Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
550/17.0T8SRT.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
Data do Acordão: 10/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Resulta do disposto no art.º 473.º do CC que o enriquecimento sem causa, enquanto fonte geradora da obrigação de restituir, tem como pressupostos constitutivos: a) a existência de um enriquecimento; b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento.
II. A ausência de causa, facto negativo embora, terá de ser alegada e provada, de harmonia com o critério geral estabelecido no art.º 342.º, por aquele que pede a restituição.
III. Não bastará, para esse efeito, que não se prove a existência de uma causa de atribuição, sendo necessário convencer o Tribunal da falta de causa.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo Central Cível de Santarém-Juiz 2
Proc. 550/17.0T8SRT.E1


I – RELATÓRIO
(…), residente na Rua dos (…), n.º 10, no Entroncamento, instaurou contra (…), residente na mesma morada, a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação da demandada a pagar-lhe a quantia € 192.500,00, acrescida de juros civis contados da data do vencimento até integral pagamento.
Para o efeito, alegou, em síntese, ter adquirido em compropriedade com a ré o imóvel que identificou, na proporção de 10% para si e 90% para esta, tendo, contudo, suportado integralmente o preço, no valor de € 125.000,00, o que fez a solicitação da demandada, que se comprometeu a entregar o valor correspondente à sua quota-parte o que, no entanto, e apesar de para tal ter sido extra-judicialmente notificada, nunca veio a fazer.
Mais alegou que em 17/11/2014 entregou à Ré, a pedido desta, a quantia de € 80.000,00, a qual lhe deveria ser restituída assim que o solicitasse, o que a demandada não fez, apesar de para tanto ter sido igualmente notificada.
Qualificando os acordos celebrados como contratos de mútuo, nulos por falta da forma legal, sustentou encontrar-se a ré obrigada a devolver as quantias recebidas por efeito da nulidade. Salientando por outro lado que nunca teve intenção de doar tais quantias, conservando a expectativa de que as mesmas lhe fossem restituídas, a não se provar a celebração dos alegados contratos subsiste a transferência para o património da demandada dos referidos montantes sem causa que o justifique. Porque tal se traduz num injustificado enriquecimento à custa do empobrecimento do demandante, sempre estaria a ré obrigada à sua restituição, desta feita ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, que subsidiariamente invocou.
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Citada a Ré, invocou a excepção do abuso de direito, uma vez que vive com o autor há mais de 25 anos como se de marido e mulher se tratasse, tendo construído um património comum, com criação de contas conjuntas, de onde aliás saiu o dinheiro utilizado para pagar o imóvel, nada lhe devendo porque nada pediu emprestado. Esclareceu que a quantia de € 80.000,00 lhe foi por aquele voluntariamente doada, por ter sido sua companheira e cuidadora ao longo de 25 anos.
Alegando ser alvo de maus tratos por banda do autor, que a difama e humilha, formulou a final pedido reconvencional de condenação do reconvindo a pagar-lhe indemnização no valor de € 25.000,00.
Imputando finalmente ao autor conduta processual passível de ser sancionada, pediu a condenação deste como litigante de má-fé em multa de valor não inferior a € 25.000,00.
O autor replicou, pugnando pela inadmissibilidade do pedido reconvencional formulado ou, quando assim não fosse entendido, pela sua improcedência.
Devolvendo a imputação de litigância de má-fé pediu a condenação da ré em indemnização a seu favor a fixar pelo Tribunal.
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Dispensada a realização da audiência prévia foi proferido despacho saneador com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi no seu termo proferida sentença, por cujos termos foram julgadas improcedentes a acção e a reconvenção, com as consequentes absolvições da ré e do reconvindo dos pedidos formulados, incluindo da reciprocamente imputada litigância de má-fé.

Inconformado, interpôs o autor tempestivo recurso e, tenho desenvolvido nas alegações os fundamentos da sua discordância com a decisão, formulou a final as seguintes necessárias conclusões:
i. A faculdade dada como provada não permite a absolvição da ré.
ii. O A. configurou os pagamentos efetuados em nome da Ré e as quantias que lhe foram entregues como se de mútuos se tratasse;
iii. Subsidiariamente pediu a restituição de tais importâncias, uma vez que nunca existiu por parte do A. qualquer intenção de doar tais quantias à Ré (art.º 34.º), sempre teve expectativa de que a Ré lhe devolvesse aquelas quantias voluntariamente (art.º 35.º); o A. não teve qualquer benefício decorrente daquelas transmissões (art.º 48.º); nunca entre o A. e a Ré houve qualquer acordo ou motivação para a transferência e pagamento de tais montantes a título translativo (art.ºs 49.º, 50.º e 51.º).
iv. Foi dado como provado que O autor e a ré viveram um com o outro pelo menos 12/13 anos, sem que, no entanto, tenha sido produzida prova nesse sentido.
v. Tendo sido dado como provado que a aquisição da casa no Entroncamento ocorreu apenas em 2013, nunca o Tribunal “a quo” poderia ter dado como provado que o A. vivia com a Ré há 12/13 anos.
vi. Foi referido pelo próprio A. que a Ré o tinha abandonado por completo.
vii. Não foram levados em conta para determinação da matéria de facto provada ou não provada os depoimentos das testemunhas arroladas pelo autor (…) e (…).
viii. O Tribunal [não] se pronunciou quanto aos prestados por (…) e (…).
ix. Considerou-se como não provado que o autor nunca quis transferir definitivamente para o património da ré a quantia correspondente a € 112.500,00 e € 80.000,00;
x. Mas também considerou como não provado que o tivesse querido fazer de livre e espontânea vontade (4) ou que não teve qualquer benefício decorrente dos factos vertidos nos pontos 3, 4, 7 e 8 da matéria dada como assente (13);
xi. Não se provou que houvesse qualquer título para a transferência dos montantes reclamados na acção, com excepção de metade do preço pago pelo A. na aquisição do imóvel sito a Rua do (…), n.º 10, no Entroncamento, que o A. quis dar a Ré “para que esta o tratasse bem”.
xii. O Tribunal “a quo” dá como provado que O autor pagou a totalidade do valor da compra do prédio identificado em 3, ou seja, a sua parte e a parte da réì, no valor de € 112.500,00 (4) e que, Na mesma data, o autor ordenou a transferência da referida quantia de € 80.000,00 da conta de depósitos à ordem n.º (...) para a conta n.º (...), também da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, titulada pela ré (8)).
xiii. Porém, na fundamentação, conclui que Na verdade, não se provou a versão trazida aos autos pelo autor, de que pagou a parte da réì na aquisição do imóvel sito na Rua dos (…), n.º 10, no Entroncamento, no valor de € 112.500,00 e que entregou à ré a quantia de € 80.000,00 a título de empréstimo, que esta deveria restituir quando aquele lhe solicitasse tais quantias.
xiv. O autor provou ou demonstrou em sede de audiência de julgamento os três pressupostos ou requisitos cumulativos do instituto do enriquecimento sem causa: a existência de um enriquecimento; que o enriquecimento seja obtido às custas de outrem; que não exista causa justificativa para essa deslocação patrimonial;
xv. Ficou demonstrado pelo A. que a Ré tinha obtido um benefício no seu património as custas do A., o qual, por sua vez, se viu empobrecido nessa mesma medida.
xvi. O autor, nas suas declarações, foi perentório em afirmar que apenas pretendia dar à ré metade da casa, mas não os 90%.
xvii. O autor nunca quis entregar a título translativo à ré a quantia de oitenta mil euros.
xviii. Nem nunca quis beneficiar a ré com essas quantias.
xix. Ficou igualmente demonstrado que a ré há pelo menos 5 anos não cuida do A.
xx. E que apesar de viverem na mesma casa não partilham vida em comum, habitando a Ré no rés-do-chão e o A. no primeiro andar.
xxi. O autor foi perentório em afirmar que a Ré o abandonou por completo.
xxii. Ainda que se pudesse entender que o enriquecimento tinha como causa a hipotética assistência e cuidados por esta prestados, tal fundamento parece cair por terra quando é alegado e provado que a ré vive uma vida separada da do autor, que não lhe presta mais assistência, e que o abandonou “por completo”.
xxiii. Não podia o Tribunal a quo concluir que existiu, ou teria existido, uma razão para a referida deslocação patrimonial da esfera do autor para a esfera da ré por esta lhe ter prestado em “período não concretamente apurado assistência e cuidados”, sem ter em conta que, ainda que essa fosse a causa justificativa, tal justificação ou causa deixou de existir.
xxiv. Ficou demonstrado que o autor, atualmente com 83 anos, pagou a totalidade do imóvel identificado nos autos e transferiu para a ré a quantia de € 80.000,00, mas não teve intenção de doar à ré tais quantias;
xxv. O A. declarou que apenas pretendia dar à ré metade do imóvel na expectativa de que a ré tratasse dele;
xxvi. Mas que a ré, em data não concretamente apurada, mas já depois desses factos, deixou de tratar do autor, “abandonando-o por completo”.
xxvii. Atenta a prova produzida, dificilmente se poderia entender, ou presumir, que existisse uma causa para tais transferências patrimoniais.
xxviii. A sentença recorrida não tomou em consideração toda a prova produzida, deu como provados factos para os quais não foi produzida prova e como não provados outros para os quais foi produzida prova bastante, e, consequentemente,
xxix. A sentença recorrida, ao julgar improcedente o pedido subsidiário formulado pelo A., não interpretou nem aplicou acertadamente as supra referidas normas, que condene a ré a restituir ao autor as quantias peticionadas.
Com tais fundamentos requer que, na procedência do recurso, seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que condene a ré a restituir-lhe as quantias peticionadas.
Contra-alegou a ré, suscitando a título prévio o incumprimento pelo recorrente dos ónus consagrados nos art.ºs 639.º, n.ºs 1 e 2, quanto à matéria de direito e 640.º, n.ºs 1 e 2, no que respeita à impugnação da matéria de facto, o que conduz à rejeição do recurso nesta parte, defendendo em todo o caso a manutenção do julgado.
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Questão prévia: delimitação do objecto do recurso
Conforme enunciado, a apelada defendeu nas contra-alegações que o recurso, na parte em que impugna a decisão sobre a matéria de facto, deve ser rejeitado, por incumprimento dos ónus consagrados no art.º 640.º do CPC, nomeadamente por não ter indicado nas conclusões as exactas passagens da gravação dos depoimentos que imporiam decisão diversa.
Dispõe o art.º 640.º que, sendo impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deverá o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição “a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (vide n.º 1).
Acrescenta o n.º 2 que “no caso previsto na al. b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso, na parte respectiva, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Resulta do assim preceituado que o impugnante da matéria de facto está vinculado ao cumprimento de três requisitos formais, cuja inobservância conduz à rejeição do recurso nesta parte, a saber: i. terá necessariamente de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; ii. terá ainda de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo da gravação, que imponham uma decisão diversa sobre os pontos de facto objecto da impugnação, ónus cujo cumprimento demanda a reapreciação crítica dos meios de prova e, estando em causa prova gravada, a exacta indicação das passagens em que o recorrente funda a sua discordância, podendo, se o entender, proceder à respectiva transcrição; iii. terá finalmente de enunciar a decisão alternativa.
Acresce que, definindo as conclusões o objecto do recurso – cfr. n.º 4 do art.º 635.º do CPC – o recorrente terá ainda que identificar nesta sede quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e sentido da alteração pretendida, sendo embora de dispensar a indicação dos meios de prova que, em seu entender, determinam tal modificação, evitando-se assim a repetição do que necessariamente há-de constar das alegações. Tal é o entendimento que vem sendo defendido pelo STJ, designadamente nos acórdãos de 7/7/2016, proc. n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1, de que se destaca o seguinte ponto do sumário: “I. Para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorrectamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre eles, conforme impõe o artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c) do CPC”; de 12.05.2016, proc. 324/10.9TTALM.L1.S1, “1 - No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe. II – Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.”; e de 27.10.2016, proc. 110/08.6TTGDM.P2.S1, para mencionar apenas alguns “1. Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas os concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração. 2. Omitindo o recorrente a indicação referida no número anterior o recurso deve ser rejeitado nessa parte, não havendo lugar ao prévio convite ao aperfeiçoamento”, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
De volta ao caso dos autos, e tendo presente quanto vem de se referir, verifica-se que nas alegações o apelante disse discordar da decisão proferida quanto à matéria constante dos factos provados 1. e 2., argumentando que, ao invés do que ficou consignado na motivação, os convocados depoimento prestado pelo autor e testemunhos prestados por (…), (…) e (…) não suportam aquelas respostas positivas, deles tendo resultado provado apenas e tão só que o A e a Ré se conhecem há 12-13 anos, conforme se vê das passagens que identificou e transcreveu.
Feito o confronto entre o assim alegado e o teor das conclusões, verifica-se que na conclusão iv. o recorrente se reporta apenas ao ponto 1. dos factos provados que, conforme resulta do alegado, pretende seja tido como não provado, nada dizendo quanto ao ponto 2., que assim resulta excluído, ainda que tacitamente, do objecto do recurso (art.º 635.º, n.º 4, do CPC).
Por outro lado, acusou o recorrente o tribunal, no corpo das alegações, de ter desconsiderado indevidamente os testemunhos prestados por (…) e (…), meios de prova que, aliados às declarações do próprio e factos vertidos nos pontos 4, 7 e 8, conduziriam à modificação do decidido a propósito do ponto 15 dos factos não provados, merecedor de resposta positiva. Todavia, quanto a este ponto da matéria de facto, cuja impugnação resulta da conclusão ix., o recorrente indicou apenas as passagens das declarações do autor e do testemunho do identificado (…) que, em seu entender, impõem a reversão do decidido, não cumprindo quanto determina a al. a) do n.º 2 do art.º 640.º do CPC antes transcrita no que respeita ao prestado por (…), que não será por isso considerado.
Quanto às afirmações imputadas ao autor nas conclusões xvi., xvii., xviii. e xxi., não diz o recorrente em parte alguma que factos -principais- com elas pretende fazer prova, tal como não indicara nas alegações, surgindo ainda os factos consignados nas conclusões xix. e xx. absolutamente descontextualizados, não precisando o recorrente que pontos concretos de facto discriminados na sentença (provados ou não provados) pretendia impugnar, incumprindo o ónus da especificação a que se fez referência.
Atento o exposto, admite-se a impugnação dirigida à decisão proferida sobre a matéria de facto e dela se conhecerá apenas em relação aos pontos 1. do elenco dos factos assentes e 15. dos factos não provados, rejeitando-se quanto ao mais.
Quanto à omissão de indicação das normas jurídicas que o recorrente considera terem sido violadas e que a apelada também apontou, reconhecendo-se que ocorre, tal não prejudica a apreciação do recurso nesta parte, resultando claro que a discordância se centra na interpretação e aplicação que na sentença foi feita do regime jurídico do enriquecimento sem causa.
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Assim delimitado o objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
i. Da impugnação da matéria de facto;
ii. Da obrigação de restituir com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.
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I. impugnação da matéria de facto
Como se viu, o recorrente impugna a decisão proferida sobre os factos, tendo por mal julgados os vertidos no ponto 1 do elenco dos assentes e 15 dos não provados, com o seguinte teor:
1. O autor e a ré viveram um com o outro pelo menos 12/13 anos, e pelo menos 3/4 anos como se de marido e mulher se tratasse, na mesma casa, designadamente na que se situa na Rua do (…), n.º 10, no Entroncamento.
15. Nunca o autor pretendeu doar ou transmitir, definitivamente, para o património da ré tais valores.
Justificou-se na sentença a decisão quanto aos transcritos pontos da matéria de facto do seguinte modo:
“Assim, no que em primeiro lugar concerne aos factos plasmados nos números 1, 2 e 12 dos factos provados, a decisão de facto que acaba de ser enunciada estriba-se na confissão realizada pelo autor em sede de audiência de julgamento e, no que se reporta à vivência conjunta de autor e ré, também no depoimento da testemunha (…), que afirmou conhecer a ré desde pequena e conhecer o autor há cerca de 15/20 anos por viverem um com o outro, incluindo na residência sita no Entroncamento onde o autor sempre se encontrava cada vez que ali se dirigiu, e no depoimento da testemunha (…), que afirmou conhecer e ser amiga da ré há muitos anos e conhecer o autor há cerca de 20 anos, aduzindo que os dois viveram juntos ainda antes de residirem na casa da Rua do (…), n.º 10, no Entroncamento (no que apelidou de “ferro velho”), sendo visita frequente das residências que os dois tiveram em comum, tomando refeições juntos em vários restaurantes, e ainda no depoimento da testemunha (…), proprietário de um estabelecimento de restauração, que afirmou conhecer o autor há cerca de 35/36 anos porquanto este era presença assídua no seu restaurante, no Entroncamento, e aduziu conhecer a ré há sensivelmente 15/16 anos por ser companheira do autor e, igualmente, frequentar o restaurante que explora.
(…) as testemunhas acima aludidas não conheciam com profundidade a relação mantida entre autor e ré, nem tão pouco o período temporal de vivência em comum, razão pela qual o tribunal se quedou pelo tempo de vivência conjunta com entre autor e ré e em comunhão de mesa e leito, como se de marido e mulher se tratasse, confessados pelo autor em sede de audiência de julgamento”.
(…)
Na verdade, não se provou a versão trazida aos autos pelo autor, de que pagou a parte da ré na aquisição do imóvel sito na Rua dos (…), n.º 10, no Entroncamento, no valor de € 112.500,00, e que entregou à ré a quantia de € 80.000,00 a título de empréstimo que esta deveria restituir quando aquele lhe solicitasse tais quantias.
Mas também não se provou a versão da ré de que tais quantias constituíram uma doação do autor a si própria.
Na verdade, nenhuma prova segura, convicta e credível foi realizada num ou noutro sentido e, portanto o tribunal ficou com dúvidas sérias e inultrapassáveis e incapaz de formar a devida convicção judiciária.
Do que vem exposto resulta outrossim a falta de prova da factualidade constante dos pontos 2, 3, 4, 7, 8, 9, 10, 13, 14 e 15 dos factos não provados”.
Consta da acta de fls. 177 ter o autor confessado que “vive com a Ré há cerca de 12/13 anos e há cerca de 3-4 anos como se de marido e mulher se tratassem, confessa que tem problemas de saúde, mais concretamente de coração, e que a Ré até há cerca de 3-4 anos a esta parte tratou de si”.
Vistos os termos da confissão que se deixaram transcritos, logo se constata uma contradição nos seus termos, dela resultando que justamente no período em que autor e ré passaram a viver como marido e mulher, o que ocorreria há cerca de 3-4 anos, a Ré, que até então teria tratado do R., deixara de o fazer.
Nos termos do art.º 357.º, n.º 1, do CC a declaração confessória há-de ser inequívoca, salvo se a lei o dispensar, sendo ainda indivisível, o que resulta do disposto no art.º 360.º do mesmo diploma legal.
Ora, dos termos da assentada não resulta esclarecido qual o período em que A. e R. viveram como marido e mulher – esta alegou uma vivência marital com a duração de 25 anos, o que o primeiro impugnou –, nem tão pouco desde quando deixou a Ré de tratar do autor, não sendo, portanto, de atribuir às declarações por este prestadas, tal como ficaram consignadas, valor de prova plena.
Ouvidos o depoimento do autor, os testemunhos convocados pelo Tribunal em abono da decisão e também as testemunhas por aquele identificadas em sede de recurso, de seguro resultou apenas quanto foi por este declarado, ou seja, que conhece a Ré desde há 13-14, no máximo 15 anos a esta parte, tendo vivido juntos durante período de tempo não concretamente apurado, sendo que cerca de 3-4 anos como se de marido e mulher se tratasse, tendo todavia deixado de cuidar de si pouco tempo depois de ter sido adquirida a casa do Entroncamento onde ambos residem – a ré no rés-do-chão, o autor no 1.º andar –, sendo que este último facto foi corroborado em termos consistentes pelos testemunhos prestados pelo filho do A., (…), e pela sua companheira (…). Quanto às testemunhas indicadas pela ré que foram inquiridas a esta factualidade, a verdade é que de concreto pouco ou nada sabiam dos reais contornos da relação que esta mantinha com o autor.
Altera-se assim em conformidade o teor do ponto 1.
No que se refere ao ponto 15, declarou o autor – em depoimento prestado em condições muito difíceis, uma vez que sofre claramente de surdez – que aquando da compra da casa teria querido doar apenas metade à aqui ré, desconhecendo em absoluto as razões pelas quais ficou exarada na escritura diferente proporção. Acrescentou que não sabe ler nem escrever e à data já tinha dificuldades auditivas – isto mesmo esclareceu a pergunta feita pela Mm.ª juíza, após lhe ter sido observado que o conteúdo da escritura teria sido lido em voz alta, tal como dela consta –, acrescentando “não sei como eles fizeram isso”, apesar de nunca ter concretizado a que “eles” se referia. Esclareceu ainda que tinha querido a doação de apenas metade da casa – porque teria que ficar com alguma coisa para si – justificando a doação com o facto de a Ré, a quem já tinha doado um apartamento em Tomar, cuidar bem de si e na condição de o continuar a fazer até à sua morte, o que não se veio a verificar, uma vez que esta o “abandonou logo de seguida”.
Quanto à transferência dos € 80.000,00, negou ter pretendido doar tal quantia à Ré, ou sequer transferi-la para conta por esta titulada, tendo declarado ser seu propósito transferir apenas e só o montante de € 10.000,00, e isto porque se encontrava doente, visando garantir que a ré tivesse na sua disponibilidade dinheiro para o levar a consultas e acorrer a outros gastos necessários. Nesta parte o seu depoimento obteve parcial corroboração por parte do filho, a testemunha (…), que declarou ter seu pai ficado surpreendido quando recebeu uma carta do banco, tendo-o acompanhado à agência onde falaram com o gerente para esclarecer o assunto, tendo-se este, segundo declarou, recusado a chamar a funcionária que realizara a operação. Todavia, já nada pôde esclarecer a testemunha quanto às razões pelas quais a dita funcionária não foi chamada, tanto mais que se tratava de facto com gravidade, não detendo por outro lado conhecimento directo dos factos ocorridos na instituição bancária aquando da realização da transferência, sendo assim insuficiente o seu contributo para que se possa concluir pela existência de qualquer irregularidade na realização da dita operação bancária.
Por outro lado, sem pôr em causa o relato desta última testemunha, a verdade é que o depoimento prestado pelo autor não é consistente, tendo revelado pelo menos alguma falta de memória quanto a factos que se sabe terem ocorrido – a alternativa é que tenha faltado à verdade quando respondeu sobre eles –, tendo negado por exemplo a outorga do testamento e de procuração a favor da ré, que na realidade outorgou, e tanto assim que o revelou ao filho, que na sequência o auxiliou a diligenciar pela revogação dos referidos instrumentos.
Por último, não pode deixar de se salientar que a versão relatada pelo autor em sede de depoimento de parte em nada coincide com a vertida na petição inicial, não tendo feito referência na audiência a qualquer empréstimo.
Do cotejo dos referidos elementos probatórios, e tendo presente que o depoimento do autor contrariou de forma frontal a petição inicial, somos a secundar o juízo feito na sentença quanto à inconsistência da prova, que não permite que se conclua com a necessária segurança – ainda que nos movamos no domínio das probabilidades e graus de verosimilhança – para que se afirme o facto vertido em 15, o qual se mantém assim como não provado.
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II. Fundamentação
De facto
Estabilizada, é a seguinte a factualidade a atender:
1. O Autor conheceu a Ré há cerca de 13-14 ou 15 anos, tendo vivido juntos durante período de tempo não concretamente apurado, cerca de 3-4 anos como se de marido e mulher se tratasse, tendo a Ré deixado de prestar cuidados ao A. pouco tempo depois de ter sido adquirida a casa do Entroncamento, o que ocorreu no ano de 2013.
2. O autor tem problemas de saúde e durante período não concretamente apurado a ré cuidou da saúde daquele.
3. Por Título de Compra e Venda outorgado em 26 de Agosto de 2013 na Conservatória do Registo Predial do Entroncamento, (…) e mulher, (…), como parte vendedora, declararam vender ao autor (…) e à ré (…), na proporção, respetivamente, de um dez avos e de nove dez avos, pelo preço de € 125.000,00, o prédio urbano, sito na Rua dos (…), n.º 10, na freguesia de Nossa Senhora de Fátima, concelho do Entroncamento, descrito na Conservatória do registo Predial do Entroncamento sob o n.º (…), e inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo (…), daquela freguesia.
4. O autor pagou a totalidade do valor da compra do prédio identificado em 3, ou seja, a sua parte e a parte da ré, no valor de € 112.500,00.
5. No dia 19 de Setembro de 2014, no Cartório Notarial do Entroncamento, o autor outorgou o testamento público que consta de fls. 133 e 134, no qual declarou deixar à Ré um décimo do prédio urbano sito na Rua dos (…), n.º 10, na freguesia de Nossa Senhora de Fátima, concelho do Entroncamento, inscrito na matriz sob o artigo (…) da indicada freguesia, únicos direitos que possui no mesmo.
6. No dia 15 de Outubro de 2015, no Cartório Notarial de Alcanena, o autor declarou revogar o testamento que outorgara a favor da ré em19 de Setembro de 2014.
7. No dia 17 de Novembro de 2014 o autor liquidou a conta de depósito a prazo com o n.º (…), por si titulada na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, no valor de € 80.000,00, e colocou esta quantia na conta de depósitos à ordem n.º (…), associada àquela.
8. Na mesma data o autor ordenou a transferência da referida quantia de € 80.000,00 da conta de depósitos à ordem n.º (…) para a conta n.º (…), também da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, titulada pela ré.
9. No dia 13 de novembro de 2016, o autor requereu a notificação judicial avulsa da ré para que esta lhe pagasse as quantias de € 112.500,00 e de € 80.000,00, no âmbito do processo 4445/16.6T8ENT, conforme documento de fls. 27 a 39 dos autos, cujo conteúdo se dá por reproduzido.
10. Tal notificação foi feita na pessoa da ré.
11. A ré não entregou ao autor as quantias por este solicitadas na notificação judicial avulsa, ou seja, € 112.500,00 e € 80.000,00.
12. A ré colocou na residência sita na Rua dos (…), n.º 10, no Entroncamento, onde habita, um Alarme da Securitas.
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Factos não provados
1. A ré e o autor vivem em união de facto há mais de 25 anos, como é do conhecimento público, como se de marido e mulher se tratasse, possuindo em vários locais onde têm residido a mesma casa de morada de família, sendo a mesma propriedade exclusiva quer do autor, quer da ré, ou de ambos, reformando-se esta da sua actividade profissional mais cedo, para acompanhar o autor nos seus negócios, tendo em vista aumentar o património comum do casal, possuindo contas bancárias em comum, contas bancárias em nome próprio, possuindo bens comuns e bens próprios.
2. A quantia referida em referido em 3 dos factos provados saiu de uma conta conjunta do autor e da ré.
3. O autor transferiu para uma conta pessoal da ré a quantia de € 80.000,00 como forma de beneficiar a ré no seu património pessoal por, ao longo de mais de 25 anos, o ter ajudado nos seus negócios.
4. O autor doou à ré essa quantia de livre e espontânea vontade.
5. Porque um dos filhos se aproximou do autor, por interesses pessoais e monetários, encontra-se a deteriorar a vida familiar entre o autor e a ré.
6. O Alarme da Securitas colocado pela ré e referido em 12 dos factos provados deveu-se ao facto de se aperceber que tanto o autor como terceiros se encontravam a retirar bens móveis valiosos da casa de ambos, tanto bens móveis próprios da ré como bens comuns do autor e da ré, na sua ausência.
7. A totalidade do preço referido em 3 dos factos provados foi paga pelo autor porque à data da aquisição a ré não tinha o dinheiro suficiente, ou pelo menos disponível, para adquirir a sua parte no imóvel e o autor possuía algumas economias que foi poupando durante a sua vida, facto que era do conhecimento da ré.
8. Naquela altura a ré comprometeu-se a entregar ao autor o valor correspondente à aquisição da sua parte.
9. A quantia referida em 8 dos factos provados foi depositada na conta titulada pela ré a pedido desta.
10. A quantia referida em 8 dos factos provados foi entregue à ré a título de mútuo, devendo ser restituída logo que o autor a solicitasse.
11. Todas as circunstâncias acima referidas deixam a ré triste, humilhada, denegrida na sua honra e consideração, tratada como uma caloteira, como se tivesse enganado e roubado o autor, sentindo-se abalada psicologicamente e com a saúde mais frágil.
12. Desde o início de 2016, quando começou a exigir as quantias de € 112.500,00 e de € 80.000,00 à ré, esta tem feito a vida do autor num “inferno”, opondo-se e dificultando o contato entre o autor e os seus filhos, ou que estes possam livremente visitar o pai.
13. O autor não teve qualquer benefício decorrente dos factos vertidos nos pontos 3, 4, 7 e 8 da matéria assente.
14. Nunca entre o autor e a ré houve, para além do já invocado empréstimo, qualquer acordo ou motivação para a transferência e pagamento dos montantes de € 112.500,00 e de € 80.000,00.
15. Nunca o autor pretendeu doar ou transmitir definitivamente para o património da ré tais valores.
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De Direito
Do enriquecimento sem causa
Como resulta do antecedente relatório o autor invocou em suporte do seu pedido de restituição das quantias de € 112.500,00 e de € 80.000,00 uma dupla causa de pedir, a saber, a celebração de um contrato de mútuo, nulo por falta de forma, e subsidiariamente o enriquecimento sem causa. Tendo a acção sido julgada improcedente à luz de qualquer uma das causas de pedir, o autor, no recurso, impugna a decisão apenas neste segundo segmento, tendo, portanto, transitado em julgado a decretada improcedência com fundamento na celebração de acordos de mútuo, ainda que formalmente inválidos.
Identicamente, não tendo a decisão sido impugnada no segmento em que decretou a improcedência do pedido reconvencional, definitivamente julgada se mostra esta pretensão, encontrando-se ainda coberta pelo caso julgado a improcedência da excepção do abuso de direito que a ré opôs ao exercício pelo autor do direito que aqui quis fazer valer.
Está em causa portanto saber se a Ré deve ser condenada a restituir as quantias recebidas com fundamento no enriquecimento sem causa, insistindo o autor que os factos provados, mesmo sem introdução das alterações pretendidas, suporta a sua pretensão.
Nos termos do art.º 473.º do Código Civil[1] “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
Resulta da transcrita disposição legal que são pressupostos constitutivos do enriquecimento sem causa: a) a existência de um enriquecimento; b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento. Todavia, como adverte o Prof. Menezes Leitão[2], os enunciados requisitos são de tal modo genéricos que seria possível efectuar uma aplicação indiscriminada desta cláusula geral, colocando em causa a aplicação de uma série de outras regras de direito positivo. Para obviar a tal efeito, o art.º 474.º consagra expressamente a subsidiariedade do enriquecimento sem causa, o qual só poderá ser convocado quando ao empobrecido não seja facultado outro recurso. Deste modo, ao empobrecido estará vedada a invocação do enriquecimento sem causa quando existir outro fundamento para a acção de restituição, como ocorre por exemplo nos casos da invalidade ou existência de fundamento resolutivo do contrato.
A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa exige em primeiro lugar, como referido, um enriquecimento, que há-de consistir na obtenção de uma vantagem patrimonial, seja qual for a forma que revista (aumento do activo patrimonial, diminuição do passivo, uso ou consumo de coisa alheia ou exercício de direito alheio, ou ainda poupança de despesas); depois, a ausência de causa justificativa, ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido; finalmente, impõe-se que o enriquecimento haja sido obtido à custa daquele que requer a restituição[3].
Numa rara unanimidade doutrinária e jurisprudencial entende-se, ao que se sabe sem divergência, que a ausência de causa, facto negativo embora, terá de ser alegada e provada, de harmonia com o critério geral estabelecido no art.º 342.º, por aquele que pede a restituição. Não bastará, para esse efeito, que não se prove a existência de uma causa de atribuição; é preciso convencer ainda o Tribunal da falta de causa[4].
Progressivamente abandonado o tratamento dogmático unitário do instituto do enriquecimento sem causa, dado o carácter amplo e genérico da cláusula contida no art.º 473.º[5], das categorias possíveis de integrar importará aqui o denominado enriquecimento por prestação, o qual respeita a situações em que alguém efectua uma prestação a outrem, mas se verifica uma ausência de causa jurídica para que o accipiens possa recepcionar essa mesma prestação. “Nesta categoria, o requisito fundamental do enriquecimento sem causa é a realização de uma prestação, que se deve entender como uma atribuição finalisticamente orientada, sendo, por isso, referida a uma determinada causa jurídica (…)”[6]. Está assim em causa um incremento consciente e finalisticamente orientado do património do terceiro, sendo a frustração (não realização) do fim visado com essa prestação que determina a obrigação de restituir. Dito de outro modo, verifica-se, na modalidade de que nos ocupamos, uma situação de enriquecimento sem causa, com a consequente obrigação de restituir, se ocorre a ausência de causa jurídica para a recepção da prestação que foi realizada, ausência de causa jurídica que deve ser definida em sentido subjectivo como a não obtenção do fim visado com a prestação[7].
A não realização do fim visado com a prestação pode ocorrer, consoante vem tipificado no n.º 2 do art.º 473.º: i. quando alguém realiza uma prestação com intenção de cumprir uma obrigação mas se verifica a inexistência da dívida que o prestante visava solver, o que fundamenta e legitima o pedido de restituição; ii. quando o prestante realiza a prestação em vista de um determinado efeito futuro que se não verifica, não verificação que lhe permite igualmente exigir a restituição do que prestou; iii. e, finalmente, quando a causa jurídica da prestação desaparece depois da sua realização[8].
Verifica-se assim, no que respeita à aqui denominada modalidade do enriquecimento por prestação, que a ausência de causa justificativa foi concretizada pelo legislador no citado n.º 2 do art.º 473.º, sendo a obrigação de restituir desencadeada pela verificação de alguma das situações aqui tipificadas.
De volta ao caso dos autos, visto o acervo factual apurado, logo se vê não se ter apurado, desde logo porque nada nesse sentido foi alegado, que o autor tenha querido solver uma prestação inexistente, quer quando suportou integralmente o preço do imóvel adquirido em regime de compropriedade com a Ré na apurada proporção, quer quando procedeu à transferência para conta por esta titulada da quantia de € 80.000,00 (art.º 476.º).
Identicamente, afigura-se não fundamentar neste caso a obrigação de restituir a não verificação do efeito pretendido com a prestação, aqui se encontrando abrangidas as situações “de realização de prestações antecipadamente à constituição do contrato gerador das correspondentes obrigações; a realização de prestações para provocar determinada actuação do receptor, a que este não pode ou não quer obrigar-se; e a realização de prestações com determinação do fim” (como ocorre com a concessão de bolsas ou subsídios para determinados fins, admitindo-se a sua restituição quando o fim não se verifica)[9]. De fora ficam as situações em que o resultado visado corresponde ao conteúdo do negócio jurídico mediante o qual as partes se vincularam, pois nesta hipótese a frustração do fim da prestação será antes de relevar no regime do não cumprimento dos contratos, sem espaço para a convocação do enriquecimento sem causa.
Novamente de regresso ao caso que nos ocupa verifica-se que o autor, embora nada nesse sentido tenha alegado na petição, sustenta em sede de recurso que, verificando-se embora uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada no negócio de doação indirectamente prosseguido com a celebração do contrato de compra e venda do imóvel -teria querido doar metade e acabou por doar nove décimos do imóvel- ainda assim tratar-se-ia de uma doação onerada com um encargo, a saber, a beneficiária e aqui ré teria de cuidar de si até ao final da sua vida, encargo que não cumpriu (cf. os art.ºs 936.º e seguintes). Assim sendo, diz, não tem razão o julgador que justificou o enriquecimento da ré com os cuidados prestados ao autor, uma vez aquela deixou de o fazer, frustrando desse modo o fim visado com a doação, o que originaria a obrigação de restituir.
A descrita construção, que seria válida apenas quanto ao pedido de restituição dos € 112.500,00 correspondentes a 9/10 do preço do imóvel -no que se refere à transferência dos € 80.000,00 o autor declarou não ter querido de todo tal conduta, tendo actuado em erro, ainda que não tenha esclarecido quem o determinou a errar- não pode aqui ser acolhida por duas razões fundamentais: primeiro porque não encontra suporte nos factos apurados, desde logo, e importa aqui repeti-lo pela sua significância, porque nada nesse sentido foi alegado; depois, porque a provar-se tal versão dos factos, a condenação da ré na restituição do recebido teria como causa eventual revogação da doação.
Faz-se ainda notar que na sentença apelada em lado algum se dá por justificada a transferência das aludidas quantias para o património da ré pelos cuidados que esta prestara ao autor – e estando em causa uma sorte de compensação ou recompensa por cuidados já prestados, estaríamos fora da previsão legal da doação com encargos, cujo cumprimento é necessariamente futuro –, tendo-se o julgador limitado a assinalar que, não tendo o autor logrado provar a sua versão, nem tão pouco a ré, que defendia estarem em causa doações, a acção teria que ser decidida contra a parte onerada com o encargo probatório, no caso o autor, o que resulta da aplicação da regra essencial de direito probatório substantivo contida no n.º 1 do art.º 342.º.
Em suma, também aqui a factualidade apurada não permite que se considere existir uma obrigação de restituir determinada pela não verificação do efeito pretendido com a prestação.
Detenhamo-nos, pois, na categoria remanescente, referente aos casos em que a obrigação de restituir resulta do desaparecimento posterior da causa jurídica da prestação realizada. Por esta via se resolvem as situações em que o direito à prestação se extingue depois da recepção desta[10], fundamentando ainda a solução consagrada no n.º 1 do art.º 795.º[11], que rege para a restituição da prestação em virtude da extinção do contrato por impossibilidade causal da contraprestação[12]. Mas também esta categoria não se adequa ao caso dos autos, uma vez que na versão trazida pelo autor nunca existiu por parte da ré direito às prestações, nem aquele se encontrou vinculado a satisfazê-las.
Em suma, o recorrente sustenta que não tendo resultado provada nem a tese do empréstimo nem a tese contrária da ré no sentido de que as quantias agora reclamadas lhe teriam sido doadas, verificando-se um enriquecimento por banda desta à custa do seu (dele, autor) património, o que se afigura estar isento de controvérsia, então este enriquecimento não tem causa. Mas o naufrágio probatório da(s) causa(s) alegada(s) não basta, como quisemos ter demonstrado, competindo ao autor alegar e provar a factualidade adequada e que, devidamente comprovada, evidencie a falta de causa do benefício. Trata-se de entendimento constante na nossa jurisprudência, como evidenciam os arestos do STJ citados na sentença recorrida, a que se adita o acórdão do mesmo Tribunal de 19/02/2013, proferido no processo 2777/10.6 TBPTM.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt, no qual se afirma lapidarmente “1. A falta de causa da atribuição ou vantagem patrimonial que integra o enriquecimento tem de ser alegada e demonstrada por quem invoca o direito à restituição dela decorrente, em conformidade com as exigências gerais sobre os ónus de alegação e prova. 2. A mera falta de prova da existência de causa da atribuição não é suficiente para fundamentar a restituição do indevidamente pago, sendo necessário provar que efectivamente a causa falta” (é nosso o destaque).
Resulta do exposto que não tendo cumprido o ónus da alegação e prova dos factos constitutivos da obrigação de restituir com fundamento no enriquecimento sem causa, teria a acção que improceder, conforme foi decidido e que, isento de censura, se mantém.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.
Custas a cargo do autor.
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Sumário:
(…)
Évora, 24 de Outubro de 2019
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
José Manuel Lopes Barata
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[1] Diploma legal a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Direito das Obrigações, vol. I, 9ª edição, 2010, Almedina, pág. 428.
[3] Profs. Pires de Lima, A. Varela, CC anotado, vol. I, comentário ao art.º 473.º.
[4] Neste sentido, arestos do STJ de 6/6/2013, processo n.º 1445/05.5 TBBGC.P1.S1; de 14/10/2010, processo n.º 5938/04.3 TCLRS.L1.S1; de 4/10/2007, processo n.º 07-B2772, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Prof. Menezes Leitão, ob. cit., págs. 439/440, renunciando ao tratamento dogmático unitário do instituto, nele distingue quatro situações distintas: o enriquecimento por prestação; o enriquecimento por intervenção; o enriquecimento por despesas realizadas em benefício doutrem; o enriquecimento por desconsideração de um património intermédio.
Já os Profs. Pires de Lima e A. Varela (ob. e loc. citados), admitindo que a causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do acto que lhe serve de fonte, distinguindo entre os casos em que provém de uma prestação daqueles em que resulte de um acto de intromissão do enriquecido em direitos ou bens jurídicos alheios ou ainda de actos de outra natureza, porventura puramente materiais, concluem que a directriz a seguir para saber se o enriquecimento assenta ou não numa causa justificativa, consiste em determinar se o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, caso em que pode asseverar-se que tem causa justificativa, ou, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, caso em que carecerá de causa.
[6] Prof. Menezes Leitão, ob. e loc. citados.
[7] Idem, pág. 441.
[8] Idem, págs. 442/443 e 479.
[9] Aut. e ob. citados, pág. 447, e nota 988.
[10] O Prof. Menezes Leitão, na obra que vimos seguindo de perto, dá como exemplo o caso do segurado receber da companhia seguradora indemnização pelo furto da viatura que vem posteriormente a recuperar – vide nota 982, pág. 445.
[11] Art.º 795.º
“1. Quando no contrato bilateral uma das prestações se tornou impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação a que tem direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa.
2. Se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao credor, não fica este desobrigado da contraprestação; mas, se o devedor tiver algum benefício com a exoneração, será o valor do benefício descontado na contraprestação.
[12] Se a impossibilidade resultar de culpa do devedor será naturalmente de aplicar o regime mais favorável ao credor consagrado no art.º 801.º do CC, concedendo-lhe, para além dos direitos a resolver o contrato e ser indemnizado pelos danos, nos casos em que já efectuou a sua prestação, ainda o direito a exigir a restituição dela por inteiro e não apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa.