Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
231/18.7PATVR.E1
Relator: ANA BACELAR CRUZ
Descritores: ARBITRAMENTO OFICIOSO DE INDEMNIZAÇÃO
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 10/28/2019
Votação: DECISÃO DA RELATORA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DECLARADA A INVALIDADE PARCIAL DA SENTENÇA
Sumário:
I - A omissão da comunicação da possibilidade de arbitramento de indemnização traduz uma intolerável compressão do direito de defesa – direito ao contraditório – e constitui irregularidade, de conhecimento oficioso, e que exige reparação – através da declaração de invalidade da sentença relativa à condenação em indemnização, que deverá ser repetida depois de concedido o contraditório com a possibilidade de requerer a produção de prova em audiência com relevância para a fixação dessa indemnização.

Sumariado pela relatora
Decisão Texto Integral:
DECISÃO SUMÁRIA

I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 231/18.7PATVR do Juízo de Competência Genérica de Tavira da Comarca de Faro, o Ministério Público, fazendo uso do disposto no n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal, acusou

AA, solteiro, assistente técnico no Hospital de Faro, nascido a 30 de novembro de 1975, na freguesia de Santa Maria do concelho de Tavira, filho de …, residente na Rua…, em Olhão,

pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo,

- de um crime de violência doméstica, previsto e punível, pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), e n.º 2, do Código Penal e,

- de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punível, pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal.

O Arguido apresentou contestação escrita, oferecendo o merecimento dos autos.

Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, por sentença proferida e depositada a 4 de junho de 2019 foi, entre o mais, decidido:

«(…) julgo totalmente procedente, por provada, a acusação do Ministério Público e, em consequência, condeno o arguido AA:

1. pela prática, em autoria material e na sua forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punível, pelo artigo 152º, nº 1, alíneas b) e c) e nº 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão e, em concurso efetivo,

2. pela prática do crime de resistência e coação sobre funcionário previsto e punível, pelo art.º 347º, nº 1 do Código de Processo Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão.

3. Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 77º, nºs 1 e 2 do Código Penal vai o arguido AA condenado na pena única de 3 (três) anos de prisão a qual, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts.º 50º, 53º, nº 1 e 54º todos do Código Penal, suspendo na sua execução, pelo período de 3 (três) anos, acompanhada de regime de prova, o qual deverá incidir sobre a frequência do PAVD (da responsabilidade da DGRSP) para um maior conhecimento de si próprio/do impacto das suas condutas nos outros, mudança e flexibilidade ao nível de estereótipos de género e para o contacto/desenvolvimento de estratégias comportamentais e cognitivas de autocontrolo e subordinada ainda à regra de conduta do arguido não contactar, direta ou indiretamente, por si ou por interposta pessoa, a ofendida, sendo que, os contactos necessários e exclusivamente relativos aos filhos menores do arguido e da ofendida deverão ser intermediados por terceiros.

4. O arguido vai condenado, no pagamento da taxa de justiça, a qual se fixa em duas três UC’s e, ainda, nas demais custas do processo, sendo que, os honorários devidos à sua Ilustre defensora serão pagos nos termos e de acordo com a legislação em vigor.

5. Fixo em € 5 000,00 (cinco mil euros) a indemnização devida à vítima Anne , nos termos e para os efeitos do disposto no Artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro (regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas), montante que o arguido AA fica obrigado a pagar-lhe no prazo máximo de três meses.

Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, com o propósito de ver revogada a atribuição da indemnização ou reduzido o seu montante

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, aceitando a redução do montante fixado, na sentença, a título de indemnização.

Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da «nulidade parcial da Sentença recorrida no segmento relativo à arbitragem de uma indemnização à Vítima, determinando-se a reabertura da audiência» e proferindo-se «nova Sentença na qual seja ponderada a possibilidade de arbitrar, ou não, a indemnização em causa

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, entendeu-se ocorrer a situação prevista na alínea a) do n.º 6 do artigo 417.º do Código de Processo Penal.

O que se passa, agora e de forma sumária, a explicitar.

II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

A apreciação do objeto do recurso, delimitado nos termos acabados de referir, pressupõe a inexistência de circunstâncias que a tanto obstem.

Questão que não pode deixar de se assumir como prévia e de conhecimento oficioso, sendo indiscutível – face ao disposto no n.º 3 do artigo 414.º do Código de Processo Penal – que este Tribunal não está vinculado pela decisão de admissão dos recursos proferida na 1.ª Instância.

No n.º 2 do artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, consagra-se haver sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.

Ou seja, da conjugação das normas referidas resulta que havendo condenação pela prática do crime de violência doméstica, haverá sempre lugar à condenação de quem cometeu tal crime no pagamento de uma reparação indemnizatória à vítima dele, quer esta a tenha pedido ou não. E só assim não será se a vítima do crime de violência doméstica expressamente se opuser ao arbitramento dessa indemnização.

Presumiu o legislador que as vítimas de violência doméstica carecem desta proteção, em função da situação de especial vulnerabilidade que as caracteriza.

Decorre, ainda, do n.º 2 do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal que no arbitramento da indemnização que nos ocupa é assegurado o respeito pelo contraditório.

Ou seja, deverá ser comunicada ao Arguido(a) a possibilidade de, em caso de condenação, ser arbitrada à vítima quantia a título de reparação pelos prejuízos que suportou.

Porque só mediante tal comunicação poderá o arguido(a), em tempo útil, organizar a sua defesa, também nessa perspetiva, por forma a não ser confrontado com a surpresa de uma condenação cível não pedida pela vítima.

A este propósito, no “Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2.ª Edição, páginas 256 e 256, referem os Senhores Conselheiros António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira, António Pires Henriques da Graça, em anotação ao artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, que «o arbitramento da indemnização deve respeitar o contraditório; para tanto o tribunal comunica ao arguido a necessidade de atribuição oficiosa da reparação, dando-lhe a oportunidade de se pronunciar sobre os fundamentos e o montante; (…)».

No mesmo sentido, diz Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 3.ª Edição, página 232, em anotação ao artigo 82.º-A que «em nenhuma circunstância, o tribunal pode proceder ao arbitramento oficioso de indemnização sem antes ouvir o responsável civil especificamente sobre os alegados prejuízos e o nexo de imputação desses prejuízos à sua conduta. O respeito pelo contraditório não fica satisfeito pela circunstância de o responsável civil ter sido notificado da acusação e de os prejuízos se encontrarem descritos na acusação. Ele tem direito a pronunciar-se sobre a responsabilidade que lhe é atribuída e a fazer prova das suas alegações, razão pela qual deve ser notificado para esse efeito, antes ou durante a audiência de julgamento

Do exame dos autos não decorre que o Arguido, ora Recorrente, tenha neles sido advertido da possibilidade de, em caso de condenação, ser arbitrada à vítima quantia a título de reparação pelos prejuízos que suportou.

Por assim ter sido, necessariamente também não lhe foi dada oportunidade de se pronunciar sobre tal questão.

Como refere o Professor Cavaleiro de Ferreira [[2]], «… a apreciação do processo, em razão do seu fim, desdenha do que para esse fim foi acidental ou desnecessário, embora em si mesmo ilegal

A imperfeição do ato processual, por via da não observância da norma ou normas que regulam o seu processamento, pode assumir formas diversas consoante a gravidade do vício que lhe subjaz, desde a mera irregularidade até à inexistência.

Entre estes dois extremos, encontram-se os vícios que dão lugar à nulidade.

Esta, por sua vez, subdivide-se em nulidade insanável e nulidade dependente de arguição.

O nosso Código de Processo Penal adotou um sistema de nulidades taxativas.

Princípio que se encontra consagrado, de forma inequívoca no artigo 118º do referido diploma legal e que é complementado por uma rigorosa delimitação geral e especial das causas de nulidade, sejam elas insanáveis ou dependentes de arguição.

E as irregularidades são tratadas, também na lei processual penal, como uma subespécie das nulidades, fazendo-lhes corresponder um vício de menor gravidade e submetendo-as a um regime de arguição limitado.

Mas o “retrato” nítido das irregularidades apenas se consegue por contraposição com o regime das nulidades propriamente ditas, sendo tendencialmente correto afirmar que constitui irregularidade aquele defeito que não é causa de nulidade. E dizemos “tendencialmente” porque o legislador, associando às irregularidades os defeitos que não são causa de nulidade, acaba por lhes atribuir – contra o que seria de esperar – efeitos invalidantes próprios das nulidades [algumas irregularidades determinam a invalidade do ato a que se referem e dos termos subsequentes que aqueles possam afetar, acabando por produzir os mesmos efeitos das nulidades].

Por outro lado, em matéria de irregularidades consagrou-se uma “válvula de segurança”, no n.º 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal, quando se permite ordenar oficiosamente a reparação daquelas que possam afetar o valor do ato praticado.

Dito de outra forma, quando na génese da irregularidade está uma omissão, pode ordenar-se a reparação oficiosa desse vício quando o ato omitido, podendo ainda ser praticado, afete o valor dos atos subsequentes.

Ora é o que precisamente acontece nos presentes autos.

A omissão da comunicação da possibilidade de arbitramento de indemnização traduz uma intolerável compressão do direito de defesa – direito ao contraditório – e constitui irregularidade, de conhecimento oficioso, e que exige reparação – através da declaração de invalidade da sentença relativa à condenação em indemnização, que deverá ser repetido depois de concedido o contraditório com a possibilidade de requerer a produção de prova em audiência com relevância para a fixação dessa indemnização.

O que traduz circunstância que obsta ao conhecimento do recurso.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se declarar inválida a sentença na parte da indemnização civil e ordenar a sua substituição por outra, após se conceder ao Arguido o direito ao contraditório, nos termos supra indicados.

Sem tributação.

Évora, 29-10-2019

Ana Bacelar Cruz
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[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1.ª Série A.

[2] Lições de Processo Penal, Volume I, página 269.