Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
16/21.3T8ORM.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
CITAÇÃO
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I- O quinto dia a que se refere o artigo 327.º, n.º 2, do Código Civil, ocorre ainda dentro do prazo de prescrição; caso tal prazo já se tenha esgotado nesse dia, não se aplica o benefício da interrupção da prescrição.
II- A Lei n.º 1-A/2020 entrou em vigor no dia 12 de Março de 2020 por ser a data da aprovação do diploma em Conselho de Ministros, nos termos do artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 16/21.3T8ORM.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) instaurou a presente Acção declarativa sob a forma Comum contra as RR. (…) e (…), pedindo que as RR. sejam condenadas a pagar à A., a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia de 6.769,73 euros, e ainda dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação.
Alegou que se deslocou a um posto de abastecimento de combustíveis pertencente à R. (…) para abastecer a sua viatura. Que, depois de pagar o preço do combustível, pisou um objecto perfurante que se encontrava na posição vertical no posto de combustíveis, furando um pé e sofrendo lesões no mesmo.
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A R. (…) contestou invocando a excepção de que não será responsável pela situação em causa nos autos, na medida em que a mesma integra uma cláusula de exclusão prevista no contrato de seguro celebrado com a R. (…). Além disso, a R. (…) veio impugnar a veracidade dos factos tal como descritos pelo A. na P.I. Termina que a acção seja julgada improcedente por não provada, e que a R. seja absolvido do pedido.
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A R. (…) contestou a presente acção invocando a excepção da sua ilegitimidade na presente acção. Além disso, a R. (…) veio igualmente invocar a excepção de prescrição do direito da A. reclamado na presente acção. Acresce que a R. (…) veio impugnar a veracidade dos factos tal como descritos pelo A. na P.I.
A A. veio apresentou resposta à contestação em que impugna as excepções deduzidas pelas RR.
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Foi elaborado despacho saneador em que se indeferiu a excepção de ilegitimidade invocada pela R. (…).
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Depois de realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença cuja parte decisória é a seguinte:
Decide-se julgar totalmente improcedente a presente acção, por não provada.
Além disso, julga-se procedente a excepção deduzida pela R. (…) de prescrição do direito reclamado pela A. à indemnização pela situação em causa nos autos, com a consequente extinção do mesmo.
Em conformidade, decide-se indeferir todos os pedidos formulados pela A. nos presentes autos.
Deste modo, decide-se absolver as RR. de todos os pedidos deduzidos pela Autora.
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Desta sentença recorre a A. alegando que não se verifica a excepção da prescrição.
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A R. (…) contra-alegou defendendo que a prescrição se verifica.
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A matéria de facto é a seguinte:
Tendo em conta a prova produzida nos presentes autos, consideram-se demonstrados os seguintes factos:
1- A A. nasceu em 04-09-1987.
2- A A. exerce a actividade profissional de cabeleireira, por conta própria, explorando um salão de cabeleireiro, onde trabalha sozinha.
3- No dia 24 de Outubro de 2017, a A. deslocou-se ao posto de abastecimento de combustíveis da R. (…), sito na Rua (…), em Ourém, a fim de abastecer o seu veículo automóvel.
4- O posto de abastecimento referido em 3) encontra-se equipado com um sistema que permite a realização da operação de pagamento através de um terminal de pagamento automático fixo não assistido, instalado numa ilha junto às mangueiras abastecedoras de combustível.
5- Na ilha referida em 4) existiam dois objectos de natureza metálica e perfurante, que se encontravam fixos no solo e em posição vertical, que se encontram retratadas nas fotos juntas de fls. 11, verso, e 12, sem qualquer marcação que os assinalasse.
6- Na sequência, a A. efectuou o pagamento do preço correspondente ao combustível com que abasteceu o seu veículo no terminal referido em 4).
7- Na sequência, ao regressar para a sua viatura, a A. pisou um dos objectos referidos em 5).
8- Na sequência, o objecto perfurou a sola do calçado da A., penetrou no pé direito desta última, formando aí um orifício em forma de casa de botão, conforme se encontra representado na foto junta a fls. 17.
9- A situação referida em 8) provocou uma forte dor no pé direito da A.
10- Em seguida, a A. deslocou-se ao Centro de Saúde de Ourém, onde lhe deram uma vacina contra o tétano, e procederam ao tratamento da lesão referida em 8), colocando-lhe um penso no pé, na zona onde existia o orifício mencionado em 8).
11- Na sequência, a A. deslocou-se de novo ao posto de abastecimento referido em 3), onde falou com as testemunhas (…) e (…).
12- A A. enviou à R. (…) o e-mail que se encontra junto a fls. 14, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
13- No dia 25 de Outubro de 2017, a A. foi observada pela sua médica de família, na extensão da Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados de Ourém, sita em (…), a qual devido à lesão no pé, referida em 8), lhe emitiu o certificado de incapacidade temporária, cuja cópia se encontra junta a fls. 17, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, do qual resultava que a A. ficaria numa situação de incapacidade temporária para o trabalho entre o dia 25-10-2017 e o dia 5-11-2017.
14- A A. permaneceu no seu domicílio, ficou sem exercer a sua actividade profissional, sem obter qualquer rendimento e com o salão de cabeleireira que explorava encerrado, durante o período temporal referido no certificado de incapacidade mencionado em 13), ou seja entre 25-10-2017 e 5-11-2017.
15- Após o termo do período temporal referido em 14), a Autora retomou a sua actividade profissional continuando a sentir dores, designadamente quando fazia o movimento de pousar o pé no chão.
16- Ainda após o termo do período temporal referido em 14), a ferida no pé da A. não cicatrizou por completo, segregando pus.
17- No dia 6 de Dezembro de 2017, a A. consultou um médico especialista, Dr. (…), para este analisar a situação da ferida no seu pé.
18- Na sequência, o Dr. (…), encaminhou a A. para o serviço de urgência médico-cirúrgica da Unidade de Abrantes do Centro Hospitalar Médio-Tejo, onde a sujeitou a uma operação cirúrgica com vista a debelar a situação da ferida no pé, tendo para o efeito procedido à extracção de fragmento circular de borracha, limpeza ampla, com desbridamento de tecido desvitalizado.
19- No dia 7 de Dezembro de 2017, na sequência da operação cirúrgica referida em 18), a médica de família da A., na extensão da Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados de Ourém, sita em (…), emitiu-lhe o certificado de incapacidade temporária, cuja cópia se encontra junta a fls. 20, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, do qual resultava que a A. ficaria numa situação de incapacidade temporária para o trabalho entre o dia 7-12-2017 e o dia 18-12-2017.
20- A A. permaneceu no seu domicílio, ficou sem exercer a sua actividade profissional, sem obter qualquer rendimento e com o salão de cabeleireira que explorava encerrado, durante o período temporal referido no certificado de incapacidade mencionado em 19), ou seja entre 7-12-2017 e 18-12-2017.
21- Entre a data referida em 3) e o termo do período temporal referido em 20), a A. sentiu dores permanentes no pé que sofreu a lesão.
22- No período temporal correspondente aos meses de Outubro a Dezembro de 2017, a A. auferiu o rendimento líquido de 1.550,93 euros.
23- No período temporal correspondente aos meses de Outubro a Dezembro de 2016, a A. auferiu o rendimento líquido de 2.461,41 euros.
24- Nos períodos temporais referidos em 14) e 20), não foi pago qualquer subsídio de doença à A.
25- Em consultas, exames, tratamentos e cirurgia às suas lesões, a A. gastou as seguintes quantia: a) Consulta no Centro de Saúde de Ourém, em 24-10-2017, a quantia de 4,50 euros; b) Consulta na extensão de Saúde de (…), em 25-10-2017, a quantia de 4,50 euros; c) Penso para tapar a lesão no pé no Centro de Saúde de (…), Ourém, em 25-10-2017, a quantia de 3 euros; d) Penso para tapar a lesão no pé no Centro de Saúde de Ourém, em 27-10-2017, a quantia de 4,50 euros; e) Penso para tapar a lesão no pé no Centro de Saúde de (…), Ourém, em 31-10-2017, a quantia de 1,20 euros; f) Consulta de cirurgia geral na Clínica Médica (…), em 24-11-2017, no montante de 35 euros; g) Exame complementar de diagnóstico realizado no C.R.T. – Centro de Radiologia de Tomar, em 27-11-2017, a quantia de 16 euros; h) Consulta no Centro de Saúde de Ourém, em 3-12-2017, a quantia de 4,50 euros; i) Consulta de cirurgia geral na Clínica Médica (…), em 6-12-2017, a quantia de 35 euros; j) Episódio de urgência no Centro Hospitalar do Médio Tejo, em 7-12-2017, a quantia de 16 euros; l) Consulta na Extensão de Saúde de (…), em 7-12-2017, a quantia de 4,50 euros; m) Penso para tapar a lesão no pé no Centro de Saúde de Ourém, em 8-12-2017, a quantia de 1,20 euros; n) Penso para tapar a lesão no pé no Centro de Saúde de Ourém, em 10-12-2017, a quantia de 1,20 euros; o) Penso para tapar a lesão no pé no Centro de Saúde de Ourém, a quantia de 1,20 euros; p) Consulta de cirurgia geral na Clínica Médica (…), em 19-12-2017, a quantia de 35 euros.
26- A A. gastou as seguintes quantias em medicamentos para tratamento às suas lesões: 1) em 24-10-2017, a quantia de 7 euros; 2) em 31-10-2017, a quantia de 15,25 euros; 3) em 7-12-2017, a quantia de 10,85 euros.
27- A R. (…) celebrou com a R. (…) um contrato de seguro de responsabilidade civil, o qual se encontra titulado pela apólice n.º (…), que se encontra em vigor, cujas condições particulares, condições especiais, e as condições gerais se encontram juntas de fls. 73 a 82, e que, tanto num caso como no outro, se dão aqui por integralmente reproduzidas, através do qual foi segurada a responsabilidade civil extracontratual legalmente imputável à R. (…), por danos patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causadas a terceiros, por danos resultantes do exercício da actividade de comércio de combustíveis, gás, postos de abastecimento/estações de serviço, postos de venda de carburantes situados ao longo dos eixos rodoviários, até ao limite de 1.595,300 euros, por sinistro e por ano.
28- Ficou ainda estabelecida no contrato mencionado em 27) que, em caso de sinistro, a R. (…) suportaria uma franquia contratual correspondente a 10% do valor da indemnização apurada, com um valor mínimo de 50 euros, e um valor máximo de 500 euros.
29- Consta das condições especiais do contrato de seguro referido em 27), entre outras, a seguinte exclusão de garantia do seguro: “- Pelo incumprimento das Leis, normas e regulamentos que regem o exercício da actividade segura ou medidas de segurança que a lei ou o uso recomendam”.
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A A. sofreu o acidente em 24 de Outubro de 2017.
A acção foi proposta em 9 de Janeiro de 2021.
Embora este último facto não seja o determinante (a citação é que é), o certo é que a lei concede a possibilidade de o prazo ter-se por interrompido logo que decorram cinco dias depois de ela ter sido requerida – artigo 323.º, n.º 2, do Código Civil.
Em termos gerais, a citação ocorreria no dia 24 de Outubro de 2020 e, face às datas que se expuseram, dúvidas não haveria que o direito estava prescrito.
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A sentença afirmou que a A. tem o direito a ser indemnizada, embora não pela totalidade dos valores pedidos. Mas entendeu também que o direito à indemnização estava prescrito.
Este é o problema que aqui se discute e que tem que ver com a legislação publicada ao longo de 2020 a respeito da pandemia.
Com efeito, esta legislação introduziu alterações no regime geral da prescrição.
Reproduz-se da sentença (páginas 62-63):
«(…) os prazos de prescrição foram suspensos, por força do artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-3, que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, em 20-3-2020. Essa suspensão dos prazos de prescrição apenas foi levantada através da alteração àquela Lei n.º 1-A/2020, realizada pela Lei n.º 16/2020, de 29-5, que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, em 30-5-2020. Na verdade, esta Lei n.º 16/2020 veio revogar o artigo 7.º, da Lei n.º 1-A/2020. Além disso, o novo artigo 6.º-A, n.º 6, alínea d), introduzido por esta Lei n.º 16/2020, estabeleceu que a suspensão dos prazos de prescrição apenas passaria a aplicar-se aos processos e procedimentos em que estivesse em causa: a) a apresentação do devedor à insolvência; b) os actos a realizar em processos executivos e de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família; c) acções de despejo, procedimentos especiais de despejo, e processos para a entrega judicial de coisa móvel arrendada».
Com base nestas duas Leis, a sentença conclui que a prescrição esteve suspensa 72 dias (entre 20 de Março e 30 de Maio).
A ser assim, o prazo de prescrição terminaria a 4 de Janeiro de 2021.
Citando de novo a sentença (página 63):
«Consequentemente, após adicionar aqueles dois prazos, verifica-se que o prazo de prescrição do direito de indemnização reclamado nos autos pela A. terminou em 4 de Janeiro de 2021.
«Extrai-se ainda dos autos que a petição inicial do presente processo deu entrada neste Tribunal em 9 de Janeiro de 2021. Deste modo, quando ocorreu a instauração da presente acção já tinha decorrido o prazo de 3 anos de prescrição do direito indemnização da A., previsto naquele artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, acrescido dos 72 dias de suspensão do prazo, determinados pela Lei n.º 1-A/2020».
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Diferentemente, a recorrente entende que a suspensão teve o período de 86 dias (entre 9 de Março de 2020 e 2 de Junho de 2020), argumentando que a Lei n.º 1-A/2020 não entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (ao contrário do que se diz na sentença) mas sim em 9 de Março. Com efeito, a referida Lei, no seu artigo 10.º, estatui que a «presente lei produz efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março». Por seu turno, este diploma estabelece, no seu artigo 37.º, o seguinte: o «presente decreto-lei produz efeitos no dia da sua aprovação, com exceção do disposto nos artigos 14.º a 16.º, que produz efeitos desde 9 de março de 2020, e do disposto no capítulo VIII, que produz efeitos a 3 de março de 2020».
Não concordamos.
A regra geral deste dispositivo é que o diploma entra em vigor (produz efeitos) no dia 12 de Março de 2020, data da sua aprovação em Conselho de Ministros. As excepções indicadas em nada contendem com este problema pois que os prazos a que se refere não têm que ver com a prescrição
(justo impedimento, justificação de faltas e adiamento de diligências processuais e procedimentais, encerramento de instalações e atendibilidade de documentos expirados, conforme os artigos 14.º, 15.º e 16.º que, estas regras sim, entraram em vigor a 9 de Março).
Assim, a Lei n.º 1-A/2020 entrou em vigor no dia 12 de Março de 2020.
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Resta retirar daqui as devidas consequências.
O prazo de prescrição esteve suspenso entre 12 de Março de 2020 e 30 de Maio de 2020, o que perfaz 79 dias.
O prazo de prescrição terminaria a 12 de Janeiro, ou seja, 3 dias depois da propositura da acção. Considerando a regra do citado artigo 323.º, n.º 2, temos dentro do decurso dos cinco dias aí referidos a prescrição completou-se. Com efeito, não se pode considerar interrompida a prescrição quando, na data dessa interrupção, o seu prazo já estava integralmente decorrido; para que ela se pudesse aproveitar seria necessário que a acção fosse proposta 5 dias antes do termo do prazo – o que não aconteceu.
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Assim, temos de concluir que está prescrito o direito da Autora.
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Perante as datas expostas, não temos de entrar em linha de conta com a previsão legal de a falta de citação nos cinco dias posteriores depois de ser requerida ser imputável ao requerente (argumento este apresentado pala recorrida).
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela recorrente.
Évora 13 de Janeiro de 2022
Paulo Amaral
Rosa Barroso
Francisco Matos

Sumário: (…)