Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1377/20.7T8TMR.E1
Relator: ANA BACELAR
Descritores: CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
CARTA POR PONTOS
INCONSTITUCIONALIDADE
NE BIS IN IDEM
CASO JULGADO
Data do Acordão: 04/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - A cassação do título de condução pela subtração de todos os pontos atribuídos ao respetivo condutor não depende de qualquer juízo sobre a perigosidade deste, alicerçado em factos pelo mesmo praticados e na sua personalidade.

2 - A norma ínsita na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada, na interpretação de que a cassação do título de condução aí prevista opera de forma automática, não enferma de inconstitucionalidade por violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.

3 - Os factos em questão nos processos crime, nos quais ocorreram as condenações em penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, são constitutivos dos crimes aí em causa.
Por seu turno, o processo administrativo com vista à cassação da carta de condução visa apreciar o registo de infrações do condutor, com o propósito de contabilizar a perda de pontos decorrente da prática de contraordenações e/ou de crimes rodoviários, com vista a determinar a perda da totalidade desses pontos, caso em que ocorre a cassação do título de condução.
Assim sendo, o objeto destes processos não coincide, pelo que não se mostra violado o caso julgado nem o princípio ne bis in idem.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora


I. RELATÓRIO
(…)] impugnou judicialmente a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária de cassação do título de condução n.º (…) de que é titular.

Enviados os autos aos serviços do Ministério Público de Tomar e remetidos a Juízo [Juízo Local Criminal de Tomar da Comarca de Santarém], foi-lhes atribuído o n.º 1377/20.7T8TMR.

Considerada desnecessária a audiência de julgamento, sem que tenha havido oposição, em 28 de dezembro de 2020 foi decidido:
«(…) o Tribunal decide julgar totalmente improcedente o presente recurso de contraordenação e, em consequência, manter a decisão administrativa nos seus exatos termos

Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«1. O processo enferma da falta de elementos necessários, tais como factos que respeitam à verificação dos pressupostos da punição e à sua intensidade, e ainda a qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável.
2. O que constitui uma violação do Código Penal aplicável ex vi do D.L. 433/82.
3. A escolha da medida da pena, ou até o direito lato sensu, não deve ser pura matemática…;
4. O Tribunal Constitucional aplicando a Lei Fundamental, só pode concluir pela inconstitucionalidade material da lei, uma vez que o artigo 30.º, n.º 4 da CRP proíbe a perca de direitos, seja qual for a sua natureza, como efeito necessários de uma pena;
5. Verifica-se, que, para a vida profissional do ora recorrente, é imprescindível que tenha permanentemente a possibilidade de conduzir.
6. A presente infração resultou apenas de negligência, não existindo em momento algum dolo ou culpa por parte do recorrente.
7. A simples possibilidade de aplicação da presente sanção acessória, é já para o recorrente, uma medida pedagógica, capaz de satisfazer
8. Todas as necessidades de prevenção e reprovação que lhe estão inerentes;
9. Nunca poderá o arguido/recorrente ser condenado duplamente pelo cometimento do mesmo crime;
10. A douta sentença de que ora se recorre, deverá, no mínimo, ter efeito suspensivo, sujeita a regime probatório;
11. Destarte a dita sentença, pelas razões supra invocadas deverá ser revogada e substituída por outra que dê sem efeito a medida de cassação da carta de condução.

V.Exas., contudo, farão JUSTIÇA!»

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«1. O regime da carta “por pontos”, com possibilidade de cassação da mesma em caso de subtração de pontos – por efeito de condenações, concretas e sucessivas, em processos próprios, por crimes rodoviários – não é mais do que uma condição imposta pelo legislador para a atribuição/manutenção do título de condução, que é razoável e visa a proteção de um bem jurídico digno de tutela penal e constitucional: “Segurança Rodoviária”.
2. No sistema da carta “por pontos” nunca a licença de condução pode considerar-se definitivamente adquirida, pois ela está continuamente sujeita a uma condição negativa relativamente ao “bom comportamento rodoviário”,
3. O dito sistema, constituindo embora uma reação automática – ocorre como efeito da(s) infração(ões) cometidas, sem que, por si mesmo, assuma natureza sancionatória –, não isenta a administração de verificar se o titular do título de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar do mesmo.
4. Neste sentido, o regime de cassação do título de condução decorrente do art.º 148.º do Código da Estrada não decorre qualquer automaticidade contrária aos princípios da adequação e proporcionalidade resultantes do art.º 30.º, n.º 4, da Constituição.
5. A cassação do título de condução prevista no artigo 148.º, n.ºs 4, al. c), 10, 11 e 12, do Código da Estrada aplicada ao arguido consubstancia, em relação à aplicação das injunções e condenações sofridas nos processos criminais referidos nos factos 1 e 8 dos factos provados, um novo sancionamento, axiologicamente motivado pela inidoneidade entretanto revelada pelo condutor e, em última ratio, por imperativos de segurança rodoviária.
6. Deste modo, não violou o princípio constitucional ne bis in idem a cassação do título de condução do recorrente (tudo o que acima referimos é entendimento unânime na jurisprudência recentemente publicada – Ac. TRP de 09 de maio de 2018, recurso 644/16.9PTPRT-A.P1, in www.dgsi.pt; no Acórdão do TRP de 30-04-2019, no âmbito de recurso n.º 316/18.0T8CPV.P1, acessível em www.dgsi.pt; pelo Acórdão TRC de 08.05.2019, processo 797/18.1T8VIS.C1, disponível em www.gdsi.pt e AC. do TRC de 23-10-2019, processo 83/19.0T8OHP.C1; Ac. do TRE de 3-12-2019, processo 1525/19T9STB.E1).

Nestes termos, e pelos fundamentos supra referidos, não deverá ser alterada a decisão recorrida, devendo ser julgado totalmente improcedente o recurso ora interposto pelo arguido.
Assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA»

Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu o parecer que se transcreve:
«(…)
3. Como se vê dos autos, foi instaurado processo para verificação dos pressupostos da cassação da carta de condução ao recorrente, em virtude de duas condenações judiciais pela prática de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez que implicaram a perda total de pontos, nos termos do art. 148º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada (CE).
O recorrente exerceu o direito de defesa, invocando entre o mais a inconstitucionalidade daquela norma, quando aplicada no sentido de ser fundamento bastante da cassação do título de condução a ocorrência da perda total de pontos.
Ultimada a instrução, foi proferida decisão que, depois de apreciar a defesa apresentada, determinou a cassação da carta de condução do recorrente e a impossibilidade de concessão de novo título no prazo de dois anos.
Irresignado, o ora recorrente impugnou judicialmente a decisão da ANSR, impugnação que foi julgada improcedente, tendo sido mantida a decisão da autoridade administrativa.

4. Não se desconhece a jurisprudência citada na decisão recorrida e na resposta que na 1ª instância o Ministério Público ofereceu à motivação do recurso.
Porém, porque o unanimismo não pode significar impedimento de pensar (ainda que, eventualmente, laborando em erro, tão legítimo quanto o não erro) e, também, o modo de fundamentadamente o expressar, a cassação da carta de condução é, no entendimento do signatário, uma medida de segurança de natureza administrativa cuja aplicação também tem como pressupostos gerais a prévia comissão de um delito e a perigosidade.
Logo, como ensina FIGUEIREDO DIAS, convoca também o princípio da legalidade a desempenhar uma função garantística fundamentalmente idêntica à que desempenha relativamente às penas.
Por isso, a cassação da licença de condução, enquanto medida de segurança, traduzir-se-á, num primeiro momento, na apreciação da personalidade do arguido, que se deverá concluir ser atreita à prática de factos dessa natureza, concluindo-se pela sua perigosidade, e, num segundo momento, através da análise do caso concreto, deverá concluir-se que ele foi consequência daquela propensão criminosa sendo, nessa medida, um índice dessa personalidade de perigosidade, vista a natureza do facto sua gravidade ou reiteração.
Tornando a FIGUEIREDO DIAS, “Do que se trata, no direito das medidas de segurança, sob a epígrafe de perigosidade, é da comprovação, num momento dado, de uma probabilidade de repetição pelo agente, no futuro, de crimes de certa espécie. (…) não basta nunca a mera possibilidade de repetição pois que esta, em rigor, existe sempre; necessária é sempre uma possibilidade qualificada. (…) O perigo há-de pois ser um tal (…) que convalide a aplicação da medida de segurança em nome de um interesse público preponderante.
(…)
Numa palavra: perigosidade criminal capaz de justificar, face a exigências de estadualidade de direito, a aplicação de medidas de segurança só existe quando se verifique o fundado receio de que o agente possa vir a praticar factos da mesma espécie da do ilícito-típico que é pressuposto daquela aplicação. Exigência que deve valer em termos fundamentalmente idênticos para a aplicação de medidas de segurança de qualquer tipo (…). A qualificação, por esta via, da perigosidade relevante acaba, de resto, por revelar-se mais importante do que o mero requisito da gravidade, uma vez que a este já plenamente se ocorre, em rigor, através dos princípios da necessidade e da proporcionalidade.”
Como pondera o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.12.2016 4 , “sendo uma medida de segurança, a cassação só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente e nunca como uma mera consequência do cometimento de um determinado crime, sendo exigível a verificação em concreto de um de dois requisitos: ou de um particular receio de repetição de factos da mesma natureza ou que o agente deva ser considerado inapto para a condução de veículo com motor.
(…) a aplicação da medida de segurança de cassação da licença de condução de veículo com motor é sempre consequência de um comprovado estado de perigosidade do agente para a condução no futuro, não constituindo nunca consequência automática da prática de crime rodoviário, por mais grave e censurável que ele seja.”
E, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.4.2015 5 , “É pressuposto de aplicação de toda e qualquer medida de segurança a perigosidade criminal do agente cuja aplicação está, em todo o caso, sujeita ao princípio da proporcionalidade, pelo que só pode ser aplicada quando se revelar adequada, necessária e proporcionada.
A medida de segurança de cassação da licença de condução de veículo com motor (…) consiste, basicamente, na invalidação, por cancelamento, da licença de condução de veículos motorizados de que o agente é titular e na proibição de obtenção de nova licença de qualquer categoria durante o período fixado (…).
A aplicação desta medida de segurança não é nunca consequência direta da prática, pelo agente, de um determinado crime, antes exige a verificação em concreto de um estado de perigosidade do agente, revelado pela sua personalidade, com referência aos concretos factos praticados, originando o fundado receio de repetição de factos da mesma natureza ou de ser inapto para a condução de veículo com motor.
(…) a aplicação da medida de segurança de cassação da licença de condução de veículo com motor é sempre consequência de um comprovado estado de perigosidade do agente para a condução (…).”
Ora, atentando quer na sentença objeto do recurso quer na decisão da autoridade administrativa que determinou a cassação da carta de condução do recorrente e que aquela confirmou, constata-se que ambas as decisões entenderam que a mera subtração/perda total de pontos, por via da condenação pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, implica, automaticamente, a cassação da carta de condução.
A verdade é que do elenco dos factos julgados provados não consta nenhum facto que, analisado isoladamente ou na conjugação com outros também julgados provados, demonstre a existência de um estado de perigosidade ou inaptidão do recorrente para a prática da condução de veículos com motor; analisadas uma e outra decisões fica por saber se a cassação se ficou a dever ao eventual estado de perigosidade ou à hipotética inaptidão, já que só um destes pressupostos (ou ambos, cumulativamente) a tal pode fundamentadamente conduzir.
E também desse elenco não consta qualquer facto que sustente a indispensável conexão entre as condenações pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez e correlativa subtração/perda de pontos e a fundada previsão de repetição do facto enquanto possibilidade qualificada (perigosidade).
Ou seja, não vem provada qualquer factualidade que sustente ou o juízo de perigosidade ou de inaptidão conducentes à decisão de cassação, enquanto medida de segurança cuja aplicação serve, num juízo de adequação e proporcionalidade, às finalidades que lhe estão subjacentes.
Como se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16.5.2006 6 , “A prática de (…) contra-ordenações, sejam elas graves ou muito graves, é um facto meramente indiciador da idoneidade para a condução por parte de quem as praticou e o tribunal deve aferir da dita idoneidade atendendo igualmente à gravidade das infrações e à personalidade do arguido, nunca a prática dessas contraordenações podendo funcionar automaticamente em desfavor do arguido.”

5. Em razão do que se deixa exposto, e por fundamento não coincidente com o que enforma a respetiva motivação, creio dever o recurso ser julgado procedente

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.




II. FUNDAMENTAÇÃO
O regime dos recursos de decisões proferidas em 1.ª Instância, em processo de contraordenação, está definido nos artigos 73.º a 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – Regime Geral das Contraordenações [doravante designado RGCO][[2]].
Nos processos de contraordenação, o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, podendo alterar a decisão do Tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido em que foi proferida, ou anulá-la e devolver o processo ao mesmo Tribunal.

De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[3]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[[4]]

Posto isto, e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância é chamada a decidir
- da insuficiência da matéria de facto para a decisão;
- da violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa;
- da violação do princípio ne bis in idem;
- da adequação da cassação da carta de condução, atenta atividade profissional desenvolvida pelo Arguido.
û
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:
«1. No âmbito do processo n.º 136/16.6GAFZZ, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local Criminal de Tomar – Juiz 1, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, al. a) do Código Penal, praticado em 19/09/2016.
2. A respetiva sentença foi proferida e notificada ao arguido em 04/10/2016, tendo o trânsito em julgado ocorrido em 07/11/2016.
3. No âmbito de tal processo foi aplicada a pena acessória de proibição de conduzir por 8 (oito) meses.
4. Em consequência, ocorreu a perda de seis pontos, nos termos do artigo 148.º, n.º 2, do Código da estrada.
5. No âmbito do processo n.º 181/18.7GAFZZ, do tribunal Judicial da Comarca de santarém – Juízo Criminal de Tomar – Juiz 1, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, al. a) do Código Penal, praticado em 11/12/2018
6. A sentença foi proferida e notificada ao arguido em 14/05/2019 e transitou em julgado em 19/06/2019.
7. No âmbito de tal processo, foi o arguido condenado, para além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir por 9 (nove) meses.
8. Em consequência, ocorreu a perda de seis pontos, nos termos do artigo 148.º, n.º 2, do Código da Estrada

Relativamente a factos não provados, consta da sentença que [transcrição]:
«Nada mais se provou, com interesse para a decisão da causa

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:
«O Tribunal fundou a sua convicção a partir da análise crítica dos elementos constantes dos autos, designadamente o certificado do registo criminal e o registo individual de condutor
û
Conhecendo.
(i) Da insuficiência da matéria de facto para a decisão
Invoca o Recorrente que o processo enferma da falta de elementos necessários à decisão nele proferida.

Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, reportando-se aos fundamentos do recurso:
«1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 – O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.»

Tais vícios, de enumeração taxativa, terão de ser evidentes e passíveis de deteção através do mero exame do texto da decisão recorrida [sem possibilidade de recurso a outros elementos constantes do processo], por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher.
Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorreta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”.[[5]]»

A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão ocorre quando se deteta «incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.»[[6]]

O erro notório na apreciação da prova constitui «falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.»[[7]]

Interessa-nos a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Está em causa a cassação de título de condução.

Dispõe-se no artigo 148º do Código da Estrada, a propósito do “Sistema de pontos e cassação do título de condução”:
«1 - A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.
2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.
3 - Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contraordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtração a efetuar não pode ultrapassar os seis pontos, exceto quando esteja em causa condenação por contraordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtração de pontos se verifica em qualquer circunstância.
4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
5 - No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A.
6 - Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contraordenações graves ou muito graves no registo de infrações é de dois anos para as contraordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais.
7 - A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.
8 - A falta não justificada à ação de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor.
9 - Os encargos decorrentes da frequência de ações de formação e da submissão às provas teóricas do exame de condução são suportados pelo infrator.
10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.
12 - A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações.»

Ao sistema da “carta por pontos” importa ainda o disposto no artigo 121.º-A do Código da Estrada.
«1 - A cada condutor são atribuídos doze pontos.
2 - Aos pontos atribuídos nos termos do número anterior podem ser acrescidos três pontos, até ao limite máximo de quinze pontos, nas situações previstas no n.º 5 do artigo 148.º
3 - Aos pontos atribuídos nos termos dos números anteriores pode ser acrescido um ponto, até ao limite máximo de dezasseis pontos, nas situações previstas no n.º 7 do artigo 148.º»

Das disposições legais acabadas de transcrever resulta uma clara opção legislativa – verificada que esteja a subtração da totalidade dos pontos atribuídos a um condutor tem lugar a cassação do seu título de condução.
Ou seja, a cassação do título de condução pela subtração de todos os pontos atribuídos ao respetivo condutor não depende de qualquer juízo sobre a perigosidade deste, alicerçado em factos pelo mesmo praticados e na sua personalidade.[[8]]

«A cassação do título de condução pela subtração da totalidade dos pontos atribuídos a condutor habilitado com título de condução (…) não é uma medida de segurança penal, cuja aplicação dependa da verificação, em concreto, de um estado de perigosidade do agente, revelado pela sua personalidade, para a condução, conforme previsto no artigo 101.º do Código Penal, mas uma medida administrativa que se “prefigura como uma medida de avaliação negativa da conduta estradal dos condutores, conforme a gravidade da infração cometida” e que tem na sua base a finalidade visada pelo legislador de sinalizar em termos de perigosidade determinadas condutas contraordenacionais ou criminais, rodoviárias, que põem em causa bens jurídicos fundamentais, constitucionalmente protegidos, como a segurança, a integridade física e a vida das pessoas, sobretudo em face da dimensão do risco que para esses valores uma tal tipo de condutas comportam, pondo em causa a Segurança Rodoviária e a vida de todos os que circulam nas estradas[[9]]

Acresce o risco de esvaziar de conteúdo a regra da alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada, por ser configurável – de acordo com a tese do Recorrente e do Ministério Público nesta Instância – que condutor sem pontos continuasse a dispor de título válido de condução.

Isto posto e sem necessidade de mais explicações, entendemos que a factualidade considerada como assente na decisão recorrida é bastante para sustentar a decisão de direito proferida.
Não se verifica o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Nem qualquer dos outros vícios consagrados no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
E o recurso, neste segmento, não procede.

(ii) Da violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa
Diz o Recorrente que a norma ínsita na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada enferma de inconstitucionalidade na interpretação de que a cassação do título de condução aí prevista opera de forma automática, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos».

Esta questão foi recentemente tratada nesta Relação, no acórdão proferido em 20 de outubro de 2020, no processo n.º 218/20.T8TMR.E1, em termos que sufragamos sem qualquer reserva e que, por isso mesmo, passamos a transcrever.
«Acerca do sentido e alcance da norma ínsita no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 461/2000 [[10]], chamado a pronunciar-se sobre a conformidade à referida norma da Constituição do artigo 130.º, n.º 1, al. a), do Código da Estrada, na redação do D.L. n.º 2/08, de 3 de janeiro – que previa a caducidade da carta ou licença de condução provisória, quando fosse aplicada ao seu titular pena de proibição de conduzir ou sanção de inibição de conduzir efetiva –, exarou o seguinte:
“A proibição de penas automáticas pretende impedir que haja um efeito automático da condenação penal nos direitos civis do arguido. A sua justificação é simultaneamente a de obviar a um efeito estigmatizante das sanções penais e a de impedir a violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade das penas, que impõem uma ponderação, em concreto, da adequação da gravidade do ilícito à da culpa, afastando-se a possibilidade de penas fixas ou ex lege. Todavia, a proibição de penas automáticas não pode abranger os casos em que a um certo tipo de crime corresponda uma sanção do tipo proibição ou inibição de conduzir, principal ou acessoriamente, desde que não tenha carácter perpétuo e possa ser fundamentada em termos de ilicitude e de culpa pela mediação do juiz (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.ºs 362/92, Diário da República, 2.ª série, de 8 de Abril de 1993, 183/94, inédito, 264/99, Diário da República, 2.ª série, de 13 de Julho de 1999, e 327/99, Diário da República, 2.ª série, de 19 de Julho de 1999).”
Acolhendo o entendimento do Tribunal Constitucional no referenciado Acórdão e que foi reiteradamente afirmado noutros Acórdãos [[11]], considera-se que a atribuição de título – licença ou carta – de condução e o inerente direito de conduzir do respetivo titular, não é um direito absoluto, definitivo e incondicional, sendo, por isso, legitimo que o legislador estabeleça requisitos positivos e negativos para a atribuição do título da condução e uma vez atribuído, para a sua manutenção, conforme infra se explanará.
Este entendimento foi uma vez mais afirmado pelo Tribunal Constitucional, no recente Acórdão n.º 260/2020[[12]], que decidiu não julgar inconstitucional a norma que impõe um período de dois anos sobre a efetivação da cassação da carta durante o qual não pode ser obtido novo título de condução, resultante do n.º 11 do artigo 148.º do Código da Estrada.
O regime da “carta por pontos” foi introduzido pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, que alterou os artigos 121.º e 148.º do Código da Estada e o objetivo prosseguido pelo legislador com a implementação desse regime decorre da Exposição de Motivos que acompanhou a proposta de Lei n.º 336/XII [[13]], onde se consigna o seguinte:
“A presente proposta de lei destina-se a alterar o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, implementando o regime da carta por pontos.
O atual regime contempla já um sistema aproximado da carta por pontos, embora bastante mitigado. Trata-se, assim, de promover uma atualização do regime vigente, acompanhando a maioria dos países europeus, onde o regime da carta por pontos se encontra plenamente consagrado e estabilizado.
A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão.
A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública.”
De acordo com o enunciado regime da carta por pontos e nos termos do disposto nos artigos 121º- A e 148º do Código da Estrada:
- É atribuído a cada a cada condutor, 12 pontos (n.º 1 do artigo 121º-A), podendo estes ser acrescidos de: a) 3 pontos até ao limite máximo de 15 (se, em cada período três anos, inexistir no registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações – cf. artigos 121º A, nº 2 e 148º, nº 5); 1 ponto até ao limite de 16 (se, em cada período de revalidação da carta de condução, não constarem registo de crimes de natureza rodoviária e o condutor, voluntariamente, frequentar ações de formação – cf. artigos 121º, nº 3 e 148º, nº 7);
- A subtração de pontos ao condutor ocorre, em consequência da condenação, transitada em julgado, pela prática de contraordenações graves ou muito graves referenciadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 148º do CE ou de crimes enunciados no n.º 2 do mesmo artigo, em pena acessória de proibição de conduzir ou em caso de suspensão provisória do processo em que seja cumprida injunção de proibição de conduzir, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 281º do CPP.
- Se na decorrência da subtração de pontos, o condutor tiver cinco ou menos pontos, fica sujeito à obrigação de frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária (cf. al. a) do n.º 4 do artigo 148º) e se tiver três ou menos pontos fica sujeito à obrigação de realizar a prova teórica do exame de condução (cf. al. a) do n.º 4 do artigo 148º) e se forem subtraídos todos os pontos ao condutor, a subtração tem como efeito a cassação do título de condução (cf. al. c) do n.º 4 do artigo 148º).
Ao instituir o regime da “carta por pontos”, prevendo a cassação do título de condução em caso de subtração da totalidade dos pontos (al. c) do n.º 4 do artigo 148º do CE), o legislador estabeleceu mais um requisito ou condição negativa para a manutenção do título de condução atribuído, qual seja, a de o condutor não praticar infrações rodoviárias por que venha a ser condenado (e especificamente as contraordenações graves ou muito graves, referenciadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 148º do CE ou os crimes enunciados no n.º 2 do mesmo artigo, em pena acessória de proibição de conduzir ou em caso de suspensão provisória do processo em que seja aplicada e cumprida a injunção de proibição de conduzir), e que determinem a perda da totalidade dos pontos atribuídos.

Como se faz notar no Ac. da RC de 15/01/2020 [[14]], “A licença de condução não assume cariz definitivo e imutável, situado no âmbito dos direitos absolutos. O seu carácter transitório revela-se, não só na periodicidade da respetiva validade e na sujeição a diversas restrições, renovações e atualizações tendentes a verificar se as condições físicas e psíquicas do agente se mostram adequadas ao exercício da condução de veículos (cf. artigos 121º, 122º a 130º, do Código da Estrada), mas também, no sistema de aquisição e perda de pontos, acima referenciado (artigo 121º A e 148º, do Código da Estrada).
A vigência do título que habilita conduzir veículos automóveis depende, assim, do comportamento estradal do condutor, conforme este observe ou viole as regras estradais. No primeiro caso são atribuídos pontos à sua carta de condução, no segundo são-lhe retirados pontos, de acordo com a gravidade da infração cometida.”
Nesta perspetiva e como se refere no Acórdão da RG de 27/01/2020 [[15]], com o sistema de “pontos” o título de condução nunca se pode considerar definitivamente adquirido, pois está permanentemente sujeito a uma condição negativa atinente ao bom comportamento rodoviário do condutor.
O regime da carta por pontos, como escreve no citado Acórdão do TC n.º 260/2020, “tem, assim, um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular. O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado.”
E perfilhamos do entendimento de que a enunciada condição negativa imposta pelo legislador, para a manutenção do título de condução pelo condutor a quem foi atribuído, é plenamente justificada pelos potenciais riscos da atividade da condução para bens jurídicos fundamentais, tais como a integridade física e a vida dos utentes das estradas e a segurança e rodoviária, que constitui uma prioridade da política criminal [[16]], perante os números da sinistralidade rodoviária no nosso país e as trágicas consequências que lhe estão associadas.
Assim, ao determinar a cassação do título de condução, decorrente da perda da totalidade dos pontos atribuídos, no caso de condenação, por decisão definitiva ou sentença transitada em julgado, pela prática das contraordenações graves e/ou muito graves previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 148º do Código da Estrada ou dos crimes referenciados no n.º 2 do mesmo artigo, em proibição de conduzir, o que se verifica é a valoração de sanções e/ou de penas em que o condutor foi condenado pelo cometimento de infrações rodoviárias e que acarretaram a perda de pontos, nas condições de manutenção do título de condução atribuído [[17]].
A prática de uma única infração rodoviária não determina automaticamente a cassação do título de condução, pela perda dos pontos atribuídos ao condutor. O que determina aquela cassação são sucessivas condenações do condutor, pela prática de infrações, que, no seu conjunto, implicaram a perda da totalidade dos pontos atribuídos e não tendo o condutor, nem pelo decurso do tempo nem pela sua conduta posterior conseguido adquirir outros pontos.
Por outro lado, como refere Damião Cunha [[18]] “não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um “efeito” que atinja estes direitos [os direitos civis, profissionais ou políticos], que fica violado um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstrato, como em concreto”.
Assim e sufragando-se o entendimento defendido no referenciado Acórdão da RG de 27/01/2020, “a restrição de direitos decorrente da cassação do título de condução na sequência da perda da totalidade dos pontos atribuídos ao condutor, apresenta-se como necessária e proporcional à salvaguarda de outros direitos constitucionalmente garantidos, nomeadamente o direito à vida e/ou à integridade física dos demais condutores e utentes da estada (cf. arts. 24º, n.º 1, e 25º, n.º 1, da Constituição). Noutro prisma, encontra justificação no comportamento do condutor, revelador de uma perigosidade acrescida no exercício da condução.”»

Pelo que o recurso, neste segmento, também não procede.

(iii) Da violação do princípio ne bis in idem
Diz o Recorrente que nunca poderá «ser condenado duplamente pelo cometimento do mesmo crime.»

Também aqui não lhe assiste razão.
O princípio ne bis in idem encontra consagração no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, onde se dispõe que «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime
É pacífico, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que do princípio em questão decorre quer a proibição de duplo julgamento quer a proibição de dupla punição pelo mesmo crime.
Como ensina Eduardo Correia, “o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e, a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele ao cidadão a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias.” [[19]]

O que seja o mesmo crime impõe se defina o objeto do processo.
E seguindo o entendimento maioritariamente defendido na jurisprudência, «será, quer a valoração social, quer a imagem social do acontecimento ou comportamento trazido a juízo e consequentemente, a forma como o pedaço de vida é representado ou valorado do ponto de vista do homem médio – da experiência social se se preferir -, quer a salvaguarda da posição da defesa do arguido. Sempre que ao pedaço individualizado de vida, trazido pela acusação, se juntem novos factos e dessa alteração resulte uma imagem ou uma valoração não idênticas àquela criada pelo acontecimento descrito na acusação, ou que ponha em causa a defesa, estaremos perante uma alteração substancial dos factos …»[[20]]

Com o sistema da “carta por ponto” pretendeu o legislador vincar as consequências da inobservância das regras de condução de veículos pelas vias públicas, incluindo para efeitos de cassação do título de condução não só os ilícitos contraordenacionais graves e muito graves como ainda os crimes rodoviários. E entre estes últimos a condução de veículo em estado de embriaguez, cuja prática tem como consequência o desconto de metade dos pontos inicialmente atribuídos a cada condutor, o que ocorre independentemente da sanção acessória imposta pelo seu cometimento.
A medida de cassação da carta de condução imposta ao ora Recorrente pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária não constitui punição pelos factos que foram objeto dos processos n.º 136/16.6GAFZZ, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local Criminal de Tomar – Juiz 1, e n.º 181/18.7GAFZZ, do tribunal Judicial da Comarca de santarém – Juízo Criminal de Tomar – Juiz 1.
Efetivamente, os factos em questão nestes processos são constitutivos de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e levaram à condenação do Recorrente também em penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor.
Por seu turno, o processo administrativo com vista à cassação da carta de condução visa apreciar o registo de infrações do condutor, com o propósito de contabilizar a perda de pontos decorrente da prática de contraordenações e/ou de crimes rodoviários, com vista a determinar a perda da totalidade desses pontos, caso em que ocorre a cassação do título de condução.
O objeto destes processos não coincide.
Pelo que não se mostra violado o caso julgado nem o princípio ne bis in idem.
E o recurso, neste segmento, improcede.

(iv) Da (des)adequação da cassação da carta de condução à atividade profissional desenvolvida pelo Arguido
A necessidade que o Recorrente tem do seu título de condução para executar a atividade profissional a que se dedica, de que não duvidamos, é irrelevante.
Porque não existe suporte legal que permita configurar alternativa à cassação do título de condução na sequência da perda total de pontos do seu titular.

E o recurso, neste segmento, também não procede.


III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, na íntegra, a decisão recorrida.

Custas a cargo da Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.
¯
Évora, 2021 abril 23
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)


______________________________________________
(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)


______________________________________________
(Renato Amorim Damas Barroso)


__________________________________________________
[1] ] Identificado nos autos como divorciado, mecânico reformado, nascido a (…), em (…), filho de (…)
[2] ] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, e alterado pelos Decretos-Lei n.º 356/89, de 17 de outubro, n.º 244/95, de 14 de setembro, n.º 323/2001, de 17 de dezembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro.
[3] ] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[4] ] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].
[5] ] Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª Edição – 2008, Editora Reis dos Livros, página 72 e seguintes.
[6] ] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 75.
[7] ] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 77.
[8] ] neste sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 3 de dezembro de 2019, proferido no processo n.º 1525/19.0T9STB.E1, e de 20 de outubro de 2020, proferido no processo n.º 218/20.T8TMR.E1, do Tribunal da Relação de Coimbra de 8 de maio de 2019, proferido no processo n.º 797/18.1T8VIS.C1, de 23 de outubro de 2019, proferido no processo n.º 83/19.0T8OHP.C1 e de 15 de janeiro de 2020, proferido no processo n.º 576/19.9T9GRD.C11, do Tribunal da Relação do Porto de 9 de maio de 2018, proferido no processo n.º 644/16.9PTPRT-A.P1 e de 30 de abril de 2019, proferido no processo n.º 316/18.0T8CPV.P1 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 27 de janeiro de 2020, proferido no processo n.º 2302/19.3T8VCT.G1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[9] ] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora 20 de outubro de 2020, proferido no processo n.º 218/20.T8TMR.E1 e acessível em www.dgsi.pt.
[10] ] Publicado no Diário da República n.º 276/2000, Série II, de 2000/11/29.
[11] ] Cf., entre outros, Acórdãos n.ºs 574/2000 e 45/2001, que versaram sobre a mesma questão, reportada à mesma redação da norma em causa e o Ac. 472/2007, de 2 de novembro, reportado à redação dada pelo Decreto-Lei 44/2005.
[12]] De 13/05/2020 ,proc n.º31%/2019, acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200260.html
[13] ] Consultável no site Assembleia da República.
[14] ] Proferido no processo n.º 576/19.9T9GRD e acessível em www.dgsi.pt
[15] ] Proferido no processo n.º 2302/19.3T8VCT.G1, acessível em www.dgsi.pt
[16] ] Cf. al. a) do artigo 3.º, alíneas r) e s) do artigo 4.º e al. q) do artigo 5.º e anexo ao artigo 20.º, todos da Lei n.º 55/2020, de 27 de agosto.
[17] ] Seguindo-se de perto a linha de entendimento acolhida no citado Ac. do TC n.º 461/2000.
[18] ] In Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, 2010, Coimbra Editora, páginas 686-687.
[19] ]”A Teoria do concurso em direito criminal, II CASO JULGADO e PODERES DO JUIZ”, Coimbra, 1983, pág. 302.
[20] ] “Alteração dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português”, Almedina, págs. 143-145.