Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4/18.7GCRMZ.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - O crime de violência doméstica só pode ser praticado em detrimento de determinadas categorias de pessoas, tipificadas na norma incriminadora, que são, em síntese, as enumeradas nas alíneas do nº 1 do art. 152º do CP.

II - Na hipótese prevista na al. d), o agente passivo típico tem de reunir, antes de mais, dois pressupostos, que são coabitar com o agente activo e ser pessoa particularmente indefesa, este último em razão de alguma das seguintes causas típicas: idade (tanto avançada como tenra), doença, deficiência, gravidez ou dependência económica.

III - O ajuizamento sobre se o agente passivo é ou não pessoa particularmente indefesa terá ser efectuado no quadro da sua relação com o agente activo, tomando-se em consideração, se for caso disso, as qualidades deste, que possam reforçar a sua capacidade de se impor ao agente passivo.

IV - Segundo a normalidade das coisas e os padrões de longevidade actuais, um homem de 56 a 58 anos de idade, que não enferme ou tenha alguma vez enfermado de qualquer doença ou deficiência, não pode ser considerado pessoa particularmente indefesa em razão da idade, quando ao agente activo não são conhecidas especiais capacidades ofensivas.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
No Processo Comum nº 4/18.7GCRMZ, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Reguengos de Monsaraz do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, por sentença proferida em 8/2/2019, foi decidido:

Julgar a acusação procedente por provada e, consequentemente:

• Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152.º, n.ºs 1, al. d), e 2 do Código Penal, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova.

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

1) O arguido AA é filho de BB e de MM, já falecida.

2) O arguido sempre viveu com o ofendido BB, actualmente com 76 anos de idade.

3) Inicialmente residiram na antiga Aldeia da Luz, em Mourão e, após desaparecimento desta, passaram a residir ambos na Rua Nova…, Luz, em Mourão.

4) Desde data não concretamente apurada, mas há vários anos e com frequência, o arguido AA, no interior da residência, iniciou discussões com o seu pai BB por este se recusar a dar-lhe dinheiro para comprar bebidas alcoólicas.

5) Revoltado, o arguido chegou a dirigir-se ao seu pai e apertar-lhe o pescoço por ele não lhe dar dinheiro, causando-lhe dores e hematomas.

6) Em datas não concretamente apuradas, mas sempre que o pai se recusava a dar-lhe dinheiro, o arguido dirigia-lhe as seguintes expressões: ladrão, filho da puta, dou-te um tiro que ficas logo estendido.

7) Durante as discussões que tinha com o ofendido, em datas não concretamente apuradas, o arguido chegou a partir mobília, louça e os vidros da porta da residência.

8) No dia 3 de Fevereiro de 2018, pelas 22:00 horas, o arguido e o seu pai tiveram uma discussão em que se insultaram mutuamente junto à residência de EE, na Rua Nova…, em Mourão.

9) Desde 3 de Fevereiro de 2018 que pai do arguido reside com a sua filha CC, …, em Santiago Maior.

10) O arguido consome regularmente bebidas alcoólicas em excesso e não se encontra a trabalhar.

11) O arguido agiu com o propósito concretizado de incutir medo no ofendido, temendo este que aquele atente contra a sua vida ou integridade física.

12) Com as condutas descritas, quis o arguido maltratar, humilhar, ameaçar, ofender e bater no seu pai BB.

13) Agiu o arguido AA com o propósito concretizado de incutir terror permanente no ofendido, de o levar a ser-lhe submisso e a comportar-se do modo que ele pretendia.

14) O arguido quis dirigir ao ofendido as palavras acima descritas, estando ciente que as mesmas atingiam a sua honra e consideração, o que conseguiu.

15) Bem sabia o arguido que as condutas melhor descritas no ponto 5) eram susceptíveis de provocar dores e lesões no ofendido, o que quis e conseguiu.

16) Agiu o arguido indiferente à relação familiar que o une a BB, seu pai e à idade deste, actualmente com 76 anos, bem como aos deveres que para aquele advêm em relação a este, nomeadamente de protecção e respeito, relação e deveres de que o arguido estava bem ciente.

17) O arguido agiu livre, deliberada e voluntariamente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

18) O arguido tem o 3.º ano de escolaridade.

19) É trabalhador agrícola e aufere 700,00 € por mês.

20) Vive em casa arrendada pela qual paga uma renda de 60,00 € por mês.

21) O arguido foi consumidor de bebidas alcoólicas em excesso.

22) O arguido frequenta consultas de alcoologia no Centro de Respostas Integradas do Alentejo Central tendo comparecido às consultas nos dias 15/05/2018, 17/07/2018, 18/09/2018, 13/11/2018, e 10/01/2019.

23) Da avaliação feita pelo CRI ao arguido em Janeiro de 2019 concluiu-se “não haver sinais de consumos abusivos de álcool neste momento”.

24) O arguido já sofreu dez condenações anteriores:
- duas pela prática de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas;

- oito pela prática de crimes de condução de veículo sem habilitação legal.

Tudo conforme certificado de registo criminal de Ref. 28230012, para o qual se remete e se dá aqui por integralmente reproduzido.

A mesma sentença julgou os seguintes factos não provados:

1) Que o arguido desferia murros e pontapés no seu pai quando este se recusava a dar-lhe dinheiro.

2) Que no dia 3 de Fevereiro de 2018, o arguido se dirigiu à residência de EE e iniciou uma discussão com o seu pai, que aí se encontrava, dirigindo-lhe as expressões: filho da puta, mentiroso.

3) Que após abandonou o local em direcção à sua residência.

4) Que o arguido consome regularmente bebidas alcoólicas em excesso.

Da sentença proferida o arguido AA interpôs recurso devidamente motivado, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. O presente recurso vem interposto da Douta sentença que julgou e condenou o Arguido, ora Recorrente, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152, nº 1 al. d) e nº2, do Código Penal, na pena de dois anos e quatro meses de prisão, suspensa na execução por igual período, sujeita a regime de prova.

2. Em 2) e 3) dos factos provados o Tribunal a quo considerou provado que o Arguido sempre viveu com o ofendido, inicialmente na antiga aldeia da luz e posteriormente na Rua Nova na Luz.

3. Salvo o devido respeito, que é muito, da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento resulta conclusão diferente, senão vejamos,

4. No depoimento prestado pelo Arguido, em instâncias do MMº Juiz ((15-01-2019 10:13:51 - 10:46:37)

5. Juiz– O Sr. vivia na Aldeia da Luz? O Sr. Vivia sozinho? Vivia com os seus pais? Arguido- Vivia com os meus pais. Juiz – Desde sempre? Arguido - Sim, sim. Juiz - Então o Sr. continuou a viver com o seu pai foi isso? Arguido - Pronto eu vivi, assim que a minha mãe faleceu fui lá para cima para o norte, para Viana do Castelo a trabalhar. E só vinha de vez em quando a casa. Juiz - Então disse que quando a sua mãe faleceu o Sr. foi para Viana do Castelo? Arguido - Sim, a trabalhar. Juiz - E quando é que regressou? Arguido - Isso foi ao fim de um ano, um ano e meio. Juiz -E depois quando regressou foi viver para onde? Arguido - Fui trabalhar além para o pé de Barrancos.

6. Juiz - E esteve lá a viver? Ficou lá a viver em Barrancos? Arguido - Fiquei lá a viver. Juiz - E quanto tempo é que lá ficou? Arguido - Para aí, também foi um ano ou um ano e pouco. Juiz - E então e depois ao fim deste ano, ano e pouco o que é que, para onde é que foi? Arguido - Eu depois ainda fui para Portel. Arguido- E depois de Portel eu fiz aí umas asneiras a conduzir sem carta, fui preso.

7. Apesar de alguma imprecisão quanto a datas resulta do depoimento do Arguido que este, após o falecimento da sua mãe, viveu alguns períodos em Viana do Castelo, em Barrancos e em Portel, tendo ainda cumprido períodos de prisão efetiva.

8. A própria testemunha NM, cujo depoimento foi tão tido em conta pelo Tribunal a quo, confirmou que o arguido durante alguns períodos esteve fora a trabalhar.

9. Em instâncias da Digna Magistrada do MP, referiu a testemunha NM (15-01-2019 – 10:55:26 – 11:13:37): MP - Pronto mas confirma que o seu tio esteve a trabalhar em Viana do Castelo....Testemunha - Segundo o que eu ouvia sim, eu não tinha contacto nenhum... MP - Mas o que eu lhe quero perguntar é, a Sr.ª diz que às vezes ele não estava lá. Não estava lá porque não vivia lá ou não estava lá porque naquele momento estava fora de casa? Testemunha - Houve alturas depois da minha avó ter falecido, que era raro encontrá-lo lá em casa mas eu encontrava-o lá em casa às vezes.... Depois houve um período sim em que ele não tava lá e até foi a minha tia que me disse que ele estava a trabalhar fora, tinha ido para fora.

10. Portanto, tendo em conta o que supra se referiu, não podia o Tribunal a quo ter considerado provado que o arguido SEMPRE viveu com o ofendido, uma vez que da prova produzida em audiência de discussão e julgamento resulta exatamente o contrário.

11. Em 4) dos factos provados o Tribunal considerou provado que “Desde data não concretamente apurada, mas há vários anos e com frequência, o arguido AA, no interior da residência, iniciou discussões com o seu pai BB por este se recusar a dar-lhe dinheiro para compar bebidas alcoólicas.”Este facto foi transposto, ipsis verbis, da douta acusação pública. Na nossa modesta opinião, estamos perante um facto assente em imputações genéricas e sobre esta questão a nossa Jurisprudência tem-se pronunciado.

12. Veja-se, a propósito, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora nº 9336/17.0T8STB.E1, disponível em www.dgsi.pt. Ou ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães nº 204/10.8GASRE.c1 também disponível em www.dgsi.pt.

13. Em 5) dos factos provados o Tribunal a quo considerou provado que “revoltado, o arguido chegou a dirigir-se ao seu pai e apertar-lhe o pescoço por ele não lhe dar dinheiro, causando-lhe dores e hematomas”

14. O Tribunal fundou a sua convicção no depoimento prestado pela testemunha NM que, além de conter diversas contradições vem, de forma absolutamente extraordinária e excessivamente pormenorizada, relatar situações, que a terem ocorrido, o que muito sinceramente duvidamos, ocorreram há mais de 20 anos. Mais ainda quando é a própria testemunha e a sua irmã, crianças com cerca de nove anos de idade que conseguem “parar” a fúria do arguido, batendo-lhe com o que tinham à mão. O ofendido tem atualmente 76 de idade, mas há 20 anos tinha 56, não era certamente a pessoa frágil que é hoje!!

15. Ainda assim, admitindo por mera hipótese que este facto ocorreu como descrito pela testemunha NM, o que se admite sem conceder, sempre diremos que a testemunha referiu que o arguido apertou o pescoço ao ofendido quando este o tentou impedir de retirar enxovais do quarto onde a testemunha dormia com a sua irmã.

16. Por isso, mesmo valorando com total credibilidade o depoimento da testemunha nesta parte, o Tribunal a quo não podia considerar provado que o arguido a recusado a dar-lhe dinheiro, quando não foi isto que resultou do depoimento da testemunha. Tal como não podia ter considerado provado que com a referida conduta o arguido causou dores e hematomas ao ofendido uma vez que nenhuma prova foi feita quanto a esse facto!!

17. Ainda assim, estamos mais uma vez perante uma imputação genérica que dificulta o direito ao contraditório do arguido!

18. Considerou o Tribunal a quo que o arguido dirigiu ao ofendido as expressões “ladrão, filho da puta, dou-te um tiro que ficas logo estendido”.

19. Perguntamo-nos nós: de onde retirou o Tribunal esta conclusão? Não sabemos!

20. O arguido, em instâncias do MMº Juiz refere (15-01- 2019 10:13:51 - 10:46:37): Juiz- Então mas espere pronto... viveu lá em casa com o seu pai...mas discutiam, haviam discussões entre vocês os dois?Arguido- Às vezes ele zangava-se comigo e eu depois zangava-me com ele. Juiz - E qual era o motivo da, da zanga? Arguido - Oh, às vezes ele quando se alevantava começava-me logo a ofender. Juiz - E ofendia-o porquê? Arguido - Quando, quando não ia trabalhar, ficava em casa a descansar, depois começava-me a chamar nomes e eu .. Juiz –E depois o senhor o que é que dizia? Arguido – E depois eu, não lhe dizia nada, voltava-lhe as costas e ia-me embora.

21. Questionado diretamente pelo MM.º Juiz sobre estas expressões: Juiz- E nunca chamou nomes ao seu pai? Por causa disso de ele não lhe emprestar dinheiro ?Arguido – Não, não. Juiz – Diz aqui ladrão, filho da puta, dou-te um tiro ficas logo estendido? Alguma vez lhe disse isto? Arguido -Não, Não. Juiz- Não? Arguido - Não.

22. A testemunha NM, em instâncias da Digna Magistrada do MP refere (15-01-2019 – 10:55:26 – 11:13:37): Testemunha –Chamava nomes mas ao meu avô não era tanto porque o meu avô passava o dia fora de casa a trabalhar. Era só à noite. MP -E que nomes é que a Sr.ª ouvia o seu tio a chamar ao seu avô? Testemunha -Chamava-lhe filho da puta, cabrão, não valia nada.

23. A testemunha EE, em instâncias da Digna Magistrada do MP refere (15-01-2019 – 11:14:07 – 11:25:32): MP -E quem é que iniciava essas discussões? Testemunha -Tanto faz. Tanto um como outro sempre gostaram da pinga. Umas vezes era um outras vezes era outro. Mas fica sempre além, nunca passava dali. MP-Só se insultavam é isso? Testemunha- Pois.

24. Com o devido respeito, que é muito, da prova produzida e que supra se transcreveu não resulta minimamente provado que o Arguido tenha proferido as expressões “ladrão, filho da puta, dou-te um tiro que ficas logo estendido” como entendeu o Tribunal a quo. Apenas a testemunha NM refere que o Arguido dirigiu ao ofendido a expressão “filho da puta e cabrão”.

25. A testemunha EE refere que arguido e ofendido se insultavam um ao outro nunca referindo quais as expressões utilizadas e, o arguido em momento algum refere ter dirigido estas expressões ao ofendido, questionado directamente sobre estas expressões negou tê-las proferido.

26. Portanto parece-nos claro e evidente que não foi produzida prova suficiente para que o facto 6) fosse considerado provado, persistindo sim uma dúvida insanável quanto às expressões que poderão ter sido proferidas. Posto isto ficamos com uma certeza: existe uma dúvida insanável e devia o Tribunal a quo ter decidido a favor do Arguido.

27. A este propósito veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 07P1416 de 11-07-2007 disponível em www.dgsi.pt.

28. E, acrescentamos nós, mais uma vez estamos perante uma imputação completamente inócua e vaga!

29. h) No facto provado 7) o Tribunal a quo considerou provado que “Durante as discussões que tinha com o ofendido, em datas não concretamente apuradas, o arguido chegou a partir mobília, louça e os vidros da porta da residência”.Sobre esta questão do mobiliário e louça partida o MM.º Juiz questionou o arguido 15-01-2019 10:13:51 - 10:46:37)

30. Juiz – Então nunca houve assim discussões lá em casa de chamar nomes um ao outro? E partir objectos lá de casa (..) Arguido – Não Sr. Juiz – Não?Arguido – Não, Não.

31. Diretamente sobre os vidros da porta, alegadamente partidos pelo arguido, a sua Defensora, por intermédio do MM.º Juiz questionou (15-01-2019 10:13:51 - 10:46:37): Defensora – Diz aqui no ponto 7 da acusação que foram partidos vidros da porta da residência. Gostaria que fosse perguntado ao arguido quem é que partiu os vidros da porta? Juiz- Houve alguém que tivesse partido vidros de uma porta?Arguido – Isso foi o meu pai. Esqueceu-se da chave lá dentro e depois foi pedir um escadote à minha tia para ir buscar a chave e ele partiu o vidro.

32. Juiz – Ele é que partiu o vidro da porta? Arguido – Sim, sim. Juiz- Para abrir a porta? Arguido – Para abrir a porta sim, sim. Juiz- Mas essa era a porta da casa

33. A testemunha NM sobre o mesmo facto e em instâncias da Digna Magistrada do MP responde (15-01-2019 – 10:55:26 – 11:13:37): MP - Olhe e a Sr.ª alguma vez viu, ou o seu avô lhe referiu, já referiu que o seu tio bateu com um martelo na parede e que danificou uma parede da casa. E há outras coisas que, que tenha destruído lá em casa de que tenha, tenha estragado? Testemunha - Ele partia era as coisas dele. Coisas de casa não. MP- Loiças, móveis? Testemunha - Móveis não, era as coisas dele, do quarto dele.

34. A testemunha EC sobre o mesmo facto e em instâncias da Digna Magistrada do MP responde (15-01-2019 – 11:14:07 – 11:25:32): MP Olhe e o seu tio às vezes destruiu coisas, nas discussões, alguma vez assistiu? Testemunha -Não.

35. O Arguido nega ter partido objetos e, quanto ao vidro da porta partido esclareceu que foi o ofendido que o partiu para conseguir entrar em casa uma vez que se esqueceu das chaves no seu interior. Das testemunhas ouvidas nenhuma confirmou que o arguido tivesse alguma vez partido mobiliário, loiça ou vidros de uma porta.

36. Portanto, com o devido respeito, mais uma vez o Tribunal fez uma errada apreciação da prova, considerando provado um facto que deveria ter considerado não provado.

37. Eis que chegamos ao facto provado 10), o qual não podemos apreciar isoladamente. Antes temos que o analisar em conjunto com o facto provado 19), 21) e o facto não provado 4). de quem? Arguido – Da casa dele.

38. No facto provado 10) o Tribunal a quo considerou provado que “o arguido consome regularmente bebidas alcoólicas em excesso e não se encontra a trabalhar”; No facto provado 19) considerou provado que “É trabalhador agrícola e aufere 700,00 € por mês; No facto provado 21) considerou provado “O arguido foi consumidor de bebidas alcoólicas em excesso.” ,

39. E considerou não provado 4) “Que o arguido consome regularmente bebidas alcoólicas em excesso”. Com o devido respeito, que é muito, parece-nos haver aqui alguma contradição.

40. A frase “o arguido consome regularmente bebidas alcoólicas em excesso e não se encontra a trabalhar” já referida no ponto 12 da Douta acusação pública, sem qualquer suporte probatório, é transposta para a Douta sentença, também aqui sem qualquer suporte probatório.

41. Uma “leitura” atenta de todos os depoimentos prestados na audiência de julgamento onde foi várias vezes referido, pelo arguido e pelas testemunhas que tanto à data dos alegados factos como no presente o arguido sempre se encontrou a trabalhar, nomeadamente como trabalhador agrícola, levaria a uma conclusão totalmente oposta.

42. Não compreendemos por isso onde se funda a convicção do Tribunal, que o levou a considerar como facto provado que o arguido não se encontra a trabalhar para depois, uns pontos mais à frente vir considerar como provado que o arguido é trabalhador agrícola e aufere 700,00 € mensais. Ter-se-á tratado de um lapso, certamente.

43. Também em absoluta contradição “O arguido consome regularmente bebidas alcoólicas em excesso” e “o arguido foi consumidor de bebidas alcoólicas em excesso”. Consome ou consumiu? E é não provado que consome bebidas alcoólicas em excesso? Ficamos sem compreender.

44. O facto de o arguido ter sido ou ser consumidor de bebidas alcoólicas foi abordado por diversas vezes ao longo de toda a audiência, e questionado tanto ao arguido como às testemunhas. Parece-nos que, para confirmar o alegado pelo ofendido, de que o crime era cometido após o ofendido se recusar a entregar ao arguido o dinheiro que este solicitava para adquirir bebidas alcoólicas.

45. Tentou-se a todo o custo provar que o arguido padecia de uma adição, fosse essa uma condição necessária para a prática do crime e quiçá até elemento do tipo.O arguido negou ter uma adição, referindo beber umas cervejas com uns amigos depois do trabalho, a testemunha NM tentou vincar a sua convicção, a de que o arguido consumia bebidas alcoólicas de forma excessiva para depois até vir afirmar que até só bebia mais ao fim de semana porque durante a semana se encontrava a trabalhar. A testemunha EE referiu que o arguido, em alguns fins de semana consumia bebidas alcoólicas e até apanhava “alguma bebedeira”.

46. O arguido, por imposição do Tribunal, frequentou consultas de alcoologia no Centro de Respostas Integradas do Alentejo Central, nos dias 15-05-2018, 17-07-2018, 18-09-2018, 13-11-2018 e 10-01-2019, conforme facto provado 22) e prova documental junta aos autos pelo arguido. Uma vez que no processo não constava qualquer informação sobre as referidas consultas o arguido solicitou a elaboração de relatório que conclui dizendo que, no momento, não existem sinais de consumo abusivo de álcool.

47. Salvo o devido respeito, o arguido deslocou-se cinco vezes ao Centro de Respostas Integradas do Alentejo Central onde, em cada uma das deslocações realizava análises ao sangue e à urina para detetar a presença de álcool e estupefacientes, análises essas que tiveram sempre um resultado negativo, não fazendo qualquer outro tipo de tratamento.

48. O facto de o relatório médico elaborado, junto aos autos pelo arguido, dizer que o mesmo não tem no momento qualquer problema de dependência, não significa que já tenha tido, trata-se de uma questão de atualidade, relacionada com o facto de no momento em que o relatório é elaborado e, na sequência dos exames complementares de diagnóstico realizados no período aí descrito os seus resultados serem negativos.

49. Até porque quem tem uma dependência de álcool não a trata de um momento para o outro nem em cinco deslocações para fazer análises e, se a tivesse, o relatório elaborado teria sido muito mais explícito.

50. Em suma, é certo que o arguido trabalha e sempre trabalhou e, é certo também, que não consome bebidas alcoólicas em excesso tendo este facto sido corretamente julgado não provado. Mas também não poderia o tribunal a quo ter considerado provado que o arguido consumiu bebidas alcoólicas em excesso, se alguma vez consumiu, além de consideramos que é uma questão irrelevante, também não foi produzida prova suficiente.

51. Quanto aos factos provados 11) O arguido agiu com o propósito concretizado de incutir medo no ofendido, temendo este que aquele atente contra a sua vida ou integridade física. 12) Com as condutas descritas, quis o arguido maltratar, humilhar, ameaçar, ofender e bater no seu pai BB.13) Agiu o arguido AA com o propósito concretizado de incutir terror permanente no ofendido, de o levar a ser-lhe submisso e a comportar-se do modo que ele pretendia.

52. 14) O arguido quis dirigir ao ofendido as palavras acima descritas, estando ciente que as mesmas atingiam a sua honra e consideração, o que conseguiu.

E 15) Bem sabia o arguido que as condutas melhor descritas no ponto 5) eram susceptíveis de provocar dores e lesões no ofendido, o que quis e conseguiu.

53. Com toda a fundamentação supra aduzida e da prova produzida em audiência de julgamento, não entendemos onde fundou o Tribunal a sua convicção para afirmar e dar como provado o facto 11). É, e bem, considerado facto não provado que o arguido tenha alguma vez desferido murros e pontapés no ofendido, portanto como é que o arguido incutiu medo ao ofendido fazendo-o temer sobre a sua vida e integridade física? Através de que conduta? Qual foi o facto gerador desse temor? Não sabemos.

54. No facto provado 12) é referido que com as condutas descritas (...) que condutas? Incutiu terror permanente no ofendido, levando-o a ser-lhe submisso e a comportar-se do modo que pretendia? De onde resulta esta afirmação? Onde se fundamenta? Mais uma vez, e com o devido respeito, o Tribunal a quo transpôs para a sentença argumentos utilizados na Douta acusação pública e cujo suporte probatório é inexistente! E mais uma vez deu como provados factos assentes em imputações genéricas e vagas.

55. O facto 14) remete-nos para o que já referimos supra sobre o facto 6), da prova produzida e que supra se transcreveu não resulta minimamente provado que o Arguido tenha proferido as expressões “ladrão, filho da puta, dou-te um tiro que ficas logo estendido” como entendeu o Tribunal a quo.

56. Por último, sobre o facto provado 15). e como já nos pronunciamos, admitindo por mera hipótese que o arguido tenha, há 20 anos, apertado o pescoço do ofendido, o que muito sinceramente não nos merece qualquer credibilidade, estamos perante uma imputação genérica que torna impossível o direito ao contraditório e põe em causa as garantias de defesa do arguido. Onde está a prova de que o ofendido tenha sofrido dores e lesões?

57. Em suma, como já tivemos oportunidade de referir quando nos pronunciamos acerca do facto provado 4), uma condenação penal não pode ter por base imputações genéricas. Bastante clara é a nossa Jurisprudência sobre esta matéria. Do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães parte do qual já transcrevemos, é ainda possivel retirar o seguinte:

58. “Pelo princípio do contraditório garante-se a cada uma das partes do processo que exponha as suas razões, ofereça as suas provas e se pronuncie sobre as razões e provas apresentadas pelos demais. Do mesmo modo, na sua formulação negativa, este princípio proíbe qualquer limitação do direito de defesa, designadamente o direito de se pronunciar sobre elementos juntos ao processo.

59. Alegando-se de forma genérica está-se a tentar ultrapassar dificuldades processuais. Deixa de haver preocupações processuais comezinhas: a natureza do crime? Público, semi-público, particular? Existência de queixa? Caducidade desse direito? Prescrição?…

60. Trata-se de violência doméstica, o crime “borracha” que apaga preocupações processuais e dispensa grande rigor na linguagem, investigação, instrução e prova nos autos. As dificuldades de investigação, instrução e prova podem ser relevantes neste tipo de crime ocorrido entre paredes. Para isso deve haver compreensão. Não pode haver compreensão para uma universalizada generalização que perverte os princípios penais e processuais penais.

61. Tudo neste tipo é incompatível com uma generalização factual sob pena de futura ineficácia do tipo, para além da presente violação dos mais elementares direitos de defesa, um intolerável achincalhamento do contraditório.

62. Numa aproximação à solução que defendemos diremos que não é aceitável ter-se como legal dar como provado, por exemplo, que «desde o casamento até à separação - ocorrida 10, 20, 30 anos depois -, o arguido deu socos e pontapés à esposa e chamou-lhe puta», ou que «deu socos e chamou puta muitas vezes», ou outras formulações semelhantes.

63. Ter como legal uma imputação deste teor, aceitar este tipo de descrição factual, significaria o abandono de todo o rigor na investigação e prova dos factos neste tipo de crime, tal como foi salientado no acórdão da relação de Évora.

64. Depois se, por via disso, se concluísse que o agente cometeu um tal crime durante, por exemplo, 20 anos, pensamos que seria incompreensível, em regra, suspender a execução da pena de prisão que se aplicasse.

65. “Quanto à consequência de serem dados como provados factos genéricos, vagos e sem possibilidade de qualquer concretização, tratando-se de factos insusceptíveis de fundarem uma condenação entendemos, como muitas outras decisões têm entendido, que os mesmos se têm por não escritos.”

66. Reiteramos e subscrevemos inteiramente estas palavras que transcrevemos do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães nº 204/10.8GASRE.c1.

67. E concluímos também da mesma forma: os factos genéricos que constam da Douta sentença, e onde se funda a condenação do arguido, devem ter-se por não escritos e, portanto, como NÃO PROVADOS!

68. Nestes termos e nos mais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se e revogando-se a douta sentença recorrida pelos fundamentos supra expostos, sendo o Recorrente ABSOLVIDO do crime de Violência Doméstica p. e p. pelo artigo 152º do Código Penal,

Assim se fará, JUSTIÇA!

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito suspensivo.
O MP respondeu à motivação do recorrente, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - Inconformado com a douta sentença proferida nos autos (que o condenou, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, na pessoa do ofendido, BB, seu pai), veio dela recorrer o arguido AA.

2.ª - As conclusões da motivação do recurso são extraordinariamente importantes, sendo a razão de ser da sua exigência, por um lado, apelar ao dever de colaboração das partes, a fim de tornar mais fácil, mais pronta e mais segura a tarefa de administrar a justiça, e, por outro, fixar a delimitação objectiva do recurso, indicando concreta e precisamente as questões a decidir.

3.ª- A reprodução da motivação, em modo de conclusões, equivale à sua falta, pelo que, não corrigindo tal vício o recorrente AA, deve o seu recurso ser rejeitado.

4ª – Resultou da prova produzida nos autos que o arguido sempre viveu em casa de seus pais, primeiramente com ambos e, após o decesso de sua mãe, apenas com o seu pai, embora, em certos períodos de tempo tenha trabalhado fora de Mourão e tenha cumprido pena de prisão efectiva.

5ª – Durante a vivência em comum, o arguido injuriou, humilhou e agrediu fisicamente o ofendido.

6.ª - Tal factualidade ficou plasmada na matéria de facto provada com os números 2 e 3).

7ª – Refere o arguido que o referido no ponto 4) dos factos provados é uma “imputação vaga”, cita e transcreve jurisprudência, mas nenhuma consequência retira no caso concreto.

8ª – O arguido foi regularmente notificado da acusação pública contra ele deduzida nos autos e não arguiu qualquer nulidade relativamente à mesma.

9ª - O arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, estando em causa em tal ilícito, não uma punição autónoma de cada um dos actos que integram o seu conceito, mas um comportamento reiterado ao longo dos anos, sendo este comportamento reiterado, que sustentou a sua condenação.

10ª - Há comportamentos, sancionados pelo direito, em relação aos quais não é humanamente exigível a concretização, quanto a dia e hora, de todos os actos que os integram, como sucede, necessariamente e considerando a natureza do ilícito, no caso dos autos, em que as condutas do arguido se repetiram durante anos a fio.

11ª - Não é exigível à vítima (e ao Tribunal) a obrigação (ou a capacidade) de definir inúmeros actos, prolongados no tempo, e de os concretizar em termos de dias, meses e horas.

12ª – Não faz sentido admitir que o direito penal substantivo puna um comportamento, que seja indemonstrável face às regras do direito processual.

13ª - O facto descrito em 4) traduz não um comportamento específico do arguido, mas a reiteração das suas condutas para com o ofendido, assim integrando (em conjunto com a demais factualidade provada) o conceito do crime de violência doméstica que lhe vinha imputado.

14ª – Os factos elencados como 5), 6) e 7) resultaram demonstrados, sem qualquer dúvida, do depoimento da testemunha NM, sobrinha do arguido e neta do ofendido, que com eles viveu durante cerca de 15 anos e que de forma isenta, credível e coerente relatou ao Tribunal a vivência em comum e as reacções exacerbadas do arguido, para com os seus progenitores, face à recusa destes em financiarem os seus vícios e soube descrever episódios concretos de violência (física e verbal) do arguido para com o ofendido.

15ª – A referida testemunha descreveu o episódio de agressão física descrito no ponto 5), as injúrias elencadas no ponto 6), e, bem assim, o modo como o arguido destruía mobiliário, loiça e outros bens de casa dos progenitores, tal como descrito no ponto 7).

16ª - O depoimento desta testemunha foi, quanto àquela factualidade, secundado pelos depoimentos das testemunhas EE e AN.

17ª – Tem razão o arguido, devendo ter-se por não escrita a primeira parte do ponto 10) dos factos provados, “o arguido consome regularmente bebidas alcoólicas em excesso”, já que o mesmo é contraditado pelo ponto 21) dos factos provados e 4) dos factos não provados e da fundamentação da sentença.

18ª – Os factos 11), 12), 13), 14) e 15) resultam das regras da lógica e da experiência comum, atentas as circunstâncias do caso concreto e dos casos de violência doméstica, em geral, sendo que, demonstrando-se a demais factualidade, também os factos respeitantes ao elemento subjectivo do ilícito imputado ao arguido se tinha que dar por demonstrados.

19ª – Os factos demonstrados nos autos integram a prática, pelo arguido, do imputado crime de violência doméstica, na pessoa de seu pai, que era, na data dos factos mais recentes por que foi condenado, pessoa com 76 anos de idade.

20ª – De fato, durante anos a fio, coabitando com o ofendido, o arguido dirigiu-lhe insultos, ameaças e humilhações e agrediu-o fisicamente em, pelo menos, uma ocasião, apertando-lhe o pescoço com as mãos.

21ª – O arguido tinha, pois, manifesto ascendente sobre a vítima, impondo-lhe agressões manifestamente incompatíveis com a sua dignidade, enquanto pessoa humana.

22ª – As condutas do arguido, perpetradas na pessoa do ofendido, incutiram-lhe tal medo que este se viu obrigado a sair daquele que sempre foi o seu lar, e refugiar-se em casa de uma filha, só tendo conseguido regressar quando, no âmbito dos presentes autos e na sequência das medidas de coacção aplicadas, o arguido saiu de sua casa.

23ª – Não podia, pois, ser outra a decisão do Tribunal a quo se não a de condenar o arguido pelo crime de que vinha acusado, como, sem mácula, fez.

24ª - Improcedem, pois, todos os fundamentos invocados no recurso interposto pelo arguido AA, não merecendo o mesmo provimento.

25.ª – Por outra via, a douta sentença recorrida não merece qualquer censura, porquanto fez uma correcta interpretação da prova produzida e subsunção dos factos ao direito, pelo que, não padecendo de qualquer vício, nem tendo violado qualquer disposição legal deve ser mantida na íntegra.

26ª - Com o que farão Vossas Excelências a habitual J U S T I Ç A!!

Pela Digna Procuradora-Geral Adjunta junto desta Relação foi emitido parecer sobre o mérito do recurso, defendendo a respectiva improcedência.

O parecer emitido foi notificado ao recorrente, para sobre ele se pronunciar, nada tendo respondido.
Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância da sentença recorrida, que transparece das conclusões do recorrente, centra-se na impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com o consequente pedido de absolvição do arguido do crime por cuja prática foi condenado em primeira instância.

No entanto, antes de entrarmos na apreciação da pretensão recursiva, propriamente dita, cumpre que no ocupemos de uma anomalia de que a sentença recorrida padece.

Ainda que sem retirar daí qualquer juízo de desvalor jurídico-processual, o recorrente censura à sentença recorrida, nesta parte, com razão, a contradição consistente em ter julgado o mesmo facto, simultaneamente, como provado e como não provado, respectivamente, no ponto 10 da matéria assente e no ponto 4 da não provada, a saber: «O arguido consome regularmente bebidas alcoólicas em excesso».

Temos entendido que a emissão pelo Tribunal, no mesmo acto decisório, de juízo probatório afirmativo e negativo sobre o mesmo facto integra o vício da decisão previsto na al. b) do nº 2 do art. 410º do CPP, na modalidade da contradição insanável na fundamentação.

O nº 1 do art. 426º dispõe:
Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.

De acordo com a disposição legal reproduzida, o reenvio do processo à primeira instância, para novo julgamento, não é consequência, por assim dizer, automática da verificação de algum dos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do CPP, mas apenas quando o vício for obstáculo ao conhecimento do recurso.

No caso presente, a necessidade do reenvio depende de saber se é ou não possível reconstituir a vontade decisória do Tribunal «a quo» relativamente ao facto descrito na parte inicial do ponto 10 da matéria provada e no ponto 4 da matéria não provada.

O actual ponto 10 da matéria assente corresponde no essencial ao artigo 12º da acusação deduzida pelo MP a fls. 146 a 148 e o tempo verbal nele utilizado (presente do indicativo) identifica-se com o chamado «presente histórico», ou seja, não se reporta ao tempo da dedução da acusação, mas sim da prática dos factos acusados.

De todo o modo, a atitude do arguido em relação ao consumo de álcool, ao tempo da prolação da sentença recorrida, encontra-se reflectida nos pontos 22 e 23 da matéria provada, dos quais consta que o arguido frequenta consultas de alcoologia no CRI do Alentejo Central e que última avaliação efectuada por essa entidade revela «não haver sinais de consumos abusivos».

No ponto 21, o Tribunal julgou ainda provado que o arguido «foi» (pretérito perfeito) «consumidor de bebidas alcoólicas em excesso», o que não há certeza de se reportar ao tempo da prática dos factos, já que as únicas condutas do arguido, que foram dadas como provadas em julgamento e que poderão em abstracto relevar para o preenchimento do crime por que ele responde, são as descritas nos pontos 5, 6 e 7, da matéria assente e não se encontram minimamente situadas no tempo, podendo considerar-se implícito que ocorreram em data anterior ou, pelo menos, não posterior, a 3/2/2018, dia em que, conforme foi dado como provado no ponto 9, o ofendido foi residir com a sua filha CC.

Neste contexto, não existe espaço lógico para um juízo probatório afirmativo sobre o consumo abusivo de álcool pelo arguido no presente histórico da acusação, que é o do ponto 10 da matéria assente.

Consequentemente, será determinada no segmento decisório do presente acórdão a alteração à redacção do ponto 10 da matéria provada no sentido de dela excluir a locução «consome regularmente bebidas alcoólicas em excesso», dando-se como sanado o vício detectado.

A propósito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, convirá recordar que tem vindo a constituir jurisprudência constante dos Tribunais da Relação a asserção segundo a qual o recurso sobre esta matéria não envolve para o Tribunal «ad quem» a realização de um novo julgamento, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos, mas antes tem por finalidade o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham afectado a decisão recorrida e que o recorrente tenha indicado, e, bem assim, das provas que, no entender deste, impusessem, e não apenas sugerissem ou possibilitassem, uma decisão de conteúdo diferente.

No caso em presença, pretende o recorrente, em síntese, que este Tribunal julgue não provados os factos descritos nos pontos 2 a 7 e 11 a 17 da matéria assente.

A pretensão recursiva em matéria de facto assenta na desvalorização, para efeitos de convicção dos depoimentos das testemunhas NM e EE e na correspondente valorização das declarações prestadas pelo arguido.

Ora, expende-se na sentença recorrida, para motivação do juízo probatório (transcrição com diferente tipo de letra):

III – MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
A convicção do Tribunal, quanto aos factos provados, alicerçou-se na articulação de todos os meios de prova disponibilizados nos autos, devidamente combinados com as regras de experiência comum, bem como nas declarações do arguido e nos depoimentos das testemunhas ouvida na audiência de julgamento.

O arguido prestou declarações e negou que alguma vez tivesse insultado ou batido no seu pai fosse por que motivo fosse, negando assim os factos de que vinha acusado. Confirmou, porém, não ter uma boa relação com o seu pai, sobretudo depois que a sua mãe faleceu. O arguido referiu ter vivido boa parte da sua vida na casa dos pais, na Aldeia da Luz, em Mourão, mas salientou que nos últimos anos viveu em Viana do Castelo, Barrancos, e Portel, sendo que também passou alguns períodos no estabelecimento prisional a cumprir penas de prisão efectivas. Com esta alusão aos locais por onde viveu quis o arguido demonstrar que jamais poderia ter cometido os actos de que vem acusado porquanto não se encontrava a residir em casa do pai. Também referiu que não tinha discussões com o seu pai por questões de dinheiro porque sabia que ele não lho dava e por isso não insistia com ele. Quando precisava de dinheiro, pedia ao seu tio JJ. Em relação à discussão que teve com o pai junto à residência da sua sobrinha EE, em Fevereiro de 2018, o arguido explicou que o pai é que tinha dado origem à discussão porque utilizou na mota a gasolina que o arguido tinha guardado para colocar na motosserra.

As testemunhas BB e CC, pai e irmã do arguido, respectivamente, optaram por não prestar depoimento ao abrigo do disposto no art. 134.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal.

A testemunha NM, trabalhadora num lar de idosos, sobrinha do arguido e neta do ofendido, viveu até aos 15 anos na casa dos seus avós na Aldeia da Luz. Durante esse tempo, o seu tio António também vivia na mesma casa e, recorda-se a testemunha, que ele costumava tratar mal os avós por eles não lhe darem dinheiro para álcool e estupefacientes. A testemunha invocou um episódio ocorrido quando tinha 9 anos de idade, em que o arguido chegou à noite a casa e foi buscar um conjunto de lençóis ao quarto onde dormia para obter dinheiro para comprar estupefacientes. Quando o avô apareceu, o arguido dirigiu-se a ele e apertou-lhe o pescoço.

Noutras ocasiões, o arguido desatava aos pontapés à mobília da casa e chamava o avô de “filho da puta” e “cabrão” por ele se recusar a dar-lhe dinheiro para álcool e drogas. Mesmo a testemunha e a sua mãe e irmã acabavam também por ser visadas pela ira do arguido, que as ofendia igualmente. Refere que estas discussões com o seu avô eram uma constante na vivência daquela casa e que o seu avô ficava com medo do arguido.

Por ter vivido durante 15 anos na mesma casa que o arguido e o ofendido, o depoimento desta testemunha afigurou-se bastante credível.

A testemunha EE, trabalhadora num lar de idosos, também sobrinha do arguido e neta do ofendido, explicou a discussão que o arguido e o pai tiveram na sua casa em Fevereiro do ano passado. Referiu que o arguido tinha ido almoçar a sua casa e enquanto estavam ali a conversar apareceu de mota o pai do arguido. A discussão gerou-se quando o arguido descobriu que o pai tinha enchido o depósito da mota com a gasolina que tinha guardada em casa para pôr na motosserra para ir cortar lenha. Disse a testemunha que os dois começaram a insultar-se mutuamente, até que o arguido se foi embora. Sobre outros episódios que tivesse presenciado, a testemunha referiu que era habitual os dois discutirem quando o arguido lhe pedia dinheiro para álcool ou tabaco, mas que depois tudo se resolvia a bem, nunca tendo visto o arguido a bater no ofendido.

Sobre este episódio ocorrido em Fevereiro de ano passado, depôs ainda a testemunha MN, trabalhadora agrícola, reformada, vizinha do ofendido, tendo a mesma referido ter ouvido os dois discutirem junto à casa da testemunha EE por causa de gasolina. Também se apercebeu em outras ocasiões que o arguido discutia com o seu pai por este se recusar a dar-lhe dinheiro.

Por fim, foram ouvidas as testemunhas SG, padeiro, primo do arguido, e RC, motorista de transportes públicos, amigo do arguido, que referiram terem ficado surpreendidos quando souberam que o arguido estava acusado pela prática deste crime contra o seu pai pois conheciam-no como sendo uma pessoa que gostava de ajudar os outros e de não criar problemas.

Pois bem, o Tribunal fundou a sua convicção sobre os factos provados com base nos depoimentos das testemunhas da acusação, designadamente da testemunha NM, sobrinha do arguido, que durante 15 anos integrou o agregado familiar do arguido e do ofendido, tendo presenciado diariamente a convivência entre os dois. As reacções exacerbadas que o arguido tinha perante a recusa do seu pai em dar-lhe dinheiro para gastar em álcool, tal como descritas pela testemunha, são, por sua vez, consentâneas com um certo ressentimento que notámos nas declarações prestadas pelo arguido quando se referiu à má relação que tem com o seu pai. De facto, se, como o arguido revelou, de cada vez que precisava de dinheiro era ao seu tio que recorria, então era porque já sabia que da parte do seu pai não iria obter o que queria. As testemunhas EE e MN também confirmaram que as discussões que os dois tinham eram por causa de dinheiro, o que reforçou a credibilidade do depoimento da testemunha NM.

Face ao exposto, deu o Tribunal como provados os factos constantes da acusação.

Foram ainda tidas em consideração as regras da experiência comum relativamente aos casos de violência doméstica que, sendo perpetrados no interior da residência em comum, são silenciados e não costumam ter testemunhas presenciais, sendo que o depoimento da testemunha NM, tendo em conta o que presenciou e atenta a sua autenticidade, conjugado com o depoimento da testemunha EE, se revelou como mais do que suficiente para afirmar que o ofendido foi vítima das injúrias, humilhações, e agressões que resultaram provados e que, em consequência dos mesmos, sofreu física e psicologicamente sempre que o arguido discutia com ele.

O Tribunal valorou, ainda, como prova documental, as certidões de assento de nascimento de fls. 132 e 133, 134 e 135.

Quanto ao elemento subjectivo, o Tribunal levou em consideração as ilações retiradas da restante matéria de facto dada como provada, analisada à luz das regras da lógica e da experiência comum, atentas as concretas circunstâncias do caso.

Relativamente às condições económicas e pessoais do arguido, o Tribunal considerou, também, as suas declarações, já que as mesmas se revelaram sinceras e, por isso, dignas de crédito. O Tribunal valorou também a informação clínica de fls. 236 para atestar da ausência de consumos abusivos de bebidas alcoólicas por parte do arguido nos últimos nove meses.

No que aos antecedentes criminais do arguido, foi tido em conta o teor do Certificado do Registo Criminal (Ref. 28230012).

Relativamente aos factos considerados como não provados, tal justifica-se por não ter sido produzida prova que corroborasse tais factos nos termos acima expostos. Muito concretamente, nenhuma testemunha referiu que o arguido tivesse agredido o ofendido com murros e pontapés durante as discussões que se geravam entre os dois. Em relação ao episódio do dia 3 de Fevereiro de 2018, a testemunha EE explicou as razões da discussão entre o arguido e o pai (nada tendo que ver com exigências de dinheiro por parte do arguido) e revelou que os dois se insultaram reciprocamente. Quanto ao facto de o arguido continuar aos dias de hoje com os consumos abusivos de bebidas alcoólicas há que salientar que nenhuma prova foi produzida que contrariasse a informação clínica de fls. 236 que dá conta de uma abstinência de álcool desde meados de Maio de 2018, razão pela qual não demos como provado que o arguido tivesse actualmente um problema de dependência de bebidas alcoólicas.

Procedemos à audição do registo sonoro da prova pessoal com relevo para a apreciação da impugnação em apreço.

Ao contrário do que é usual nos processos pelo crime de violência doméstica, o principal meio de prova em que assentou a convicção do Tribunal não residiu nas declarações o depoimento da pessoa ofendida, porquanto, nos presentes autos, o ofendido BB exerceu a prerrogativa da recusa de depoimento prevista pelo art. 134º nº 1 al. a) do CPP, por ser pai do arguido, o mesmo tendo sucedido com a sua filha CC, irmã do arguido.

Neste contexto, a convicção probatória assentou, relativamente aos factos integradores do crime por que o arguido foi condenado em primeira instância, quase exclusivamente no depoimento da testemunha NM, corroborado, em alguns aspectos, pelo testemunho de EE, ambas netas do ofendido e sobrinhas do arguido.

Não vislumbramos que o depoimento de NM se apresente em algum aspecto contrário aos critérios que devem orientar a livre apreciação da prova, nos termos do art. 127º do CPP, mormente, a experiência comum, a normalidade das coisas ou a lógica geralmente aceite, incorra em incoerência ou a sua autora deixe transparecer algum tipo de parcialidade a favor do ofendido e contra o arguido.

Como tal, não existe razão para denegar a esse depoimento testemunhal o poder de convicção que o Tribunal «a quo» lhe emprestou.

Sucede, porém, que o Tribunal recorrido julgou provados factos que não foram relatados pela testemunha NM no seu depoimento, nem foram demonstrados através de qualquer outro meio probatório, de que natureza seja.

É o caso da expressão referida na parte final do ponto 6 da matéria de facto assente («dou-te um tiro que ficas logo estendido»), que o arguido teria dirigido ao ofendido, e dos hematomas mencionados na parte final do ponto 5 da mesma enumeração, podendo retirar-se de um juízo de experiência comum que o gesto de apertar o pescoço a outrem lhe provoca dores na zona corporal afectada, mas não mais do que isso.

O art. 283º nº 3 al. b) do CPP determina que a acusação tem que conter, sob pena de nulidade, a descrição dos factos, «que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena…», dito por outras palavras, aqueles que integram os elementos típicos de um crime, «incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática…».

A falta de alegação na acusação e, por via dela, na sentença, do circunstancialismo local, temporal e motivacional da prática do crime não determina, em todo e qualquer caso, a nulidade daquela, pois trata-se de um requisito a ser satisfeito, na medida do possível, ou seja, tanto quanto a prova recolhida o permita, tendo sempre como pano de fundo o princípio da descoberta da verdade material e da investigação oficiosa, consagrado, nomeadamente, no art. 340º do CP.

Ora, verifica-se que o depoimento da testemunha NM, a que o Tribunal «a quo» atribuiu credibilidade, permite situar temporalmente, dentro de certos limites, o episódio narrado no ponto 5 da matéria assente, em que o arguido apertou o pescoço ao ofendido.

A testemunha em referência afirmou que tal episódio de agressão ocorreu quando ela contava 8 ou 9 anos de idade.

Dado que, de acordo com a identificação da testemunha NM constante do processo, por exemplo, no auto de inquirição de fls. 101, a mesma nasceu em 18/9/89, a cena por ela relatada, em que o arguido seu tio aperta o pescoço ao ofendido seu avô teve lugar, «grosso modo», entre as datas de 18/9/97 e 18/9/99, nas quais a depoente perfez, respectivamente, 8 e 10 anos de idade.

Não descortinamos razão válida para não reconhecer à localização temporal do episódio a que nos referimos, feita pela testemunha NM, o poder de convicção que o Tribunal «a quo» atribuiu à generalidade do seu depoimento.

Por conseguinte, terá de ser inserido na redacção do ponto 5 da matéria provada a datação do facto ali narrado, tal como decorre da prova agora examinada.

Diferentemente, não se nos afigura que a prova em apreço imponha a alteração do decidido, quanto a ter o arguido durante todo o período temporal em referência residido com o ofendido (pontos 2 e 3) da matéria assente), não obstante aquilo que o recorrente invoca, a propósito de ter estado a viver noutros locais e de ter cumprido penas de prisão efectiva.

É certo que o arguido declarou ter estado a trabalhar em localidades distintas daquela onde residiu com o seu pai, inclusive em locais distantes como Viana do Castelo, o que foi confirmado, pelo menos parcialmente, pelo depoimento da testemunha NM, e o cumprimento, por parte dele, de penas de prisão efectiva é comprovado pelo seu CRC, junto a fls. 33 a 52 dos autos.

A circunstância de o arguido ter trabalhado durante temporadas fora da localidade que era a da sua residência não implicam necessariamente da sua parte o propósito de deixar de integrar o agregado familiar do seu pai e de se autonomizar e a «prova» disso é que voltou para residência comum, a seguir a essas ausências.

Quanto às ausências do lar motivadas pelo cumprimento de penas privativas de liberdade, são irrelevantes para o efeito que nos interessa, pois são alheias à vontade do arguido.

No tocante ao ponto 7, sempre diremos que eventualidade, referida pela testemunha NM de o arguido ter destruído apenas objectos e mobílias existentes no seu quarto não releva, na medida em que, sendo o crime de violência doméstica dirigido contra bens jurídicos eminentemente pessoais, é indiferente a propriedade dos bens atingidos pela conduta incriminada.

Reportando-nos agora à factualidade subjectiva dos pontos 11 a 17 da matéria assente, temos que o conteúdo do ponto 11 corresponde indubitavelemnte à vertente subjectiva da conduta objectiva da parte final do ponto 6 da mesma enumeração, isto é, ter o arguido dito ao ofendido «que lhe dava um tiro, que ficava logo estendido».

De acordo com análise da prova que efectuámos no presente acórdão julgou-se não provado que o arguido tivesse dirigido ao ofendido a enunciada expressão, pelo que deverá também ser relegada para a matéria não provada a atitude subjectiva que lhe corresponde.

No ponto 12, deu-se como provado que o arguido quis praticar diversas acções na pessoa do seu pai, entre elas «maltratar».

Nos termos do disposto no proémio do nº 1 do art. 152º do CP, o conceito de «mau trato» situa-se no cerne da tipicidade objectiva do crime de violência doméstica, por cuja prática o arguido foi condenado pela sentença recorrida, razão pela qual o verbo a que lhe corresponde («maltratar») deve ser pura e simplesmente excluído da matéria de facto provada ou não provada.

O verbo «ameaçar «deverá seguir para a matéria não provada a frase transcrita no ponto 6 «in fine» e conduta subjectiva do ponto 11, o mesmo devendo acontecer ao verbo «bater», já que a única conduta do arguido, em detrimento da integridade física do ofendido, que resultou provada (apertar o pescoço), não se reconduz à noção corrente da palavra «bater», que podemos resumidamente definir como «desferir golpes ou pancadas no corpo de uma pessoa».

Quanto ao verbo «humilhar», importa dizer que não é evidente que as apuradas condutas do arguido, com as restrições que lhes foram introduzidas pelo presente acórdão, sejam, em termos de normalidade, idóneas a causar a ofendido tal efeito, tanto mais que quase nada se sabe sobre o circunstancialismo em que foram praticadas.

Por fim, no que se refere ao verbo «ofender» e tendo presentes as suas acepções mais correntes, cumpre distinguir se estamos a falar de uma ofensa à honra e consideração, se de uma ofensa à integridade física.

A vertente subjectiva das ofensas à honra e consideração e das ofensas à integridade física encontra-se já consignada nos pontos 14 e 15 da matéria provada, sem prejuízo da necessária exclusão da palavra «lesões» do segundo desses pontos, pelo que é redundante a sua menção no ponto 12.

Em relação ao ponto 13, temos que a conduta do arguido em detrimento da pessoa do ofendido se resume um episódio isolado de agressão contra a integridade física e um número indefinido de ofensas à honra e consideração, tendo deixado de incluir ameaças de tiros de arma de fogo, o que se nos afigura claramente insuficiente para provocar no ofendido um «estado de terror permanente», se tivermos em consideração, para mais, que entre a ocorrência desse episódio agressivo e a apresentação da queixa que deu origem aos autos (3/2/2018) decorreu um mínimo de 17 anos e é da experiência que impacto psíquico negativo dos acontecimentos tende a desvanecer-se com o tempo.

Nesta perspectiva, interessa recordar as condutas descritas no ponto 7, dirigidas contra objectos materiais, mas não resulta claro do circunstancialismo apurado, se o arguido pretendeu através delas intimidar o ofendido, ou se eram, pelo contrário, uma expressão do seu sentimento de frustração por não ter conseguido que o ofendido abrisse mão a seu favor das importâncias monetárias por ele exigidas.

O teor do ponto 16 deverá manter-se inalterado, com excepção da referência aí feita à idade do ofendido de 76 anos.

Em consequência das alterações introduzidas na matéria de facto provada e não provada, no presente acórdão, o único episódio factual de que o arguido foi agente activo, que se mostra minimamente situado no tempo, ocorreu nos anos de 1997 a 1999.

Nos termos de identificação do ofendido, que constam do processo, desde logo do auto de notícia que lhe deu início (fls. 4), BB nasceu em 22/5/42, pelo que contava apenas 56 a 58 anos de idade, quando os mesmos factos aconteceram.

Não existem razões para alterar o teor do ponto 17, pois não há dúvidas que o arguido actuou conscientemente, de livre vontade e sem a isso ter sido coagido e que, conforme adiante melhor se verá, a sua apurada conduta é integradora de crime, ainda que não necessariamente aquele por cuja prática foi condenado em primeira instância.

Consequentemente, impõe-se atribuir procedência parcial à impugnação da decisão sobre a matéria de acto e determinar no trecho decisório do presente acórdão a seguinte alteração da matéria de facto provada e não provada:

- Relega-se para a matéria não provada os factos descritos nos pontos 11, 12 e 13 da matéria provada;

- Os pontos 5, 6, 15 e 16 da matéria provada passam a ter seguinte redacção:

«5) Em data não apurada, situada entre 18/9/97 e 18/9/99, revoltado, o arguido chegou a dirigir-se ao seu pai e apertar-lhe o pescoço por ele não lhe dar dinheiro, causando-lhe dores.

6) Em datas não concretamente apuradas, mas sempre que o pai se recusava a dar-lhe dinheiro, o arguido dirigia-lhe as seguintes expressões: ladrão, filho da puta.

15) Bem sabia o arguido que as condutas melhor descritas no ponto 5) eram susceptíveis de provocar dores no ofendido, o que quis e conseguiu.

16) Agiu o arguido indiferente à relação familiar que o une a BB, seu pai, bem como aos deveres que para aquele advêm em relação a este, nomeadamente de protecção e respeito, relação e deveres de que o arguido estava bem ciente».

- Acrescenta-se à matéria não provada os seguintes pontos:

5) Ao praticar os factos descritos no ponto 5 da matéria provada, o arguido causou ao seu pai hematomas.

6) Sempre que o pai se recusava a dar-lhe dinheiro, o arguido dirigia-lhe a expressão: «dou-te um tiro que ficas logo estendido».

7) Ao praticar os factos descritos no ponto 5 da matéria provada, o arguido quis e conseguiu causar lesões ao seu pai.

8) Agiu o arguido indiferente à idade de BB, seu pai, actualmente com 76 anos.

Importa retirar da alteração da matéria de facto fixada pela primeira instância as consequências jurídicas que se imponham.

O crime de violência doméstica, na modalidade preenchida pelo recorrente, é tipificado pelo nº 1 do art. 152º do CP, nos seguintes termos

Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
(…)
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

O crime por que o recorrente responde só pode ser praticado em detrimento de determinadas categorias de pessoas, tipificadas na norma incriminadora, que são, em síntese, as enumeradas nas alíneas do nº 1 do art. 152º do CP.

Na hipótese prevista na al. d), o agente passivo típico tem de reunir, antes de mais, dois pressupostos, que são coabitar com o agente activo e ser pessoa particularmente indefesa, este último em razão de alguma das seguintes causas típicas: idade (tanto avançada como tenra), doença, deficiência, gravidez ou dependência económica.

Se bem compreendemos, de acordo com a tese que triunfou na acusação e na sentença recorrida, o ofendido BB, coabitante com o arguido seu filho, seria pessoa particularmente indefesa, em razão da sua idade avançada, 76 anos ao tempo dos factos incriminados, ou, mais exactamente, à data do facto (3/2/2019), que motivou a apresentação da queixa, que deu origem ao processo.

Contudo, depois das alterações introduzidas na matéria de facto pelo presente acórdão, a única das condutas parcelares, pelas quais o arguido responde, que se mostra minimamente localizada no tempo, ocorreu entre os anos de 1997 e 1999, altura em que o ora queixoso mediava entre os 56 e os 58 anos de idade.

O ajuizamento sobre se o agente passivo é ou não pessoa particularmente indefesa terá ser efectuado no quadro da sua relação com o agente activo, tomando-se em consideração, se for caso disso, as qualidades deste, que possam reforçar a sua capacidade de se impor ao agente passivo.

No caso em apreço, sabemos apenas, com eventual interesse para questão, que o arguido, de acordo com os seus elementos de identificação constantes do relatório da sentença recorrida, nasceu em 1/1/72, situando-se na faixa etária dos «vinte e tal anos», na época a que nos reportamos.

Tudo visto, não se nos afigura que, segundo a normalidade das coisas e os padrões de longevidade actuais, um homem de 56 a 58 anos de idade possa ser considerada particularmente indefesa em razão da idade, quando ao agente activo não são conhecidas especiais capacidades ofensivas, como é o caso.

Da factualidade apurada não decorre que o ofendido enferme ou tenha alguma vez enfermado de qualquer outra das causas típicas, a que se refere a al. d) do nº 1 do art. 152º do CP, a saber, doença, deficiência ou dependência económica, estando, por natureza, excluída a eventualidade da gravidez, por ser o ofendido do sexo masculino.

Assim, teremos de concluir que, ao tempo em que ocorreu o facto lesivo da sua integridade física descrito no ponto 5 da matéria provada o ofendido BB não era pessoa particularmente indefesa, para o efeito do preenchimento do tipo criminal da violência doméstica na modalidade da al. d) do nº 1 do art. 152º do CP.

Depois das alterações introduzidas pelo presente acórdão, a matéria de facto provada inclui como únicas condutas do arguido susceptíveis de relevar para o preenchimento do crime, além da descrita no ponto 5, as expressões reproduzidas no ponto 6, lesivas da honra e consideração do ofendido.

Por serem dirigidas contra objectos materiais, as condutas relatadas no ponto 7 não relevam para integrar o crime de violência doméstica, na medida em que este tutela bens jurídicos eminentemente pessoais, a não ser que, por razões específicas, que, no caso, não se descortinam, a destruição ou inutilização de determinado objecto seja fonte de sofrimento físico e/ou psíquico para outrem.

As expressões reproduzidas no ponto 6 não se apresentam datadas ou minimamente situadas no tempo.

O princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no nº 2 do art. 32º da CRP, obsta a que qualquer insuficiência factual seja resolvida em detrimento dele.

Por conseguinte, sendo desconhecido o momento temporal em que o arguido dirigiu ao ofendido as expressões constantes do ponto 6 da matéria assente, tão pouco poderá partir-se do princípio que o ofendido era, na altura em que arguido lhe as proferiu, pessoa particularmente indefesa em razão da idade.

Assim sendo, as apuradas condutas do arguido não são idóneas a integrar o tipo criminal da violência doméstica, em virtude de o ofendido não reunir as qualidades típicas necessárias, pelo que terá o arguido de ser absolvido desse crime.

Aqui chegados, cumpre ainda averiguar se as mesmas condutas são ou não susceptíveis de preencher algum tipo criminal especificamente dirigido contra a integridade física ou a honra e consideração.

Desde a reforma da lei penal substantiva introduzida pelo DL nº 48/95 de 15/3 que o crime de ofensa à integridade física simples é tratado pelo art. 143º do CP.

Ao tempo dos factos descritos no ponto 5 da matéria assente, vigorava a redacção do art. 143º do CP aprovada pelo DL nº 48/95 de 15/3, sendo o seu nº 1 do seguinte teor:

Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

O texto agora reproduzido manteve-se no essencial inalterado até à actualidade.

Os factos descritos nos pontos 5, 15 e 17 da matéria assente são de molde a integrar a tipicidade objectiva e subjectiva do tipo criminal agora em referência.

Na versão em vigor ao tempo dos factos, a agravação qualificativa do crime de ofensa à integridade física vinha prevista no art. 146º do CP, nos termos seguintes:

1 - Se as ofensas previstas nos artigos 143.º, 144.º ou 145.º forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com a pena aplicável ao crime respectivo agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.

2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132º.

O nº 2 do art. 132º do CP estabelece uma série de exemplos-padrão cuja verificação pode servir de fundamento à qualificação do crime de homicídio, sendo um deles o facto de o crime ter sido praticado contra ascendente (alínea a)).

A qualificação do crime homicídio prevista no nº 1 do art. 132º do CPP, extensiva aos crimes de ofensa à integridade física, assenta na técnica dos chamados exemplos-padrão, cuja verificação seria indiciadora da especial censurabilidade ou perversidade do agente, justificativa de um acréscimo da penalidade abstractamente aplicável, encontrando-se os referidos exemplos definidos, mas não exaustivamente, nas alíneas do nº 2 do mesmo artigo.

É hoje ponto assente que os exemplos-padrão do nº 2 do art. 132º do CP não são de funcionamento automático, ou seja, não basta a verificação de qualquer das situações factuais tipificadas nesse normativo para que a qualificação do crime opere.

Contudo, podemos alvitrar que de todos os exemplos-padrão do nº 2 do art. 132º do CP o previsto na al. a) será porventura aquele cujo funcionamento levantará normalmente menos discussão.

Com efeito, uma vez verificada uma determinada relação de parentesco, por um lado, a paternidade ou maternidade, por outro, a filiação (ou as correspondentes posições na relação de adopção), à qual estão, por via de regra, laços profundos de afecto e de respeito, o facto de o agente activo ter sido capaz de vencer as contra-motivações éticas particularmente fortes, que o deveriam tê-lo inibido de atentar contra a vida ou a integridade física do agente passivo, torna especialmente censurável o seu comportamento.

Nesta ordem de ideias, a qualificação só deixará de operar na hipótese de os laços de afecto e respeito inerentes à referida relação familiar, por alguma razão, não necessariamente imputável ao agente passivo, não existam ou tenham deixado de existir.

Conforme resulta da matéria de facto assente, o arguido e o ofendido mantêm e mantiveram uma relação marcada pela conflitualidade, mas que, apesar disso, não se afasta do paradigma de normalidade evocado.

Como tal, a apurada conduta do arguido dirigida contra a integridade física do seu pai terá de ser considerada especialmente censurável, sendo idónea a integrar um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 143º nº 1, 146º nºs 1 e 2 e art. 132º nº 2 al. a) do CP, na redacção em vigor ao tempo dos factos, ao qual era cominada, em alternativa à pena de multa, pena de prisão de 40 dias a 4 anos.

Em virtude da moldura punitiva que lhe corresponde, o procedimento por tal crime encontrava-se sujeito ao prazo de prescrição previsto na al. c) do nº 1 do art. 118º do CP, que era de 5 anos.

Os factos integradores do crime, a que agora nos reportamos, ocorreram em data indeterminada, situada entre 18/9/97 e 18/9/99.

Resulta abundantemente dos autos que, pelos factos que foram objecto processo, não foi instaurada qualquer outro procedimento que não o actual, que se iniciou com a apresentação de uma queixa em 3/2/2018.

Nesta conformidade, o prazo prescricional correu contínuo até ao seu termo, assim determinando a extinção por efeito da prescrição do procedimento pelo crime agora referência.

O crime de injúria é tipificado pelo nº 1 do art. 181º do CP:
Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.

Os factos descritos nos pontos 6, 14 e 17 da matéria provada são aptos a preencher a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de injúria.

Para o crime agora em causa, vigora a norma do proémio do nº 1 do art. 188º do CP., que determina que o respectivo procedimento criminal depende de acusação particular.

A este respeito, dispõe o nº 1 do art. 50º do CPP:
Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.

O presente processo iniciou-se com uma queixa apresentada pelo ofendido BB, mas este, na ulterior tramitação processual não se constituiu assistente, nem deduziu libelo acusatório particular.

Da situação processual constatada resulta a ilegitimidade do MP para acusar pelo crime de injúria e a inviabilidade legal de cognição do mesmo por este Tribunal.

Consequentemente, não poderá o arguido ser sujeito a qualquer condenação.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

a) Julgar verificado o vício sentença de contradição insanável na fundamentação previsto na al. b) do nº 2 do art. 410º do CPP e declarar o mesmo sanado, por via da alteração da redacção do ponto 10 da matéria de facto provada, consignada a fls. 25 do presente acórdão e que aqui se determina;

b) Conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida, nos termos das alíneas seguintes;

c) Determinar a alteração da matéria de facto provada e não provada, consignada a fls. 37 e 38 da presente acórdão;

d) Absolver o arguido de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º nºs 1 al. d) e 2 do CP, por que vinha acusado;

e) Declarar extinto por efeito da prescrição o procedimento relativo a um eventual crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143º nº 1, 146º nºs 1 e 2 e 132º nº 2 al. a) do CP, na redacção introduzida pelo DL nº 48/95 de 15/3;

f) Julgar o MP parte ilegítima para acusar por um eventual crime de injúria p. e pelo art. 181º nº 1 do CP e não conhecer da acusação, nesta parte.

Sem custas.
Notifique.

Évora, 11/7/2019 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Póvoas Corvacho)


(João Manuel Monteiro Amaro)