Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1332/11.8T8LLE-E.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: FALTA DE CITAÇÃO
SUPRIMENTO DA NULIDADE
Data do Acordão: 10/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Considera-se suprida a nulidade de falta de citação quando o réu intervier no processo sem logo arguir essa omissão.
2. Constitui intervenção relevante para o aludido fim, pois pressupõe o conhecimento do processo, a junção de procuração forense.
3. Pressupõe, igualmente, conhecimento do processo a notificação de acórdão da Relação que revoga o despacho de indeferimento liminar e determina o prosseguimento do processo.
4. Como igualmente pressupõe esse conhecimento a dedução de oposição à execução, que não é conhecida por motivos imputáveis apenas ao executado, associados à falta de pagamento da taxa de justiça e multa decorrente dessa omissão.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
(…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Execução de Loulé, em execução com processo comum para pagamento de quantia certa instaurada por … (habilitada, após o seu decesso, por …) contra (…) e outro, veio este arguir a sua falta de citação, com a consequente anulação de todo o processado, incluindo as penhoras já realizadas.
Visto que este requerimento foi indeferido, com fundamento em suprimento da nulidade de falta de citação, recorre o executado e conclui:
A) O presente recurso vem interposto do Despacho que julgou sanada a nulidade por falta de citação do Recorrente.

B) Para o efeito, o Tribunal a quo considerou que a junção de procuração forense e o facto de ter sido notificado de outros actos processuais, sem que tenha alegado a arguição da nulidade, sanou a respectiva nulidade, nos termos do artigo 189.º do CPC.

C) Após analisar os factos dos autos de execução, o Tribunal a quo concluiu que: “Compulsados os autos é inequívoco reconhecer que, pese embora a informação apresentada, pelo SE delegado, sob a referência 1738875, informando ter-se procedido à citação dos executados, o certo é não se detecta nos autos qualquer comprovativo da citação, que se impunha, ante o indeferimento liminar do requerimento executivo, nos termos do disposto pelo n.º 3 do artigo 234.º-A do Código de Processo Civil … A decisão de indeferimento liminar foi, entretanto, revogada por douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 14 de Novembro de 2013, o que levou ao prosseguimento da execução, sem que também exista evidência de citação posterior do executado.”

D) Atendendo os factos presentes nos autos e descritos no Despacho que ora se recorre, o ora Recorrente não concorda com o regime aplicável pelo Tribunal a quo quanto à nulidade do ato. Vejamos,

E) O CPC prevê nos seus artigos 186.º e seguintes o regime geral sobre as nulidades dos actos.

F) Por via do artigo 551.º, n.º 1, do CPC, as disposições previstas no processo declarativo são subsidiariamente aplicáveis ao processo de execução, com as necessárias adaptações e desde que se mostrem compatíveis com a natureza da acção executiva.

G) Não obstante a existência de tal previsão e remissão legal, o legislador previu expressamente um regime legal especial para a falta ou nulidade de citação do executado no artigo 851.º do CPC.

H) A doutrina é clara quando refere que a lei especial quis consagrar um regime específico para determinado número de situações de facto.

I) A existência do artigo 851.º do CPC demonstra a vontade inequívoca do legislador em consagrar para os processos executivos um regime diferente e específico quanto à nulidade da citação

J) A lei especial prevalece sobre a lei geral, nos termos do artigo 7.º, n.º 3, do CC.

K) Assim, não existindo qualquer remissão expressa deste regime especial para o regime geral das nulidades das citações, não pode, sem mais, aplicar-se o respectivo regime, sob pena de se desvirtuar as disposições legais e os direitos que o legislador quis salvaguardar.

L) Ora salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não poderia ter considerado sanada a respectiva nulidade, uma vez que o artigo 851.º do CPC confere ao executado o direito de invocar a nulidade de citação a todo o tempo.

M) Aliás, o artigo 851.º, n.º 2, do CPC refere de forma expressa que se deverá, desde logo, conhecer da reclamação, ou seja, apreciar o mérito de tal reclamação.

N) Ora, o Despacho proferido pelo Tribunal a quo reconheceu que não figura nos autos qualquer evidência da citação do Executado, mas acabou por não proferir uma decisão de mérito, mas tão só uma decisão meramente formal ao aplicar o artigo 189.º do CPC, ou seja, o regime geral.

O) Não obstante, caso se aplique o regime geral, o que só à cautela e por mero dever de patrocínio se admite, no caso em apreço, estamos perante uma nulidade da citação e não perante uma nulidade da falta de citação, em virtude de ter ocorrido a preterição da totalidade das formalidades prescritas na lei, sendo a arguição de tal nulidade tempestiva.

P) Estas situações distintas encontram-se expressamente previstas nos artigos 188.º e 191.º, n.º 1, do CPC.

Q) Ora, o artigo 233.º do CPC exige que, após a afixação da nota de citação nos termos artigo 232.º, n.º 4, do CPC, é ainda enviada, pelo agente de execução ou pela secretaria, no prazo de dois dias úteis, carta registada ao citando.

R) Conforme é referido no próprio Despacho recorrido, não figurava nos autos qualquer comprovativo que demonstre o cabal cumprimento desta obrigação legal do agente de execução.

S) Tal exigência visa salvaguardar os interessados de todos intervenientes processuais, bem como garantir que não são preteridas formalidades que obstem à legítima defesa dos executados. Talvez por esta razão, à cautela, os agentes de execução têm por prática juntar aos autos fotografias que comprovam a afixação do edital em determinada morada.

T) Aquando da diligência da penhora de bens móveis na residência do executado, ora Recorrente, ocorrida em 11.12.2018 (ou seja, 5 anos após a alegada citação por via edital do executado), a agente de execução entregou ao ora Recorrente a notificação após penhora, o edital da citação por afixação e o auto de penhora elaborado no local.

U) Devido à confusão instalada nos autos e à falta de documentação junta no portal Citius, o Tribunal a quo ordenou à agente de execução a junção dos documentos entregues ao executado em tal diligência, os quais foram juntos aos autos em 07-03-2019.

V) Salvo o devido respeito, tais documentos demonstram que somente em 11.12.2018 o aqui Recorrente tomou conhecimento, de forma clara e inequívoca, dos documentos que alegadamente foram afixados no seu domicílio para efeitos da sua citação para os presentes autos de execução.

W) Por outras palavras, o aqui Recorrente exerceu, tempestivamente, o seu direito de arguição da nulidade da citação, uma vez que só nessa data o mesmo tomou conhecimento dos termos em que a sua citação terá sido efectuada.

X) O Recorrente não poderia se pronunciar, em momento prévio, sobre a nulidade de um ato, que, aparentemente, ainda não tinha sido praticado ou sobre o qual o ora Recorrente ainda não tinha tomado conhecimento (não figuravam nos autos provas de tal facto).

Y) A arguição de nulidade de um ato futuro seria o equivalente a apresentar oposição à penhora sobre um bem que ainda não foi penhorado. Mais,

Z) Contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, não se poderá considerar a junção de procuração forense ou a prática de qualquer ato por parte do anterior advogado do Executado/Recorrente como uma intervenção no processo para efeitos de se considerar sanada a nulidade de falta de citação ou nulidade de citação.

AA) No caso em apreço, o então advogado do Recorrente não tinha poderes especiais para recepcionar qualquer citação, pelo que a agente de execução sempre teria de citar, nos termos legais, o executado, aqui Recorrente.

BB) Neste sentido veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 25-01-2007, no âmbito do processo n.º 06B4531 e o Acórdão recentemente proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 24-04-2018, no âmbito do processo n.º 608/10.6TBSRT-B.C1.

CC) Assim, uma interpretação contrária colocaria o Recorrente numa situação precária, na qual seria sempre preferível não juntar qualquer procuração forense nos autos, sob pena de este ver serem precludidos os seus direitos, legal e constitucionalmente consagrados, sem ter oportunidade de contestar tais factos.

DD) Acresce que, considerar-se efectuada uma citação, sem o cumprimento das formalidades processuais que permitem ao executado apresentada a sua defesa, consciente de todos os factos relevantes, ou sanada uma eventual nulidade, mediante a junção de procuração forense, viola manifestamente o direito à defesa constitucionalmente prevista nos artigos 2.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa. Nesse sentido veja-se o Acórdão n.º 678/98 do Tribunal Constitucional.

EE) Saliente-se que, o anterior mandatário do Executado – Dr. (…) – teve a sua inscrição cancelada da Ordem dos Advogados, por falta de idoneidade moral para o exercício da profissão, conforme melhor descrito nos respectivos embargos de executado, tendo este substabelecido, após o respectivo cancelamento, os seus poderes forenses (ou inexistência deles) à Dra. (…).

FF) Nestes termos, atendendo às informações ora carreadas no processo, nomeadamente no apenso de embargos de executado, entende o aqui Recorrente que o Tribunal a quo deveria, com base no princípio de equidade, acautelar os direitos do executado, principalmente, e conforme referido no Despacho ora recorrido, porque não existiam quaisquer elementos comprovativos da citação do executado.

GG) Atendendo ao supra exposto, e sempre salvo o devido respeito, não se demonstra sanada a nulidade da citação, pelo que o Despacho em apreço deverá ser revogado e substituído por outro que analise a questão sub judice e profira uma decisão de mérito, declarando a nulidade da citação do Executado, ora Recorrente, anulando-se tudo o que na execução se tenha praticado posteriormente a esse ato, nos termos e para os efeitos do artigo 851.º do CPC.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deverá ser dado provimento ao recurso interposto, devendo, em consequência, ser revogado o Despacho proferido pelo Tribunal a quo, por erro na determinação da norma aplicável e numa errada interpretação e aplicação das normas aplicáveis, substituindo-se por douto Acórdão que declare a nulidade da citação do Executado e determine a anulação de todo o processado após aquela citação.

Na resposta a exequente sustenta o decidido.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.

Os actos documentados nos autos[1] e relevantes para a decisão são os seguintes:
1. Em 20.04.2011 foi instaurada a presente execução com processo comum para pagamento de quantia certa;
2. Em 18.05.2011 foi proferido despacho de indeferimento liminar do requerimento executivo;
3. Interposto recurso pela exequente, o despacho que o admitiu determinou a citação dos executados para os termos da causa e do recurso;
4. Em 09.03.2013 o agente de execução prestou informação nos autos de se encontrarem “celebradas” as diligências para citação dos executados, não juntando, porém, qualquer documento comprovativo de tal acto;
5. Em 25.09.2013 o executado (…) apresentou requerimento, juntando procuração a favor de mandatário forense;
6. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14.11.2013 foi revogado o despacho de indeferimento liminar do requerimento executivo e determinado o prosseguimento da execução;
7. Por registo expedido em 19.11.2013, o mandatário do executado (…) foi notificado do referido Acórdão;
8. Por registo expedido em 17.02.2014, o mandatário do executado (…) foi notificado para se pronunciar acerca de requerimento apresentado pela exequente acerca da comunicabilidade da dívida ao seu cônjuge;
9. Em 04.11.2014, o executado (…) apresentou requerimento de oposição à execução, tramitado no apenso B, invocando a nulidade decorrente da sua falta de citação e impugnando a demais matéria da execução;
10. Uma vez que o executado (…) não pagou a taxa de justiça devida pela prática desse acto, foi notificado para proceder ao pagamento omitido acrescido de multa de igual montante;
11. Continuando em falta, foi convidado a proceder ao pagamento da taxa de justiça e da multa em falta, acrescida de multa de valor igual ao da taxa de justiça inicial;
12. Face ao não pagamento dos valores assim determinados, foi proferido despacho em 20.07.2018, transitado em julgado, determinando o desentranhamento do requerimento de oposição à penhora e julgando extinta a respectiva instância.

Aplicando o Direito.
Do suprimento da nulidade de falta de citação
A citação é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender – art. 219.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – visando assegurar a plena realização do princípio do contraditório, com consagração constitucional nos arts. 2.º e 20.º, n.º 1, da Constituição.
A lei distingue a falta de citação da nulidade da citação.
Haverá falta de citação – art. 188.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – quando: (a) o acto tenha sido completamente omitido; (b) tenha havido erro de identidade do citado; (c) se tenha empregado indevidamente a citação edital; (d) se mostre que foi efectuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste tratando-se de pessoa colectiva ou sociedade; ou (e) quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável, como decorre da letra da lei. Pode ser invocada em qualquer estado do processo, enquanto não dever considerar-se sanada – art.º 198.º, n.º 1.
Quanto à mera nulidade da citação, ocorre quando na sua realização não hajam sido observadas as formalidades prescritas na lei, devendo ser arguida no prazo indicado para a contestação ou, sendo a citação edital ou não tendo sido indicado prazo para a defesa, na primeira intervenção do citado no processo – art. 191.º, n.ºs 1 e 2, da lei adjectiva.
O art. 189.º do Código de Processo Civil determina que a falta de citação considera-se sanada se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a nulidade.
Alberto dos Reis escreveu que o réu, não tendo sido citado, não é obrigado a intervir no processo, podendo arguir essa nulidade em qualquer altura: «o réu, tendo conhecimento de que contra ele corre um processo em que não foi citado, ou intervém nele na altura em que se encontra ou argui a falta da sua citação», ficando a falta «sanada se o réu a não arguir logo, isto é, no preciso momento em que, pela 1ª vez, intervém no processo.»[2]
Para Lebre de Freitas, «não faria sentido que o réu ou o Ministério Público interviesse no processo sem arguir a falta de citação e esta mantivesse o efeito de nulidade. Ao intervir no processo, o réu ou o Ministério Público tem, ou pode logo ter, pleno conhecimento do processado, pelo que, optando pela não arguição da falta, não pode deixar de se presumir iuris et de iure que dela não quer, porque não precisa, prevalecer-se.»[3]
Pode-se entender que a intervenção do réu no processo, relevante para os fins do art. 189.º do Código de Processo Civil, pressupõe o conhecimento, ou a possibilidade de conhecimento, da pendência do processo, bastando para tal a junção de procuração a mandatário judicial, pois tal acto permite presumir que o réu conhece o processo e prescindiu conscientemente de arguir a falta de citação.[4]
No caso dos autos, ocorreu a junção de procuração forense pelo executado em 25.09.2013, após ter sido ordenada a sua citação para os termos da causa e do recurso. Tal intervenção é relevante para efeitos de considerar sanada a eventual nulidade de falta de citação, na linha do entendimento jurídico ora exposto.
Ademais, o conhecimento do processo é reforçado pela notificação do Acórdão desta Relação de Évora de 14.11.2013, no qual estavam expostos os termos da execução e as razões jurídicas que determinavam o prosseguimento da execução.
Acresce, ainda, que o executado teve nos autos outras intervenções que importavam o conhecimento da causa, quer ao receber a notificação expedida em 17.02.2014 para se pronunciar acerca da comunicabilidade da dívida ao seu cônjuge, quer ao deduzir a sua oposição à execução em 04.11.2014 – onde invocou a nulidade de falta de citação, mas provocando o não conhecimento desse requerimento por motivos apenas a ele imputáveis, associados à falta de pagamento da taxa de justiça e multa decorrente dessa omissão.
Com efeito, o referido requerimento de oposição à penhora deve ser entendido como intervenção no processo, relevante para os fins do art. 189.º do Código de Processo Civil, pois pressupõe o efectivo conhecimento do processo, não podendo o executado prevalecer-se da circunstância das questões ali suscitadas não terem sido apreciadas por omissão processual que apenas a ele é imputável.
Se arguiu a nulidade de falta de citação, mas impediu que esse requerimento fosse apreciado, a responsabilidade apenas a ele cabe, sibi imputat…
Consequentemente, a decisão recorrida é de manter.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Évora, 24 de Outubro de 2019
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
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[1] Quer os constantes do apenso remetido a esta Relação, quer os constantes do processo principal e demais apensos, consultados por via electrónica, como permitido pelo artigo 15.º, n.º 2, alínea b), da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, na redacção actualmente em vigor, introduzida pela Portaria n.º 267/2018, de 20 de Setembro.
[2] In Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, pág. 447.
[3] In Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., pág. 369.
[4] Neste sentido, cfr. os Acórdãos da Relação do Porto de 25.11.2013 (Proc. 192/12.6TBBAO-B.P1), da Relação de Évora de 16.04.2015 (Proc. 401/10.6TBETZ.E1), da Relação de Lisboa de 20.04.2015 (Proc. 564/14.1TVLSB.L1-2) e da Relação de Guimarães de 01.02.2018 (Proc. 1501/16.4T8BGC.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Em sentido oposto, vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 24.04.2018 (Proc. 608/10.6TBSRT-B.C1), correctamente citado pelo executado nas suas alegações.