo, autoritário e destrutivo de "puta", "és uma filha da puta que andas para aí";
- Ter forçado a vítima, durante trinta e quatro anos a por variadíssimas vezes, a manter relações sexuais, a última das quais em novembro de 2019 onde invocou o nome da enteada durante o ato sexual com a vítima dizendo “deixa-me partir esse cú todo”.
- Ter esmurrando e pontapeado em várias partes do corpo a vítima quando esta esteve grávida, mesmo quando esta já estava caída no chão continuando a pontapeá-la com força na zona dos rins, com sapatos de biqueira de aço o que a levou ao internamento hospitalar por uma semana (ponto 23.)
- Ter tentado isolar a vítima socialmente, desde pelo menos 2017, impedindo-a de falar com outras pessoas, de aceder às redes sociais, ir à varanda da própria casa, ir a casa das filhas, ameaçado de morte a vítima tal como a filha e chegando a dizer “vais para casa da tua filha todos os dias, vais-lhe lamber a cona”;
- Ter apertado o pescoço da vítima;
- Ter procurado a vítima por todo o lado ao ponto de esta ter medo que ele a matasse, após a separação ocorrida em novembro de 2019, até à data da aplicação da medida coativa (18.6.2020) (pontos 52. e 53.)
- Ter tratado a vítima como se fosse sua propriedade (ponto 55)
- Dizendo muitas vezes à ofendida quando chegava a casa e a filha de ambos era pequena e estava a chorar que “se não a calasse, que a atirava pela varanda fora”.
- Ter a vítima, depois do nascimento da filha comum com o arguido, perdido a vontade de viver, não se alimentando, não se vestindo, não fazendo a sua higiene pessoal, chegando ao ponto de não saber o dia em que estava.
Na valoração da prova o Tribunal indicou de forma clara as razões pelas quais as declarações da vítima e das duas filhas desta se revelaram credíveis e os motivos pelos quais sobrevalorizou esta prova em detrimento da apresentada pela defesa.
A argumentação desenvolvida pelo tribunal a quo foi racional e lógica, em nada contrariando as regras do normal acontecer.
Na sentença, explica-se devidamente, não só a credibilidade que (desde logo pela sua verosimilhança) mereceram as declarações da assistente e depoimentos das duas filhas desta, como se justifica a inverosimilhança da versão apresentada pelo arguido e pela filha do arguido a testemunha (…).
Ao Tribunal a quo não sobreveio qualquer dúvida sobre os atos praticados pelo arguido, pelo que não havia qualquer fundamento para apelar ao princípio in dubio pro reo.
Como a factualidade descrita na sentença recorrida, não se baseia em provas proibidas nem enferma de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º, do CPP, tem-se por definitiva a decisão sobre a matéria de facto proferida na 1.ª Instância.

3.2.2. Da pena de prisão efetiva e da pena acessória
Estando definitivamente estabilizada a matéria de facto descrita na sentença recorrida passemos a apreciar as questões relativas ao erro de julgamento quanto ao direito aplicável (artigo 412.º, n.º 2 do CPP).
O recorrente requereu a suspensão da execução da pena de prisão, com sujeição a regime de prova, e que a pena acessória fosse substancialmente inferior.
A propósito da suspensão da execução da pena de prisão o artigo 50.º do CP estabelece que:
“O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Apreciemos, então, se a suspensão da execução da pena realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
No juízo de prognose referenciado na lei há que ter em conta a personalidade do arguido, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias deste mesmo facto.
É certo que o arguido não possui antecedentes criminais (facto provado sob o ponto 87 da sentença revidenda).
Por outro lado, a ofendida considerou que a sua segurança tem estado salvaguardada desde a aplicação dos equipamentos de vigilância eletrónica, não tendo até ao presente sido contactada pelo arguido, facto que lhe permitiu uma diminuição dos níveis de ansiedade.
Por fim, no decurso da medida de coação de proibição de contactos, o arguido tem mantido um comportamento cumpridor das obrigações a que está vinculado, não tendo sido registado até ao presente qualquer situação anómala.
Nenhum outro facto dado como provado, porém, permite um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do arguido, mesmo com sujeição a regime de prova.
Ficou apurado ter o arguido exercido violência sobre a vítima durante trinta e quatro anos e que, embora a separação tenha ocorrido em 6 de dezembro de 2019 e o arguido tenha sido sujeito à medida de proibição de contactos, a ofendida tem medo de ser morta pelo arguido (ponto 53. dos factos provados) salientando não estar o mesmo bem psicologicamente, revelando uma grande instabilidade emocional (ponto 54.).
Por outro lado, o arguido considera a ofendida como sua propriedade e gostaria de voltar a viver com a ex-mulher (ponto 55. dos factos provados) apresentando reduzidos níveis de autocensura e posicionamento externalizado e vitimizado na avaliação da sua trajetória conjugal, aspetos não promotores de uma atitude de mudança (ponto 85.).
O recorrente não apresenta sentido crítico nem arrependimento face aos factos pelos quais, em concreto, foi condenado (ponto 86).
O arguido também não tem atividade laboral, pois está reformado por invalidez por problema de saúde (cifose dorsal).
O arguido injuriou em moldes quase diários a vítima, ameaçou-a, pontapeou-a, esmurrou-a, violou-a, chegou a durante o ato sexual com a vítima a invocar o nome da enteada e a dizer-lhe que “rebentava o cu todo”, tentando mantê-la, pelo menos desde 2017, cativa em casa impedindo de se assomar à janela, contatar com terceiros pessoalmente ou através de redes sociais.
Apesar dos referidos maus tratos exercidos sobre a vítima durante trinta e quatro anos o arguido não revelou qualquer tipo de remorso nem sensibilidade às consequências irreversíveis provocadas na pessoa da vítima.
A personalidade revelada pelo arguido não permite sustentar um juízo de prognose positivo, no comportamento futuro, sendo ainda fator de risco o desejo manifestado em manter relacionamento com a vítima.
Sendo excecional a aplicação de pena de prisão efetiva a um arguido primário, estamos, contudo, perante uma situação muito grave de violência doméstica física e psicológica perpetrada durante um longo período de trinta e quatro anos.
Assim, a pena de prisão efetiva é reclamada no caso e a suspensão da sua execução não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, porquanto coloca irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e da estabilização das expectativas da comunidade na validade da norma violada.
A mesma conclusão se retira ainda que sujeitando a suspensão da execução da pena de prisão a regime de prova (conforme é pretendido na motivação do presente recurso).
Na verdade, a personalidade patenteada pelo arguido, desde logo pela não assunção da sua culpa, e a ausência de reflexão sobre o mal do crime, não permitem, sustentar um juízo de confiança no comportamento futuro do arguido, por forma a que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não venha a delinquir.
Em conclusão: a suspensão da execução da pena de prisão não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, não só numa perspetiva de prevenção especial como de prevenção geral.
Em relação à aplicação da pena acessória esta exige que o preceito que a consagra conste da acusação ou da pronúncia. Analisada a acusação constata-se da sua leitura não resultar qualquer menção ao artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do CP.
Não constando das apontadas peças a menção aos citados n.ºs 4 e 5 do artigo 152.º do CP a sua aplicação seria em princípio nula, por violação do direito de defesa do arguido.
O julgador, contudo, no decurso do julgamento (cf. fls. 352 v) comunicou a “alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação designadamente no sentido de os mesmos configurarem crime de violência doméstica agravada, nos termos do n.º 2, alínea a) do artigo 152.º do Código Penal, e importarem, bem assim, e pelo menos, a aplicação da pena acessória de proibição de contato com a vítima (n.ºs 4 e 5 do normativo em referência).”.
Por virtude desta comunicação foi cumprido o direito de o arguido estar prevenido da eventual aplicação da pena acessória para se poder defender da mesma, sendo válida a referência à mesma na sentença.
A possibilidade da aplicação da pena acessória de proibições de contacto com a vítima decorre do artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do CP, tendo o Tribunal a quo justificado a sua necessidade[3]. No caso em apreciação a pena acessória enquadra-se dentro do espírito de proteção e assistência à ofendida, por se tratar de vítima especialmente vulnerável sobre quem o arguido exerceu violência durante trinta e quatro anos e a queixosa sente medo de ser morta pelo agressor.
Por outras palavras, na situação em análise a pena acessória é plenamente justificada considerando a elevada gravidade dos concretos atos praticados pelo arguido em que as necessidades de prevenção e a proteção da vítima reclamam uma tutela penal reforçada.
Justifica-se, por outro lado, a manutenção da proibição de contactos no seu limite máximo de cinco anos, por tudo o já referido.
Julga-se, assim, não ser de suspender a execução da pena de prisão aplicada, e ser de manter a pena acessória pelo período de cinco anos, sendo de negar provimento ao recurso também nesta parte, não ocorrendo qualquer violação dos artigos 40.º e 71.º do CP e 13.º, 18.º e 29.º da CRP.

3.2.3. Da condenação cível
Alega o recorrente ser desproporcional, desajustado e não equitativo o montante indemnizatório arbitrado a título de ressarcimento pelos danos não patrimoniais sofridos pela assistente em 25.000 €.
Ficou, contudo, provado, que, em consequência da conduta violenta e reiterada do arguido prolongada no tempo por trinta e quatro anos, a vítima viveu num ambiente de terror, pânico, com medo permanente do arguido, chegando a perder a vontade de viver, transformando-se num farrapo humano.
Os murros, os pontapés, a violência sexual, as expressões insultuosas dirigidas pelo arguido à ofendida causaram à mesma vergonha, humilhação e tristeza profunda bem como a perda da sua autoestima e confiança.
Os factos atentatórios da própria dignidade humana da ofendida a par da gravidade dos danos físicos e psicológicos causados à demandante, conferem justeza e adequabilidade ao quantum indemnizatório fixado pelo tribunal a quo, não se podendo afirmar que o valor encontrado não seja equitativo[4] atendendo que os 25.000 € correspondem a cerca de 735 € anuais por cada ano de violência, a 61 € mensais e a 2 € diários.
Sendo, assim, de improceder o recurso também nesta parte.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido e em consequência, mantem-se na íntegra, a sentença recorrida.
2. Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.ºs 1 do CPP e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III anexa, do Código das Custas Processuais).
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 13 de abril de 2021.
Beatriz Marques Borges - Relatora
Martinho Cardoso
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[1] Publicado no DR 1.ª série, n.º 77, de 18 de abril de 2012.

[2] Cf. neste sentido: o Ac. do TC n.º 259/2002, de 18/6/2002, publicado no DR II.ª Série, de 13/12/2002; o Ac. do TC n.º 140/2004, de 10/3/2004, publicado no DR II.ª Série, n.º 91 de 17/4/2004: Ac. STJ proferido no proc. n.º 08P1884, de 05-06-2008, relatado por Simas Santos.

[3] No Acórdão da RC de 15-04-2020 proferido no P. 222/18.8T9ACB.C1 e relatado por ALCINA DA COSTA RIBEIRO foi designadamente decidido que: “I – A condenação em prisão efectiva, decorrente da prática pelo arguido de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. b), do CP, não obsta à imposição, em simultâneo, da pena acessória de proibição de contactos, com afastamento da residência ou do local de trabalho da vítima, contida nos n.ºs 4 e 5 do mesmo artigo. II – De facto, se a dita pena acessória é ineficaz enquanto o condenado está num regime de real reclusão, o mesmo não sucede quando e durante o tempo em que ele está em liberdade, seja por via da sua colocação em posição de não cumprimento da pena – após o trânsito em julgado da sentença, não se entrega voluntariamente, dificulta ou impede a sua detenção – seja através de licenças de saída precária e da concessão da liberdade condicional.”.

[4] Em alguns dos Acórdãos consultados em que as vítimas foram mulheres adultas e os agressores os seus companheiros, foi decidido designadamente: no Acórdão da RC de 18.5.2016 (P. 232/12.9GEACB.C2, relatado por Olga Maurício) relativo a vítima ameaçada durante dois anos várias vezes de morte o agressor foi condenado a pagar uma indemnização de 2.000 €; No Acórdão da RL proferido no processo 974/16.0PEOER.L1-9 a vítima foi injuriada e ameaçada de morte, inclusive à frente dos filhos menores, durante 11 anos tendo a indemnização sido fixada em 5.000 €; No Acórdão da RG de 4.12.2017 (processo 214/16.1PPGMR.G1 em que foi relator Pedro Cunha Lopes) o arguido foi condenado no pagamento de 1.500 € por ter perseguido a mulher entre novembro de 2015 a março de 2016 chamando-lhe puta, vaca e qualquer dia estendo-te”.