Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3004/15.5T8STR-D.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: MASSA FALIDA
VENDA
ANULAÇÃO
Data do Acordão: 10/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A venda efectuada pelo administrador de insolvência, sem a audição da comissão de credores ou da assembleia de credores, de todos os bens móveis apreendidos para a massa insolvente pelo valor de € 15.000,00 (acrescidos de IVA = € 18.450,00) – o que representa, afinal, um montante irrisório, pois corresponde, tão só, a 6,54% do valor da respectiva avaliação – preenche, indubitavelmente, os requisitos a que aludem os artigos 161º, nºs 1, 2 e 3, alínea g) e 163º, a contrario, ambos do CIRE e, por isso, tal venda terá de ser declarada nula e ineficaz.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 3004/15.5T8STR-D.E1


Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


(…), credor no processo de insolvência em que foi declarada insolvente (…) – Produtos Cerâmicos, Lda., veio requerer, logo que teve conhecimento, que fosse decretada a ineficácia da venda (antecipada) dos bens móveis que, oportunamente, tinham sido apreendidos para a massa insolvente, venda essa levada a cabo pelo administrador de insolvência, sem que para o efeito haja consultado a assembleia de credores, quando, na realidade, se tratava da prática de um acto de especial relevo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 161º do CIRE.
A M.ma Juiz “a quo” entendeu que – não obstante o alegado pelo credor acima identificado – não tinha poderes (processuais) para declarar inválida tal venda e, em consequência, não veio a deferir o solicitado por aquele.

Inconformado com tal decisão dela apelou o referido credor, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1 - O presente recurso vem interposto da decisão que julgou válida a venda das verbas 1 a 5 da massa insolvente.
2 – Os bens em questão consideram-se de titularidade controversa, atenta as posições manifestadas pela ora recorrente, pela insolvente, pelo administrador de insolvência e pela M.ma Juiz, atento o que se invocou quanto á necessidade de instauração de acção judicial para aferir dessa titularidade.
3 – Por despacho de 17/9/2018 a M.ma Juiz considerou, além do mais, a consequente inexistência do poder de disposição dos bens pela insolvente.
4 – Os bens em causa foram avaliados em € 228.500,00, mas foram vendidos por € 15.000,00 (e não € 18.450,00 como refere o administrador de insolvência), que representam 6,54% do valor de avaliação.
5 – A venda dependia de consentimento da assembleia de credores, tal como previsto no nº 1 do artigo 161º do CIRE, atenta a definição constante da alínea g) do nº 3 daquele mesmo preceito.
6 – O administrador de insolvência deve agir de acordo com aquela que for, segundo o critério de um gestor ordenado, a mais adequada à defesa dos interesses dos credores. A sua actividade deve ser levada a cabo com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, que representa estes e tem papel determinante na condução do processo de insolvência.
7 – Resulta daí que, sempre que a actuação do administrador de insolvência esteja condicionada pela comissão de credores, não pode ele agir sem previamente obter dela (ou da assembleia de credores) as autorizações necessárias para o efeito.
8 – Atento o valor da avaliação dos bens, por contraposição ao valor da venda, existe manifesta desproporção entre as obrigações da massa insolvente e do comprador, com inerentes consequências nas legítimas expectativas dos credores, razão pela qual deve ser decretada a ineficácia da venda em causa, nos termos do disposto no art.163º (a contrario) do CIRE.
9 – Termos em que, revogando a decisão recorrida e decretando a ineficácia da venda, farão V. Ex.as a costumada Justiça.
Não foram apresentadas contra-alegações de recurso.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável ao recorrente (artigo 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo artigo 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pelo credor (…), ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se a venda realizada pelo administrador de insolvência, no que tange aos bens móveis apreendidos para a massa insolvente, deve ser declarada nula e ineficaz, com as legais consequências, uma vez que se mostra violado o disposto nos artigos 161º e 163º a contrario do CIRE.

Apreciando, de imediato, a questão suscitada pelo recorrente importa, desde já, ter presente o que estipula o citado artigo 161º, sob a epígrafe “necessidade de consentimento”, o qual passamos a transcrever:
1 - Depende do consentimento da comissão de credores, ou, se esta não existir, da assembleia de credores, a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência.
2 - Na qualificação de um acto como de especial relevo atende-se aos riscos envolvidos e às suas repercussões sobre a tramitação ulterior do processo, às perspectivas de satisfação dos credores da insolvência e à susceptibilidade de recuperação da empresa.
3 - Constituem, designadamente, actos de especial relevo:
a) A venda da empresa, de estabelecimentos ou da totalidade das existências;
b) A alienação de bens necessários à continuação da exploração da empresa, anteriormente ao respectivo encerramento;
c) A alienação de participações noutras sociedades destinadas a garantir o estabelecimento com estas de uma relação duradoura;
d) A aquisição de imóveis;
e) A celebração de novos contratos de execução duradoura;
f) A assunção de obrigações de terceiros e a constituição de garantias;
g) A alienação de qualquer bem da empresa por preço igual ou superior a (euro) 10.000 e que represente, pelo menos, 10% do valor da massa insolvente, tal como existente à data da declaração da insolvência, salvo se se tratar de bens do activo circulante ou for fácil a sua substituição por outro da mesma natureza.
4 - A intenção de efectuar alienações que constituam actos de especial relevo por negociação particular bem como a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio deverão ser comunicadas não só à comissão de credores, se existir, como ao devedor, com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data da transacção.
5 - O juiz manda sobrestar na alienação e convoca a assembleia de credores para prestar o seu consentimento à operação, se isso lhe for requerido pelo devedor ou por um credor ou grupo de credores cujos créditos representem, na estimativa do juiz, pelo menos um quinto do total dos créditos não subordinados, e o requerente demonstrar a plausibilidade de que a alienação a outro interessado seria mais vantajosa para a massa insolvente.
E, conjugado com o preceito supra transcrito, importa trazer ainda à colação o artigo 163º do CIRE onde é estatuído o seguinte:
- A violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte.
No caso em apreço, o credor, aqui apelante, considera que a actuação do administrador de insolvência foi ruinosa e irresponsável, uma vez que este – sem audição prévia da comissão de credores ou da assembleia de credores – procedeu à venda dos bens móveis apreendidos para a massa insolvente pelo valor de € 15.000,00 (a que acresce o IVA = € 18.450,00), muito embora tais bens tivessem sido avaliados no processo em € 228.500,00, representando tal venda apenas 6,54% do valor total da avaliação efectuada!
Ora, a possibilidade de reacção contra os actos praticados pelo administrador de insolvência – como é o caso da venda bens móveis acima referida – está hoje dependente da qualificação desse acto como assumindo “especial relevo para o processo de insolvência”.
Assim, nos termos do nº 2 do citado artigo 161º do CIRE, na qualificação de um acto como de especial relevo atende-se aos riscos envolvidos e às suas repercussões sobre a tramitação ulterior do processo, às perspectivas de satisfação dos credores da insolvência e à susceptibilidade de recuperação da empresa.
E, como vimos, o nº 3 do referido artigo 161º elenca, sem carácter taxativo, actos qualificados de especial relevo: sendo o conceito indeterminado ficará à consideração do intérprete uma ponderação qualificativa casuística.
Não parecem merecer a qualificação de “actos de especial relevo” procedimentos de carácter processual, pois, aquele normativo ao estatuir que “a violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos atos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”, apenas confere excepcional relevância violadora, geradora de invalidade, aos casos em que, da actuação do administrador de insolvência – como a venda dos bens móveis supra referida – resulte claramente a assunção de obrigações que excedam manifestamente as da contraparte (ou seja do adquirente de tais bens).
A este propósito Paula Costa e Silva afirma o seguinte:
- Que actos têm especial relevo?
A lei utiliza uma técnica mista de qualificação que visa, seguramente, conferir flexibilidade ao preceito. Por um lado, apresenta índices de qualificação no n° 2 do art. 161º, por outro, enuncia, no n° 3 do mesmo preceito, tipos de actos que se presumem ter particular relevo. Isto implica ter especial relevo quer um acto relativamente ao qual se preencham os índices do n° 2, quer um acto que se apresente como análogo àqueles que estão enunciados no n° 3.
Tanto dos índices, quanto dos casos expressamente previstos, resulta que terão especial relevo actos que influenciem decisivamente o processo de insolvência, quer porque têm especial impacto na massa insolvente, quer porque repercutem efeitos no conjunto das dívidas da insolvência.
Curiosamente, entre os actos que assumem especial relevo não se prevêem especificamente as actuações processuais – cfr. “A Liquidação da Massa Insolvente”, estudo publicado na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2005 – Ano 65 – Vol. III, Dezembro 2005.
Acresce que, como acima foi referido, a prática de actos pelo administrador da insolvência em desrespeito da lei pode, se culposa, implicar a sua responsabilidade perante o devedor e os credores (da insolvência ou da massa insolvente) nos termos do artigo 59º, devendo constituir justa causa para a sua destituição, de acordo com o artigo 56º, ambos do CIRE.
E, a este respeito, Soveral Martins, afirma o seguinte:
- A falta do necessário consentimento da comissão de credores ou da assembleia de credores não prejudica, em regra, a eficácia do ato jurídico de especial relevo do administrador da insolvência (art. 163.º). A ineficácia ocorrerá, porém, se as obrigações assumidas pelo administrador da insolvência excederem manifestamente as da contraparte”.
Mas, ainda que o acto não seja ineficaz, isso não significa que o administrador da insolvência o possa praticar sem o consentimento exigido. A prática do ato sem esse consentimento pode conduzir à destituição com justa causa do administrador da insolvência e até à sua responsabilização civil – cfr. Um Curso de Direito da Insolvência, 2015, págs. 294/295.
Ora, voltando novamente ao caso dos autos, entendemos que a venda efectuada pelo administrador de insolvência, sem a audição da comissão de credores ou da assembleia de credores, de todos os bens móveis apreendidos para a massa insolvente pelo valor de € 15.000,00 (acrescidos de IVA = € 18.450,00) – o que representa, afinal, um montante irrisório, pois corresponde, tão só, a 6,54% do valor da respectiva avaliação – preenche, indubitavelmente os requisitos a que aludem os arts. 161º, nºs 1, 2 e 3, alínea g) e 163º, a contrario, ambos do CIRE e, por isso, tal venda terá de ser declarada nula e ineficaz, o que aqui se determina para os devidos e legais efeitos.
Todavia, mesmo que assim não se entendesse, sempre o art. 163º do CIRE tinha de ser declarada inconstitucional, por violação do disposto no art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República por não assegurar, imediatamente no processo, uma tutela efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de pronta intervenção do Julgador.
Na verdade, sufragamos aqui, por inteiro, o que, a dado passo, foi afirmado no Ac. do STJ de 4/4/2017, disponível in www.dgsi.pt, que, desde já, passamos a transcrever:
- (…) Será o regime legal vigente, de reacção aos actos ilegais do AI, mormente o artigo 163º do CIRE, compatível com a tutela jurisdicional efectiva dos direitos afectados no processo da insolvência?
Recusando-se ao juiz do processo de insolvência, poder apreciar e anular a venda por negociação particular, promovida pelo AI, em violação das normas que lhe impõem a adopção das formalidades previstas nos arts. 161º e 162º do CIRE, não sairá afectado o direito fundamental dos prejudicados, de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20º da Constituição da República?
Cremos que tal entendimento viola o artigo 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República se se entender, como no Acórdão recorrido, que “O administrador está vinculado a actuar como administrador criterioso e ordenado, sob pena de responder pelos danos que a sua actuação cause aos credores. Contudo, os seus actos não podem ser impugnados perante o juiz, já que perante terceiros, em regra, se mantém válidos e eficazes, sem prejuízo do dever de indemnização que façam recair sobre o administrador. Tanto basta para concluir que o recurso não pode deixar de improceder uma vez que não cabe na competência jurisdicional apreciar a regularidade dos actos praticados pelo administrador que motivaram o recurso.” (destaque e sublinhado nosso)
O artigo 20º, nº 1, da Constituição da República estatui: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” e o nº 5 – “Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada” – 4ª edição revista e aumentada – Volume I, em anotação ao normativo, págs. 408 e segs. expressam:
“O direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (n° 1 e epígrafe) é, ele mesmo, um direito fundamental constituindo uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais. Sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de direito. É certo que carece de conformação através da lei, ao mesmo tempo em que lhe é congénita uma incontornável dimensão prestacional a cargo do Estado […]” e, na pág. 416, “Na epígrafe e no n° 5 a Constituição alude expressis verbis ao direito à tutela jurisdicional efectiva (epígrafe) ou ao direito à tutela efectiva (n° 5). Não é suficiente garantia o direito de acesso aos tribunais ou o direito de acção.
A tutela através dos tribunais deve ser efectiva. O princípio da efectividade articula-se, assim com uma compreensão unitária da relação entre direitos materiais e direitos processuais, entre direitos fundamentais e organização e processo de protecção e garantia.
Não obstante reconhecer o direito à protecção de direitos e interesses, não é suficiente garantia o direito de acção para se lograr uma tutela efectiva. O princípio da efectividade postula, desde logo, a existência de tipos de acções ou recursos adequados (cfr. Código de Processo Civil, art. 2°-2), tipos de sentenças apropriados às pretensões de tutela deduzida em juízo e clareza quanto ao remédio ou acção à disposição do cidadão (cfr. As formas de processo hoje consagradas no Cód. Proc. Trib. Admin., arts. 35° e ss.). A imposição constitucional da tutela jurisdicional efectiva impende, em primeiro lugar, sobre o legislador, que a deve tomar em consideração na organização dos tribunais e no recorte dos instrumentos processuais, sendo-lhe vedado: (1) a criação de dificuldades excessivas e materialmente injustificadas no direito de acesso aos tribunais; (2) a criação de “situações de indefesa” originadas por conflitos de competência negativos entre vários tribunais.”
A tutela jurisdicional deve ser efectiva, e não o é quando a lei assegura, mas de forma colateral, a “protecção” de direitos, quando a parte, que se considera prejudicada em processo pendente, argui perante o Juiz, a existência de vícios processuais que contendem com o seu direito.
No caso, mesmo que a prática de actos de especial relevo da competência do administrador da insolvência, na fase de liquidação da massa insolvente, evidenciem terem sido por si violados os arts. 161º e 162º do CIRE pelo administrador da insolvência, o artigo 163º do CIRE estatui que tal violação “não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”.
Este normativo (art. 163º), na interpretação do Acórdão recorrido, não contempla o direito da parte lesada, no incidente de liquidação, por acto ou omissão do AI, poder arguir, perante o Juiz do processo, vícios procedimentais. A vingar tal interpretação, o remédio ao alcance de quem no processo for lesado, por actuação ilegal daquele órgão, é nenhum em termos imediatos e de proporcionalidade, exprimindo indefesa.
Disporá, quem for prejudicado, do direito de intentar acção indemnizatória para obter a condenação do AI, pelos danos patrimoniais sofridos e pedir a destituição do cargo com justa causa, esta, sim, a apreciar no processo pelo Juiz.
A lei confere ao lesado como que uma possibilidade de actuação sancionatória de um órgão da insolvência, mas permanece eficaz o acto praticado que não será sindicável no processo. Parece incongruente: o lesado quererá, sobretudo, ver declarada a ineficácia de um acto que patrimonialmente pode ser danoso.
Não obterá a reparação, pela via da arguição da nulidade processual do acto, mas apenas, no contexto de responsabilização em acção judicial em que terá que ser demandante, podendo obter uma indemnização pelos prejuízos sofridos.
Segundo o art. 839º, nº 1, c), do Código de Processo Civil, a venda forçada fica sem efeito, em processo executivo, se for anulado o acto da venda, nos termos do art. 195º, ou seja, são aplicáveis as regras gerais sobre a nulidade dos actos omissivos ou comissivos prescritos na lei. Não se ignora que a insolvência é um processo de liquidação universal, que se rege por regras próprias, sendo, subsidiariamente, aplicável o Código de Processo Civil, como prevê o art. 17º do CIRE; estando em causa, no processo de insolvência, interesses dos credores (que podem ser muitos) – a execução é universal e concursal – do devedor insolvente e outros, não parece que a não apreciação imediata no processo de direitos alegadamente violados, exprima tutela efectiva.
Só excepcionalmente – ut parte final do artigo 163º do CIRE – a violação do disposto nos artigos 161º, nº 1 e 162º (que contemplam actos de “especial relevo”) conduzirá à ineficácia dos actos ilícitos praticados.
O processo de insolvência, que o legislador quis célere e desjudicializado, não pode erigir tais valores em objectivos em si mesmos, com prejuízo dos interesses que nele se jogam. A celeridade, a desburocratização, a desjudicialização e os amplos poderes do administrador da insolvência, no incidente de liquidação da massa insolvente, não devem ser interpretados de forma a excluir o papel imparcial e soberano do Juiz, relegando-o para um papel secundário de mero controlo, ou no limite, nem sequer lhe consentindo que possa apreciar a irregularidade do negócio em que interveio o administrador da insolvência.
A interpretação que o douto Acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art. 163º do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação violadora do administrador da insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar essa actuação ilícita perante o Juiz do processo, e que o despacho do julgador da 1ª Instância que apreciou tal arguição decretando a pedida nulidade, é ilegal por o acto ser eficaz, considerando que resta ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o AI, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados, viola o art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República, por não assegurar imediatamente no processo, tutela jurisdicional efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata actuação do julgador, estando no limite de violar o princípio da proibição da indefesa.
Efectivamente, “no balanceamento ou ponderação de interesses” do credor, alegadamente lesado, no seu interesse patrimonial, e as exigências de “simplificação, celeridade e desjudicialização”, que não permitem directa e imediata sindicância judicial de actos violadores da lei, fazem pender, desproporcionalmente, o equilíbrio processual e substantivo, não sendo compagináveis com aquele princípio constitucional – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional, de 12.5.2015, Processo nº 110/2015, I Série do Diário da República de 8. 6.2015.
Assim, este Supremo Tribunal de Justiça considera que a interpretação que, no Acórdão recorrido foi acolhida do art. 163º do CIRE, sentenciando que “a decisão recorrida tem de ser revogada por o decidido [anulação da venda] exceder os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo de insolvência em relação aos actos praticados na liquidação do activo”, é materialmente inconstitucional, por violar o art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República, do ponto em que não garante ao lesado tutela jurisdicional efectiva do seu direito, e, consequentemente, revoga o Acórdão recorrido.
Nestes termos, atentas as razões e fundamentos supra referidos, forçoso é concluir que a decisão recorrida não se poderá manter, de todo, revogando-se a mesma em conformidade e, em consequência, face ao disposto nos artigos 161º, nºs 1, 2 e 3, alínea g) e 163º, a contrario, ambos do CIRE, declara-se nula e ineficaz a venda realizada pelo administrador de insolvência, no que tange aos bens móveis apreendidos para a massa insolvente (verbas 1 a 5).

***

Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida nos exactos e precisos termos acima explanados.
Custas pela massa insolvente (art. 304º do CIRE).
Évora, 24 de Outubro de 2019
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás
__________________________________________________
[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).