Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
36/19.8PEFAR.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: FURTO
OBJECTO
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 04/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Vem sendo entendimento reiteradamente afirmado na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, relativamente à detenção de objetos furtados por parte do arguido, em situações em que este, no uso do direito ao silêncio que lhe assiste, opta por não prestar declarações, em julgamento, que aquela circunstância, desacompanhada de qualquer outro indício – em especial quando existe alguma dilação temporal entre a data da subtração dos objetos e a data da apreensão dos mesmos –, não permite levar a concluir, com a segurança necessária e para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido foi o autor do crime de furto e que foi por essa via que obteve os objetos apreendidos em seu poder. Ou seja, essa apreensão não permite afastar a possibilidade de ocorrência de uma outra causa que não a autoria do furto, para os bens furtados tenham chegado à posse do arguido, podendo tê-lo sido, por exemplo, por via de recetação, dolosa ou negligente.

2 – De forma diferente ocorrem em situações em que o arguido, estando na posse dos objetos furtados, opta por prestar declarações acerca das circunstâncias como ficou em poder de tais objetos, constituindo essas declarações um meio de prova e estando sujeitas a livre apreciação do tribunal, por força do disposto no artigo 127º do CPP, com as consequências daí decorrentes, em termos de poderem ou não, em conjugação com a demais prova produzida e com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, ser acolhidas/valoradas pelo julgador ou não o ser, por não merecerem credibilidade.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Neste processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, n.º 36/19.8PEFAR, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Criminal de Faro – Juiz 2, foram submetidos a julgamento os arguidos (...) e (...) melhor identificados nos autos, tendo sido proferido acórdão, em 02/12/2020 – que foi depositado nessa mesma data – com o seguinte dispositivo
«(…) acordam os Juízes que compõem o Tribunal Colectivo em:
I) Absolver a arguida (...) da prática, em co-autoria, de um crime de furto qualificado, na forma tentada;
II) Absolver a arguida (...) da prática, em co-autoria, de um crime de furto qualificado, na forma tentada;
III) Absolver o arguido (...) da prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada (NUIPC 35/19.0PEFAR);
IV) Absolver o arguido (...) da prática de um crime de furto qualificado (NUIPC 37/19.6PEFAR);
V) Absolver o arguido (...) da prática de um crime de ameaça agravada, na forma continuada;
VI) Absolver o arguido (...) da prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, mas alterando a qualificação jurídica, condená-lo, como reincidente, pela prática de um crime de furto, na forma tentada (art.º 203º, n.º 1 e 2 do Código Penal), na pena de 6 meses de prisão, e num crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo art.º 190º, n.º1 e 3 do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão (NUIPC 36/19.8PEFAR);
VII) Condenar o arguido (...), como reincidente, pela prática de um crime de furto, previsto e punido pelo art.º 203º, n.º 1 Código Penal, na pena de 6 meses de prisão (NUIPC 1580/19.2PBFAR);
VIII) Condenar o arguido (...), como reincidente, pela prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punido pelo art.º 203º e 204º, n.º 2, al. e) Código Penal, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão (NUIPC 1654/19.0PBFAR);
IX) Condenar o arguido (...), como reincidente, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos art.ºs 203 e 204º, n.º2, al. e) do Código Penal, na pena de 3 anos e 10 meses de prisão (NUIPC 1650/19.7PBFAR);
X) Condenar o arguido (...), como reincidente, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos art.ºs 203 e 204º, n.º2, al.e) do Código Penal, na pena de 3 anos e 10 meses de prisão (NUIPC 1636/19.1PBFAR);
XI) Operar o cúmulo jurídico das penas em que o arguido (...) é condenado e condená-lo na pena única de 6 anos e 4 meses de prisão;
XII) Determinar a devolução das meias apreendidas ao arguido, ficando o mesmo notificado para reclamar a sua entrega no prazo de 60 dias, sob pena de não o fazendo, serem as mesmas consideradas perdidas a favor do Estado;
XIII) Determinar a devolução da pedra da calçada à via pública;
XIV) Determinar a notificação dos proprietários incertos para reclamarem a entrega da power bank, sob pena de não o fazendo no prazo legal, ser a mesma considerada perdida a favor do Estado;
XV) Determinar que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a prisão preventiva;
XVI) Declarar extinta a medida de coacção a que a arguida (...) se encontra sujeita;
XVII) Condenar o arguido no pagamento das custas judiciais, fixando-se a taxa de justiça, em 4UC, nos termos do disposto no artigo 513.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e respectiva tabela III anexa, à qual acrescem as despesas e encargos a que deu azo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 514.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 16.º e 17.º do Regulamento das Custas Processuais.
(…).»
1.2. Inconformado com o decidido, recorreu o arguido (...) para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação apresentada as seguintes conclusões:
«1 - Foi o recorrente condenado, como reincidente, nos presentes autos, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 203º e 204º n.º 2, alínea e) do Código Penal, na pena a três anos e dez meses de prisão (NUIPC 1650/19.7PBFAR) e;
Pela prática como reincidente de um crime de furto qualificado p. e p. pelo art.º 203º e 204º n.º 2, alínea e) do Código Penal, na pena a três anos e dez meses de prisão (NUIPC 1636/19.1PBFAR).
2 - É deste Acórdão condenatório que nos permitimos discordar, com o devido respeito pela opinião contrária, no que à medida concreta das penas aplicadas respeita.
3 - Sempre com o referido respeito, entendemos que o Tribunal a quo não terá feito, na nossa óptica, uma adequada interpretação e aplicação do Direito aos factos ora em causa.
4 - A aplicação ao recorrente de uma pena de 3 anos e dez meses de prisão efetiva, em cada um dos NUIPC’s é desprovida de qualquer fundamento perante ausência de prova.
5 - Na determinação da medida da pena, há que considerar conjuntamente os factos e a personalidade do arguido (art.º 77º, n.º 1 do Código Penal).
6 - No entanto, e sempre com o devido respeito, entendemos que o tribunal a quo não terá ponderado exaustivamente todos estes factores, dando clara primazia aos antecedentes criminais do recorrente em detrimento do exame critico das provas ou ausência delas.
7 - Em matéria de prova, no processo penal, vigora no nosso ordenamento jurídico, o princípio da livre apreciação, previsto no artigo 127º. do Código de Processo Penal, nos termos do qual, salvo existência de prova vinculada, como a prova pericial, face ao valor que lhe é reconhecido no artigo 163º. nº. 1 do CPP, o tribunal decide quanto ao mais de acordo com as regras da experiência e da livre convicção.
8 - No entanto, o princípio da livre da apreciação da prova pressupõe e exige uma indicação dos meios de prova e um complementar e exigente exame crítico.
9 - No caso presente, a prova produzida foi insuficiente para provar os indícios da acusação no que diz respeito aos dois crimes de furto qualificado dos NUIPC’s 1650/19.7PBFAR e 1636/19.1PBFAR.
10 - No Processo 1650/19.7PBFAR, o Tribunal a quo deu como provados os factos constantes do ponto 20 a 24 do Douto Acórdão recorrido:
“20. No período compreendido entre ao 20:20 horas e as 22:15 horas do dia 7 de Dezembro de 2019, o arguido (…) introduziu-se através de uma janela de correr no interior da residência de (…), situada na Praceta (…), e de lá retirou e fez seus os seguintes bens:
a. um envelope com €1.300,00 em notas do Banco Central Europeu, que se encontrava no interior da gaveta da cómoda do quarto;
b. um relógio Montblanc, Meisterstrck, prateado, com os dígitos 48 e 10 entre os botões, no valor de €1.500,00, que se encontrava no interior da gaveta da comoda do quarto;
c. um canivete de marca Navaja Vitorinox 9023Outider, preto, no valor de €60,00, que se encontrava no interior da gaveta da cómoda do quarto, e que foi recuperado;
d. um fio de ouro com uma medalha, de valor não apurado;
e. um par de luvas castanhas, marca Polo Ralph Laurent, tamanho L, no valor de €55,00, que se encontrava no interior da gaveta de cómoda do quarto, e que foram recuperadas;
f. um telemóvel Samsung Galaxy, A2, no valor de €100,00, que se encontrava no interior da gaveta da cómoda do quarto;
g) uma quantia monetária de, pelo menos, 65 dólares americanos que ase encontrava no interior da gaveta da cómoda do quarto;
h. um computador portátil de marca Apple, Macbook Pro 13”, no valor de €800,00, e uma mala de computador Tumi, Alfa 2, com iniciais PHW gravadas, no valor de €400,00, pertença de (…) e que se encontrava na sala de estar,
i. um computador portátil de marca Apple, Macbook Pro 13”, no valor, em novo, de €1.349,63, com o número de série C02SP4NBFVH3, pertença de (…).
21. O arguido (...), agiu conforme acima descrito, livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de se introduzir naquela residência através de uma janela e de se apropriar de objectos e quantias monetárias de valor superior a €102,00 que sabia não lhe pertencerem e que agia contra a vontade e sem autorização dos respectivos donos, o que representou, quis e conseguiu.
22. O arguido (...) sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal, que podia e devia ter observado”.
11 - O recorrente em Audiência de Julgamento remeteu-se ao silêncio, no entanto, em sede de 1º. Interrogatório Judicial de Arguido Detido, o mesmo declarou que havia adquirido os objetos que se encontravam na sua posse a um terceiro.
12 - Conforme resulta no Douto Acórdão (…) não há prova testemunhal ou pericial que coloque o arguido (...) no interior desta residência.”
13 - Com efeito, conforme se sublinha no Acórdão da Relação do Porto de 23-10-2013, o simples facto de o recorrente ter na sua posse objetos furtados, ainda que cinco dias após os factos, não é suficiente como indício seguro e inequívoco, capaz de fundar um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável, e não de mera probabilidade, de que foi ele o autor do furto.
14 - Pese embora se possa cogitar, á luz das regras da experiência, que seja o recorrente o autor do furto, é também razoável a dúvida que resulta de poder ter sido outro o autor do ilícito e de que só posteriormente os objetos entraram na posse do arguido.
15 - Não basta para se alcançar um juízo de certeza razoável quanto á culpabilidade do recorrente o facto de o mesmo ter sido encontrado na posse de alguns objetos furtados, podendo igualmente admitir-se a hipótese de lhe terem sido dados por terceiros ou de os ter encontrados abandonados, ou até mesmo comprado a um terceiro.
16 - Acresce que, daquilo que foi supra exposto, o direito do recorrente ao silêncio na Audiência de Julgamento não o pode prejudicar, não sendo sobre ele que recai o ónus de provar que os objetos furtados estavam na sua posse por outro motivo que não a autoria do furto, cabendo antes à acusação o ónus de provar o contrário, pelo que a dúvida que a esse respeita se suscita não o pode prejudicar, devendo sim, beneficiá-lo.
17 - Assim sendo, entendemos que quanto ao Processo nº. 1650/19.7PBFAR, impõe-se a aplicação ao recorrente do princípio do in dúbio pro reu, pela prática do crime de furto qualificado, absolvendo-se o mesmo.
18 - No que respeita ao NUIPC 1636/19.1PBFAR, o Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:
23. No dia 5 de Dezembro de 2019, pelas 11:15 horas, o arguido (...) decidiu aceder pela de uma varanda ao interior da residência pertencente a (…), Sita na Rua (…), estando aquela ainda no interior da residência, e daí retirou r fez seus, os seguintes bens:
a. dois fios em ouro amarelo, de malha grossa, sendo um de valor não apurado e outro no valor de €1800,00, tendo este sido recuperado;
b. uma medalha em forma de lágrima com a letra S no interior, em ouro amarelo com brilhantes, de valor não concretamente apurado;
c. uma pulseira em ouro amarelo, malha grossa, no valor aproximado de €200,00;
d. um par de brincos/argolas em ouro amarelo, com um coração em ouro e outro com um coração em brilhante com um valor de mais de €100,00;
e. um brinco em ouro amarelo com brilhantes, no valor aproximado de €120,00;
f. um relógio dourado/rosa, de valor não concretamente apurado;
g. um relógio de marca Timex, no valor aproximado de €100,00, tudo pertença de (…), e que se encontravam no interior de um guarda jóias em cima da mesa de cabeceira do quarto do casal, e ainda
h. €80,00 em notas do BCE que se encontravam na carteira da mala pertença de (…) e um telemóvel Iphone, 6S com o número de série (…) e IMEI (…) e um relógio de cor dourada, de marca Sekonda, de valor inferior a €102, e que foi recuperado.
24. O arguido agiu, conforme acima descrito, livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de se introduzir na referida residência através da porta de uma varanda nas traseiras do edifício e de se apropriar, de objectos e quantias monetárias pertença de (…) e de valor superior a €102,00, bem sabendo que agia contra a vontade e sem autorização dos respectivos donos, o representou, quis e conseguiu.”
19 - Conforme resulta do Douto Acórdão, o recorrente tinha na sua posse alguns objetos que foram subtraídos da residência de (…), no entanto e na mesma senda do já foi anteriormente exposto no Processo nº. 1650/19.7PBFAR, o Tribunal a quo refere que: “É certo também que (…) não viram a pessoa que entrou na sua residência e que tal ocorre com esta última ainda no interior da residência, tendo a entrada se dado por uma janela aberta, e inexiste outra prova testemunhal ou pericial que coloque qualquer um dos arguidos dentro da residência.”
20 - Refere ainda o Douto Acórdão, para justificar a condenação do recorrente que terão ocorrido dois furtos no interior de residência com a diferença de dois dias.
21 - Entendemos in casu que é manifestamente insuficiente a fundamentação para condenação do recorrente.
22 - Ora, que a simples detenção dos objetos furtados pelo recorrente, desacompanhada de qualquer outro indício, não permite induzir a forma como as coisas furtadas foram por ele obtidas, nem que ele as obteve nas condições previstas pelo artigo 203º. e 204º. do Código penal.
23 - O recorrente, e sem outra prova que sustente, pode ter entrado na posse das coisas furtadas por as ter recebido de um terceiro sem ter tido qualquer participação no furto.
24 - Porquanto, não pode ser afastada a dúvida razoável sobre se foi efetivamente o recorrente a praticar os dois crimes de furto qualificado.
25 - Pois, a autoria dos furtos qualificados não é mais do que uma das várias hipóteses possíveis a qual, para além de ser a mais prejudicial para o recorrente, carece de segurança exigida pela observância do princípio in dúbio pro reu.
26 - Concluindo, entendemos que face á inexistência de prova para sustentar a autoria dos crimes de furto qualificado a que o recorrente foi condenado nos Processos nºs 1650/19.7PBFAR e 1636/19.1PBFAR torna-se forçoso modificar a decisão recorrida tendo em conta o principio in dúbio pro reu absolvendo o recorrente.
Nos termos expostos, e nos demais de Direito, sempre com o mui douto suprimento deste Tribunal, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar a decisão proferida nos Processos nºs 1650/19.7PBFAR e 1636/19.1PBFAR, absolvendo o recorrente dos dois crimes de furto qualificado.
ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA!»
1.3. O recurso foi regularmente admitido.
1.4. O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
«1. O arguido limita-se a proferir uma alegação, não fui eu;
2. Todavia, esquece os demais factos que foram demonstrados em tribunal, e que através de um exame crítico de toda a prova produzida, assente numa apreciação daquilo que é comum e espetável que aconteça face aos factos antecedentes, no âmbito da livre apreciação da prova, inserta no artigo 127º do Código de Processo Penal, se possa, como efetivamente foi feito pelo tribunal, atribuir aqueles factos ao arguido;
3. Desde logo, a conduta do arguido no julgamento, não pode, nem é, apreciada de modo individual corresponde a cada processo, resultando antes, de uma apreciação global que nos mostra um percurso de tempo no quotidiano do arguido, ou seja, tem que existir uma conjugação de toda a prova.
4. Pese embora não caiba ao arguido demonstrar que não praticou os factos que lhe são imputados - os furtos, no caso, como lhe foram apreendidos bens que, reconhecidamente eram propriedade dos ofendidos e que se encontravam no interior das residências alvo, poderia, caso entendesse, fornecer uma explicação para a posse dos mesmos;
5. E, como refere o tribunal, a explicação que o arguido apresentou, apenas quanto às luvas, canivete e relógio Sekonda e a falta de explicação para o fio de ouro, não se coadunam com aquilo que ficou demonstrado em tribunal. Isto é, o arguido não tinha dinheiro que lhe permitisse adquirir € 200,00 de haxixe para entregar contra o recebimento das luvas, canivete e relógio, assim como não tinha dinheiro para comprar um fio de ouro, sendo de salientar, também como refere o tribunal, que tal depoimento é prestado pela mãe do arguido;
6. Por outro lado, da residência a que se refere o processo 1650/19.7PBFAR, foi também retirado 65 USD (factos dados como provados sob o ponto 20., alínea g);
7. Ora, não se adquire dinheiro a terceiros, mesmo que moeda estrangeira, a qual pode ser cambiada pelo próprio que dela se apropriou;
8. Acontece que estes dólares foram cambiados pelo arguido no dia 10 de dezembro, ou seja, menos de 3 dias depois da data do furto (que ocorreu na noite de dia 7 de dezembro);
9. Por outro lado, o fio de ouro apropriado da residência a que se refere o processo 1636/19.1PBFAR, foi logo penhorado no dia seguinte ao do furto (que ocorreu no dia 5 de dezembro);
10. Assim, e ao contrário do afirmado pelo arguido na sua peça de recurso, a data de detenção dos objetos apropriados, não se reporta a cinco dias depois da sua apropriação, mas logo ao dia seguinte, ou seja, menos de 24 horas depois, já o fio de ouro estava a ser penhorado, fio este, que segundo as declarações da arguida (...) foi-lhe entregue pelo arguido para aquele fim;
11. Assim, tendo em conta todos os factos demonstrados em sede de julgamento, resultantes dos depoimentos das testemunhas e declarações dos arguidos, conjugados com as apreensões efetuadas e documentação junta, não existem quaisquer outras possibilidades de os factos trem ocorrido de modo diverso daquele que consta nos factos dados como provados sob os pontos 20. a 25. dos factos dados como provados;
12. O tribunal não teve qualquer dúvida, muito menos uma que se assuma como intransponível;
13. Não foi violado nenhum preceito legal, designadamente os artigos 203º e 204º, ambos do Código Penal e 127º do Código de Processo Penal.
Em face do exposto, entende-se, com o devido respeito, que o presente recurso não deverá obter provimento, mantendo-se a decisão, assim se fazendo, JUSTIÇA.»
1.5. Neste Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser julgado improcedente.
1.6. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não houve resposta.
1.7. Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
Cumpre agora apreciar e decidir:

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito – cfr. artigo 428º do C.P.P.
As conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cfr. artºs. 402º, 403º e 412º, todos do C.P.P.
Tal não preclude o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P., mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Ac. do STJ n.º 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
Considerando os fundamentos do recurso a questão suscitada é a violação do princípio in dúbio pro reo.

2.2. Acórdão recorrido
O acórdão recorrido é do seguinte teor:
«(…)
III. FUNDAMENTAÇÃO
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
(NUIPC 36/19.8PEFAR)
1. No dia 4 de Dezembro de 2019, pelas 19:45 horas, o arguido (...) subiu um poste de iluminação pública e acedeu, por essa forma, ao terraço da residência de (…), sita na Rua (…).
2. Nesse local, logrou aceder à escadaria que dá acesso ao quintal da propriedade, e daí entrou num anexo à habitação de (…) e revolveu o interior, nomeadamente, uma lata de café, a fim de fazer seus os bens e quantias monetárias que ali encontrasse.
3. Não logrou concretizar tal intento uma vez que foi surpreendido por (…) e, nesse momento, saiu do local, em fuga.
4. Os bens que se encontravam no local não excederiam o valor de €102.
5. O arguido agiu, conforme acima descrito, livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de se introduzir, através da subida de um poste de iluminação pública, no interior de um anexo à residência de (…) e de se apropriar de objectos e quantias monetárias que lá se encontrassem, o que representou, quis e só não conseguiu por motivos alheios à sua vontade, em concreto, por que foi interceptado por (…), bem sabendo que tal anexo à residência e bens que lá se encontravam não lhe pertenciam e que agia contra a vontade e sem autorização da respectiva dona.
6. O arguido (...) sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal, que podia e devia ter observado.
(NUIPC 1580/19.2PBFAR)
7. Em 23 de Novembro de 2019, entre as 5:31 horas e as 6:03 horas, na Residencial (…), pertença de (…) e localizada na (…), o arguido (...) introduziu-se na zona reservada aos funcionários do balcão da recepção da residencial e retirou de uma caixa em plástico a quantia de €75,00 em notas do BCE, pertença de (…) e que o arguido (...), de imediato, fez sua.
8. O arguido (...) agiu, conforme acima descrito, de forma voluntária, livre e consciente, com o propósito concretizado de se introduzir no interior da área reservada aos funcionários no balcão da aludida Residencial (…) no intuito de fazer sua aquela quantia monetária, bem sabendo que não lhe pertencia e que actuava contra a vontade e sem autorização do respectivo dono, o que o arguido representou, quis e conseguiu.
9. O arguido (...) sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, que podia e devia ter observado.
(NUIPC 1654/19.0PBFAR)
10. No dia 7 de Dezembro de 2019, pelas 21:00 horas, os arguidos (...) encontravam-se no exterior do prédio onde reside (...), sita no (…).
11. Os arguidos sentaram-se nas escadas do hall de entrada daquele edifício e, após terem visto (...) a sair do prédio, o arguido (...) introduziu-se naquela residência através da janela da marquise.
12. Contudo, (...) regressou a casa poucos minutos depois, tendo surpreendido o arguido (...) no seu interior.
13. Assim que se apercebeu que (...) o havia visto, o arguido (...) encetou fuga pela referida janela, tendo em conjunto com a arguida (...) se deslocado para parte incerta.
14. O arguido agiu, conforme acima descrito, de forma voluntária, livre e consciente, querendo introduzir-se, pela janela da marquise, no interior de tal habitação, no intuito de fazer seus os bens que ali se encontrassem de valor superior a €102,00, bem sabendo que tais bens não lhe pertenciam, que actuava contra a vontade e sem autorização do respectivo dono, o que representou e quis e só não conseguiu porque (...) o surpreendeu.
15. O arguido sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, que podia e devia ter observado.
(NUIPC 35/19.0PEFAR)
16. No dia 27 de Novembro de 2019, entre as 10:30 e as 10:45, o arguido (...) encontrava-se nos terraços dos prédios contíguos ao Hostel (…), pertença de (…) e sito na Rua (…).
17. Depois de ser surpreendido pelos proprietários de residências do n.º 16, que o mandaram embora, o arguido passou para o terraço do Hostel, entrou por uma porta ali situada e saiu pelas escadas em direcção à rua.
NUIPC 37/19.6PEFAR
18. No dia 1 de Dezembro de 2019, pelas 23:00 horas, indivíduo de identidade não apurada deslocou-se ao exterior da Residencial (…), sita na Rua (…), entrou pela janela do quarto n.º 102 onde estava alojado o hóspede (…) e sua esposa, introduziu-se no seu interior pela referida janela e daí retirou e levou consigo bens de natureza e valor não apurados.
19. Os bens retirados vieram a ser entregues pelo arguido (...) ao seu proprietário.
NUIPC 1650/19.7PBFAR
20. No período compreendido entre as 20:20 horas e as 22:15 horas do dia 7 de Dezembro de 2019, o arguido (...) introduziu-se através de uma janela de correr no interior da residência de (…), situada na Praceta (…), e de lá retirou e fez seus os seguintes bens:
a. um envelope com €1.300,00 em notas do Banco Central Europeu, que se encontrava no interior da gaveta da cómoda do quarto;
b. um relógio Montblanc, Meisterstrck, prateado, com os dígitos 48 e 10 entre os botões, no valor de €1.500,00, que se encontrava no interior da gaveta da cómoda do quarto;
c. um canivete de marca Navaja Vitorinox 9023Ourider, preto, no valor de €60,00, que se encontrava no interior da gaveta da cómoda do quarto, e que foi recuperado;
d. um fio em ouro com uma medalha, de valor não apurado;
e. um par de luvas castanhas, marca Polo Ralph Laurent, tamanho L, no valor de €55,00, que se encontrava no interior da gaveta da cómoda do quarto, e que foram recuperadas;
f. um telemóvel Samsung Galaxy, A2, no valor de €100,00, que se encontrava no interior da gaveta da cómoda do quarto;
g. uma quantia monetária de, pelo menos, 65 dólares americanos que se encontrava no interior da gaveta da cómoda do quarto;
h. um computador portátil de marca Apple, Macbook Pro 13”, no valor de €800,00, e uma mala de computador Tumi, Alfa 2, com as iniciais PHW gravadas, no valor de €400,00, pertença de (…) e que se encontrava na sala de estar,
i. um computador portátil de marca Apple, Macbook Pro 13”, no valor, em novo, de €1.349,63, com o número de série C02SP4NBFVH3, pertença de (…).
21. O arguido (...) agiu, conforme acima descrito, livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de se introduzir naquela residência através de uma janela e de se apropriar de objectos e quantias monetárias de valor superior a €102.00 que sabia não lhe pertencerem e que agia contra a vontade e sem autorização dos respectivos donos, o que representou, quis e conseguiu.
22. O arguido (...) sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal, que podia e devia ter observado.
(NUIPC 1636/19.1PBFAR)
23. No dia 5 de Dezembro de 2019, pelas 11:15 horas, o arguido (...) decidiu aceder pela porta de uma varanda ao interior da residência pertencente a (…), sita na Rua (…), estando aquela no interior da residência, e daí retirou e fez seus, os seguintes bens:
a. dois fios em ouro amarelo, de malha grossa, sendo um de valor não apurado e o outro no valor de €1800, tendo este sido recuperado;
b. uma medalha em forma de lágrima com a letra S no interior, em ouro amarelo com brilhantes, de valor não concretamente apurado;
c. uma pulseira em ouro amarelo, malha grossa, no valor aproximado de €200,00;
d. um par de brincos/argolas em ouro amarelo, um com um coração em ouro e outro com um coração em brilhante com um valor de mais de €100;
e. um brinco em ouro amarelo com brilhantes, no valor aproximado de €120,00;
f. um relógio dourado/rosa, de valor não concretamente apurado;
g. um relógio de marca Timex, no valor aproximado de €100,00, tudo pertença de (…), e que se encontravam no interior de um guarda jóias em cima da mesa de cabeceira do quarto do casal, e ainda
h. €80,00 em notas do BCE que se encontravam na carteira da mala pertença de (…) e um telemóvel Iphone, 6S com o número de série (…) e IMEI (…) e um relógio de cor dourada, de marca Sekonda, de valor inferior a €102, e que foi recuperado.
24. O arguido agiu, conforme acima descrito, livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de se introduzir na referida residência através da porta de uma varanda nas traseiras do edifício e de se apropriar, de objectos e quantias monetárias pertença de (…) e de valor superior a €102,00, bem sabendo que agia contra a vontade e sem autorização dos respectivos donos, o representou, quis e conseguiu.
25. O arguido sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, que podia e devia ter observado.
26. Entre os dias 4 e 16 de Fevereiro de 2020, pessoa de identidade não apurada, enviou diversas mensagens através do número (…) para o número (…) utilizado por (…), entre outras, com o seguinte teor:
a. no dia 4 de Fevereiro de 2020, pelo 12h48, o arguido (...) enviou uma SMS com as palavras “Next time i see you i Will beat your ass gayboy”,
b. pelas 14h00, o arguido (...) enviou uma SMS com as palavras “Soon i block your head…” (…) “with a 9mm bullet”;
c. pelas 15h36 o arguido (...) enviou uma SMS com as palavras “You are DEATH my friend” e
d. no dia seguinte, pelas 11h03 o arguido (...) enviou outra SMS com as palavras “the murder commando it’s on it’s way, soon the Will land in Faro (from Amsterdam), start saying your prayers my friend”.
27. No dia 16 de Fevereiro de 2020, a pessoa que usava o mesmo número de telefone referido em 26, contactou telefonicamente (…) e disse-lhe que o ia matar.
28. No âmbito do Processo Colectivo n.º 490/14.4PBFAR foi o arguido (...) condenado por acórdão transitado em julgado em 22 de Abril de 2015 pela prática, em concurso real, de crimes de furto qualificado, na forma tentada e consumada, em penas de 1 ano de prisão, 2 anos e 6 meses de prisão, 2 anos e 9 meses de prisão e 1 ano e 5 meses de prisão, tendo o arguido estado recluído em Estabelecimento Prisional no cumprimento, entre outras pelas quais foi condenado nos mesmos autos, daquelas penas, desde 21 de Maio de 2014 até 19 de Outubro de 2019.
29. Os factos pelos quais o arguido foi condenado naqueles autos foram todos praticados em Maio de 2014, tendo o arguido, para perpetrar a subtracção e apropriação dos bens em causa nesses autos, pulado muros que vedavam habitações e entrado no interior de uma habitação pela janela de uma marquise, com a proprietária no interior da residência, apropriando-se de bens de diferente natureza.
30. O arguido esteve preso preventivamente à ordem daqueles autos desde 21 de Maio de 2014 até ao termo da pena, ocorrida em 19 de Outubro de 2019.
Das condições pessoais dos arguidos e outras condenações penais
Do arguido (...)
31. (...) apresenta um processo vivencial marcado pela separação dos pais quando tinha 10 anos de idade, situação que desencadeou uma forte instabilidade pessoal e social, integrando grupo de pares com comportamentos marginais e a sua escalada no consumo de produtos estupefacientes.
32. Os seus primeiros contactos com o sistema de justiça penal verificam-se quando ainda menor, sendo detido pra cumprimento de pena de prisão aos 18 anos de idade.
33. Após a libertação da pena que cumpriu no âmbito do processo 490/14.4PBFAR esteve inicialmente em casa da mãe, com o apoio de que sempre contou.
34. Depois iniciou um relacionamento amoroso com a co-arguida nos autos, saindo de casa da mãe.
35. Perspectivava regressar ao Luxemburgo, onde viveu e onde contava com o apoio da irmã, referindo que começou a desenvolver diligências nesse sentido.
36. Procurou emprego em Portugal, planeando retomar actividade na montagem de aquecimento central e/ou canalização, sendo este o trabalho que desenvolvera no Luxemburgo.
37. Apresenta histórico de toxicodependência, com diversos tratamentos em comunidades terapêuticas e sucessivas recaídas, sendo que após a saída do Estabelecimento prisional voltou a consumir.
38. Revela défices ao nível da capacidade de autocrítica e descentração.
39. No âmbito do processo comum singular n.º 57/97.8PEFAR, por factos praticados em 26 de Julho de 1997, o arguido foi condenado pelo crime de consumo de estupefacientes, em pena de multa, que foi declarada extinta por amnistia.
40. No âmbito do processo sumário n.º 379/99.6PEFAR, por factos praticados em 15 de Março de 1999 o arguido foi condenado pelo crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa, que foi declarada extinta.
41. No âmbito do processo comum colectivo n.º 238/98.9PBFAR, por factos praticados em 12 de Março de 1998, o arguido foi condenado pelo crime de tráfico de estupefacientes, em pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução.
42. No âmbito do processo comum colectivo n.º 1/2000, por factos praticados em 11 de Dezembro de 1998, o arguido foi condenado por furto qualificado em nove meses de prisão.
43. No âmbito do processo comum colectivo n.º 51/99.6PEFAR, por factos praticados em 30 de Janeiro de 1998, o arguido foi condenado pela prática 4 crimes de furto qualificado, dois crimes de furto simples, um crime de furto qualificado tentado, 3 crimes de tráfico de menor gravidade e crimes de consumo de estupefacientes, na pena única de seis anos e seis meses de prisão e sessenta dias de multa (sendo as penas concretas pelos crimes de furto fixadas em 2 anos e 3 meses, 2 anos e 6 meses, 2 anos e 6 meses, 2 anos e 6 meses e seis meses de prisão).
44. No âmbito do processo comum colectivo n.º 14/99.1PEFAR, o arguido foi condenado pelos crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, furto simples, furto de uso de veículo e receptação, nas penas de 13 meses de prisão, 12 meses de prisão, 6 meses de prisão e 18 meses de prisão, sendo a pena única fixada em 2 anos e 4 meses de prisão.
45. No âmbito do processo comum colectivo n.º 759/99.3JAFAR, por factos praticados em 5 de Janeiro de 1999, o arguido foi condenado pela prática de dois crimes de furto qualificado, nas penas de 2 anos e 2 meses de prisão e 2 anos e 2 meses de prisão, sendo a pena única fixada em 2 anos e dez meses de prisão, com perdão de um ano, que veio a ser revogado.
46. No âmbito do processo comum colectivo n.º 759/99.3JAFAR foi efectuado o cúmulo jurídico das penas em que o arguido foi condenado nesses autos bem como nos referidos nos pontos 41 a 44, na pena única de doze anos de prisão.
47. O arguido encontrou-se em cumprimento de pena desde 11 de Maio de 1999, sendo o seu termo calculado para 10 de Maio de 2011.
48. Foi-lhe libertado em liberdade condicional em 7 de Maio de 2009 que foi convertida em liberdade definitiva com efeitos a 11 de Maio de 2011e sendo a pena declarada extinta.
Da arguida (...)
(…).

*
2. Factos Não Provados
Não se logrou provar que:
a) no local referido em 2 se encontrassem bens de valor superior a €102.
b) que quando os arguidos se deslocaram para o local descrito em 10 dos factos provados o tivessem feito na execução de um plano que previamente ambos haviam delineado no sentido de ali se introduzirem e fazerem seus os bens que lá se encontrassem, de valor não apurado, mas superior a €102,00.
c) A arguida (...) na execução do plano comum tivesse permanecido no exterior do prédio a vigiar se (...) regressava à residência.
d) A arguida quisesse fazer seus bens que se encontravam na residência de (...), sabendo que os mesmos não lhe pertenciam.
e) O arguido entrou no Hostel (…) com o desiderato de fazer seus os bens que encontrasse, de valor não concretamente apurado, mas superior a €102,00.
f) O arguido só não tivesse logrado concretizar tal intento uma vez que foi surpreendido por (…), tendo o arguido (...), nesse momento, saído do local, a correr, para parte incerta.
g) O arguido (...) agiu, conforme acima descrito, livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de se introduzir ilegitimamente no indicado estabelecimento e de se apropriar de objectos e valores pertencentes ao seu dono e/ou a hóspedes de valor superior a €102,00, o que representou, quis e só não logrou conseguir por motivos alheios à sua vontade, bem sabendo que esses bens não lhe pertenciam e que agia contra a vontade e sem autorização dos respectivos donos.
h) Tivesse sido o arguido a entrar pela janela do quarto n.º 102 e daí retirado bens pertença de (…).
i) A fechadura da janela desse quarto tivesse sido quebrada.
j) Tivesse sido retirado do interior do quarto um Iphone S5.
k) O arguido (...) agiu, conforme acima descrito, livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de se introduzir por uma janela no indicado quarto onde estava alojado (…) e sua esposa e de se apropriar do referido telemóvel, bem sabendo que o quarto e o aparelho que dali retirou não lhe pertenciam e que agia contra a vontade e sem autorização do respectivo dono, o que representou, quis e conseguiu.
l) O relógio Montblanc Meisterstrck, prateado, subtraído da residência de (…), tivesse o valor de €1600.
m) O fio em ouro referido em 20.d) dos factos provados tivesse uma medalha da Virgem Maria e no verso de Jesus Cristo, e valesse €1.800,00.
n) O telefone referido em 20.f) dos factos provados tivesse um valor de €100
o) O telefone referido em 20.f) dos factos provados tivesse um valor de €100.
p) Tivessem sido subtraídos €5,00 e uns auriculares de marca Apple, de cor branca, que se encontravam nos bolsos de casacos pendurados na entrada da residência, pertença de (…).
q) A mala referida em 20.h dos factos provados tivesse um valor de €485.
r) Os factos referidos em 23 dos factos provados tivessem sido praticados na execução de uma decisão comum dos arguidos e em conjugação de esforços entre o arguido e a arguida (...);
s) Um dos fios referido em 23.a) tivesse o valor de €600;
t) O relógio Timex tivesse bracelete bordeaux.
u) Tivesse sido o arguido (...) a remeter as mensagens descritas no ponto 26 dos factos provados.
v) Tivesse sido o arguido a efectuar o telefonema referido em 27 dos fatos provados.
w) (…) sentiu, directa e necessariamente, medo e receio que o arguido (...) molestasse a sua vida, por intermédio de terceira pessoa ou quando saísse do Estabelecimento Prisional.
x) O arguido (...) agiu, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de provocar medo e receio pela vida em (…) bem sabendo que as palavras que lhe escrevia nas mensagens que lhe enviou traduziam o anúncio da prática de crimes contra a sua vida o que molestou a liberdade de decisão e de formação da vontade de (…), o que o arguido (...) representou, quis e conseguiu.
y) O arguido (...) sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, que podia e devia ter observado.
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3. Fundamentação da Matéria de Facto
A convicção do Tribunal acerca da matéria de facto dada como provada e como não provada fundou-se no conjunto da prova produzida recorrendo às regras de experiência e fazendo-se uma apreciação crítica da mesma.
Desde logo há que atentar que o arguido nunca assumiu a subtracção de qualquer bem mas sempre fornecendo explicações alternativas para as circunstâncias em que se encontrava nos locais ou para as acções que tomou, sendo que, se remeteu ao silêncio em outras situações, ou negou mesmo a prática dos factos. Já a arguida (...) apenas prestou declarações no termo do julgamento, assumindo ter penhorado o fio de ouro a pedido do co-arguido e possuir o canivete suíço para usar para defesa pessoal, canivete que lhe fora oferecido pelo arguido.
Vejamos então o valorado concretamente para cada NUIPC, para mais facilidade de compreensão.
Relativamente ao considerado no NUIPC 36/19, factos provados de 1 a 4, e embora o arguido tenha negado que pretendesse subtrair qualquer objecto do interior da residência, apenas procurando um local para pernoitar, tendo entrado pela porta traseira da residência que se encontrava aberta, o depoimento que foi prestado pela proprietária (…) afastou essa versão. Num depoimento seguro e desapaixonado, a proprietária da residência foi peremptória no sentido de que a porta traseira da residência encontrava-se fechada com chaves, sendo que, se deparou com o arguido no interior do anexo, onde há um quarto, tendo ele depois fugido do local, tendo a testemunha também referido que aquando do reconhecimento pessoal do arguido – conforme auto de fls. 73 e 74 dos autos – não teve qualquer dúvida de que se tratava do mesmo indivíduo. Relativamente aos bens existentes naquele anexo, a testemunha referiu que os bens que ali se encontravam tinham pouco valor, não podendo precisar sequer se valeriam mais do €102 (pelo que se teve de considerar como provado que não excederiam esse valor).
Resultando também que no interior do quarto, numa caixa metálica de café, foram encontrados vestígios lofoscópicos coincidentes com o dedo polegar direito e anelar esquerdo do arguido – como decorre da conjugação de fls. 42 a 44 e relatório pericial de fls. 57 a 59 – e às próprias declarações do arguido de onde resulta que nesta altura residia em residenciais desta cidade com a arguida (...), não se pode conceder em dar credibilidade ao declarado pelo arguido no sentido de que apenas ali tivesse entrado com o intuito de pernoitar, tendo tocado na lata enquanto procurava uma luz. Efectivamente a lata encontrava-se em cima de uma cómoda, como resulta das fotografias de fls. 48, sendo que estando na mesma dedos das duas mãos então foi porque o arguido a segurou, o que é incompatível com o tactear de quem procura um interruptor. Aliás, o esforço que foi necessário empreender para conseguir a introdução na residência, e que se encontra bem documentado nas fotografias de fls. 46 e 47, e descrito no aditamento de fls. 39 (corroborado pela testemunha …) mostra-se demasiado para quem pretende apenas encontrar um local para dormir.
Em suma, o Tribunal não atribuiu qualquer credibilidade ao arguido, por inverosímeis e contraditadas pelas regras de experiência face ao que resulta dos demais elementos probatórios analisados e conjugados, assim considerando provado que o arguido entrou na residência, do modo provado, com intenção de fazer seus bens alheios, o que não logrou concretizar porquanto foi surpreendido pela proprietária.
No que se refere aos factos provados relativamente ao NUIPC 1580/19.2PBFAR, o arguido referiu ter um acordo com o proprietário da residencial onde estava hospedado com a arguida, segundo o qual aquele emprestaria o dinheiro que precisasse e que depois a mãe pagaria. Assim, na ocasião que se considerou provada foi falar com o funcionário, pedia um carregador de telefone emprestado e também disse que ia tirar o dinheiro da caixa, dinheiro que a mãe iria pagar.
Ora, esse acordo foi negado quer pelo proprietário da residencial quer pela própria mãe do arguido, que também foi testemunha nestes autos, sendo que o funcionário da residencial, a testemunha (…) negou igualmente que o arguido o tenha abordado para pedir qualquer dinheiro da caixa, sendo que detectou a falta do dinheiro quando acordou de manha, do que deu logo conta ao proprietário. E a testemunha (…) declarou que as imagens de videovigilância mostravam o arguido a ir ao local da recepção cerca das 5:00 horas, sair do local com a caixa na mão e regressar cerca de 1 hora depois recolocando a caixa no local, onde faltavam €75. Em virtude destes factos, a testemunha determinou que os arguidos saíssem da sua residencial, compensando assim o valor subtraído com o valor que o arguido havia retirado da caixa, pois que àquela data a mãe dele já havia pago pelo menos mais três noites de permanência, a €25 cada noite.
Se é certo que não foram carreadas para os autos as filmagens, por ter havido uma avaria no sistema (fls. 29 do apenso E), o certo é que a testemunha (…), agente da PSP, corroborou o depoimento da outra testemunha, pois que tendo também visualizado as imagens do sistema de vigilância, descreveu exactamente as mesmas movimentações do arguido, quer levando quer trazendo a caixa para a recepção, confirmando assim o aditamento de fls. 16 dos autos apensos.
Ou seja, uma vez mais o arguido (...) fornece uma explicação para os factos de que é acusado que é completamente contrariada pelas demais testemunhas e pelas regras da lógica e da experiência. É que o arguido pretende que acreditemos que poderia tirar o quanto dinheiro quisesse e quando quisesse, sem que ninguém se importasse porque a mãe pagaria, o que esta própria nega, sem que algo pusesse em causa a credibilidade das suas declarações. Não colhe a versão fornecida, sendo a mesma totalmente incredível e contrariada pela demais prova valorada, pelo que se consideraram provados os factos de que o arguido vinha acusado.
No que concerne ao NUIPC 1654/19.0PBFAR, o arguido declarou que estava sentado com a (...) nas escadas do prédio, a fumar um cigarro de haxixe e que pousou o seu tabaco e isqueiro em cima do parapeito da janela e que o proprietário veio à janela e mandou-o sair do local porque senão chamaria a PSP.
Sendo que a arguida (...) não prestou quaisquer declarações sobre esta factualidade, a versão que (...) trouxe aos autos num depoimento que se reputou isento e credível, sem demonstrar alguma animosidade para com os arguidos, difere bastante do declarado pelo arguido. A testemunha referiu que saiu de casa cerca das 21:00 horas para ir buscar jantar e que encontrou ambos os arguidos sentados nas escadas do prédio, no exterior, estando eles a comer, e tendo-os visto bem porque teve de parar para que eles o deixassem passar, pelo que não teve dúvidas quando o fez o reconhecimento pessoal retratado nos autos de reconhecimento de fls. 10 e 11 do Apenso F. Entretanto, passados minutos, quando regressa e vai estacionar o carro reparou que a janela da marquise estava aberta, o arguido relativamente perto da mesma, e a arguida mais afastada no sentido contrário de onde circulava, sendo essa uma rua sem saída. Achou a situação estranha, porque era uma altura de frio, dirige-se à sua residência e quando entra no interior e abre a luz da marquise depara-se com o arguido no interior e de imediato fugindo pela mesma janela, sendo que depois ele ainda se aproxima a pedir para não chamar a polícia. A testemunha ainda declarou que essa marquise tem contígua o quarto do filho onde existe um computador e uma impressora no valor global de cerca de €500.
Ora, é patente a divergência das versões, mas há dois pormenores em que cumpre atentar e que valorados de acordo com regras de normalidade e experiência comum reforçam a credibilidade da versão de (...). È que não faz sentido que alguém esteja a fumar, sentado num degrau, e decida colocar os instrumentos necessários a esse acto (tabaco, isqueiro e mortalhas, de acordo com o arguido), num parapeito de uma janela que necessariamente se situa num plano bastante superior e que implica que tenha que se mexer, levantar e sentar, para os aí deixar, quando os pode deixar no colo, no bolso, no chão, ou seja, mesmo junto a si por facilidade de manuseamento. Em segundo lugar, não merece credibilidade o declarado pelo arguido de que o proprietário somente não gostou da sua presença no local e o mandou embora, e eles indo embora efectivamente, e depois essa pessoa viesse efectivamente a chamar a PSP denunciando uma introdução na sua residência.
Conforme declarou (...) até aquele dia não conhecia os arguidos nem os tinha visto, pelo que a conduta que o arguido declara que este adoptou se mostra claramente exagerada e desprovida de sentido, principalmente quando refere que acataram a ordem e foram embora.
No entender do Tribunal, a prova produzida, analisada de acordo com regras de experiência comum não pode senão determinar que seja a versão de (...) a ser considerada provada, levando assim a que se considerem como provados os factos vertidos de 10 a 13.
Todavia, já não se considerou provado que os factos tivessem ocorrido na execução de um plano e intenção comuns dos arguidos e que a arguida (...) tivesse ficado no exterior a vigiar.
Atente-se que foi a própria testemunha (...) que declara que a arguida estava mais afastada e no sentido da rua que depois é fechada, pelo que se a arguida estivesse a vigiar a chegada de alguém (e que não seria de (...) porque a dinâmica dos factos demonstra que os arguidos não sabiam em que apartamento aquele reside, pois se o soubessem o arguido não entraria na casa quando aquele já está dentro do prédio), deveria estar situada mais perto da entrada da rua, por onde chegam os veículos, ou mais perto da entrada do prédio.
O discurso verbal da arguida aquando da prestação das suas declarações, aliado ao que consta do seu relatório social, e mesmo ao declarado pelo próprio arguido, é indiciador de que estamos perante uma pessoa com grandes fragilidades psíquicas e emocionais, sendo que existindo, à data da prática dos factos em causa nestes autos, uma relação de cariz amoroso entre ela e o arguido, seria este que assumiria um papel dominante e até protector daquela, não se podendo esperar que a arguida assumisse sequer algum efectivo domínio sobre a actuação do arguido.
Assim, entendemos que a participação da arguida nestes factos ter-se-á de considerar como não provada.
Relativamente aos factos imputados ao arguido no NUIPC 35/19.0PEFAR, o arguido admitiu que foi surpreendido por algumas pessoas, que serão as testemunhas (…), no terraço de um prédio, contíguo ao Hotel (…), mas que não entrou pela porta deste mas sim pela porta do n.º20, que é propriedade de seus familiares. Segundo o arguido, viveu nesse prédio com a mãe durante muitos anos e dirigiu-se ao mesmo de forma a aceder à arrecadação onde tinha coisas suas, que retirou e colocou num saco azul. Entretanto, saiu para o terraço para fumar e a porta do prédio fechou-se, pelo que só conseguiu sair pela escadaria do hostel, e isto depois de ter sido mandado embora pelas testemunhas. Ora, inquiridas as testemunhas que já supra se identificaram, foram as mesmas unânimes de que o arguido estava nos terraços dos prédios, que são contíguos, e que tinha um saco azul na posse, sendo que quando o interpelaram ele disse que era vizinho e filho da (…), mostrando-se até exaltado, pelo que o mandaram embora, pelo que ele saltou um muro que divide os terraços e saiu pela porta superior do Hostel. Já a mãe do arguido, a testemunha (…) declarou que residiu, bem como o filho, cerca de 20 anos no n.º 20 da Rua da (…), e que até hoje mantém bens na arrecadação do prédio, onde vivem os seus primos.
Ora, como se constata dos autos, foi junto um CD com imagens captadas pelo sistema de videovigilância do Hostel, e foram do mesmo retirados fotogramas – vide fls. 12, 14 e 15 do Apenso D – sendo que apenas é visto o arguido, com o mencionado saco azul, a descer as escadas e a deslocar-se para a porta.
Ou seja, não há nenhum elemento probatório que demonstre que o arguido entrou por a porta do Hostel mas sim que a usou para sair, sem que nenhuma prova fosse feita de que no interior do estabelecimento hoteleiro o arguido executou quaisquer actos tendentes à apropriação de quaisquer bens.
É inegável que o arguido estava nos terraços dos prédios, e até terá passado de um para outro, uma vez que são contíguos, mas a versão que o arguido trouxe aos autos sobre a justificação para a sua presença no local, e que foi corroborada pelas declarações da sua mãe, que não obstante os laços afectivos com o arguido, demonstrou estar a prestar um depoimento isento, não permite considerar como provado que o arguido tivesse actuado como o fez com vista a subtrair quaisquer bens do local.
Nestes termos, há que considerar como não provado que o arguido tivesse entrado no Hostel com a intenção de fazer seus bens que sabia alheios.
Relativamente aos factos de que o arguido se encontra acusado no âmbito do NUIPC 37/19.6PEFAR, o arguido negou a sua prática, referindo que se encontrava a passar no local e que viu um homem a sair por uma janela, levando uma mochila pelo que foi atrás dele a correr até que ele largou a mochila, tendo então ido chamar o empegado da residencial para que recuperasse o que estava na mochila. O empregado a que o arguido se refere, a testemunha (…) confirmou que alguém se introduziu, pela janela, no quarto do hóspede (…) e sua esposa, e que daí levou objectos, e que terá saído pela janela. Não tendo visto a pessoa, porque foi alertado pelo hóspede, foi à rua e quando já está a dobrar uma esquina encontrou o (...), a vir em sua direcção, com a mochila dizendo que alguém a tinha deitado fora, indo depois ambos à residencial onde o hóspede reconheceu os bens do interior da mochila como sendo seus. Já a testemunha (…) também referiu que o arguido chegou à residencial com o funcionário e que referiu que fora um amigo que levara a mochila e que a vinha devolver, desconhecendo se ficou a faltar algum objecto ao proprietário.
Não tendo sido produzida ou valorada outra prova sobre o sucedido, resulta que nem sequer arguido e testemunhas referiram que objectos se encontravam no interior da mochila que foi devolvida, pelo que não se provou o seu conteúdo.
Ora, se é certo que o comportamento do arguido se mostra pouco consentâneo com o seu comportamento anterior – atentos os seus antecedentes criminais -, tal também não pode afastar a dúvida razoável sobre se foi efectivamente o arguido a entrar no quarto e daí subtrair a mochila com o seu conteúdo. O que o depoimento de (…) indica é que o autor terá saído pela janela do quarto, e que só depois se deslocou para a rua e encontrando o arguido a alguma distância do local a vir em sua direcção.
Ora, há que ponderar que se fugia pela janela e não denotando ser seguido por alguém em sua imediata perseguição, o arguido poderia facilmente ter-se ido embora e não encetar uma via de fuga que passasse perto da residencial, de forma a evitar ser surpreendido na posse dos bens. Mas não foi isso que se passou, pois que o arguido é que vai ao encontro de (…) e não este que o encontra, logo referindo ter encontrado a mochila.
A versão que o arguido deu sobre estes factos é coincidente com a que forneceu em sede de primeiro interrogatório judicial, sendo que necessariamente termos que ter dúvidas sobre se efectivamente foi o arguido quem entrou no quarto e dali retirou bens, entrando e saindo pela janela.
São dúvidas que não logramos dissipar por recurso a qualquer regra de valoração probatória e como tal impõe-se a aplicação do princípio in dúbio pro reu, pelo que tais factos, nomeadamente a participação do arguido na sua prática, terão que considerar-se não provados.
De atentar também que se considerou não provado que o fecho da janela tivesse sido quebrado porquanto tal não resultou do depoimento de nenhuma das testemunhas que depuseram sobre os factos, tendo a testemunha (…) negado ter percepcionado quaisquer danos na janela.
No que concerne aos factos relativos ao NUIPC 1650/19.7PBFAR, o arguido não prestou quaisquer declarações, sendo que em sede de primeiro interrogatório judicial, declarou ter adquirido as luvas, o canivete e o relógio Sekonda (que analisaremos infra) que foram apreendidos a dois indivíduos, que os terão furtado, tendo pago €200 em haxixe, sendo que dispunha dessa quantidade de haxixe porque não precisa de comprar porquanto o mesmo era-lhe sempre oferecido, referindo ainda que 10 gramas de haxixe custariam cerca de 15 euros. Já a arguida (...) admitiu que tinha na sua posse o canivete – apreendido a fls. 27 do apenso A e reconhecido pelo proprietário, como de decorre de fls. 20, 23 e 24 – e que tinha sido o arguido (...) a dar-lho para que o usasse para sua defesa.
Resultando do depoimento das testemunhas (…) que os mesmos não presenciaram a prática dos factos, da conjugação dos depoimentos que prestaram, bem como do depoimento prestado pelo agente policial (…), e do teor de fls. 226 e ss., há que considerar que a entrada na residência só pode ter ocorrido pela janela de um dos quartos da casa, com varanda, que eventualmente estaria destrancada, pois que a porta de entrada no apartamento estava intacta, tendo a entrada ocorrido durante o período de tempo que resultou provado em 20, porque foi nesse período de tempo que (…) saiu para jantar. Relativamente aos bens que foram retirados do interior da residência o Tribunal atendeu ao depoimento dos proprietários, os referidos (…), que depuseram sobre os concretos bens que lhe foram subtraídos e os concretos valores dos mesmos, sendo que face às características dos bens não se suscitaram dúvidas sobre essa avaliação, pelo que se considerou provado o vertido em 20, nas suas diversas alíneas, resultando no entanto que os ofendidos não souberem referir o valor de alguns bens ou referissem valores inferiores aos imputados na acusação pública. De atentar que a testemunha (…) veio declarar que os auriculares foram depois encontrados, não tendo igualmente feito alusão à subtracção de dinheiro que se encontrasse no interior de um seu casaco, pelo que tais factos foram considerados não provados.
A testemunha (…) confirmou também que os objectos que reconheceu e que lhe foram entregues, nomeadamente a pinça do canivete e luvas, bem como o canivete (fls. 129 dos autos principais, fls. 20 e 21 do Apenso A) eram efectivamente os de sua pertença e que foram os retirados do interior da sua casa.
Também se valorou a factura de aquisição do computador referido em 20.i, dos factos provados, constando da mesma a data e valor de aquisição, bem, como o seu número de série, tendo a testemunha (…) explicado que fora a sua mãe que o adquirira (vide fls. 12 do Apenso A).
Como já referido não há prova testemunhal ou pericial que coloque o arguido (...) no interior desta residência. No entanto, há que atender que no dia 12 de Dezembro, 5 dias depois dos factos, os arguidos foram abordados pela PSP e a arguida tinha na sua posse o canivete que foi subtraído da residência, como o demonstram os elementos documentais já supra aludidos e que foram confirmados pelo agente (…). E logo no dia 13 de Dezembro, e estando os dois arguidos já detidos em cumprimento de mandados de detenção fora de flagrante delito, foi efectuada busca domiciliária ao quarto que ambos ocupavam na Residencial (…), sendo que aí foram apreendidas as luvas Polo Ralph Lauren e uma pinça do canivete, bem como um talão de câmbio de dólares efectuado pelo arguido (...) no dia 10 de Dezembro (vide auto de busca e apreensão de fls. 110 e 111 e talão de fls. 113, bem como reportagem fotográfica de fls. 116 e ss., dos autos principais).
E como retrata esse auto de busca e apreensão foi também apreendido um relógio de marca Sekonda que foi subtraído no dia 5 de Dezembro do interior da residência de (…) (NUIPC 1636/19.1PBFAR), bem como um talão de penhor referente a um fio de ouro que foi igualmente subtraído do interior desta residência.
É certo também que (…) não viram a pessoa que entrou na sua residência e que tal ocorre com esta última ainda no interior da residência, tendo a entrada se dado por uma janela aberta, e inexiste outra prova testemunhal ou pericial que coloque qualquer um dos arguidos dentro da residência.
No entanto há que atentar que tendo ocorrido dois furtos no interior de residência com a diferença de dois dias, existem elementos objectivos que ligam os arguidos aos factos.
Como já referido no caso de (…), a arguida tinha o canivete e no quarto de ambos foi apreendida a pinça desse canivete, as luvas de pele Polo Ralph Lauren e um talão de conversão de dólares em euros, e já no caso do casal (…) foi aprendido no quarto um dos arguidos o seu relógio de marca Sekonda bem como um talão de penhor de um dos fios de ouro subtraídos, que foi penhorado logo no dia seguinte à subtracção, ou seja, 6 de Dezembro.
Ou seja, se consideramos credível, face ao que já referimos supra quanto à valoração do depoimento da arguida (...), o que a arguida declarou de que foi penhorar o fio de ouro a pedido do arguido, então necessariamente no dia seguinte ao furto, o arguido já o tinha na sua posse. Ora, o arguido não justifica como o obteve, mas pretende fazer crer que os bens que foram encontrados no quarto e furtados na casa do casal (…) e no NUIPC 1650/19.7PBFAR foram por si adquiridos.
Não pode colher a justificação do arguido, quando se atenta que tem na sua posse bens subtraídos de duas distintas residências, e não pretende explicar como obteve o colar de ouro, sendo que ficou patente das declarações prestadas por si e mesmo pela sua mãe, que o mesmo não tinha meios de subsistência, pelo que também não teria capacidade económica para comprar tais bens de outros que os tivessem furtado.
Relativamente ao provado relativamente aos bens subtraídos no NUIPC 1636/19, atendeu-se ao depoimento das duas testemunhas, que descreveram os bens subtraídos e alguns dos seus valores, sendo que se atendeu para prova dos elementos de identificação do telemóvel o constante a fls. 7 do Apenso B e fls. 335 dos autos principais. Já quanto ao valor dos dois fios de ouro, não se apurou o valor do que não foi recuperado, no entanto o que foi recuperado e entregue à proprietária foi avaliado em €1800 (como resulta do auto de avaliação de fls. 247). Já relativamente ao valor do relógio Sekonda, atendeu-se o valor constante da factura de fls. 8 verso, de onde resulta que o mesmo foi adquirido em 2010 por £82,99, pelo que atendendo à desvalorização, uma vez que não se apura que seja um bem que se valorize pelo decurso do tempo, o mesmo valeria menos de €102.
Como já referimos inexiste prova testemunhal ou pericial que permita colocar os arguidos no interior da residência do casal (…), no entanto e como já explicitámos supra, a conjugação da prova permite considerar provado que foi o arguido a praticar os factos. Mas, nestes concretos factos a autoria também foi imputada à arguida (...). Ora, quanto à sua intervenção nos mesmos apenas se demonstra que foi a arguida quem foi dar o fio de ouro em penhor, a pedido do arguido. Ora se como já aludido supra damos credibilidade às suas declarações então necessariamente teremos que dar como não provadas as imputações constantes da acusação, dando assim como não provada a sua execução nos factos.
Já no que concerne aos factos descritos em 26 e 27 dos factos provados, o arguido negou peremptoriamente a sua prática, referindo que nem sabe escrever inglês. Se é certo que a testemunha (…), facultou o acesso ao seu telefone (fls. 278) e do mesmo foram extraídas as mensagens de texto que foram trocadas entre ambos os números de telefone (vide fls. 278 a 286), bem como o registo de chamadas recebidas (fls. 287), e do seu depoimento resultou que estava seriamente convencido que fora o arguido a remeter tais mensagens e efectuado o telefone referido em 27, não podemos deixar de considerar que inexiste qualquer outro meio de prova que ligue o arguido a tal telefonema ou mensagem. Foi notório que a testemunha se mostrava desavindo com o arguido e claramente convencido da autoria destes factos, mas não pode deixar o Tribunal de atender que resulta de regras de experiência normal que a voz das pessoas quando falam ao telefone parecem distintas e que nos parece pouco razoável que passados mais de dois meses do último possível contacto que teve com o arguido (este foi preso preventivamente em 14 de Dezembro de 2019), (…) reconhecesse indubitavelmente a voz do arguido.
Nada se apurou relativamente ao telefone utilizado ou à sua localização aquando dos contactos que permita inferir que o arguido o pudesse ter utilizado, resultando que a imputação da autoria dos factos deriva unicamente da convicção pessoal da testemunha, que não se encontra sustentada em qualquer meio probatório sindicável por este Tribunal.
Assim, perante a convicção pessoal da testemunha e a negação peremptória do arguido no que se refere à autoria dos factos, e na ausência de qualquer outro meio de prova que demonstre ter sido o arguido a praticar tais factos, entendemos que necessariamente se terá de dar como não provado que tenha sido o arguido a praticá-los, aplicando-se por conseguinte, o princípio in dúbio pro reu, sendo que o considerado não provado em w), se deveu simplesmente à circunstância de tal não ter resultado do depoimento prestado pela testemunha.
Relativamente aos factos que integram os elementos subjectivos dos ilícitos imputados, o Tribunal fundou-se essencialmente nas regras da experiência comum, pois que, sendo aqueles elementos internos da consciência do agente, os mesmos podem inferir-se de presunções naturais ou regras de experiência, resultando claro que quem actua da forma como se considerou provado tem como intenção o apropriar-se de bens alheios, sabendo que os seus proprietários não o consentem e sendo, portanto, a sua conduta contrária ao direito e ilícita, sendo que não se poderá olvidar que a consciência da ilicitude resulta implícita dos próprios factos porquanto é do conhecimento geral que os mesmos são proibidos (neste sentido Acórdão do STJ de 14/10/92, in www.dgsi.pt).
No que concerne à prova dos factos atinentes à situação pessoal do arguido foi tido em consideração quer as suas próprias declarações do arguido, mas igualmente tomado em consideração o teor do relatório social que consta a fls. 512 e ss., sendo o referente ao da arguida (...) o constante de fls. 517 e ss.
Ancorou-se ainda o Tribunal no certificado de registo criminal do arguido, constante de fls. 498 e ss, bem como na certidão extraída do processo n.º 490/14.4 PBFAR constante de fls. 298 e seguintes, onde se inclui o acórdão condenatório, bem como a liquidação da pena e despacho de homologação, tendo-se também valorado a certidão referente ao processo 759/98.3JAFAR, constante de fls. 358 e ss.
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4. Enquadramento Jurídico-Penal
Tendo em conta a factualidade provada, cumpre, agora, indagar da responsabilidade jurídico-criminal do arguido, sendo que, para maior facilidade de percepção, se analisará os ilícitos de acordo com os respectivos NUIPC’s onde se encontram imputados.
No NUIPC 36/19.8PEFAR – autos principais – encontra-se o arguido (...) acusado da prática, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido nos termos dos artigos 22º, 23º, 203º e 204º, n.º2, al.e), com referência à alínea e) do art.º 202º do Código Penal.
Analisemos, então, o tipo de ilícito imputado, aludindo também, quanto à sua forma de consumação.
Comete o crime de furto “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia” (artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal).
Como elementos objectivos do tipo fundamental de crime de furto temos:
- a subtracção, que consiste na “violação da posse exercida pelo lesado e a integração da coisa na esfera patrimonial do agente ou de terceira pessoa”;
- de coisa móvel alheia: “toda a substância corpórea, material, susceptível de apreensão, pertencente a alguém e que tenha um valor qualquer, mas juridicamente relevante”.
Tal tipo legal de crime, sendo um crime de resultado, pode ser preenchido também sob a forma de tentativa.
A tentativa existe, como o estatui o artigo 22.º do Código Penal, quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se, considerando-se actos de execução aqueles que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies ora elencadas.
Quanto aos elementos subjectivos, estamos perante um tipo de crime que, para além do dolo, exige um elemento subjectivo específico:
- a ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, que se traduz na “intenção de o agente, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa furtada”, “se passar a comportar relativamente a ela animo sibi rem habendi, integrando-a na sua esfera patrimonial ou na de outrem” (Maia Gonçalves, C.P. Português anotado, 12.ª ed., 1998, pág. 615).
Já o artigo 204.º do Código Penal contempla o furto qualificado que, apelando ao conceito normativo “furtar”, cujos elementos constitutivos foram supra analisados em relação ao furto simples, prevê as circunstâncias agravantes qualificativas em relação ao crime de furto.
Não estamos perante um tipo de crime diferente, mas apenas perante circunstâncias que indiciam um especial desvalor da conduta do agente.
Ou seja, o crime de furto pode ocorrer na forma mais simples – artigo 203.º do Código Penal – ou na forma mais complexa – artigo 204.º do Código Penal – atendendo à verificação dos elementos de facto (de carácter objectivo ou subjectivo) que se encontram taxativamente enumerados neste artigo e que tomam a designação de circunstâncias agravantes.
O furto é qualificado sempre que se verifique uma das circunstâncias a que se refere o artigo 204.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, consagrando a lei dois escalões de circunstâncias qualificativas: uma qualificação revelada na gravidade da moldura penal abstracta na norma contida no n.º 1 e uma outra qualificação, mais grave ainda, designada por hiperqualificação, também ela apreensível na sanção abstractamente aplicável.
Sobre o funcionamento automático das circunstâncias qualificativas, considera-se a posição do Professor Figueiredo Dias, segundo o qual “com a introdução dos dois escalões – com que se erigiu um novo sistema – será muito difícil fugir ao funcionamento automático das circunstâncias” – citado por Simas Santos e Leal Henriques, in Código Penal Anotado, 2.ª Volume, pág. 647.
O artigo 204.º, n.º 2 al. e) do Código Penal qualifica o furto sempre que o agente se introduza ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou espaço fechado, por meio de arrombamento, escalamento ou chaves falsas, sendo que nos termos do disposto no art.º 202º, al. e) do Código Penal o escalamento consiste na introdução em casa por local não destinado normalmente à entrada, tal como as janelas e paredes, o que se verifica no caso concreto, porquanto o arguido para ter acesso ao anexo teve que ultrapassar o muro que a vedava.
Assim, o maior desvalor da conduta do agente subjacente à qualificação do crime de furto, previsto na al. e) do n.º 2 do artigo 204.º do Código Penal, está no “modo” de penetrar em qualquer um dos espaços referidos no dispositivo legal.
“Na verdade, essa razão qualificativa está essencialmente ligada à forma especialmente gravosa que assume o “penetrar” e não na latitude desse penetrar.
É na associação ao “penetrar” do arrombamento, escalamento ou chaves falsas, numa execução vinculada, que reside a motivação agravativa, que não é exclusiva do nosso direito” – neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Dezembro de 2001, publicado na C.J., Acórdãos do S.T.J., Tomo III, pág. 239.
Verifica-se assim que o arguido executou actos tendentes à apropriação dos bens de (…) que sabia alheios e que pretendia fazer seus, o que só não logrou fazer, porquanto foi surpreendido por aquela, já no interior do anexo, tendo fugido do local.
No entanto, apurou-se de igual forma que os bens que o arguido visava fazer seus, não possuíam um valor superior a €102.
Ora, consequentemente, atento o valor da coisa e a definição plasmada no art.º 202º, al. c), de que se considera valor diminuto aquele que não exceder a unidade de conta no momento da prática do facto, e estando a unidade de conta fixada em €102,00, necessariamente terá que se considerar desqualificado o furto nos termos do disposto no artigo 204.º, n.º 4 do Código Penal.
Mas, não havendo lugar à qualificação do furto devido ao disposto no art.º 204º, n.º 4 do Código Penal, as condutas do arguido assumem autonomia e devem ser punidas em concurso real, como sustentado no Acórdão do STJ de 4/10/ 2007, bem no Acórdão do TRE de 29/04 de 2014 (ambos disponíveis in www.dgsi.pt). Ou seja, desqualificada a tentativa de furto, passam a existir duas condutas com relevância jurídico-penal, o furto na forma tentada (art.º 203º, n.º 2) e a violação de domicílio (consubstanciado na introdução ilegítima na residência, efectuada por escalamento e à noite), previsto no art.º 190º, n.º3 do Código Penal, pois que ambos protegem bens jurídicos distintos.
Assim, e porque preenchidos os elementos objectivos e subjectivos destes dois tipos de ilícito, terá o arguido de ser condenado pela sua prática, embora absolvido da prática do crime de furto qualificado na forma tentada.
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Relativamente os factos considerados como provados no NUIPC 1580/19, e face ao já explicitado quanto aos elementos objectivos e subjectivos integrantes do crime de furto, verifica-se que o arguido (...), sabendo que o dinheiro que estava no interior da caixa guardada no interior da recepção da residencial (…) não lhe pertencia, retirou do seu interior €75,00, que fez seus, sabendo que não tinha autorização do seu proprietário.
O arguido apropriou-se desse montante, sabendo que tal lhe estava vedado e era proibido, cometendo assim um crime de furto, previsto e punido pelo art.º 203º, n.º 1 do Código Penal, pelo que terá de ser condenado por esse crime, uma vez que não se verifica qualquer causa de exclusão ou justificação da ilicitude ou da culpa.
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Relativamente aos factos provados no NUIPC 1654/19 os mesmos consubstanciam a prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos art.ºs 203º, n.º 1 e 2, al. e) do Código Penal.
O arguido entrou pela janela da marquise da residência de (...) e do seu interior, onde se encontravam bens de valor superior a €102,00, visava retirar e fazer seus bens e objectos, o que só não conseguiu fazer porquanto foi surpreendido pelo proprietário, tendo fugido do local.
Como resulta claro da definição plasmada no art.º 202º, al. e) do Código Penal, verificamos que o arguido entrou na residência por meio de escalamento e apenas não conseguiu atingir a sua intenção de apropriação porquanto foi impedido pela chegada do proprietário da residência, o que determinou a sua fuga no local.
Perante o quadro fáctico, não haverá dúvidas de que o arguido cometeu o crime de que se encontrava acusado, previsto e punido pelos art.º 22º, 23º, 203º e 204º, n.º 2, al. e) do Código Penal.
Todavia, os factos provados já não permitem imputar qualquer conduta penalmente relevante à arguida (...), nomeadamente a sua participação como co-autora desses mesmos factos, pelo que terá a mesma que ser absolvida da prática do ilícito de que vinha acusada.
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No que concerne aos factos em causa nos NUIPC 1650/19 e 1636/19, verifica-se que em ambas as situações o arguido (...) logrou aceder a janelas de residências que se encontrariam abertas, entrando no interior de duas distintas residências, que sabia serem alheias e daí retirou e levou consigo diversos bens que não lhe pertenciam, nos termos considerados provados nos pontos 20 e 23, de que se apropriou, fazendo-os seus.
O arguido sabia, como não podia deixar de ser, que tais residências não lhe pertenciam bem como também eram alheios os bens que nas mesmas se encontravam, no entanto, pretendeu entrar naquelas habitações, por locais que sabia não se destinarem à entrada, e querendo daí retirar bens e objectos que não lhe pertenciam, como efectivamente o fez, sabendo que tal não lhe era permitido nem pelos proprietários nem pela lei.
Assim, o arguido praticou dois crimes de furto qualificado, previstos e punidos pelo art.º 203º e 204º, n.º2, al. e) do Código Penal, pelos quais tem que ser condenado.
Embora no NUIPC 1636/19 tenha sido imputada à arguida (...) a prática do crime em co-autoria com o arguido (...), a factualidade provada não demonstra essa participação conjunta, pelo que se impõe a sua absolvição.
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O arguido estava ainda acusado da prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, no NUIPC 35/19.0PEFAR, de um crime de furto qualificado referente aos factos do NUIPC 37/19.6PEFAR e de um crime de ameaça agravada, na forma continuada.
Ora, quanto a estes a factualidade que se considerou provada não permitem a sua condenação, porquanto não se apurou, quanto ao primeiro NUIPC referido, que o arguido tivesse a intenção de subtrair quaisquer bens e nos demais NUIPC que tivesse sido o arguido a subtrair bens ou a ameaçar o ofendido.
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5. Da escolha e determinação da medida concreta da pena
Importa então determinar a sanção a aplicar ao arguido, devendo para tal atender-se que se decidiu pela sua condenação por um crime de furto na forma tentada, punido com pena de prisão de 1 mês a 2 anos de prisão ou com pena de multa (NUIPC 36/19), um crime de violação de domicilio, punido com pena de 1 mês a 3 anos de prisão ou com pena de multa (NUIPC 36/19), um crime de furto, punido com pena de 1 mês a 3 anos de prisão ou pena de multa (NUIPC 1580/19), um crime de furto qualificado, na forma tentada, punido com pena de 1 mês a 5 anos a 4 meses de prisão (NUIPC 1654/19); dois crimes de furto qualificado, crimes puníveis com pena de prisão 2 a 8 anos (NUIPC 1650/19 e 1636/19).
Nos termos dos artigos 40º, n.º 2 e 71º do Código Penal, a determinação da medida concreta da pena terá sempre como limite inultrapassável a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial positivas.
Quanto à prevenção geral positiva, sempre que o Tribunal aplica uma pena, tem por fim restaurar a confiança que a comunidade deve ter naquela determinada norma que foi violada. Como muitas vezes se tem dito, citando Anabela Miranda Rodrigues, a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...” (“A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, pág. 570).
No que concerne à prevenção especial positiva, visa-se a reintegração do autor do facto ilícito na sociedade, de forma a que não volte a cometer mais crimes.
A culpa, como vertente pessoal do crime, limita as exigências de prevenção, na medida em que a pena jamais poderá ultrapassar essa culpa sob pena de se desrespeitar o princípio basilar da dignidade humana.
Em síntese, dentro desse limite máximo inultrapassável que é a medida da culpa, a pena é determinada “no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo da tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico” (vide Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, Coimbra 2001, pp. 110 e 111) e em função de exigências de prevenção especial.
Para além disso, para decidir da pena concreta a aplicar há que ter em consideração os factores previstos no n.º 2 do citado artigo 71º do Código Penal, assim atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele.
Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo (neste sentido, Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, pág. 234).
As necessidades de prevenção geral positiva fazem-se sentir de forma acentuada atenta a frequência com que estes tipos de ilícito são praticados e a intranquilidade que, principalmente os crimes de furto em residências, provocam na comunidade.
Ao nível da prevenção especial, esta situa-se claramente também num patamar superior, uma vez que resulta que o arguido tem falta de juízo crítico e demonstra incapacidade de se determinar de acordo com as normas vigentes, como bem patenteia o seu registo criminal.
Devendo ter-se em consideração que os crimes em causa no NUIPC 36/19 e 1580/19 são puníveis, em alternativa, com pena de prisão ou pena de multa, dispõe o art.º 70º do Código Penal que “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, entendemos, face ao passado criminal do arguido e suas condições pessoais que a pena de multa nunca seria suficiente ou adequada à satisfação das necessidades de punição.
Efectivamente, o arguido apresenta vastos antecedentes criminais, essencialmente conexionados com a prática de crimes contra o património e por consumo e tráfico de estupefacientes, resultando evidente que do seu precoce contacto com o sistema judicial nada de positivo resultou, resultando uma evidente insensibilidade às anteriores condenações.
Assim, entendemos que somente a opção por uma pena privativa da liberdade se justifica e se impõe em respeito dos princípios norteadores da escolha da pena.
Posto isto, há então que considerar que, num curto período de tempo, entre 23 de Novembro e 7 de Dezembro de 2019, o arguido cometeu todos os ilícitos, resultando também que a sua conduta ilícita terminou porque o arguido foi detido e sujeito a prisão preventiva.
Também se deverá ter em consideração que em todos os factos praticados o arguido agiu sempre com dolo directo e intenso.
A circunstância do arguido ter praticado os crimes em causa no NUIPC 36/19, 1654/19 e 1636/19 com os proprietários no interior das residências, e dois deles já em período nocturno, são também circunstâncias que deverão ser sopesadas em seu desfavor e devidamente levadas em linha de conta na determinação da medida da concreta da pena.
Também se terá que considerar que o arguido nunca admite a prática dos factos, sendo patente a sua falta de juízo auto-crítico e arrependimento.
Para a determinação da medida da pena também se terão que considerar os valores que foram subtraídos e o prejuízo que daí derivou para os seus proprietários, devendo ter-se em consideração que alguns bens foram recuperados, como considerado provado.
Assim, decide o Tribunal condenar o arguido nas seguintes penas:
- NUIPC 36/19 – pena de 6 meses de prisão pelo crime de furto tentado e de 1 ano de prisão pelo crime de violação de domicilio;
- NUIPC 1580/19 - 6 meses de prisão;
- NUIPC 1654/19 – 1 ano e 4 meses de prisão;
- NUIPC 1650/19 - 3 anos e 3 meses de prisão;
- NUIPC 1636/19 – 3 anos e 3 meses de prisão.
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6. Da reincidência
Como resulta do libelo acusatório, o arguido foi acusado como reincidente nos termos dos artigos 75.º e 76.º do Código Penal.
Ora, dispõe o artigo 75.º do Código Penal que:
“1. É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a seis meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a seis meses por outro crime doloso se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.
2. O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de cinco anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade”.
São pressupostos formais da reincidência, para além da prática de um crime, «por si só ou sob qualquer forma de participação»: ser o crime agora cometido doloso; ser este crime, sem a incidência da reincidência, punido com pena de prisão efectiva superior a 6 meses; que o arguido tenha antes sido condenado, por decisão transitada em julgado, também em pena de prisão efectiva superior a 6 meses, por outro crime doloso; que entre a prática do crime anterior e a do novo crime não tenham decorrido mais de 5 anos (este prazo suspende-se durante o tempo em que o arguido tenha estado privado da liberdade, em cumprimento de medida de coacção, de pena ou de medida de segurança).
Além daqueles pressupostos formais, a verificação da reincidência exige ainda um pressuposto material: que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.
Ora, resultou provado que, por decisão transitada em julgado em 22 de Abril de 2015 e factos praticados em 2014, o arguido foi condenado por ter subtraído bens em residências, onde entrou nomeadamente por escalamento de que se apropriou.
Ora, não obstante essa condenação, o arguido não se coibiu de voltar a praticar factos da mesma natureza, pois que o arguido veio novamente a atentar contra o património alheio, novamente subtraindo bens alheios, mostrando-se insensível e indiferente à solene advertência contida no anterior acórdão condenatório para se manter afastado da criminalidade.
Os factos que se apuraram relativamente ao percurso criminoso do arguido são, inelutavelmente, reveladores de que a sucumbência revelada pela prática do novo ilícito penal é consequência de uma qualidade desvaliosa que entronca na personalidade do agente e não sendo tão somente fruto de causas fortuitas ou acidentais, o que conduz à afirmação de uma culpa agravada por a condenação anterior não ter servido de suficiente advertência contra o crime.
Assim, verifica-se que estão reunidos todos os pressupostos para a verificação da circunstância modificativa agravante em que se traduz a reincidência.
Ora, há então que atender que, nos termos do n.º 1 do art.º 76º do Código Penal, que dispõe que “ Em caso de reincidência, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado. A agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.”
Tendo-se já determinado a medida concreta da pena sem ter em consideração a reincidência, verifica-se então que as penas dos crimes relativos aos NUIPC 36/19, 1580/19 e 1654/19 terão o seu limite mínimo elevado para 1 mês e 10 dias, enquanto que as penas relativas aos crimes em causa nos NUIPCs 1650/19 e 1636/19 passarão a ter como limite mínimo os 2 anos e 8 meses de prisão.
Ora, assim, perante esta alteração na moldura de punição, por via da circunstância modificativa agravante, entendemos ser o arguido de condenar na pena de 3 anos e 10 meses de prisão por cada um dos crimes de furto qualificado que cometeu, sendo que entendemos que perante a concreta medida da pena encontrada para os outros crimes cometidos, e a agravação do limite mínimo da pena, não se encontra justificação para a alteração das penas determinadas, mantendo-se assim as mesmas em, respectivamente, 6 meses de prisão, 1 ano de prisão, 6 meses de prisão e 1 ano e 4 meses de prisão.
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7. Do cúmulo jurídico das penas
Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal: “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
Nos termos do n.º 2 desse mesmo normativo “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.
Encontrando-se os crimes cometidos pelo arguido (...) numa situação de concurso, uma vez que foram praticados antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, deverá o arguido ser condenado numa única pena, que deverá resultar da consideração, em conjunto, dos factos e da sua personalidade.
Como já referido o n.º 2 do preceito fixa, como limite máximo da pena aplicável, a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, sendo que o cúmulo será definido entre os 3 anos e 10 meses de prisão (a mais elevada das penas concretamente aplicadas) e os 11 anos de prisão.
Ponderando-se, em conjunto, a ilicitude dos factos praticados pelo arguido, a gravidade das consequências em termos pessoais patrimoniais para os lesados, o dolo intenso e directo com que actuou, os já extensos antecedentes criminais e o percurso de vida do arguido, nos termos já supra explanados, bem a personalidade do arguido manifestada na matéria provada em audiência de julgamento, considera-se ajustada a pena única de 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
(…).»

2.3. Apreciação do recurso
Como supra se referiu a questão suscitada é da violação do princípio in dúbio pro reo.
Sustenta o arguido/recorrente que, na audiência de julgamento, não foi produzida prova que sustente a decisão de dar como provado ter sido ele quem praticou os factos descritos nos pontos 20. e 23., referentes aos NUIPC´s 1650/19.7PBFAR e 1636/19.1PBFAR e com base nos quais foi condenado pela prática dos dois crimes de furto qualificado.

Manifesta o arguido/recorrente não tendo prestado declarações, na audiência de julgamento, o que não o pode prejudicar e não existindo testemunhas que o tivessem visto em qualquer das residências mencionadas nos pontos 20. e 23. dos factos provados, com referência aos NUIPC´s 1650/19.7PBFAR e 1636/19.1PBFAR, a simples apreensão em seu poder e da coarguida, de objetos que foram subtraídos daquelas residências, não constitui prova suficiente para se poder concluir, com a segurança que se impõe, ter sido o arguido quem entrou nas residências em causa e daí subtraiu esses bens, podendo haver outra explicação para que esses bens viessem a ficar em poder do arguido, designadamente, a de lhe terem sido entregues por outra pessoa que praticou os furtos. Nesta linha de entendimento, defende o recorrente, que não é possível, com exatidão, certeza e segurança, que se exige para a condenação, concluir que o arguido foi o autor dos factos em causa, pelo que, ao decidir, em sentido diverso, o Tribunal a quo, violou o princípio do in dúbio pro reo e, como tal, pugna o recorrente, pela sua absolvição da prática dos dois crimes de furto qualificado, por que foi condenado em 1ª instância, com referência aos NUIPC´s 1650/19.7PBFAR e 1636/19.1PBFAR.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de que a prova a que o tribunal a quo atendeu para dar como provado ter sido o arguido/recorrente o autor dos factos em apreço é bastante para que assim decidisse, não existindo violação do princípio do in dúbio pro reo.
Apreciando:
Ao alegar que, na audiência de julgamento não foi produzida prova suficiente para que pudesse ser dado como provado ter sido o arguido quem praticou os factos dados como provados nos pontos 20. e 23., referentes aos NUIPC´s 1650/19.7PBFAR e 1636/19.1PBFAR, o recorrente deixa transparecer pretender invocar o erro de julgamento, na apreciação/valoração da prova, ainda que, expressamente, apenas invoque a violação do princípio do in dúbio pro reo.
O erro de julgamento, reportado à previsão do artigo 412º, n.º 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado como não provado ou quando se deu como não provado um facto que, face à prova produzida, deveria ter sido considerado provado.
O princípio in dúbio pro reo, que é decorrência do princípio constitucional consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do CPP, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre a veracidade dos factos, ou seja, impõe ao julgador que, quando confrontado com a dúvida, razoável e fundada, em matéria de prova, resolva tal dúvida em sentido favorável ao arguido.
Conforme vem reiteradamente decidido pela jurisprudência, o tribunal de recurso apenas pode censurar o não uso do princípio in dúbio pro reo se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, perante essa dúvida, optou por decidir em sentido desfavorável ao arguido[1].
Noutra vertente, a violação do princípio in dúbio pro reo, verificar-se-á, quando, no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, resulte demonstrado, o erro na apreciação da prova produzida, em termos de se concluir que o julgador, ao condenar o arguido, com base na prova a que atendeu e na valoração a que procedeu, contrariou as regras da experiência comum, quando, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do arguido[2].
Como se refere no Acórdão do STJ de 15/06/2000[3]«O princípio in dúbio pro reo acha-se intimamente ligado ao da livre apreciação da prova do qual constitui faceta e este último apenas comporta as exceções integradas no princípio da prova legal ou tarifada ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida ou ofensiva das regras da experiência comum.»
Temos assim, que o tribunal de recurso só pode censurar o não uso do princípio in dúbio pro reo se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, perante essa dúvida, optou por decidir em sentido desfavorável ao arguido ou, se, em sede de impugnação ampla da matéria de facto, o tribunal de recurso concluir que da prova produzida e documentada, resulta que, ao condenar o arguido, com base em tal prova, o julgador contrariou as regras da experiência comum ou desrespeitou as regras da lógica, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do arguido.
No caso dos autos, o Tribunal a quo fundamentou a decisão de dar como provado que o arguido, foi autor dos factos referentes aos NUIPC´s 1650/19.7PBFAR e 1636/19.1PBFAR, do seguinte modo:
«No que concerne aos factos relativos ao NUIPC 1650/19.7PBFAR, o arguido não prestou quaisquer declarações, sendo que em sede de primeiro interrogatório judicial, declarou ter adquirido as luvas, o canivete e o relógio Sekonda (que analisaremos infra) que foram apreendidos a dois indivíduos, que os terão furtado, tendo pago €200 em haxixe, sendo que dispunha dessa quantidade de haxixe porque não precisa de comprar porquanto o mesmo era-lhe sempre oferecido, referindo ainda que 10 gramas de haxixe custariam cerca de 15 euros. Já a arguida (...) admitiu que tinha na sua posse o canivete – apreendido a fls. 27 do apenso A e reconhecido pelo proprietário, como de decorre de fls. 20, 23 e 24 – e que tinha sido o arguido (...) a dar-lho para que o usasse para sua defesa.
Resultando do depoimento das testemunhas (…) que os mesmos não presenciaram a prática dos factos, da conjugação dos depoimentos que prestaram, bem como do depoimento prestado pelo agente policial (…), e do teor de fls. 226 e ss., há que considerar que a entrada na residência só pode ter ocorrido pela janela de um dos quartos da casa, com varanda, que eventualmente estaria destrancada, pois que a porta de entrada no apartamento estava intacta, tendo a entrada ocorrido durante o período de tempo que resultou provado em 20, porque foi nesse período de tempo que (…) saiu para jantar. Relativamente aos bens que foram retirados do interior da residência o Tribunal atendeu ao depoimento dos proprietários, os referidos (…), que depuseram sobre os concretos bens que lhe foram subtraídos e os concretos valores dos mesmos, sendo que face às características dos bens não se suscitaram dúvidas sobre essa avaliação, pelo que se considerou provado o vertido em 20, nas suas diversas alíneas, resultando no entanto que os ofendidos não souberem referir o valor de alguns bens ou referissem valores inferiores aos imputados na acusação pública. De atentar que a testemunha (…) veio declarar que os auriculares foram depois encontrados, não tendo igualmente feito alusão à subtracção de dinheiro que se encontrasse no interior de um seu casaco, pelo que tais factos foram considerados não provados.
A testemunha (…) confirmou também que os objectos que reconheceu e que lhe foram entregues, nomeadamente a pinça do canivete e luvas, bem como o canivete (fls. 129 dos autos principais, fls. 20 e 21 do Apenso A) eram efectivamente os de sua pertença e que foram os retirados do interior da sua casa.
Também se valorou a factura de aquisição do computador referido em 20.i, dos factos provados, constando da mesma a data e valor de aquisição, bem, como o seu número de série, tendo a testemunha (…) explicado que fora a sua mãe que o adquirira (vide fls. 12 do Apenso A).
Como já referido não há prova testemunhal ou pericial que coloque o arguido (...) no interior desta residência. No entanto, há que atender que no dia 12 de Dezembro, 5 dias depois dos factos, os arguidos foram abordados pela PSP e a arguida tinha na sua posse o canivete que foi subtraído da residência, como o demonstram os elementos documentais já supra aludidos e que foram confirmados pelo agente (…). E logo no dia 13 de Dezembro, e estando os dois arguidos já detidos em cumprimento de mandados de detenção fora de flagrante delito, foi efectuada busca domiciliária ao quarto que ambos ocupavam na Residencial (…), sendo que aí foram apreendidas as luvas Polo Ralph Lauren e uma pinça do canivete, bem como um talão de câmbio de dólares efectuado pelo arguido (...) no dia 10 de Dezembro (vide auto de busca e apreensão de fls. 110 e 111 e talão de fls. 113, bem como reportagem fotográfica de fls. 116 e ss., dos autos principais).
E como retrata esse auto de busca e apreensão foi também apreendido um relógio de marca Sekonda que foi subtraído no dia 5 de Dezembro do interior da residência de (…) (NUIPC 1636/19.1PBFAR), bem como um talão de penhor referente a um fio de ouro que foi igualmente subtraído do interior desta residência.
É certo também que (…) não viram a pessoa que entrou na sua residência e que tal ocorre com esta última ainda no interior da residência, tendo a entrada se dado por uma janela aberta, e inexiste outra prova testemunhal ou pericial que coloque qualquer um dos arguidos dentro da residência.
No entanto há que atentar que tendo ocorrido dois furtos no interior de residência com a diferença de dois dias, existem elementos objectivos que ligam os arguidos aos factos.
Como já referido no caso de (…), a arguida tinha o canivete e no quarto de ambos foi apreendida a pinça desse canivete, as luvas de pele Polo Ralph Lauren e um talão de conversão de dólares em euros, e já no caso do casal (…) foi aprendido no quarto um dos arguidos o seu relógio de marca Sekonda bem como um talão de penhor de um dos fios de ouro subtraídos, que foi penhorado logo no dia seguinte à subtracção, ou seja, 6 de Dezembro.
Ou seja, se consideramos credível, face ao que já referimos supra quanto à valoração do depoimento da arguida (...), o que a arguida declarou de que foi penhorar o fio de ouro a pedido do arguido, então necessariamente no dia seguinte ao furto, o arguido já o tinha na sua posse. Ora, o arguido não justifica como o obteve, mas pretende fazer crer que os bens que foram encontrados no quarto e furtados na casa do casal Gonçalves e no NUIPC 1650/19.7PBFAR foram por si adquiridos.
Não pode colher a justificação do arguido, quando se atenta que tem na sua posse bens subtraídos de duas distintas residências, e não pretende explicar como obteve o colar de ouro, sendo que ficou patente das declarações prestadas por si e mesmo pela sua mãe, que o mesmo não tinha meios de subsistência, pelo que também não teria capacidade económica para comprar tais bens de outros que os tivessem furtado.
Relativamente ao provado relativamente aos bens subtraídos no NUIPC 1636/19, atendeu-se ao depoimento das duas testemunhas, que descreveram os bens subtraídos e alguns dos seus valores, sendo que se atendeu para prova dos elementos de identificação do telemóvel o constante a fls. 7 do Apenso B e fls. 335 dos autos principais. Já quanto ao valor dos dois fios de ouro, não se apurou o valor do que não foi recuperado, no entanto o que foi recuperado e entregue à proprietária foi avaliado em €1800 (como resulta do auto de avaliação de fls. 247). Já relativamente ao valor do relógio Sekonda, atendeu-se o valor constante da factura de fls. 8 verso, de onde resulta que o mesmo foi adquirido em 2010 por £82,99, pelo que atendendo à desvalorização, uma vez que não se apura que seja um bem que se valorize pelo decurso do tempo, o mesmo valeria menos de €102.
Como já referimos inexiste prova testemunhal ou pericial que permita colocar os arguidos no interior da residência do casal (…), no entanto, e como já explicitámos supra, a conjugação da prova permite considerar provado que foi o arguido a praticar os factos. Mas, nestes concretos factos a autoria também foi imputada à arguida (...). Ora, quanto à sua intervenção nos mesmos apenas se demonstra que foi a arguida quem foi dar o fio de ouro em penhor, a pedido do arguido. Ora se como já aludido supra damos credibilidade às suas declarações então necessariamente teremos que dar como não provadas as imputações constantes da acusação, dando assim como não provada a sua execução nos factos.»
Do segmento da motivação da decisão de facto exarada no acórdão recorrido e que se deixa transcrita, resulta que foi determinante para que o tribunal a quo desse como provado que o arguido, ora recorrente, foi o autor dos factos que foram dados como provados no ponto 20., referentes ao NUIPC 1650/19.7PBFAR, a apreensão na posse da coarguida, companheira do arguido, aqui recorrente, no dia 12/12/2019, de um canivete (que a arguida, nas declarações que prestou, afirmou ter-lhe sido dado pelo arguido para se defender) e a apreensão, no âmbito da busca domiciliária realizada, no dia 13/12/2019, ao quarto que os arguidos ocupavam, de objetos (concretamente umas luvas Polo Ralph Lauren e uma pinça do referido canivete), que foram subtraídos, no dia 07/12/2019, da residência dos ofendidos (…) e aos estes pertencentes, bem como de um talão de câmbio de dólares efetuado pelo arguido, ora recorrente, no dia 10/12/2019, junto a fls. 113, sendo que, dessa mesma residência e conforme confirmado pelos ofendidos foram subtraídos 65 dólares americanos, não merecendo credibilidade ao Tribunal a quo a versão apresentada pelo arguido, nas declarações que prestou em sede de 1º interrogatório judicial – sendo que em julgamento o arguido se remeteu ao silêncio – sobre as circunstâncias em que ficou em poder daqueles objetos e sobre a proveniência dos dólares cujo câmbio efetuou.
E para que o Tribunal a quo alicerçasse a convicção de que foi o arguido o autor dos factos dados como provados no ponto 23., que se referem ao NUIPC 1636/19.1PBFAR, foi determinante a apreensão, no âmbito da aludida busca realizada ao quarto que os arguidos ocupavam, que teve lugar em 13/12/2019, de um relógio da marca Sekonda e de um talão de penhor, com data de 06/12/2019, de um fio em ouro – tendo a coarguida afirmado, nas declarações que prestou, que o mesmo lhe foi entregue pelo arguido para que o penhorasse –, objeto este que veio a ser apreendido, na loja de penhores, tendo o dito relógio e o aludido fio sido subtraídos da residência dos ofendidos (…), no dia 95/12/2019, não merecendo credibilidade ao Tribunal a quo a versão apresentada pelo arguido, nas declarações que prestou em sede de 1º interrogatório judicial – sendo que em julgamento o arguido se remeteu ao silêncio – sobre as circunstâncias em que ficou em poder daquele relógio e não pretendendo o arguido explicar como obteve o aludido fio em ouro.
Vem sendo entendimento reiteradamente afirmado na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, relativamente à detenção de objetos furtados por parte do arguido, em situações em que este, no uso do direito ao silêncio que lhe assiste, opta por não prestar declarações, em julgamento, que aquela circunstância, desacompanhada de qualquer outro indício – em especial quando existe alguma dilação temporal entre a data da subtração dos objetos e a data da apreensão dos mesmos –, não permite levar a concluir, com a segurança necessária e para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido foi o autor do crime de furto e que foi por essa via que obteve os objetos apreendidos em seu poder. Ou seja, essa apreensão não permite afastar a possibilidade de ocorrência de uma outra causa que não a autoria do furto, para os bens furtados tenham chegado à posse do arguido, podendo tê-lo sido, por exemplo, por via de recetação, dolosa ou negligente[4].
Este entendimento vem sendo acolhido em situações em que o arguido se remete ao silêncio, não prestando declarações, não podendo ser prejudicado pelo facto de, exercendo um direito que a lei lhe confere, não apresentando qualquer explicação para que os bens furtados estivessem em seu poder, levar a extrair qualquer consequência, para determinar a respetiva culpabilidade.
Já em situações em que o arguido, estando na posse dos objetos furtados, opta por prestar declarações acerca das circunstâncias como ficou em poder de tais objetos, constituindo essas declarações um meio de prova e estando sujeitas a livre apreciação do tribunal, por força do disposto no artigo 127º do CPP, com as consequências daí decorrentes, em termos de poderem ou não, em conjugação com a demais prova produzida e com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, ser acolhidas/valoradas pelo julgador ou não o ser, por não merecerem credibilidade.
Como se decidiu no Acórdão da RE de 22/11/2011[5]:
«I - A detenção dos objectos furtados pelo arguido não permite inferir, sem mais, a forma como esses objectos foram parar à sua posse.
II - As declarações de arguido, constituindo o seu meio de defesa por excelência, não deixam de ser, também, um meio de prova; e ao prestá-las, optando livremente por abandonar uma estratégia de defesa de nada dizer, as suas declarações passam a integrar o conjunto das provas livremente valoráveis, de acordo com os princípios da livre apreciação e da aquisição processual das provas.
III - As declarações do arguido, embora não confessórias, podem constituir, em conjunto com os restantes indícios, prova positiva da autoria do furto; a valoração positiva da negação do arguido que apresenta versão inverídica, não viola os princípios do in dubio pro reo, da presunção de inocência e do nemo tenetur
No caso vertente, a apreensão de objetos subtraídos das residências dos ofendidos
(…) em poder do arguido e da coarguida, sua companheira, nas circunstâncias em que o foram, o câmbio pelo arguido de dólares em euros, tendo sido subtraídos dólares americanos da residência dos ofendidos (…) e a dação em penhor do fio em ouro subtraído da residência dos ofendidos (…) e a explicação apresentada pelo arguido, nas declarações que prestou, em 1º interrogatório, sobre as circunstâncias em que ficou em poder de alguns desses objetos, que não mereceu credibilidade ao Tribunal a quo, pelas razões que explicitou, na motivação da decisão de facto e que nos merecem concordância, por se revelaram consentâneas com as regras da experiência comum e os princípios da lógica racional.
Entendemos, assim, ser a prova produzida bastante, ainda que se trate de prova indireta – sendo que o raciocínio seguido pelo Tribunal a quo tem uma sequência lógica, compatível com as regras da experiência e, por isso, conforme ao princípio da livre apreciação da prova –, para que o Tribunal a quo concluísse, com a segurança que se impõe e para além da dúvida razoável, ter sido o arguido o autor dos factos que deu como provados com referência aos NUIPC´s 1650/19.7PBFAR e 1636/19.1PBFAR, pelo que, inexiste fundamento para que se fizesse funcionar o princípio in dubio pro reo.
Destarte, conclui-se não existir violação do princípio in dúbio pro reo.
Pelo exposto, não merecendo qualquer censura a decisão do Tribunal a quo de dar como provado a autoria pelo arguido dos factos referentes aos NUIPC´s 1650/19.7PBFAR e 1636/19.1PBFAR, mantém-se a sua condenação, pela prática dos correspondentes crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º e 204º, n.º 2, al. e), ambos do Código Penal, nos termos decididos no acórdão recorrido.
Improcede, assim, o recurso.

3. DISPOSITIVO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido (...) e, consequentemente, em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s (cfr. artigo 513º, n.º 1, do CPP e artigo 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).


Notifique.
Évora, 13 de abril de 2021
Fátima Bernardes
Fernando Pina
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[1] Cfr., entre outros, Ac. da RE de 02/02/2016, proc. n.º 114/13.7TARMR.E1, Ac. da RG de 16/11/2015, proc. n.º 599/14.4GAFAF.G1 e Ac. da R.C. de 03/06/2015, proc. 12/14.7GBRST.C1, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, cf., entre outros, Ac. da RG, de 06/02/2017, proferido no proc. n.º 1802/14.6TAGMR.G1, acessível no endereço www.dgsi.pt.
[3] Citado pelo agora Cons. Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 349.
[4] Neste sentido cfr., entre outros, Ac. da RG de 19/01/2009, proc. 2025/08-2, Ac. da R.P. de 11/02/2012, proc. 136/06.4GAMCD.P1 e de 01/07/2015, proc. 425/11.6GFPNF.P2, Ac. da RE de 24/01/2017, proc. 209/13.7GFSTB.E1 e Ac. da RC de 20/09/2017, proc. 174/08.2GASPS.C1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[5] Proferido no processo n.º 135/09.4GEPTM.E1, acessível in www.dgsi.